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A emergência de um novo saber geográfico: o retorno da ciência à filosofia

The emergence of a new geographic knowledge: the return of science to philosophy

Resumos

No cenário atual do conhecimento, a separação outrora traçada entre ciência e Filosofia encontra seu ponto limite, cabendo agora uma nova unidade. A Geografia, nesse contexto geral do saber, encontra a justa forma de sua história fracassada enquanto ciência moderna e, ao mesmo tempo, a função pioneira de para além dos limites caminhar. Perdida em sua falta de unidade investigativa, em sua esquizofrenia Física/Humana, lida a Geografia com o ponto nodal de toda a dificuldade contemporânea do saber, na medida em que, nesse nada ser, busca a compreensão geral da unidade posta ao mundo pela relação do homem com a natureza. Propriamente aqui, onde se funda toda a dificuldade histórica da análise geográfica, toma forma um saber que transcende a barreira criada pela cisão entre Filosofia e ciência.

Filosofia; Ciência moderna; Geografia


In the current scenario of knowledge, the separation between science and Philosophy finds its limit, searching now a new unit. Geography, in this context of knowledge, presents its failed history while modern science and, at the same time, its capacity for moving beyond the limits. Lost in its lack of investigative unit, in its schizophrenia Physical/Human, Geography deals with the nodal point of all contemporary difficulty of knowledge, in that seeks the understanding of the world unit by the relationship of man with nature. Just at this point, where all historical difficulty of geographic analysis is founded, takes form a knowledge that transcends the barrier created by the split between Philosophy and science.

Philosophy; Modern Science; Geography


ARTIGO

Roberison Wittgeinstein Dias da SilveiraI; Antônio Carlos VitteII

IMestre e Doutorando em Geografia pela IG-Unicanp Campinas/SP - Brasil silveira_r@yahoo.com.br

IIDoutor em Geografia Física pela USP, Professor do Departamento de Geografia, Programa de Pós - Graduação em Geografia - IG - Unicamp. Pesquisador CNPq Campinas/SP - Brasil vitte@uol.com.br

RESUMO

No cenário atual do conhecimento, a separação outrora traçada entre ciência e Filosofia encontra seu ponto limite, cabendo agora uma nova unidade. A Geografia, nesse contexto geral do saber, encontra a justa forma de sua história fracassada enquanto ciência moderna e, ao mesmo tempo, a função pioneira de para além dos limites caminhar. Perdida em sua falta de unidade investigativa, em sua esquizofrenia Física/Humana, lida a Geografia com o ponto nodal de toda a dificuldade contemporânea do saber, na medida em que, nesse nada ser, busca a compreensão geral da unidade posta ao mundo pela relação do homem com a natureza. Propriamente aqui, onde se funda toda a dificuldade histórica da análise geográfica, toma forma um saber que transcende a barreira criada pela cisão entre Filosofia e ciência.

Palavras-chave: Filosofia. Ciência moderna. Geografia.

ABSTRACT

In the current scenario of knowledge, the separation between science and Philosophy finds its limit, searching now a new unit. Geography, in this context of knowledge, presents its failed history while modern science and, at the same time, its capacity for moving beyond the limits. Lost in its lack of investigative unit, in its schizophrenia Physical/Human, Geography deals with the nodal point of all contemporary difficulty of knowledge, in that seeks the understanding of the world unit by the relationship of man with nature. Just at this point, where all historical difficulty of geographic analysis is founded, takes form a knowledge that transcends the barrier created by the split between Philosophy and science.

Keywords: Philosophy. Modern Science. Geography

INTRODUÇÃO

Emerge no debate geográfico um novo tempo, imaturo ainda para que a dimensão de sua atividade possa ser reconhecida; para que se vislumbre à distância um ruir que anuncia as formulações que agora se engendram. A Geografia se vê as voltas com um refazer de si que é retorno, que é retomada do que deixado fora em nome de uma especialização do saber sob a figura de uma ciência moderna. Hoje, no alvorecer de seu novo dia, mostra a face deformada, uma caricatura de si em que, símbolo do teatro e da comédia, como é sua história, se parte ao meio em duas expressões distintas.

Trataremos de mostrar que o cenário recente da Geografia, e em especial uma proposta geográfica, anuncia esse quadro de mudanças e faz ver ao olho atento que os sentidos do geográfico precisam mudar porque mudaram, e, o mais importante, que em nosso tempo se põe como fundamental uma nova postura científica, que não por acaso mostra suas primeiras manifestações na Geografia. De maneira mais clara, pretendemos mostrar o caminho suscitado por uma Geografia que pretende, em último sentido, superar uma dicotomia que é a representação acabada do problema geral posto ao saber; falamos, evidentemente, da repisada divisão entre uma Geografia Física e outra Humana. Mostraremos como esse debate reúne toda a dificuldade contemporânea do saber e, mais do que isso, como, por sua manifestação viva no cenário epistemológico geográfico, começa a despontar em sua resposta uma reformulação do saber que será, em pouco tempo, uma necessidade geral de todo conhecer que se pretenda legítimo e que busque mais do que a esfera técnica de controle e atuação.

A RUPTURA ENTRE AFILOSOFIA E A CIÊNCIA MODERNA

A nossa premissa é que há uma tendência geral de aproximação dos campos científicos (BOURDIEU, 2003) com a filosofia que foram separados durante a formação da ciência moderna. É neste cenário que Geografia se edificou como ciência moderna e enfrenta seus problemas epistemológicos a partir dessa carência investigativa de cunho filosófico.

