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Os (des)caminhos da agroenergia na Bahia: A participação da MRG de Irecê no circuito espacial produtivo do agrodiesel

The paths of the Bahia bioenergy: MRG of Irecê participation in the fuel farm productive spatial circuit

Resumos

O propósito deste artigo é analisar por qual motivo o cultivo de mamona está retornando para a Microrregião Geográfica (MRG) de Irecê, ou seja, compreender o motivo da localização da ricinocultura (cultivo de mamona) nesta área. Primeiramente, é analisado o marco regulatório que estimula o cultivo da mamona no Brasil. A seguir, o objetivo é identificar as técnicas argumentativas empregadas pelas instituições supranacionais sobre o aquecimento global, pois os estudos publicados por essas instituições são algumas das referências científicas para fundamentar a criação de marcos regulatórios como o PNPB. Por fim, busca-se evidenciar as consequências dos discursos e ações interescalares, formadores do circuito espacial produtivo, que estão repercutindo na intensificação da ricinocultura nas propriedades rurais da área estudada.

Circuito espacial produtivo; Mamona; Microrregião Geográfica de Irecê


The aim of this article is to analyze what reason the castor cultivation is returning to Geographic Microregion (MRG) Irecê, in other words, understand why the the castor cultivation.Firstly, the analysis of regulatory framework that encourages the cultivation of castor in Brazil. Then the goal is to identify the argumentative techniques employed by supranational institutions on global warming, as studies published by these institutions are some of the scientific references to support the creation of regulatory frameworks as PNPB. Finally, we seek to highlight the consequences of discourses and inter-actions, forming the productive spatial circuit, that are impacting the intensification of ricinocultura on farms in the study area.

Productive spatial circuit; Castor plant; Geographic Microregion Irecê


INTRODUÇÃO

A notícia chega. Não importa qual é a mídia, ela aproxima os interlocutores, locutores e receptores, que emitem e recebem inúmeras informações que convergem para uma mesma direção. Pode ser pela internet, televisão, cinema, rádio, livros, músicas, outdoors, embalagens de produtos, brinquedos infantis, enunciados repetidos paulatinamente, independente de a fonte ser científica, literária ou artística, ela chega com uma intencionalidade: a de se instalar. Por vezes, o enunciado não se torna prática, bem como nem toda prática se torna discurso. Entretanto, no processo estudado neste trabalho é possível observar que enunciados, práticas e discursos se manifestam, ora de forma sequencial, ora de forma simultânea, a partir de seus entrelaçamentos, validando e consolidando uma “verdade” bem delimitada, e por tal condição simplificante e mutilada.

Vejamos. Dia 04 de Julho de 2013, um dos principais símbolos americanos e ponto turístico da cidade de Nova Iorque, a Estátua da Liberdade reabriu para visitação de turistas após suas estruturas serem afetadas pela passagem da tempestade Sandy. Na primeira semana de Novembro de 2012, esse furacão avançou com sua força natural imponente pela América Central e Caribe e pela América do Norte. Ao acessar os sites de notícias nacionais e internacionais a referência a este evento meteorológico está atrelada a um “processo” climático com dimensões planetárias. Continuemos. Dia 26 de Dezembro de 2012, cidade do Rio de Janeiro, é registrada a maior temperatura desde o início das medições, em 1915. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), a temperatura na zona oeste do Rio chegou a 43,2ºC. Mais uma vez o evento, pontual, é relacionado com um processo planetário, o suposto “aquecimento” global que, de acordo muitos estudiosos, acontece devido a emissão de dióxido de carbono lançado na atmosfera pelo uso humano da fonte energética fotossintetizada e mineralizada há milhões de anos.

Retornando um pouco no tempo, o então presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva, viaja no ano de 2007 para uma fábrica instalada para a produção de agrodiesel, localizada no município de Iraquara, situado no interior da Bahia, e profere um discurso (BRASIL, 2007BRASIL. Presidência da República. Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de inauguração da usina de biodiesel da Brasil Ecodiesel em Iraquara, 2007. Disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/luiz-inacio-lula-da-silva/discursos/2o-mandato/2007/1o-semestre/10-02-2007-discurso-do-presidentedarepublica-luiz-inacio-lula-da-silva-na-cerimonia-de-inauguracao-da-usina-debiodieseldabrasilecodiesel-em-iraquara>. Acesso em: 12 Dez. 2014
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) no qual propaga a ideia de que o Brasil irá produzir, no século XXI, combustíveis renováveis que supostamente não irão agredir a natureza, diferente da utilização dos combustíveis oriundos de fontes fossilistas que causam problemas ambientais sérios, sobretudo climáticos.

Assim, as discussões sobre a questão ambiental, as mudanças climáticas inclusive, têm sido pautadas, de modo predominante, por motivações ideológicas, políticas, econômicas e a partir de uma perspectiva neoliberal, que tem como expoente o mercado de carbono e os mecanismos de desenvolvimento limpo (PORTO-GONÇALVES, 2006). Diversas corporações, governos, instituições supranacionais e organizações não governamentais tratam a energia proveniente de biomassa, principalmente a agroenergia, por exemplo, como uma solução para os possíveis problemas climáticos. Como questiona Houtart (2010)HOUTART, F. A Agroenergia: solução para o clima ou saída da crise para o capital? Petrópolis, Vozes, 2010., o interesse maior na implantação do circuito espacial produtivo agroenergético é uma saída econômica para a oscilação do preço do petróleo e para outras crises do capital, independente de sua possível “contribuição” ambiental ou é a solução para o clima planetário?

