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Veredas, oásis do Sertão: conflito ambiental na apropriação das águas em Botumirim-MG

Veredas, oasis of Sertão: environmental conflict in Botumirim, Minas Gerais (Brazil)

Resumos

Este artigo apresenta uma pesquisa etnográfica que teve como objetivo analisar a influência das práticas de uso e manejo tradicional dos recursos hídricos no processo de construção de identidade e de territorialidade de duas comunidades. Neste caso específico, comunidades veredeiras. Além disso, o artigo analisa o conflito ambiental relacionado a disputa entre o modo de vida tradicional comunitário e as políticas governamentais nas ações para a conservação da natureza. A pesquisa foi realizada nas Comunidades Gigante e Pé da Serra, localizadas no Município de Botumirim, na região reconhecida como Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Os modos de vida e de subsistência destas comunidades estão relacionadas a agricultura familiar, com valores e regras ligadas a uma cultura tradicional específica, onde a água tem uma importância significativa. Esta região e seus recursos hídricos tem sido disputada por vários sujeitos e instituições com diferentes interesses e poder econômico, colocando as comunidades tradicionais, os seus meios de subsistência, sua cultura e seus recursos naturais comuns em risco.

água; comunidades tradicionais; conflito ambiental


This paper describes an ethnographic research which aimed at analyzing the influence of traditional water resource use and management as well as its role in the process of building community identities and territorialities. Furthermore, the paper analyses the environmental conflicts associated with the dispute between the community’s traditional way of life and governmental policies towards environmental conservation. The research was carried out in the  Gigante and Pé da Serra community, within the municipality of Botumirim, in the region recognized as Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais State. The community’s livelihood and means of existence are related to familiar agriculture, having values and rules linked to a specific traditional culture, in which water has significant importance. This area and its water resources have been disputed by different types users and institutions with very different interests and economic power, setting traditional communities, their means of existence, their culture and their common use of natural resources at risk.

water resources; traditional communities; environmental conflict


INTRODUÇÃO

Neste trabalho buscamos demonstrar, através de descrição etnográfica, como duas comunidades tradicionais que se estabeleceram numa região de veredas, concebem a representatividade dos cursos d’águas no seu cotidiano, como elemento significativo para constituição de sua identidade e territorialidade, além de enfatizar os conflitos inerentes ao processo de restrição do uso da água por órgãos governamentais, nesse caso, principalmente aqueles em que a restrição subsidia projetos desenvolvimentistas que impactam o modo de vida dessas comunidades.

Comunidades tradicionais, como as de Gigante e Pé da Serra, estão localizadas em região de veredas. Estas regiões estão inseridas nas Áreas de Preservação Permanente – APP, que passaram a ser alvo de políticas públicas genéricas, que não levam em conta as populações que historicamente convivem com esses ambientes. As mesmas desenvolveram um conhecimento local que orientam seus modos de vida, suas tradições e crenças, que no caso destas comunidades, estão baseadas no uso “livre” da água, sendo este “livre” o entendimento da água como um bem comum/ “common goods” (RIBEIRO E GALIZONI, 2003RIBEIRO, E.M. & GALIZONI. Água, população rural e políticas de gestão: o caso do vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Ambiente & Sociedade, vol. VI, n. 1, 2003.) ou um recurso de uso comum (DIEGUES, 2000DIEGUES, A.C. (org.) Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: Hucitec, 2000.) e , que não pode ser impedido de fluir ou não pode ser aprisionado ou seja, não pode ser privatizado.