O caminho tomado pela ciência moderna no final do século XVIII e início do século XIX gerou uma série de ramificações e especializações que visavam o domínio cada vez maior da esfera empírica de investigação e que, em contrapartida, excluía do universo científico a busca por uma verdade última ou pelo fundamento essencial da realidade. A ciência moderna, pretensamente buscou a verdade, que seria alcançada por meio da reunião de um conhecimento meticuloso sobre o mundo para a composição de uma explicação cada vez mais sóbria e válida acerca da realidade. Tinha-se a ilusão, como em especial acontece nos campos da Física, da Química e da Biologia, que se caminha, a cada descoberta, na direção da compreensão do que somos, do ser-em-sina direção das respostas elementares e essências de toda existência. Ao longo dos tempos, tal premissa demonstrou-se impossível, pois os campos disciplinares ficaram desconectados de suas premissas filosóficas, no momento de gênese moderna das Ciências.

A primeira premissa filosófica, e que parece relativamente respondida pelas Ciências, é quanto ao caráter material da realidade (BUNGE, 2010). As ciências modernas em geral, e em especial as Ciências Naturais, partem do pressuposto de que seu objeto é um recorte da realidade. Há aqui um duplo problema filosófico: o de apontar um objeto como real e o de sugerir um recorte analítico dessa realidade. Quando falamos de um objeto de análise que é um recorte da realidade estamos dizendo, de partida, que aquilo que examinaremos tem uma existência em si real, ou seja, é atribuída uma primazia da materialidade e uma efetividade do que se dá então como objeto. Essa primeira postura admite que o objeto independente do sujeito, o que, filosoficamente falando, é no mínimo arbitrário. A prova de que realmente assim é compreendido o objeto na ciência moderna pode ser facilmente constatado pela crença de que a compreensão sistemática pela ciência levará à compreensão geral da realidade, enfim, que esta nos conduzirá a alguma verdade(BUNGE, 1981).

Esta crença do cientista fundamenta-se em uma pressuposição filosófica diametralmente oposta à admissão da esfera empírica como coisa em si ou como realidade independente do sujeito. A origem dessa validação do domínio empírico como campo de análise, em termos filosóficos, é dada por Kant (KANT, 1982), que considerou que é a partir do exame crítico das faculdades humanas, em especial da razão, que se chegará à validade e o dimensionamento do empírico como única esfera possível de todo e qualquer conhecimento. É na validação de um pressuposto a priori transcendental (KANT, 1982), enfim, de uma resposta metafísica, que se origina a validade de toda a investigação empírica. Ora, isso é possível porque, em Kant (1982), o fundamento de toda e qualquer coisa que experimentamos como existente, como empírico, é dado de maneira a priori pelas intuições puras de espaço e tempo. Onde as formas de ligação e articulação do mundo são, em geral, postulados necessários dados pelo a priori do entendimento, conforme enunciado na Analítica dos Princípios, da Crítica da Razão Pura, particularmente na segunda e na terceira analogia da experiência (KANT, 1982, p.61-70). Tanto a definição do campo da experiência, quanto às formas de ligação que nele se reconhecem, diz respeito ao sujeito e filosoficamente, o domínio empírico não tem valor como coisa em si, ou seja, o empírico pertence a esfera fenomênica, pressuposta e legitimada pela aceitação dos argumentos expostos por Kant 1982)( na defesa de um a priori da intuição, do entendimento e da razão.

Para Kant (1982) a Ciência (de base newtoniana) não deveria trabalhar com questões filosóficas; erro que o próprio Kant (1992, 1995) tratou de concertar na medida em que percebeu que a metodologia newtoniana não dava conta de explicar as diversidades da natureza, pois a regulação, a ordenação e mesmo o pôr do mundo não poderiam ser admitidos como resultado da experiência e sim como dados a priori, para e no qual nenhum domínio empírico pode algo acrescer. O início de este questionar em Kant, inicia-se com a obra Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza(KANT, 1990), em que o filósofo de Königsberg, permite ao cientista procurar a verdade, que é a composição de explicações e ordenações seguindo as orientações gerais da razão a priori. O cientista não isola um objeto, mas um fenômeno aplicando os pressupostos da faculdade de entendimento, como por exemplo, com o uso dos princípios causais, na compreensão de um dado fenômeno. A conformidade dos princípios adquiridos em um fenômeno pode se estender a todo campo fenomênico, pois se trata de um mesmo domínio dado pelos mesmos pressupostos a priori da razão.

A Ciência Moderna e sua esfera técnica de controle e atuação constroem o fetiche de domínio da realidade, fato que segundo Heidegger (1997) preenche o vazio da metafísica, a Ciência Moderna transforma-se ela no substituto filosófico da modernidade. Para os defensores do indutivismo restaria apenas a busca de uma regularidade que seria fornecida pelo próprio objeto, competindo à razão somente o trabalho de traduzir em linguagem lógica e, de preferência, matemática, as condições gerais de uma ordenação colocada e dada efetivamente pelo mundo. É nesse cenário intelectual que começam a se fortalecer as ciências em seu caráter moderno, com métodos que caminham na direção do objetivo e são construídos de forma diferenciada de acordo com a demanda do objeto. Em poucas palavras, deu-se, com a ignorância da discussão filosófica, a tomada dos pressupostos e conceitos como se fossem já prontamente dados e sem que os cientistas se atentassem para o fato de que a escolha de um método implica, de antemão, uma visão geral da realidade, pela qual se estabelece os princípios e a forma de proceder diante de qualquer objeto e, mesmo, de reconhecer como tal qualquer objeto da ou na experiência.

Mesmo o positivismo lógico guardou alguns dos problemas decorrentes desse fortalecimento da crença na empiria como coisa em si e, o mais importante, no fortalecimento de uma ilusão que leva a crer que as linguagens lógicas e matemáticas são capazes de compor uma ordenação pertencente ao mundo.