Percebe-se então que o discurso é apropriado pelos governos e outras forças geopolíticas que alocam “novas” atividades em seus territórios, na busca por outras fontes energéticas o que altera alguns arranjos espaciais e paisagísticos, também, em seus domínios territoriais.

Diante disso, o propósito deste artigo é compreender o porquê do onde, ou seja, analisar por qual motivo o cultivo de mamona está retornando para a MRG de Irecê. Primeiramente, é analisado o marco regulatório que estimula o cultivo da mamona no Brasil. A seguir, o objetivo é identificar as técnicas argumentativas empregadas pelas instituições supranacionais sobre o aquecimento globais, pois os estudos publicados por essas instituições são algumas das referências científicas para fundamentar a criação de marcos regulatórios como o PNPB. Por fim, busca-se evidenciar as consequências dos discursos e ações interescalares que estão repercutindo na intensificação da ricinocultura (cultivo de mamona) nas propriedades rurais da área estudada.

O Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel e a Reorganização Produtiva da Mrg de Irecê

A mamona é um cultivo que se desenvolveu na MRG de Irecê, composta por 19 municípios, desde que há agricultura comercial na área. Contudo, em 2004, foi lançado o PNPB -Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel intensificando o cultivo na MRG. Este foi o marco que normatizou a produção de combustíveis provenientes de óleos vegetais no Brasil e, consequentemente, reorganizou algumas atividades produtivas em determinadas áreas, além de inserir algumas categorias sócio-ocupacionais, como os agricultores familiares. Com o advento do PNPB houve um novo direcionamento para a mamona e o óleo de rícino. Assim, este programa foi o evento que proporcionou a reorganização e que permite periodizar esse processo na escala nacional, regional e local.

Para entender o processo de territorialização de políticas públicas buscamos a ideia de evento. Compreende-se que o evento “resulta de uma série de instantes” (SANTOS, 2004SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004., p.143) e “o lugar é o depositário final, obrigatório, do evento” (SANTOS, 2004SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004., p.144). Entende-se que a sequência de instantes que desencadeou essa regulação na escala nacional, foram as tentativas de diminuição da dependência dos combustíveis fósseis ao longo das últimas décadas do século XX, não por uma revolução ambiental, mas sim por uma reestruturação da economia global (PORTO-GONÇALVES, 2006bPORTO-GONÇALVES, C. W. Outra verdade inconveniente – a nova geografia política da energia numa perspectiva subalterna. UniversitasHumanisticas, Bogotá, n.66, p. 327-365, Jul./Dez 2006b. Disponível em: <http://www.javeriana.edu.co/Facultades/C_Sociales/universitas/66/14porto.pdf> Acesso em: 26 Jul. 2011.
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; SACHS, 2007SACHS, I. A Revolução Energética do Século XXI. Estudos Avançados, São Paulo, vol.21, n.59, 2007. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142007000100004
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), altamente dependente das fontes de energia fósseis. Dessa maneira, define-se o evento como o ponto estrutural de um fenômeno processual, sabendo que os processos são uma somatória de pontos/eventos. O PNPB como evento precisou de uma série de outros eventos para se cristalizar em um dado momento. Já o lugar, nesse sentido, é a MRG de Irecê o estado nacional brasileiro, local onde as implicações diretas e imediatas do PNPB acontecem nas áreas de cultivo das oleaginosas que servem como matéria-prima para a produção do agrodiesel.

E quais foram as pressões que institucionalizaram um programa destinado para a produção de combustível de outra matriz que não a matriz fossilista?

A intensificação do cultivo de mamona, que já era uma cultura desenvolvida na área há muito tempo (DUARTE, 1963DUARTE, A. C. Irecê uma área agrícola insulada no sertão baiano. Revista Brasileira de Geografia, p.453-473, out-dez 1963.), foi incentivada através da mobilização efetuada pelos agentes de produção de agrocombustíveis com a realização de encontros, seminários divulgando a “importância” da nova finalidade da mamona e os possíveis ganhos econômicos que esta cultura poderia trazer para os agricultores e para a região. Houve a apropriação desta ideia por parte das cooperativas e dos agricultores

Atualmente, a ricinocultura é a quarta lavoura em quantidade produzida na MRG Irecê (IBGE, 2011), atrás apenas da lavoura de cebola, tomate e milho, sendo que os dois primeiros são beneficiados pelos projetos de irrigação existentes a leste do Rio São Francisco. Ainda, o cultivo de mamona elevou sua participação percentual na produção estadual e nacional, correspondendo a 71% e 53% respectivamente (Tabela 1). Enquanto isso, diminuiu sensivelmente o cultivo de feijão na MRG nos últimos 10 anos, bem como sua proporção na lavoura estadual e nacional

Tabela 1
Quantidade produzida das principais lavouras temporárias da MRG – Irecê contextualizando com a produção estadual e nacional 2001/2011 (em toneladas)

De acordo com Santos (2012)SANTOS, J. A. L. dos. Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel; sujeição da renda e da terra camponesa ao capital no território de identidade de Irecê- BA. 2012. 262 f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Departamento de Geografia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2012., a territorialização do PNPB no Brasil, e consequentemente na MRG Irecê, ocorreu por meio de duas frentes. A primeira, infraestrutural, com a disponibilização de financiamentos, assistência técnica, isenções fiscais, pesquisas para consolidar a distribuição e comercialização das oleaginosas que servem como matéria-prima da produção de agrocombustíveis. A segunda, regulatória, através da participação direta no mercado de agrocombustíveis a partir do estabelecimento de uma reunião de elementos na determinação de compra e de percentuais de mistura para a composição do agrocombustível.