A legislação brasileira, desde 1934, através do Código das Águas, regulamenta o uso da água. Porém, foi na Constituição de 1988 que todos os recursos hídricos vinculados ao território nacional tomam um caráter público, conferindo a União a responsabilidade de legislar e instituir mecanismos de gestão das águas, inserindo nesse processo os Estados, Municípios e a Sociedade Civil. Nos estudos de Ribeiro e Galizoni (2003)RIBEIRO, E.M. & GALIZONI. Água, população rural e políticas de gestão: o caso do vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Ambiente & Sociedade, vol. VI, n. 1, 2003., há uma disparidade no que se refere à representatividade para o processo de gestão das águas instituído nacionalmente, já que os agricultores familiares disputam espaço com grandes produtores, esses últimos como um poder maior de articulação e organização política. Os autores ressaltam ainda que as maiores restrições recaem sobre as regiões de nascentes, onde esses pequenos agricultores ainda conseguem permanecer, visto que são áreas de difícil acesso e principalmente por não serem atrativas economicamente. Na visão dos autores,

O espaço rural brasileiro congrega tanto a pequena gestão comunitária quanto os grandes consumidores; nele, a regulação comunitária e o grande empreendimento consumidor começam a se confrontar num embate pela água. Ocorre que boa parte das nascentes d’água localiza-se em terras acidentadas e pouco férteis, onde também se concentram agricultores familiares. Por isso são estes segmentos da população os principais gestores de nascentes e alvos de programas educativos e repressivos de conservação das águas. Conflitos culturais, políticos e econômicos em torno de água remetem a uma reflexão sobre a lógica dos usos e dos diálogos, as opções que surgem da aparente irracionalidade das populações que se opõem ao desenvolvimento (RIBEIRO e GALIZONI, p. 2, 2003RIBEIRO, E.M. & GALIZONI. Água, população rural e políticas de gestão: o caso do vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Ambiente & Sociedade, vol. VI, n. 1, 2003..).

O ônus ambiental dos grandes projetos desenvolvimentistas, agronegócio, hidrelétricas e outros recai quase sempre sobre as comunidades tradicionais, desencadeando um processo conflituoso entre as lógicas de apropriação dos recursos naturais, visto que os agentes locais, quase sempre, não dispõem de uma articulação política tão organizada quanto os agentes das empresas. Os impactos desses empreendimentos incidem diretamente no ambiente e nestas relações humanas comunitárias e locais, nas quais o modo de vida está intrinsecamente vinculado ao território impactado. Este é o caso de Gigante e Pé dá Serra, comunidades onde o ser e o saber-fazer está vinculado ao contato direto com as nascentes de serra, veredas e cursos d‘água. Sendo assim, o percalço desse processo recai sobre essas populações, que, segundo diversos autores (BERKES, 1999BERKES, F. Context of Traditional Ecological Knowledge. In: Sacred Ecology: Traditional Ecological Knowledge and Resource Management. Fikret Berkes (org). Taylor and Francis, Philadelphia. 1999. p. 4-15.; DIEGUES, 1996DIEGUES, A.C. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 1996.; GOMEZ-POMPA e KAUSS, 1992GOMEZ-POMPA, A. AND KAUS, A. .Taming the Wilderness Myth. BioScience, Vol 42. No. 4, p. 271-279. 1992.; POSEY, 1986POSEY, D.A. Introdução à Etnobiologia: teoria e prática. In: Ribeiro, B. Sum. Etnol. Bras., V.1, Etnobiologia. Petrópolis: Vozes. (11-22). 1986. e TOLEDO, 1992TOLEDO, V.M. What is ethnoecology? Origins, scope and implications of a rising discipline. Etnoecológica, vol.1, p. 5-21. 1992.), utilizam os recursos naturais de forma sustentável. Para Cunha e Almeida (2000)CUNHA, M. C. E ALMEIDA, M. W. B. Indigenous People, Traditional People, and Conservation in the Amazon. Daedalus. Journal of the American Academy of Arts and Sciences, vol. 129, n. 2, (315-338), 2000., estas populações contribuem para diversidade biológica, já que, no uso e manejo dos recursos naturais, dinamizam a distribuição destes no espaço, podendo aumentar riqueza de espécies numa determinada paisagem. Já para Costa (2005)COSTA, J.B. Os Guardiões das Veredas do Grande Sertão. Brasília: IPHAN; FUNATURA, 2005 (mimeo)., as gentes das veredas são guardiãs desses ecossistemas, devido à lógica de apropriação moralmente instituída, ou seja, normas eficazes de controle da apropriação baseada em mitos. Ostrom (2002)OSTROM, E. The Drama of The Commons. National Academies Press. 2002. denomina estas normas locais de regimes de propriedade comum, ou seja, regras ou direitos estabelecidos por uma comunidade relacionados ao uso de um determinado recurso de interesse e dependência coletiva.