No positivismo, o campo dos fenômenos, o espaço geográfico assumiu um caráter de coisa em si, haja vista que a fundamentação empírica dos princípios e das leis gerais da natureza representaria o estágio mais elevado do conhecimento. O método positivo pretendia justamente enxergar a ordenação no campo dos fenômenos e, numa escala do simples para o complexo, compor uma explicação científica acerca da realidade, progredindo, por esse caminho, no rumo da verdade, sem, contudo, atingi-la plenamente. Na base de todo conhecimento as ciências puras como a matemática e a física deveriam estabelecer os fundamentos, a base simples do saber, aumentando em complexidade na Biologia, na Química, até atingir seu ponto máximo de complexidade na esfera social. Significa isso que o agrupamento de informações e dados quantitativos, bem como a especialização do conhecimento necessária e remetidos a uma visão geral de maior complexidade.

A concepção positivista de mundo assumia diferentes formas metodológicas de acordo com os ramos específicos do saber, como na Física onde o fundamento do método é a experiência, na Biologia a comparação, na Astronomia a observação (BORDEAU, 2008), mas todas as metodologias assentavam-se no campo comum do valor da empiria como realidade e no reconhecimento de uma lei que deveria partir do simples para o complexo. Esta concepção representou um recuo significativo da complexidade filosófica, legitimando-se teoricamente na proposição de uma ordem do mundo, a ser descoberta e desvendada pela linguagem matemática.

O positivismo Lógico não se pretendia uma separação entre ciência e Filosofia, ao contrário, imaginava-se, um sistema filosófico que justificava a postura e condução da ciência para além de uma perspectiva fenomênica limitada ao aparato transcendental do sujeito, afinal, tratava-se de apontar os pensamentos teológico e metafísico como formas retrógadas de proposição do saber humano. Entretanto, acabou-se na verdade por suplantar os argumentos filosóficos mais elevados, como o fato necessário de o mundo ser dado para nós, antes de mais, pelo pôr em pensamento. A consideração do mundo e de nós como algo outro é já fruto de um pôr disso tudo por um "eu", de modo que relegar essa importante questão ao universo fantasioso de uma teologia ou a uma pejorativa concepção de metafísica é suprimir elementos da investigação filosófica e simplificar erroneamente a compreensão do que seja a realidade. Assim, a tentativa de compor um sistema filosófico em unidade com a ciência acabou por distanciar ainda mais estes dois domínios, deixando de lado a reflexão necessária sobre as premissas adotadas e admitindo, arbitrariamente, que o mundo poderia ser considerado em si a partir da empiria e que, como tal, seria regulado e retratado por uma linguagem lógico-matemática.

No entanto, não devemos desprezar o positivismo lógico, pois há nele uma proposta filosófica, a tentativa de oferecer uma filosofia capaz de servir como fonte de premissas conceituais para toda e qualquer ramo disciplinar; de modo específico, a linguagem lógico-matemática seria a voz ressoante em todas as áreas do conhecimento, se estendendo desde a Física até a explicação sociológica. A falha, como advertimos, foi propor de forma superficial e rasteira tal sistema, sem as considerações preliminares e sem a investigação mais elevada que exige o tema na Filosofia. Como conseqüência, houve não a unidade que se pretendia, mas um caminho cada vez mais especializado e diferenciado metodologicamente dentro das inúmeras disciplinas científicas. Assim, libertas por Kant da investigação filosófica e, em muitos casos, justificada erroneamente a partir do positivismo, puderam as ciências direcionar seu método às demandas do objeto e do objetivo. Como dissemos anteriormente, a variação metodológica de acordo com o objeto implicou numa diversificação das concepções de mundo subjacentes às teorias e análises em cada ciência. Sem uma investigação filosófico-metafísica ou erroneamente estruturadas sobre um sistema positivista, as ciências começaram, no diferenciar metodológico que exigia seu objeto e seus objetivos, a falar línguas distintas, de maneira que a relação entre elas se tornou mesmo insustentável, imaginando cada uma em seu domínio caminhar no rumo da verdade pela compreensão cada vez mais apurada e detalhada a partir de seus métodos, cujos pressupostos filosóficos nem de longe haviam sido discutidos.

A ciência geográfica encontrasse com todo esse confuso cenário no seu momento de constituição moderna e sistemática, divergindo em larga medida das proposições que originalmente lhe configuraram o objeto e definiram as estruturas metodológicas de sua produção de conhecimento. O passo seguinte do artigo deve ser, portanto, mostrar de que maneira se deu a gênese e a constituição de um saber geográfico moderno dentro desse cenário de ruptura entre ciência e Filosofia e, o mais importante, começar a indicar as dificuldades e problemas epistemológicos decorrentes dessa característica forma de sistematização.

GEOGRAFIA: DE SUA GÊNESE MODERNA À DICOTOMIA FÍSICO/HUMANO

Tomando como ponto de partida a separação entre Filosofia e Ciência, podemos destacar uma característica singular na gênese moderna da Geografia: sua unidade científico-filosófica. Quando falamos dos fundadores do saber geográfico, quase sem nenhuma polêmica, identificamos as proposições de Ritter e Humboldt como as grandes aglutinadoras de um conjunto de trabalhos em torno do que seria o cerne de toda e qualquer investigação que atenda, em seu sentido moderno, pelo nome de geográfica: a expressão das interações e relações entre o homem e natureza. Sabemos que as propostas de Humboldt e Ritter eram integradoras, ou seja, pretendiam e analisavam o mundo em sua interação com o humano sob a perspectiva da unidade(ANDRADE, 2006). Chamadas por Moreira (2006) de holistas, as propostas de Ritter e, em especial, de Humboldt, eram muito mais do que conhecemos hoje sob o nome de ciência, eram, isto sim, um confluir filosófico-científico, no caso de Humboldt, também artístico. E não poderia ser de outro modo, afinal, a tarefa de pensar o mundo em sua unidade, bem seja, a relação entre homem e natureza como coisas indissociáveis, era uma tarefa que, então, não podia se limitar ao universo restrito da ciência e, tampouco, à pura abstração da Filosofia. Tratava-se, de fato, de não só unir homem e natureza, mas pensar como seria possível, na análise do mundo, do "Cosmos", propor em síntese as esferas subjetiva e objetiva, ideal e material. O objeto colocado então como a expressão dessa relação entre homem e natureza estava carregado de um debate filosófico profundo, representado pelas proposições de Kant, Fichte, Goethe, Schelling, Schopenhauer e Hegel, contemporâneos e muitos deles próximos dos referidos autores, especialmente de Humboldt. Assim, quando se pretende aqui falar de gênese da Geografia moderna, fala-se, igualmente, da proposição inicial de uma análise do mundo a partir de uma leitura elevada da relação entre homem e natureza em uma perspectiva científico-filosófica (SILVEIRA, 2008).