A consideração do incremento que o PNPB proporcionou ao cultivo da mamona fez com que a ordem agrária em torno desta oleaginosa fosse reorganizada em função da nova configuração geopolítica mundial considerando a necessidade de transição da matriz energética (PORTO-GONÇALVES, 2006bPORTO-GONÇALVES, C. W. Outra verdade inconveniente – a nova geografia política da energia numa perspectiva subalterna. UniversitasHumanisticas, Bogotá, n.66, p. 327-365, Jul./Dez 2006b. Disponível em: <http://www.javeriana.edu.co/Facultades/C_Sociales/universitas/66/14porto.pdf> Acesso em: 26 Jul. 2011.
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). A questão é que essa transição não é apenas energética, mas agrária, considerando que a matéria-prima necessária para a produção energética é cultivada. Esse movimento da civilização do petróleo para a civilização da biomassa agrega novos agentes que antes usavam suas terras para cultivar a energia que suas necessidades biológicas corpóreas necessitavam. Assim, segundo Santos (2004)SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004.,

A ordem global é “desterritorializada” no sentido que separa o centro da ação e sede da ação. Seu “espaço” movediço e inconstante, é formado de pontos cuja existência funcional é dependente de fatores externos[...]. Cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e uma razão local convivendo dialeticamente (SANTOS, 2004SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004., p.339)

Desta forma, entende-se que a MRG Irecê atua como um ponto funcional da nova configuração geopolítica energética nacional e mundial. A razão local se manifesta a partir dos incentivos do PNPB, bem como a regulação do mercado, com a manutenção de preços atrativos para o cultivo de mamona. Dessa maneira, a viabilidade estratégica na participação do mercado pautadas nas políticas territoriais implantadas pelo governo federal via MDA, permitem a adesão dos agricultores.

Ainda de acordo com o pensamento de Santos (2004)SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004., é possível considerar esse processo como um arranjo espacial característico onde as verticalidades se impõem, pois a partir destas, a solidariedade é obtida por meio do controle, da circulação e das trocas de fluxos. Isso ocorre por que

A verticalidade cria interdependências [...]. Essas interdependências tendem a ser hierárquicas e seu papel de ordenamento transporta um comando. A hierarquia se realiza através de ordens técnicas, financeiras, políticas, condição de funcionamento do sistema. A informação, sobretudo ao serviço das forças econômicas hegemônicas e ao serviço do Estado, é o grande regedor das ações que definem novas realidades espaciais (SANTOS, 2004SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004., p. 285)

Considerando isso a “razão local” é verticalizada pela escala nacional através dos arranjos normativos para se adaptar às práticas globais. Porém, o arranjo interno da estrutura espacial, política, social, cultural e econômica é o que diferencia, neste caso, a razão local e sua convivência com o global de forma dialética.

A Nova Retórica Aplicada a Análise dos Argumentos sobre o Aquecimento Global

Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada

Engenheiros do Hawaii

Diversas organizações científicas, que têm como expoente o IPCC – Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, criado em 1988, vinculado ao PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e a OMM – Organização Meteorológica Mundial, efetuam estudos sobre as possíveis mudanças climáticas que ocorrem no planeta Terra como um todo. Essas instituições regularmente divulgam relatórios de seus estudos que apontam a tese de ocorrência do AGA – Aquecimento Global Antropogênico. Com base na configuração argumentativa da retórica de alguns trechos dos relatórios dessas instituições, pretende-se identificar quais são as técnicas argumentativas empregadas pelos oradores visando a adesão dos auditórios à sua ideia. Para essa tarefa foram analisados três fragmentos de textos, contidos em relatórios escritos por três instituições distintas.

O primeiro fragmento de texto foi extraído da quarta edição do relatório de avaliação produzido pelo IPCC, no qual esta organização conclui que

o aquecimento do sistema climático é inequívoco, e é evidente nas observações do aumento das temperaturas médias do ar e dos oceanos, derretimento de neve e gelo por todo mundo e aumento do nível do mar (...) A maioria dos aumentos observados nas temperaturas médias globais, desde a segunda metade do século XX, muito provavelmente, é devido ao aumento antropogênico das concentrações de gases estufa. Isso representa um avanço desde a conclusão do terceiro relatório da avaliação, ou ThirdAssessmentReport (AR3) que diz que “ a maioria do aquecimento observado nos últimos 50 anos, provavelmente deve-se ao aumento de concentrações de gases estufa.” As influências humanas discerníveis atualmente estendem-se para os outros aspectos do clima, incluindo o aquecimento dos oceanos, temperaturas médias para os continentes, extremos de temperaturas e padrões dos ventos. (IPCC AR4 2007 apud CHRISTOPHERSON, 2012CHRISTOPHERSON, R. Geossistemas: uma introdução à geografia física. 7ª ed. Porto Alegre: Bookman, 2012., p. 307-308)

Antes de analisar os argumentos do IPCC é necessário compreender que os termos em destaque na citação fazem parte da classificação dessa mesma instituição para servir de referência de probabilidade de ocorrência das mudanças climáticas, e possuem o objetivo de assegurar o padrão científico da informação. Quando compara o terceiro relatório com o quarto, sobre a ocorrência do aquecimento climático observa-se a mudança de nível de provavelmente para muito provavelmente para esse acontecimento. De acordo com o IPCC, as chances de o provável ocorrer são maiores que 66% e as do muito provável são maiores que 90%, ou seja, ocorreu uma alteração significativa nas chances de acontecimento do aquecimento climático. Ainda no fragmento, o IPCC emprega o caráter de evidente e para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação. A Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p.4) “o que é evidente não teria necessidade alguma de prova” ou seja, é a verdade que se impõe de imediato.