No caso de Gigante e Pé da Serra, as maiores restrições ao acesso e ao uso da água e de outros recursos naturais nos quais seus modos de vida são dependentes, surgiram em paralelo ao processo de implantação da hidroelétrica de Irapé, o qual onerou várias comunidades em vários aspectos, mas principalmente, impondo um controle externo sobre o uso dos recursos naturais. Nesse sentido, Ribeiro (2006)RIBEIRO, R. F. Florestas anãs do sertão: o cerrado na história de Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica. Vol. 1. 2006 . identificou em sua pesquisa, em 1999, que ecossistemas importantes para o cerrado seriam inundados no local onde seria implantada a barragem. Além disso, em pesquisa etnográfica nas comunidades Gigante e Pé da Serra, entre os anos de 2008 e 2010, Rodrigues (2010)RODRIGUES, L.R. A casa como um microcosmo: processos sociais nas comunidades Gigante e Pé da Serra, Botumirim-MG. Monografia. UNIMONTES. Montes Claros, 2010., identificou que diversas comunidades foram removidas e reassentadas longe do ciclo social anterior, desarticulando várias relações com as comunidades remanescentes. As remoções inclusive acabaram com a economia local e tradicional, baseada em trocas de mercadoria entre as comunidades próximas, que contribuia para uma descentralização das atividades produtivas, e para a regulação da capacidade produtiva de cada propriedade, visto que o sistema de trocas evitava a concentração produtiva em áreas muito pequenas. Essa relação econômica favorecia também as relações interpessoais, já que muitos casamentos resultavam dessa dinâmica.

Iniciaremos nossa discussão recorrendo aos aportes constitucionais e teóricos nos quais se baseiam a abordagem sobre povos e comunidades tradicionais. Em seguida apresentaremos as duas comunidades onde a pesquisa foi desenvolvida, e o contexto social e político no qual estão inseridas. Para finalizar, através de uma narrativa etnográfica, explicitaremos as categorias êmicas e percepções locais que subsidiam a identidade e a territorialidade referenciada pelos usos e manejos das águas, além de evidenciar os conflitos inerentes às restrições do uso dos recursos naturais, principalmente o uso direto das nascentes dos corpos hídricos.

COMUNIDADES TRADICIONAIS: O CONCEITO E O VIVIDO

A sociedade brasileira, durante o processo constituinte, considerou que existem no interior do país diversos grupos culturalmente diferenciados que contribuíram para a constituição da nacionalidade brasileira. Decorre daí a insurgência do direito coletivo culturalmente diferenciado das populações que passaram a ser consideradas como tradicionais pela Constituição de 1988. Esses direitos emanados do texto constitucional necessitavam de regulamentação em sintonia com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT, da qual o Brasil é signatário. Em julho de 2000, por meio da Lei 9.985 que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, são reconhecidos os direitos das comunidades tradicionais em suas interfaces com as unidades de conservação. Elas são consideradas por sua forma recíproca na apropriação do espaço, orientada segundo princípios próprios, construídos em interação com o ambiente e sem perspectivas comerciais. A relação homem/natureza, conforme Barreto Filho (2001)BARRETO- FILHO, H. T. Populações Tradicionais: Introdução à Crítica da Ecologia Política de uma noção. In: WORSHOP SOCIEDADES CABOCLAS AMAZÔNICAS: Modernidade e Invisibilidade. Parati: 2001 (mimeo)., vivida pelas populações que passaram a ser legalmente consideradas como tradicionais, contribui para a manutenção do ecossistema. Para este autor, a tradicionalidade dessas populações se deve:

(a) por sua relação particular com a natureza, traduzida num corpo de saberes técnico e conhecimentos sobre os ciclos naturais e os ecossistemas locais de que se apropriam; (b) pelo fato desses ecossistemas representarem, em muitos casos as derradeiras amostras e remanescentes globais de ecossistemas críticos e frágeis; e (c) por situarem-se relativamente à margem da economia de mercado formador de preços, organizados em sistema de produção baseado na organização familiar e orientados para a subsistência e num modelo de uso de recursos naturais intensivo em trabalho e, supostamente de baixo impacto (BARRETO-FILHO, 2001BARRETO- FILHO, H. T. Populações Tradicionais: Introdução à Crítica da Ecologia Política de uma noção. In: WORSHOP SOCIEDADES CABOCLAS AMAZÔNICAS: Modernidade e Invisibilidade. Parati: 2001 (mimeo)., p.18-19 )

Amparadas em Diegues e Arruda (2001)DIEGUES, A. C. e ARRUDA, R. S.V. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério de Meio Ambiente, 2001. em quem Barreto-Filho (2001)BARRETO- FILHO, H. T. Populações Tradicionais: Introdução à Crítica da Ecologia Política de uma noção. In: WORSHOP SOCIEDADES CABOCLAS AMAZÔNICAS: Modernidade e Invisibilidade. Parati: 2001 (mimeo). alicerçou sua categorização, podemos afirmar, que no sertão nortemineiro as populações que se desenvolveram em meio a saberes propiciados pela interação homem/natureza, desenvolveram práticas sociais específicas por sua interdependência com o ambiente ecológico. São a partir destas práticas dos grupos sociais ou das comunidades que ali reproduzem seus saberes práticos e simbólicos por diversas gerações, que podemos caracterizá-los por uma etnicidade ecológica, como discutido por Parajuli (1996)PARAJULI, P. Ecological Ethnicity in the Making: Developmentalist Hegemonies and Emergent Identities in India. Identities, Vol. 3(1-2), p.1-10, 1996.. Não entendemos, é claro, essa etnicidade como um elemento determinista, mas como influenciadora de práticas que contribuem para a formação identitária desses povos.

Os agrupamentos humanos que se fixaram no espaço ecológico das veredas, característico do bioma Cerrado, estão inseridos na região norte mineira situada na área do Alto-Médio São Francisco e podem ser encontrados também, entre os grupos rurais do Alto-Médio Jequitinhonha, principalmente em Botumirim. Os mesmos possuem um modo de vida específico e são considerados por si mesmos e pela sociobiodiversidade circunvizinha (geraizeiros, catingueiros, entre outros) como gentes das veredas ou veredeiros. No estudo coordenado por Pierson (1972)PIERSON,, D. O Homem do Vale do São Francisco. Rio de Janeiro: Ministério do Interior/Superintendência do Vale do São Francisco. 1972. sobre o homem no vale sanfranciscano, esses agrupamentos são identificados como veredeiros, termo relacionado ao caráter eco-geográfico da região que habitam. Neste estudo, a denominação gente das veredas ou veredeiros vincula-se, sobretudo, ao modo de vida peculiar dessas gentes e não há discussão sobre o caráter étnico das mesmas.