Vimos, entretanto, que havia uma tendência geral para a separação entre Filosofia e Ciência no período, não nos esquecendo, evidentemente, que tal tendência, como haveria de ser, estava sendo contrabalançada por propostas que caminhavam na direção oposta, atreladas então ao que se poderia rotular superficialmente como idealismo romântico alemão (BEISER,2003), para não irmos muito além das esferas filosóficas e adentrar nas concepções científicas vitalistas que, inclusive, influenciaram Humboldt. A tendência contrária a uma ruptura entre Filosofia e Ciência, na verdade avessa à separação do saber como um todo, e inclusive do sentimento e suas expressões estéticas e artísticas, foi um importante ponto de referência e mesmo o fundamento intelectual e cultural que permitiu à Geografia uma condição de sistematização moderna extremamente singular, uma vez que, ao contrário do que se supunha então como legítimo campo disciplinar investigativo, com seus domínios específicos, fazia-se, de uma então Geografia Comparada, no caso de Ritter, ou de uma Ciência Humboldtiana do Cosmos, tomada então como geográfica, a construção e constituição de uma ciência cuja característica fundamental era, e só poderia ser pela demanda de seu objeto, a unicidade científico-filosófica. Dizemos que só poderia ser deste modo justamente porque a proposição inicial era a tomada do homem e da natureza em seu caráter unitário, o que a ciência estritamente concebida jamais poderia alcançar metodologicamente, recorrendo, desse modo, ao aporte teórico de uma rica Filosofia acerca do tema no período (CUNNINGHAM e JARDINE,1990; VITTE e SILVEIRA, 2010)

Há vários tratados sobre a gênese da geografia moderna (MORAES, 2002; 2003), MENDOZA et al.; 1994; GOMES, 2000), mas apesar da qualidade e da importância destes trabalhos, entendemos que o principal para a discussão epistemológica da Geografia foi deixado de lado. O caminho habitual de discussão do tema passa pela identificação de uma demanda social e política no cenário da França e Alemanha, em especial no final do século XIX, que culminou na recusa metodológica do que seriam então as investigações geográficas dos fundadores da moderna Geografia(MORAES, 2002). Se pretendermos seguir a linha sugerida por Capel (1981), a do caminho assumido pela institucionalização da Geografia no século XIX, que, para ele, refletia muito mais uma demanda social específica do que um debate conceitual de cunho geográfico deixará à margem uma importante reflexão que modificou estruturalmente o saber geográfico em toda a sua construção histórica. De fato, não há de nossa parte qualquer manifestação que pretenda negar o fato histórico de que a Geografia tomou lugar na academia a partir das demandas sociais de final do século XIX. Entretanto, destacamos que a centralidade das dificuldades epistemológicas que se seguem na Geografia moderna reside efetivamente naquilo que é secundário em Capel (1981): a "lógica interna do conhecimento científico" (p. 80, trad. nossa). Quando se pretende colocar em segundo plano os fundamentos conceituais, dizendo que foram menos importantes do que as suas fontes materiais e sociais e que, quando foram fundamentais acabaram estes conceitos sendo retirados das antigas ciências constituídas e não das propostas inaugurais de Humboldt e Ritter, deixa-se de lado o fato de ser justamente essa desfiguração, aliada a uma manutenção das propostas inaugurais, que levou a inconsistência epistemológica da Geografia moderna.

Vimos que há um cenário geral de separação entre Filosofia e Ciência no momento de formação da ciência geográfica moderna; onde a Geografia toma forma sistemática com as propostas diferenciadas e integradoras de Humboldt e Ritter, quer dizer, propostas que caminhavam na contramão das tendências gerais da Ciência em seu processo de sistematização. Do mesmo modo, acabamos de destacar que o processo de institucionalização e consolidação do saber geográfico não caminhou na direção proposta pelos fundadores da Geografia, acabando por tomar o rumo ordinário dos saberes modernos constituídos, emprestando aqui e acolá os métodos de análise das ciências então constituídas, como a Geologia e a Historia. Entretanto,a noção central de um campo de relação entre o homem e a natureza, então representados na superfície terrestre foi mantida, muito embora houve uma despolitização filosófica desta noção e por consequencia um empobrecimento epistemológico da Geografia. O objeto central da Geografia, justamente esse campo de interação natural e humano seguiu como o centro de sua investigação científica, com conceitos e categorias de análise com significados diametralmente opostos aos empregados pelas formulações originais de Humboldt e Ritter.

Essa continuidade e diferença são por demais evidentes na caracterização da Geografia como ciência de síntese, quer dizer, o sentido de pensar as formas de representação da relação entre o homem e a natureza foi mantido, contudo, a carência de uma estrutura filosófica, gerou a necessidade de compor a Geografia como um grande compêndio de informações geográficas, recolhidas então sob as categorias de região, de território, por exemplo, a fim de, nessa aglutinação espacial dos dados, promover a representação necessária do objeto de estudo da geografia: a integração e expressão das relações humanas e naturais.