Outrossim, tendo como base os tipos de argumentação indicados por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005)PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação. A Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005., o primeiro trecho do texto possui o argumento de divisão do todo por suas partes. Nesse argumento

[...] divide-se um todo – a tese por provar – em partes, e, depois de mostrar que cada uma delas tem a propriedade em questão, conclui-se que o todo tem essa mesma propriedade (REBOUL, 2004REBOUL, O. Introdução à retórica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. , p.171).

A tese por provar é o aquecimento climático. As partes seriam os diferentes fenômenos observáveis: os aumentos da temperatura do ar e dos oceanos, derretimento de neve e gelo e aumento do nível do mar, e todas elas possuem o aquecimento climático como propriedade unificadora. Dessa maneira, o todo é observável como a soma das partes que, quando conjugadas e adicionadas umas as outras, constituem um conjunto dado, no caso em questão, o aquecimento climático global.

O segundo fragmento de texto foi retirado do Simpósio sobre a Avaliação do Impacto Climático no Ártico – ACIA elaborado em 2004, no qual foi considerado que

As atividades humanas, principalmente a queima de combustíveis fósseis (carvão, óleo, gás natural) e, secundariamente, o desmatamento, têm aumentado as concentrações de dióxido de carbono, metano e outros gases que retêm o calor (“uma estufa”) na atmosfera (...) prevê-se que estes fatos levarão a mudanças climáticas persistentes e significativas (...) projeta-se que essas mudanças terão várias consequências, incluindo o impacto significativo sobre comunidades costeiras, as espécies de animais e plantas, os recursos hídricos e a saúde e o bem-estar humano (ACIA 2004, apud CHRISTOPHERSON, 2012CHRISTOPHERSON, R. Geossistemas: uma introdução à geografia física. 7ª ed. Porto Alegre: Bookman, 2012., p. 308-309).

Na parte inicial desse trecho, é utilizado o argumento pragmático, pois se estabelece uma relação de causa/consequência, indicando que o aumento das concentrações de dióxido de carbono (CO2) é causado pelas atividades humanas, sobretudo pela queima de combustíveis fósseis. Avaliando que o efeito da concentração de CO2 é o aquecimento climático, atribui-se a essa causa (concentração de CO2)a condição para esse efeito, sendo utilizado nesse pensamento um raciocínio lógico-formal linear. Esse tipo de argumentação

[...] é apresentado amiúde como uma simples pesagem de alguma coisa por meio de suas consequências. Mas é muito difícil reunir num conjunto todas as consequências de um evento e, do outro lado, determinar a parte que cabe a um evento único na realização do efeito. Para que a transferência de valor se opere claramente, tentar-se-á mostrar que certo evento é condição necessária e suficiente de outro (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação. A Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p.306).

Considerando a hipótese da existência do aquecimento climático, esses processos seriam as únicas causas?

Continuando com a análise, agora na parte final do fragmento, é possível identificar o argumento de propagação que é uma das formas que podem assumir o argumento de direção. Quando o relatório informa os possíveis impactos, há pretensão de convencer que esses irão se multiplicar e, por tal condição, ser cada vez mais nocivos (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação. A Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.).

O terceiro e último fragmento foi extraído do relatório feito pela Associação Americana para o Avanço da Ciência – AAAS, no qual o autor Naomi Oreskes analisou 928 trabalhos sobre mudanças climáticas e concluiu que

Esta análise demonstra que os cientistas que publicam em periódicos científicos de renome concordam com o IPCC, a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, ou NationalAcademyofSciences (NAS) e com as declarações públicas emitidas pelas sociedades profissionais. Políticos, economistas, jornalistas e outros podem ter a impressão de que os cientistas do clima estão confusos ou em desacordo, mas esta impressão é incorreta (...) existe um consenso científico sobre a realidade das mudanças climáticas antropogênicas (AAAS, 2004 apud CHRISTOPHERSON, 2012CHRISTOPHERSON, R. Geossistemas: uma introdução à geografia física. 7ª ed. Porto Alegre: Bookman, 2012., p. 309)

De imediato, observa-se a utilização do argumento de autoridade. Através do uso desse tipo de argumentação, pretende-se evocar a autoridade conveniente para a confirmação da tese apresentada. É o discurso instituído, permitido e autorizado pelos especialistas do âmbito de sua competência, o que Chauí denominou de discurso competente (CHAUÍ, 1993CHAUÍ, M. S. Cultura e Democracia. O discurso competente e outras falas. 6ª ed. São Paulo: Ed. Cortez, 1993.) Como o conhecimento científico, na contemporaneidade, ainda é uma produção que possui um estatuto privilegiado quando comparado com outras formas de produção do conhecimento recorre-se frequentemente as produções acadêmicas para que o argumento seja validado como confiável. Ainda considerando esse fragmento, é possível apontar a incompatibilidade no discurso, pois o relatório negligencia outros estudos das mais diversas áreas que refutam a hipótese do AGA.