As veredas correspondem a um tipo de vegetação com a palmeira arbórea Mauritia flexuosa (buriti) e, são consideradas cruciais para a manutenção do equilíbrio hídrico do Bioma Cerrado (RAMOS et al, 2006RAMOS, M. V.V; CURI, N; MOTTA, P.E.F; VITORINO, A.C.T; FERREIRA, M.M; SILVA, M.L.N. Veredas do Triangulo Mineiro: solos, água e uso. Ciênc. agrotec., Lavras, v. 30, n. 2 (283-293) mar./abr. 2006.). Elas se constituem como nascentes de cursos de água que dão origem a diversos rios que formam a bacia do rio São Francisco e do Jequitinhonha. Este cenário onde socialmente se localizam as comunidades tradicionais veredeiras, tornou-se alvo de legislação conservacionista, o que impede que alguns tipos de atividades de apropriação do ambiente sejam praticados por serem considerados conflitivos com os princípios de conservação. Este trabalho evidenciará essa relação com os órgãos governamentais, que, na maioria das vezes, não compartilham da mesma cosmografia (LITTLE, 2002LITLE, P. Etnodesenvolvimento local: autonomia cultural na era do neoliberalismo global. Tellus, ano 2, n. 3. Out. p. 33-52. 2002.) no que se refere à apropriação dos recursos naturais. Estas instituições e seus agentes inserem, de forma compulsória, novos elementos que contrastam com a formação cultural dessas comunidades. Estrategicamente, essas comunidades buscam meios de conciliar elementos contrapostos como condição para manter sua tradicionalidade.

As comunidades veredeiras são exemplos dessas populações que se desenvolveram em meio a um determinado ecossistema, estabelecendo relações específicas com o ambiente configurando-se no que podemos chamar de etnicidade territorial. Uma etnicidade deve ser considerada territorial quando é recorrente o vínculo que os membros de uma comunidade estruturam e regulamentam, por meio de articulações singulares, e as relações sociais vividas no interior da comunidade, a um determinado espaço com específicas características naturais. A estrutura e a regulamentação das relações sociais se dão a partir dos padrões culturais, que constroem e reconstroem os saberes no trato com a natureza e com os seres humanos de forma interativa com o ambiente, constituindo assim seu modo de ser e de viver específico. Mesmo com a forte ligação ao território específico que habitam, estas comunidades continuam vulneráveis às mudanças geradas por inúmeros fatores externos, principalmente os socioeconômicos.

UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA REGIÃO E DA COMUNIDADE

A região do Vale do Jequitinhonha teve sua economia historicamente vinculada ao garimpo e à agricultura, de modo que muitas comunidades se formaram em meio aos grotões de serra, desenvolvendo um sistema de produção paralelo às práticas de mineração, que articulava vários ambientes. O discurso hegemônico engendra sobre essa região estereótipos negativos relacionados à pobreza e estagnação econômica. Porém, Moura (1988)MOURA, M. M. Os deserdados da terra. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1988 lembra que essa

(...) dissociação que habitualmente se faz entre o atual Vale do Jequitinhonha e o antigo distrito diamantino leva também a omitir fatos importantes ali ocorridos no Séc.XIX, como a edição do segundo Jornal do Brasil, no município de Serro; o florescimento da praça comercial de Araçuaí e o cultivo de Algodão em Minas Novas, que abastecia o próprio Rio de Janeiro (MOURA, 1988MOURA, M. M. Os deserdados da terra. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1988, p.2).

Além desses fatos apresentados por Moura (1998)MOURA, M. M. Os deserdados da terra. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1988, as populações que vivem nesta área, desenvolveram localmente uma autonomia no que se refere à produção agrícola para consumo próprio a partir das condições naturais locais que propiciaram criar estratégias e técnicas de produção especificas. Dessa forma, garantiu-se a reprodução material e simbólica de muitas comunidades, independente das oscilações econômicas no âmbito regional e nacional.

O povoamento da região se deu em função das investidas dos bandeirantes pelo sertão brasileiro em virtude dos ciclos de mineração, embora a existência de povos primitivos num passado milenar seja sinalizada pelas figuras rupestres existentes em várias serras do território que constitui as Comunidades Gigante e Pé da Serra, essa ultima conhecida formalmente como Fonseca. A ocorrência dos desenhos se dá principalmente nas imediações da Vargem da Estiva. As estradas cavaleiras foram durante muito tempo a principal via de acesso a essas localidades formadas entre boqueirões de serras. Atualmente, existem estradas em bom estado de conservação e as motocicletas constituem o principal meio de transporte.