As conseqüências dessa tentativa de compreender a expressão da relação entre o humano e o natural, que na origem era uma atividade científico-filosófica, levaram e condenaram o saber geográfico, a partir de sua institucionalização a uma carência epistêmica frente as demais Ciências Humanas. Todavia, como no seu processo de institucionalização e consolidação a Geografia assumiu as características do saber científico moderno, ou seja, distanciou-se da Filosofia em seu caráter investigativo, usando-a somente como cabedal de conceitos e manancial de pressupostos metodológicos, resta que, por seu necessário pensar sobre a natureza e o humano, produziu em si uma fragmentação que vai além da diversidade de método e que representa a quebra de sua unidade investigativa. Estamos falando propriamente da separação entre uma Geografia Física e outra Humana, esse duplo ser que nada mais é, que a reunião no bojo do saber geográfico de interesses e análises que, nem de longe, lembram o propósito que seria central: a expressão da relação entre a natureza e o humano. A unidade que demanda o objeto da Geografia encontra sua forma então nas categorias geográficas de paisagem, região, lugar, território e espaço, como se o simples fato de reunir sob uma mesma categoria tudo aquilo que metodologicamente foi concebido e definido a partir de pressupostos filosóficos opostos e excludentes gera-se, por si, a unidade requerida pelo seu objeto. Aqui realmente se encontra o que se poderia chamar a Geografia enquanto ciência de síntese, ou seja, esse aglutinar de informações e conceitos desconexos em sua origem metodológica como se tal resultasse em uma compreensão integrada do mundo.

A entrada do positivismo lógico (LENCIONI, 1999)nas análises geográficas, de algum modo, pretendia justamente uma unidade metodológica na Geografia, permitindo então que as então desconexas natureza e sociedade pudessem ser concebidas sobre uma base comum e, desse modo, pudessem compor o campo das interações, e não simplesmente a aglutinação das informações pelas categorias geográficas. O positivismo lógico pretendia ser uma confluência entre ciência e Filosofia, e, nesse sentido, poderia ter funcionado para estabelecer uma unidade dos saberes que povoam o universo da Geografia. Não obstante, as formulações gerais positivistas, por seu fraco refletir e propor filosófico, não tinham condições de sustentar como válidas as leituras estritamente simplistas de um mundo posto em uma linguagem lógico-matemática, especialmente quando pretendiam, nessa leitura, retratar o componente humano no campo de interação físico-social. Aqui, o caldo filosófico requerido para conceber a relação do humano com a natureza e, mesmo, para situar e pôr esse humano em sua complexidade, não foi suficiente, e as contradições do que se tinha então como realidade a ser observada distava em grande medida do que propunha explicar a ciência geográfica. Não podemos dizer, que o positivismo lógico foi um projeto científico pouco eficiente, ainda que, todo saiba pelas advertências do pensamento crítico, tenha servido a interesses que representam um longo processo de dominação ideológica e política. Não devemos deixar de notar que no positivismo lógico uma parte considerável do problema epistemológico geográfico estava reduzida, não em favor de uma solução, mas a favor de uma mudança de postura e atitude científica que, de algum modo, resolvia as demandas filosóficas do objeto da Geografia.

Pensada em seu interesse pragmático e estritamente objetivo, a ciência geográfica sob o método positivismo lógico era capaz de colocar numa mesma base, a matemática e a geometrização do espaço,a natureza e o humano. Assim, o humano poderia ser inserido como dado em uma equação matemática, ou seja, como uma variável que responderia, através dos índices estatísticos, a uma série de tendências que, por sua vez, encontravam uma série de variáveis e tendências naturais igualmente exprimidas matematicamente, compondo desse modo um campo de interação físico-humano a partir dos números e projeções matemático-estatísticas. Eficiente, essa leitura atendia bem ao planejamento, atendia à demanda técnica e prática e, acima de tudo, era internamente coerente.

A ciência moderna, em seu abandono da investigação filosófica, não pode caminhar no rumo da compreensão da realidade e, tampouco, na elucidação de qualquer verdade, afinal, trata de utilizar o método para atender as demandas do objeto e do objetivo e nunca de resolver as questões fundamentais da realidade ou de chegar ao campo das essências (o debate ontológico-metafísico). Assim, o positivismo não foi nem mais nem menos eficiente na busca de qualquer verdade, a não ser por partilhar, em conjunto com as outras ciências e cientistas, a crença de nesse sentido de caminhar.

Diante desse cenário geográfico, as propostas de uma via crítica, apoiadas no pensamento de Marx (QUAINI, 1983) vieram trazer nova luz ao debate epistemológico geográfico, na verdade, é nesse momento de crítica que de fato uma consciência acerca das possibilidades e limites da Geografia começa verdadeiramente a surgir e a ser conscientemente enfrentada. A sequência de debates suscitados por Lacoste em 1974, que anteriormente já havia destacado as contradições e misérias mascaradas pela suposta metodologia isentam do positivismo, anuncia a crise epistemológica geográfica e denuncia sua falta de orientação metodológica, além do completo abandono dos geógrafos com relação às teorias. A aplicação de modelos no positivismo lógico ou a manutenção das bases de uma Geografia Tradicional resultavam no isolamento científico geográfico e no abarcar aleatório de concepções e métodos, além de reforçar uma divisão entre uma chamada Geografia Física e outra Humana, quando em verdade advogavam os geógrafos, há todo momento, que seu saber caminha na relação entre os fatores sociais e naturais.

Em outro sentido, o conhecimento positivista se apresentava subserviente pela resposta acabada dos números e dos dados que fazem ver à frente uma suposta resposta isenta, o conhecimento pragmático que executa, que preenche com suas fórmulas e projeções matemáticas as lacunas das respostas não obtidas. Numa leitura "crítica" ou "radical", esse conhecimento, quando pretende conhecer, desconhece, quando pretende resolver, aliena. A consciência de nossa condição no mundo já não é posta como atividade intelectual, porque ao tempo que conhecemos a verdade da lei e dos números renunciamos àquela que se comunica diretamente com a mudança da condição posta. As disparidades entre uma flutuante e abstrata formulação teórica e as contradições e demandas de um mundo real em sua miséria e dominação eram o ponto central a ser atacado, destacando a esse tempo que as teorias supostamente imparciais atendiam a interesses bem específicos e que, no plano das idéias, refletiam os embates reais, materiais, que se sucediam nas trincheiras do dia-a-dia, nos hábitos, nos valores e nos sentidos impostos à existência. A idéia de que o positivismo pretendia tratar com isenção a realidade é atacada por essa via "radical", na medida em que os dados e as fórmulas matemáticas mascaram tensões importantes da sociedade e, o mais importante, se mostram propositalmente incapazes de explicar a origem e as formas de superação dessa condição. Compromissadas e reféns dos interesses do processo de acumulação, as correntes positivistas não deixavam espaço para uma análise crítica das condições postas, portanto, ser isento nesse contexto era estar aliado aos interesses hegemônicos.