Por meio dessa análise, não há a intenção de identificar se há ou não o AGA. Pretende-se aqui, demonstrar que o poder discursivo científico-ideológico tem o objetivo de persuadir e várias nações se apropriam da causa, o aquecimento climático, que fundamenta a construção de políticas públicas com estratégias que estão em consonância, ao menos, com as metas internacionais de emissão de gases estufa. E essas práticas reorganizam diversos espaços pelo mundo e uma das expressões espaciais desse contexto geo-histórico é a MRG de Irecê com o apoio massivo do Estado em suas distintas esferas

A Evocação Ambiental e a Consolidação do Circuito Espacial Produtivo

O PNPB foi pensado pelo governo federal para produzir o agrocombustível e através do seu uso “diminuir” as emissões de gases poluentes e “causadores” do aquecimento global. Porém, além desse objetivo, a propalada via discursiva de geração de emprego e renda, propiciou a sensibilização das outras unidades políticos-administrativas (a Bahia lançou um programa em 2007, o BAHIABIO para estar em consonância com o PNPB e estimular a produção de agrocombustível no estado), de agricultores, de instituições das mais diversas ordens, desde corporações a estabelecimentos para a formação de um arranjo produtivo local (APL) de mamona.

O estado da Bahia para estar consonante com as solicitações e com as necessidades (estratégico-econômicas) globais para a diminuição da emissão de gases estufa, implantou um projeto para fomentar a produção de agrocarburantes no estado: o Bahiabio, programa que

Insere na agricultura do Estado um novo sistema de produção agrícola, a agroenergia, não destinado à produção de alimentos, porém sem competir com esta, e, sim, responsável pela produção de matérias-primas energéticas renováveis, que deverão gradativamente substituir a energia oriunda do petróleo e do carvão mineral, altamente agressiva ao equilíbrio ambiental.

O Estado da Bahia não pode deixar de atender ao chamado mundial para produzir combustíveis renováveis e de menor impacto ambiental, uma vez que possui uma oferta de recursos naturais que o coloca numa posição de liderança no contexto nacional, contando com extensão territorial que permite a expansão da fronteira agrícola, altos índices de insolação, verdadeiro laboratório de fotossíntese, dado a sua condição tropical, e um clima que atende às necessidades das principais culturas para a produção em massa de oleaginosas e cana-de-açúcar. (SEAGRI, 2008SECRETARIA DE AGRICULTURA, IRRIGAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA (SEAGRI). Programa Estadual de Bioenergia (BAHIABIO). Salvador, SEAGRI, 2008. Disponível em: <http://www.seagri.ba.gov.br/bahiabio.pdf> Acesso em: 12 dez 2014.
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)

A evocação ambiental é o mote para a adesão de diversos segmentos desde agricultores às indústrias e governos, aos chamados internacionais, para melhorar a qualidade e diminuir a temperatura global haja vista que o aquecimento é global e antropogênico para quem adere a essa ideia. Além desse processo evocatório, a valorização das potencialidades naturais do estado da Bahia também está presente no texto, conclamando os possíveis envolvidos a participarem dessa empreitada. É importante ressaltar que a tropicalidade é resultado do binômio água/insolação que por sua vez possibilita aos vegetais realizarem fotossíntese. Dessa maneira, para um cultivo agrícola a tropicalidade é geradora de um enorme potencial produtivo (PORTO-GONÇALVES, 2006aPORTO-GONÇALVES, C. W. A Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006a.) e é tratado como um insumo agrícola.

Este apelo internacional com anuência dos estados nacionais e de suas unidades federativas está criando novos territórios e reorganizando paisagens. Nos estudos de Lopes, Andrade e Pontes (2011)LOPES, J. da S; ANDRADE, T. C. Q. de; PONTES, L. A. M. Dimensões sociais e ambientais do uso de culturas energéticas para biodiesel no Território Irecê. Bahia Análise & Dados: Mudanças climáticas, v.21, n.4, p.859-876, out-dez 2011. sobre as dimensões sociais e ambientais do uso de culturas energéticas no Território de Irecê, conclui-se queesse processo na área ainda está em construção, considerando que os arranjos produtivos locais são

[...]aglomerações territoriais de agentes econômicos, políticos e sociais, com foco em um conjunto específico de atividades econômicas e que apresentam vínculos e interdependência. Geralmente, envolvem a participação e a interação de empresas – que podem ser desde produtoras de bens e serviços finais até fornecedoras de insumos e equipamentos, prestadoras de consultoria e serviços, comercializadoras, clientes, entre outros - e suas variadas formas de representação e associação. Incluem, também, diversas outras instituições públicas e privadas voltadas para: a formação e capacitação de recursos humanos, como escolas técnicas e universidades; pesquisa, desenvolvimento e engenharia; política, promoção e financiamento (LASTRES et al., 1999LASTRES, H. M. M. Globalização e inovação localizada: Experiências de Sistemas Locais no Mercosul. Brasília: IEL/IBICT, 1999., p.13).

De acordo com a Dalla Vecchia (2006) os APL’s são compostos por alguns elementos, os principais são:

- a dimensão territorial, considerando a proximidade geográfica como fonte de dinamismo local, pois a população de uma determinada área possui experiências semelhantes nas dimensões culturais, sociais, econômicas e espaciais;

- a multiplicidade de agentes participantes dos processos. A participação de diversos segmentos sociais, econômicos e políticos que atuam nessas três dimensões, como os agricultores, as cooperativas, a indústria ricnoquímica (que utiliza como matéria-prima o óleo de rícino extraído da mamona) as três esferas político administrativas e outras instituições. Todo um complexo envolve e articula esses três segmentos que necessitam se intercambiar para que haja o avanço das atividades. Neste elemento residem também as instituições de pesquisa que buscam fomentar a produção por meio das pesquisas e de assistência técnica.