O que reaparece aqui, sem a consciência dos próprios marxistas geógrafos, é a necessidade de uma resposta filosófica válida na análise do objeto geográfico. A falta de coerência do positivismo só pode ser encontrada na medida em que ele falseia uma explicação da realidade, ou seja, na medida em que se admite a existência de uma reposta real a ser dada, afinal, se não fosse assim não haveria uma crítica à legitimidade do positivismo.

O que se coloca é que para além das condições políticas de um mundo bipolar e suas representações ideológicas, há uma lacuna deixada pela falta de um debate filosófico elevado capaz de fundamentar uma postura ontológica válida; é nisso que reside a recuperação de Marx, no sentido de que sua proposição filosófica é a base de uma compreensão geral aliada aos elementos materiais da realidade em seu caráter científico. O materialismo-histórico-dialético1defende que, para além de uma indicação oferecida pelos objetivos do pesquisador, o método deve estar, antes de mais, em conformidade com a própria realidade. Não se trata de elencar e escolher o método segundo o bel prazer do pesquisador, mas de tratar o objeto segundo a concepção geral filosófica que se reconhece para e na realidade, trazendo para o método as expressões teóricas dessa concepção. Isso é um salto qualitativo muito grande na proposição científica moderna, uma vez que, ainda sem consciência de fazê-lo, coloca o problema para as ciências de terem que encontrar uma legítima resposta filosófica para a realidade, a fim de, a partir dela, construírem uma análise científica coerente. A grande questão aqui é que o sistema filosófico proposto, se pretende ser válido, deve ser concebido sem qualquer incoerência e, acima de tudo, ser capaz de agrupar tudo o que se dispõe como realidade, seja numa perspectiva subjetiva ou objetiva; seja numa perspectiva humana ou natural; seja numa perspectiva ideal ou material.

PARA ONDE CAMINHA A CIÊNCIA E, COM ELA, A GEOGRAFIA?

Ruy Moreira (2006) em seu Para onde vai o pensamento geográfico?, Fazendo um breve apanhado histórico, que revela, evidentemente, toda a filiação metodológica que o ligou ao pensamento crítico dentro da Geografia, demonstrou que os desafios são ainda aqueles colocados no início desse movimento crítico marxista dentro da ciência geográfica. Atestando assim, que não se trata de falar de uma pós-modernidade, com demandas outras ou estruturas epistêmicas diferenciadas, mas de uma extrapolação daquilo que já se anuncia na modernidade; trata-se, portanto, de uma hipermodernidade, que reclama, igualmente, a superação das condições ideológicas que povoam o universo do conhecimento e, evidentemente, sua fonte, o mundo real de que foram paridas.

Atentando-nos, a princípio, somente para o questionamento colocado por Moreira: "Para onde vai o pensamento geográfico?", experimentamos um pouco do limiar que se põe e das dificuldades paradigmáticas (embora aqui não se pretenda uma teoria apoiada na ruptura de paradigmas) de nosso momento histórico. De fato, para onde vamos? Qual é o caminho traçado pela ciência e por uma Geografia que vive mais sob um nome e sob sua institucionalização do que sobre uma unidade de investigação? Qualquer estudante do primeiro ano do curso de Geografia ouve e trata dessa falta de unidade investigativa, retratada no mais das vezes a partir da dicotomia entre uma Geografia Física e outra Humana. Acertadamente nesse ponto, o colocar dessa dicotomia revela muito do que fomos historicamente enquanto Ciência e, mais oportuno ainda, o colocar dessa divisão caminha na direção de uma resposta à pergunta sugerida por Moreira (2006): "Para onde vai o pensamento geográfico?". O que devemos agora esclarecer com essa afirmação é: por que a separação entre uma Geografia Física e outra Humana é tão importante para os rumos da Geografia contemporânea? De pronto, podemos dizer que a raiz da dicotomia no saber geográfico é o ponto de confluência do saber contemporâneo e, mais do que isso, que somente na elucidação desse ponto central poderemos entender as demandas atuais de nossa ciência.

O panorama geral do conhecimento é caracterizado por um extenso domínio de especialidades que puderam atingir níveis de detalhamento nunca antes imaginados, haja vista a consideração do objeto como um recorte específico da realidade e a promulgação de uma liberdade científica com relação às demandas filosóficas. Em geral, podemos dizer que o caráter atual do saber científico encontrou sua justa forma na separação que destacamos entre Filosofia e Ciência, cabendo à primeira somente o fornecimento de premissas, gerando assim a chamada Filosofia da Ciência, que procurou um estatuto as demandas do objeto ou dos objetivos traçados na análise.

A Filosofia deixou de representar para a Ciência uma explicação de mundo, enquanto, na verdade, não deixa de fazê-lo, na medida em que na consideração do objeto e na definição do método já está o cientista, sem saber, tomando para si e para sua análise uma visão geral da realidade, pela qual caminha e estende o domínio de sua investigação empírica.