- os chamados conhecimentos tácitos que estão implícitos, mas são compartilhados pelos agentes, sobretudo pelos agricultores. Pode-se considerar também esse conhecimento uma forma de saber cultural que foi enraizado pelas práticas e experiências com o cultivo de mamona.

- os diferentes modos de gestão, participação e intervenção dos participantes do APL, ou seja, a governança hierárquica ou não hierárquica, diferenciadas pelo grau de centralização e verticalização das ações decisórias.

- as articulações dos agentes do APL com outras organizações intra e inter APL, inclusive como às relações com os recursos naturais que ocorrem para o funcionamento do APL.

Essa modalidade de desenvolvimento regional foi apoiada, sobretudo, por meio das políticas territoriais da Secretaria de Agricultura Familiar – SAF, do MDA para que houvesse a participação efetiva da categoria sócio-ocupacional dos agricultores familiares nessa rede, ou seja, envolve o espaço agrário, no intuito de estimular novas dinâmicas socioeconômicas, com base na integração produtiva entre diferentes classes sociais. O estímulo ao fortalecimento das chamadas “identidades culturais” é difundido para que seja efetuada uma territorialização de políticas públicas pautadas na noção de pertencimento territorial e identitário.

Ainda, analisando o que pode acontecer com essa conformação e os processos que promovem sua possibilidade é importante entender o evento e suas articulações interescalares, pois de acordo com Santos (2004)SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004.

[...]se considerarmos o mundo como um conjunto de possibilidades, o evento é um veículo de uma ou de algumas dessas possibilidades existentes no mundo. Mas o evento pode ser o vetor das possibilidades existentes numa formação social, isto é, num país, ou numa região, ou num lugar, considerados esse país, essa região, esse lugar como um conjunto circunscrito e mais limitado que o mundo (SANTOS, 2004SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004., p. 144)

O evento, apesar de ser um ponto, é o movimento de outros pontos e, por tal condição, se torna estrutura de transformações determinadas, mesmo que diminutas, pelas necessidades sociais, espaciais, políticas e econômicas.

Porém, como alerta Santos (2005)SANTOS, M. A questão do meio ambiente: desafios para a construção de uma perspectiva transdisciplinar. GeoTextos, Salvador, vol.1, n.1, p. 139-151, 2005., esse lugar é um espaço que reproduz a totalidade social, mas é mais limitado que o mundo. A possibilidade de formação de um APL na MRG de Irecê surge como uma necessidade externa, considerando os recortes espaciais, mas também como aquilo que é preciso para as pessoas que nessa aérea habitam, no sentido de poder proporcionar uma melhoria nas condições de vida dos agricultores para impulsionar o desenvolvimento local.

Essas tentativas já foram realizadas nesse espaço por meio da agricultura comercial, entretanto com outro tipo de cultivo, o de feijão. Assim como agora, na época dos feijoeiros, as verticalizações do estado atuavam para promover essa atividade. Entretanto, o que distingue esse período atual do anterior é que essa “necessidade” é nacional, mas com uma forte pressão geopolítica de outros Estados nacionais e das instituições supranacionais para que certas medidas sejam tomadas para diminuir a emissão de gases que supostamente causariam o AGA.

A ricinocultura voltada para essa finalidade se encaixa nas diretrizes dos Mecanismos de Desenvolvimento Limpo – MDL, previsto no Protocolo de Kyoto, pois além de diminuir a emissão de gases poluentes a partir da queima do combustível no qual haja o aditivo do biocombustível, o cultivo de mamona auxiliaria no sequestro de carbono da atmosfera, podendo ser comercializadas no mercado de carbono.

Vários autores como Porto-Gonçalves (2006a)PORTO-GONÇALVES, C. W. A Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006a. e Leff (2003)LEFF, E. Complexidade Ambiental. São Paulo: Cortez, 2003. apontam que as formulações dessas medidas como o MDL são elaboradas no contexto neoliberal, da evocação do desenvolvimento sustentável. Em seus pensamentos, concluem que os maiores emissores de gases do efeito estufa transferem suas responsabilidades para os países em desenvolvimentos, alterando atividades agrícolas e aumentando as áreas de unidades de conservação, baseadas numa restauração ambiental da economia.

Dessa maneira

[...] a geopolítica do desenvolvimento sustentável vê com otimismo a solução das contradições entre economia e ecologia ao propor, ainda, a reconversão da biodiversidade em coletores de gases de efeito estufa (principalmente dióxido de carbono), com o qual se exime de responsabilidades os países industrializados pelos excedentes de suas cotas de emissões, enquanto se induz uma reconversão ecológica dos países do terceiro mundo (PORTO-GONÇALVES, 2006, p.345).

Portanto, essa reorganização produtiva, na forma de APL como propõem Lopes, Andrade e Pontes (2011)LOPES, J. da S; ANDRADE, T. C. Q. de; PONTES, L. A. M. Dimensões sociais e ambientais do uso de culturas energéticas para biodiesel no Território Irecê. Bahia Análise & Dados: Mudanças climáticas, v.21, n.4, p.859-876, out-dez 2011. em construção e a refuncionalização atribuída a ricinocultura são configurações espaciais do período técnico-científico-informacional. E como afirma Santos (2004)SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004., o sistema técnico hegemônico, na atualidade, é a própria informação. Sendo os sistemas técnicos invasores torna-se necessário reconhecer que

[...] sua capacidade de invasão tem limites. Esses limites são dados pela divisão do trabalho e pelas condições de criação de densidade. Quanto mais forte, numa área, é a divisão do trabalho, tanto mais há tendência para que esses sistemas hegemônicos se instalem. Nesse lugares, é mais eficaz a ação dos motores da economia mundializada, que incluem as instituições supranacionais, as empresas e os bancos multinacionais. E a densidade – já notavam Marx e Durkheim- é uma fator de divisão do trabalho pois facilita a cooperação. (SANTOS, 2004SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004., p.179).

Ademais, obviamente que o processo de internacionalização do capital ocorre e também se reproduz na MRG de Irecê. O APL em construção permite uma divisão do trabalho e a densidade se revela na proporção do cultivo nesta área quando relacionado com a escala nacional. Modificações no território reorganizam os arranjos paisagísticos que no caso da MRG de Irecê, alteram os espaços rurais que podem gerar as mais diversas pressões ambientais. Nessa área, em 2011, mais de 40% (IBGE, 2011IBGE. Produção Agrícola Municipal 1990 a 2011. Disponível em:<http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/listabl.asp?c=1612&z=t&o=11>. Acesso em: 10 nov. 2012.
http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/...
) da área colhida é de mamona, considerando todas as lavouras temporárias cultivadas na MRG de Irecê. Ou seja, convertem-se os agroecossistemas da área alterando as organizações paisagísticas e as dinâmicas naturais.

Do mesmo modo que os sistemas técnicos têm limites, na MRG de Irecê é visível a atuação do sistema técnico hegemônico. As dinâmicas territoriais e paisagísticas possuem relação próxima com a informação.

De acordo com Santos (2004)SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004., sobre o meio-técnico-científico-informacional

Podemos (...) falar de uma cientifização e de uma tecnicização da paisagem. Por outro lado, a informação não apenas está presente nas coisas, nos objetos técnicos, que formam o espaço, como ela é necessária à ação realizada sobre essas coisas. A informação é o vetor fundamental do processo social e os territórios são, desse modo equipados para facilitar a circulação. (...) Os espaços assim requalificados atendem sobretudo aos interesses dos atores hegemônicos da economia, da cultura e da política e são incorporados plenamente às novas correntes mundiais. O meio técnico-científico-informacional é a cara geográfica da globalização. (SANTOS, 2004SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004., p. 239)

O retorno e a refuncionalização da ricinocultura na MRG de Irecê estão inseridos no que o próprio Milton Santos (2012a) considera como papel despótico da informação, quando esta é apropriada e utilizada por uma pequena parcela da sociedade, Estado e/ou empresas, e antecede qualquer outra ação humana e tem como uma de suas consequências a ampliação de desigualdades.

Como nos alerta Lobo dos Santos (2012)SANTOS, J. A. L. dos. Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel; sujeição da renda e da terra camponesa ao capital no território de identidade de Irecê- BA. 2012. 262 f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Departamento de Geografia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2012. em seu estudo sobre a sujeição da renda na terra camponesa no Território de Irecê, fruto das ações do PNPB, as alterações provenientes da implantação dessas políticas, conclui que o PNPB é um gerador de desigualdade pois,

Na prática, a realidade espacial e territorial vem mostrando que o PNPB tem se revelado muito mais em um instrumento do capital para a geração de novos atalhos para a acumulação e de densa rede aos novos fluxos de capital no contexto da reestruturação das formas de apropriação do espaço. Essas novas formas de atuação calcadas na acumulação flexível, com fundamento nos novos fluxos de capital, implica em ações que, articuladas com políticas públicas de Estado, colocam a tradicional discussão conceitual sobre o campesinato em zona instável (SANTOS, 2012SANTOS, J. A. L. dos. Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel; sujeição da renda e da terra camponesa ao capital no território de identidade de Irecê- BA. 2012. 262 f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Departamento de Geografia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2012., p.251 e 252).

Para esse autor, o principal problema gerado por essa territorialização de políticas públicas é a expropriação da renda da terra camponesa com o cultivo de mamona, sobretudo com a transformação das relações trabalhistas desses agricultores. Neste caso, concorda-se com Lobo dos Santos (2012)SANTOS, J. A. L. dos. Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel; sujeição da renda e da terra camponesa ao capital no território de identidade de Irecê- BA. 2012. 262 f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Departamento de Geografia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2012. sobre esse problema. Entretanto, não se pode olvidar as outras pressões ambientais que são geradas e que interferem ou poderão interferir também na reprodução do espaço agrário da MRG de Irecê.

Diante da exposição dos pensamentos de Lobo dos Santos (2012)SANTOS, J. A. L. dos. Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel; sujeição da renda e da terra camponesa ao capital no território de identidade de Irecê- BA. 2012. 262 f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Departamento de Geografia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2012. e sua conformidade com o pensamento de Milton Santos (2004)SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004., entende-se que na MRG de Irecê, a estrutura produtiva da mamona, com elevada intensidade de fluxos materiais e imateriais ocorre, além da formação do APL, essa área participa de um circuito espacial produtivo.

Para Castillo e Frederico (2010)CASTILLO, R; FREDERICO, S. Espaço geográfico, produção e movimento:uma reflexão sobre o conceito de circuito espacial produtivo. Sociedade & Natureza, v.22, n.3, 461-474, dez 2010., a noção de circuito espacial produtivo supera a ideia de que os circuitos produtivos são circunscritos regionalmente. O exemplo da MRG de Irecê permite avaliar que ela integra um circuito espacial produtivo que não se inicia e não se encerra nessa área. A MRG de Irecê é apenas um dos fixos funcionais à produção de agroenergia no Brasil que, por sua vez, responde às pressões internacionais com essa produção.