O resultado desse livre vôo das ciências em seus domínios específicos começa a esbarrar, já há algum tempo, nos limites da pressuposição filosófica que adotam os cientistas sem o saber; quer dizer, a concepção de um mundo dado como passível de fragmentação em objetos de análise e a medida de uma realidade em si independente não conseguem mais oferecer a ilusão de uma resposta convincente. O campo teórico-metodológico começa a apresentar carências explicativas no trato das problemáticas e, nesse sentido, projeta-se que a solução não poderá vir com a manutenção das ferramentas metodológicas atualmente dispostas ao pesquisador.

Lentamente a Ciência começa a buscar na proposição de questões filosóficas a tentativa geral de compreender a realidade para além do objeto específico, procurando enquadrá-lo em uma teoria geral capaz de abarcá-lo como caso singular. Este é o percurso de construção de um sistema filosófico, que os físicos, os biólogos, os químicos, por exemplo., começam a trilhar. Cada vez mais a sociedade e as ciências começam a tomar consciência de que o mundo é uma trama onde se desenvolvem teias e cadeias, relativas e redefinem os campos científicos e potencializam novas visões epistemológicas (DUTRA, 2010).

O resultado mais patente desse processo é notado numa tendência geral em torno da interdisciplinaridade; no reconhecimento, por parte de alguns, de que é necessário recompor em unidade tudo o que foi acumulado no campo específico de cada domínio científico. As dificuldades dos cientistas como em geral não podem ver, é que nunca caminharam na direção de uma verdade, mas que compuseram explicações a partir de métodos diversificados e mutuamente excludentes, afinal, se cada método representa uma visão de mundo, um sistema filosófico subjacente, como poderia então dialogar estas ciências e seus mundos contrapostos? Essa dificuldade é ainda maior quando pensamos na divisão que tomou forma entre as ciências chamadas Humanas e as ciências Naturais. Excetuando o positivismo que pretenderam integrar sobre uma base matemática estes dois domínios, o caminho apresentado por eles, no que diz respeito ao método, é totalmente divergente e excludente.

Não há entre estas esferas do saber qualquer diálogo possível dentro dos universos metodológicos aceitos pelos grupos de cientistas pesquisadores envolvidos com as ciências da Natureza e as ciências Humanas. Não é difícil entender essa recusa, afinal, com a ruptura entre ciência e Filosofia, o cientista natural deixou de se perguntar sobre a condição do homem enquanto proponente do objeto, enquanto sujeito do ponto de vista filosófico, inserido como agente indissociável do objeto de análise, e talvez só tenha se lembrado disso quando os próprios limites metodológicos começaram a anunciar, no campo da Física, que há uma indeterminação posta pela própria presença do observador. Limitada aqui a uma influência objetiva, essa interferência do sujeito no objeto deixa ver que há um debate filosófico que foi relegado ao segundo plano. No caso das ciências Humanas, as dificuldades impostas pela compreensão da dinâmica do homem, seja como indivíduo, seja como sociedade, permitiu, em especial recentemente, a introdução de métodos mais refinados no que se refere ao debate filosófico.

Todavia, como em geral acontece, não há qualquer possibilidade de ligação destes métodos com o domínio constituído de um saber físico-natural, que adquiriu grande legitimidade pela capacidade técnica de intervenção e pela precisão erigida como estandarte da verdade revelada pelos números e suas equações. Além disso, no que concerne ao próprio homem, não coube às ciências Humanas lidar com a colocação filosófica do sujeito, do homem, o que seria então uma fundamentação antropofilosófica, ao contrário, pretendeu considerar o homem pela perspectiva da análise científica, seja como ser natural e composto por demandas biológicas e genéticas, seja pela consideração social ou psicológica do sujeito, inclusive o sujeito proponente da ciência, ou seja, a composição crítica a partir de uma sociologia da atividade científica. De todo modo, resta suprimido a investigação filosófica acerca do homem e a colocação do mundo a partir dele.

Mas e para a Geografia, o que representou esse processo de ruptura? E o que representa hoje em seu cenário de discussão epistemológica? Para a Geografia, a ruptura entre Filosofia e ciência representou a ruína completa de sua proposta de análise. Essa ruptura, que está no caminho de consolidação da Geografia como saber científico moderno, significa a impossibilidade de responder às demandas de seu objeto. Vimos que a proposta dos fundadores da Geografia caminhava na direção de uma explicação integrada capaz de dar conta da interação e relação do homem com a natureza, postos mesmo como mutuamente dependentes. Sabemos, entretanto, que em sua institucionalização, a Geografia passou a se valer dos métodos oferecidos pelas ciências já constituídas, como a Geologia, a História, compondo grupos e departamentos para analisar, a partir destes métodos, aquele mesmo objeto colocado por Ritter e Humboldt: o campo de interação e relação do homem e da natureza. Como já havia na composição dos métodos usados uma divergência e, em especial, um distanciamento profundo com relação ao debate filosófico, coube aos produtores das teorias geográficas a tarefa de tentar aglutinar tudo isso sob o seu complexo objeto de análise: a Geografia como ciência de síntese. Esse confluir de tudo que nada é fez da Geografia uma caricatura de ciência moderna, afinal, não tinha para si um método de análise definido e perambulava vadia em meio às outras ciências, tentando encontrar respostas para um objeto que jamais poderia ser explicado por qualquer dos métodos então oferecidos. Em verdade, a Geografia nunca encontrou seu "espaço" enquanto ciência moderna, porque não poderia, em tempo algum, ser uma ciência alheia ao debate filosófico, uma vez que essa relação é uma demanda do seu objeto. Mais do que isso, nunca se encontrou como ciência porque o domínio de seu objeto compreende dois campos que assumiram vias distintas dentro do universo científico: o natural e o humano. Nesse sentido, nunca poderia haver uma unidade do saber geográfico porque os métodos para pensar a natureza e para pensar o humano carregaram explicações gerais e concepções filosóficas de mundo diametralmente opostas: como poderia então se falar em um discurso geográfico? A Geografia, entre as ciências modernas, é a representação acabada da falência do projeto de integração dos saberes. Por isso, por esse nada ser que quer ser tudo, esteve constantemente em crise e nunca se firmou no cenário das ciências.