Assim,

Os circuitos espaciais de produção pressupõem a circulação de matéria (fluxos materiais) no encadeamento das instâncias geograficamente separadas da produção, distribuição, troca e consumo, de um determinado produto, num movimento permanente (CASTILLO e FREDERICO, 2010CASTILLO, R; FREDERICO, S. Espaço geográfico, produção e movimento:uma reflexão sobre o conceito de circuito espacial produtivo. Sociedade & Natureza, v.22, n.3, 461-474, dez 2010., p.464).

A produção não deve ser considerada apenas o ato produtivo em si, mas todos os processos que originaram aquela ação, ou seja, desde a propagação da ideia de que há um AGA os preços do barril do petróleo aumentam no mercado mundial, houve até a produção de energia alternativa às fontes fossilistas.

Contudo, apenas pode ser feito uso desse conceito na perspectiva citada, se for utilizado também a noção de círculos de cooperação no espaço. Enquanto o circuito espacial produtivo pressupõe a circulação de matéria, aquilo que ordena e regula a produção deve ser compreendido tendo esse conceito como norte analítico. Ainda para Castillo e Frederico (2010)CASTILLO, R; FREDERICO, S. Espaço geográfico, produção e movimento:uma reflexão sobre o conceito de circuito espacial produtivo. Sociedade & Natureza, v.22, n.3, 461-474, dez 2010. os círculos de cooperação no espaço

Tratam da comunicação, consubstanciada na transferência de capitais, ordens, informação (fluxos imateriais), garantindo os níveis de organização necessário para articular lugares e agentes dispersos geograficamente, isto é, unificando, através de comandos centralizados, as diversas etapas, espacialmente segmentadas da produção (CASTILLO; FREDERICOCASTILLO, R; FREDERICO, S. Espaço geográfico, produção e movimento:uma reflexão sobre o conceito de circuito espacial produtivo. Sociedade & Natureza, v.22, n.3, 461-474, dez 2010. p.464-465)

O circuito espacial produtivo existe quando há uma troca de fluxos visíveis e invisíveis entre as diversas escalas permitindo compreender como se organiza, como é regulado e como se dá o uso do território.

Por isso, ainda de acordo Castillo e Frederico (2010)CASTILLO, R; FREDERICO, S. Espaço geográfico, produção e movimento:uma reflexão sobre o conceito de circuito espacial produtivo. Sociedade & Natureza, v.22, n.3, 461-474, dez 2010., analisando um processo de produção, através da noção do circuito espacial produtivo é possível compreender as diferentes etapas do processo produtivo “articulando dialeticamente o lugar e o mundo”. Retoma-se aqui a discussão escalar e concorda-se que o lugar, no caso a MRG de Irecê se articula dialeticamente com o mundo, mas nesse caso com auxílio e participação efetiva da escala nacional por meio das territorializações de políticas públicas, tal como planejado via PNPB.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho buscamos compreender que o atual uso político e econômico da noção de aquecimento global pode implicar em modificações das mais diversas dimensões, inclusive a ambiental. Na MRG de Irecê observamos que as alterações espaciais são inicialmente, observadas no arranjo paisagístico, sendo que este é reorganizado devido a implantação de convenções, normatizações e práticas na escala global, nacional e localpor meio da territorialização de políticas públicas.

Os discursos pró-descarbonização da economia evocam o ambiente para executar suas práticas como se estas fossem isentas de gerar problemas ao ambiente. No Brasil a introdução de medidas para uma produção energética, via biomassa, contempla esta utilização política da ideia de aquecimento global. Na MRG de Irecê, a configuração paisagística está sendo moldada, em consonância com as ordens nacional e global.

Na MRG de Irecê, os diversos agentes que participaram desde o período de planejamento da implantação da ricinocultura para esta finalidade, há uma década, aderiram incondicionalmente as intervenções como a principal via possível para o desenvolvimento da agricultura regional e essa mobilização intensificou a ocupação das propriedades rurais como cultivo de mamona.

A partir dessa mobilização houve a apropriação dos recursos naturais, do saber cultural dos agricultores para propiciar condições de acumulação que aparentemente seriam distribuídas entre todos. Contudo, existem vários níveis de acumulação como a dos atravessadores, das corporações estatais e de empresas internacionais enquanto os agricultores estão na base desse circuito.

E essas condições de acumulação justificam a localização desse cultivo com o objetivo de produzir agroenergia na MRG de Irecê. As condições naturais, os saberes dos agricultores e a possibilidade de acumulação, cada vez mais acentuada, da renda dos agricultores. O monopólio da terra ocorre, não por meio das propriedades rurais, e sim pelo monopólio do cultivo de mamona.

Ademais, observou-se que está havendo gradativamente uma conversão da categoria sociocupacional. Para o cultivo de mamona os agricultores estão cada vez mais utilizando essa modalidade, pois o preço permite o investimento de agricultores capitalizados Os pequenos agricultores estão diminuindo a sua participação neste cultivo, pois a produtividade das áreas dos agricultores capitalizados que cultivam a mamona na modalidade irrigada está concentrando essa atividade. O aumento dos custos e a conversão dos cultivos de sequeiro para a modalidade irrigada são indicadores desta situação. Esse acréscimo de usuários da irrigação gera problemas aos recursos hídricos, como já citado, e aos solos se não houver manejos adequados. Assim, a evocação ambiental, gera acumulação diferenciada para os participantes do circuito espacial produtivo e pressão ambiental similar nas áreas de e próximas ao cultivo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2014
  • Aceito
    14 Mar 2015
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