Mas essa característica do saber geográfico é, nesse momento de reformulação geral do saber, uma vantagem importante. A Geografia esteve às voltas com a dificuldade de integrar métodos excludentes como nenhuma outra ciência e carrega no seu objeto uma necessidade filosófica que a obriga teoricamente a caminhar para uma elevação do debate para além do campo estrito da ciência. Além do mais, a divergência das ciências da natureza e das ciências humanas significa para a Geografia o reduto de seu labor diário, de sua necessidade investigativa. A Filosofia é algo do qual a Geografia não pode fugir, como as outras ciências começam também a descobrir. A Geografia surgiu como ciência filosófica e reencontra sua condição no fracasso de sua sistematização enquanto ciência moderna. Não há espaço para uma Geografia no saber científico posto por uma ruptura entre Filosofia e ciência, resistindo somente por força institucional e por incorporar em si, interesses político-estratégicos extremamente relevantes, nesse sentido a crítica constante de atender aos interesses do Estado. A colocação da Geografia enquanto saber transcende a esfera da surrada ciência moderna, representa na verdade a superação de uma condição limitada de saber e, mais do que isso, de todo e qualquer limite ou fronteira disciplinar. A solução do problema contemporâneo representa para a Geografia a condição de sua existência, por isso deve despontar nela as primeiras respostas efetivas para essa dificuldade geral de separação entre Filosofia e ciência, que é, de fato, a fonte de toda a divisão entre as chamadas ciências humanas e naturais. Reside nessa ruptura a chave para todo o problema epistemológico da Geografia e sua dificuldade continua de se firmar como saber moderno, afinal, em seu objeto com demandas filosóficas, nunca pôde plenamente explicar-se e definir-se dentro de um cenário geral de divisão. Restará que, ao término de todo esse processo, longo ainda, não sobrará uma coisa tal como hoje concebemos sob o nome de Geografia, mas um campo de explicação geral das relações e expressões desenvolvidas na interação e relação entre homem e natureza. Em poucas palavras, tomará lugar uma atividade científico-filosófica, cujas fronteiras disciplinares deixarão de existir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estamos diante de um cenário geral de mudança dos saberes científicos constituídos, com demandas tais que os limites disciplinares e os ferramentais metodológicos dispostos nem de perto delineiam uma resposta satisfatória. Explicamos essa condição do saber a partir da ruptura entre ciência e Filosofia, deixando claro que o processo de especialização do saber e seu abandono das questões elementares e primeiras resultaram, de um lado, no avanço de conhecimentos específicos e detalhados da esfera empírica como nunca antes suposto ou imaginado, e de outro, numa redução tal da capacidade de pensar o mundo e o homem em sua complexidade e unidade, que não se pode mais impunemente falar em conhecimento no cenário geral do saber contemporâneo. Vimos, igualmente, que nesse cenário geral de ruptura entre Filosofia e ciência e no curso do desenvolvimento de uma ciência moderna edificou-se o que então chamamos ciência geográfica, cujas limitações e dificuldades epistemológicas revelam esse conduzir histórico que descaracterizou o projeto central da Geografia: compreender a manifestação das interações e relações humano-naturais. Errando entre métodos incapazes de abarcar o sentido de sua análise, a Geografia procurou reunir as divergências nas categorias geográficas, como a região, o território, por exemplo, manifestando assim um caráter de ciência de síntese, em outras palavras, transformou-se em uma caricatura de ciência, emprestando aqui e acolá métodos que jamais deram conta do que se pretendia então explicar. Em outro projeto de sistematização, sob a influência do positivismo lógico, pretendeu aglutinar o físico e o humano a partir da base matemática, falhando aqui pela adoção de um sistema filosófico incapaz de abarcar a complexidade das relações humanas e muito menos a relação destas com a esfera natural. Consciente de si, essa Geografia errante adentrou as vias de um saber radical ou crítico, reintroduzindo o debate filosófico, ainda que limitado ao campo da investigação e possibilidade dos métodos e restringido ao campo das premissas conceituais e metodológicas. Na verdade, muito menos do que um debate, tratou-se unicamente de interpretar e aplicar os discursos postos por uma filosofia materialista dialética, ou seja, de alterar a base filosófica de sustentação do método, adquirindo a vantagem de lidar agora com um sistema filosófico mais elevado e capaz de fornecer respostas significativas para a complexidade humana em sua interação com o mundo e, portanto, com a natureza. Não obstante, a consideração de uma materialidade primeira como resposta filosófica para a realidade carece de sustentação, de modo que o eu que põe o mundo é tratado nessa via como o resultado de uma materialidade tomando consciência de si, ou seja, a partir do pressuposto material sem uma justificada e sóbria explicação filosófica para esse existir primeiro. Como conseqüência, temos na Geografia uma confusão da materialidade com o espaço, revelando que não existe, como premissa, uma reflexão capaz de dar conta da proposição de um eu filosófico, mas somente de uma subjetividade científica. Nesse sentido, a Geografia Radical ou Crítica falhou na compreensão e consideração do seu objeto de análise: o campo de interação físico/humano, chamado então de espaço geográfico. O artigo pretendeu mostrar que, nesse sentido, novas contribuições, ainda que sem a consciência de fazê-lo, caminham na superação do problema pelo único caminho possível: a reaproximação entre ciência e Filosofia. Totalmente dependente dessa reaproximação, a Geografia espera aqui a retomada legitima de sua análise e, nessa redefinição de si, o inaugurar de uma tendência geral do saber contemporâneo.

Artigo aceito recebido para publicação em 11/10/2010 e aceito para publicação em 13/04/2011

Em artigo que estamos elaborando faremos uma análise da proposta de uso do materialismo histórico e dialético na geografia.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      2011

    Histórico

    • Recebido
      11 Out 2010
    • Aceito
      13 Abr 2011
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