A hidrelétrica de Irapé entrou em atividade em 08 de Junho de 2006 e seu espelho de água atingiu oito municípios. Para sua construção, na última década do Séc.XX e início do Séc. XXI, foram construídas muitas estradas serpenteando as várias serras do município. O nome Irapé surgiu justamente pela dificuldade de trânsito na região: em muitos lugares só era possível ir à pé, como narra o Morador da Comunidade Gigante:

A hidrelétrica é no Jequitinhonha mesmo! Inclusive antes deles começarem a obra eu fui lá, ai criou o nome Irapé, porque lá não ia carro não, tinha que descer a pé um espinhaço terrível de serra. O lugarejozinho lá chamava Lamarão. Daqui no rabo da represa é uns oito quilômetros por dentro. Pela estrada é uns doze. (Morador A/ Gigante, entrevista em janeiro de 2010).

No município de Botumirim, Norte de Minas, margem esquerda do rio Jequitinhonha, situam-se as comunidades veredeiras Gigante e Pé da Serra. Essa última localizada entre duas serras, Serra da Estiva e Serra Quebra Cabeça. Já a comunidade Gigante, localiza-se entre a Serra do Gigante e o Ribeirão do Gigante. Também é uma região fronteiriça com outros três municípios: Itacambira, Bocaiúva e Turmalina, o que justifica a heterogeneidade de relações, que extrapolam os limites políticos e orientam o modo de vida dessa população (Figura 1).

Figura 1
Mapa da localização das Comunidades de Gigante e Pé de Serra.

O Ribeirão Gigante, com maior vazão de água, nasce na Vereda da Estiva e deságua no Rio Jequitinhonha. Os pequenos córregos que orientam a construção da territorialidade local são formados por várias veredas ou por nascentes oriundas das serras, de modo que todos deságuam no ribeirão. Essa dinâmica contribuiu para uma classificação folk (POSEY, 1986POSEY, D.A. Introdução à Etnobiologia: teoria e prática. In: Ribeiro, B. Sum. Etnol. Bras., V.1, Etnobiologia. Petrópolis: Vozes. (11-22). 1986.), baseada no conhecimento tradicional local, das várias águas: vargens (área alagada nas nascentes, buritizais), córregos (pequenos cursos d’água) e ribeirões (cursos d’água de maior vazão), minações (orifícios que retém água nas serras).

Os incentivos para instalação de complexos agrícolas e industriais no sertão Nortemineiro, pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE, exerceram maior efeito no entorno dessa comunidade, principalmente na região de Itacambira, com ações que deram subsídios para a expansão da fronteira agrícola através das plantações de eucalipto e, principalmente, para a mineração a partir dos anos 1960. Uma condição de parcial isolamento predominou nessa região até a intensificação da extração de cristal de agulhas, já nas ultimas décadas do Século XX, em Pedregulho, comunidade rural de Bocaiúva, que limita com as comunidades Gigante e Pé da Serra. Somente na primeira década do Século XXI, é que a área, onde as comunidades se localizam, foi impactada diretamente com a implantação da hidrelétrica de Irapé, obrigando a remoção de várias comunidades ribeirinhas, dentre elas, as comunidades Canabrava e Peixe Crú, que estabeleciam relações econômicas, baseada principalmente em um sistema de trocas e de casamento, com a comunidade Gigante. Além da hidrelétrica, outros programas desenvolvimentistas introduziram práticas de apropriação dos espaços de forma contrastivas com os princípios tradicionais, considerando a ruralidade que constitui, segundo Candido (1975)CÂNDIDO, A. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Duas Cidades, 1975., elemento peculiar da formação cultural da sociedade brasileira.

Com o advento das ações conservacionistas, com objetivo de mitigar os impactos dos grandes projetos como a UHE de Irapé, muitas atividades de coleta, caça, criação de gado e porcos nas diversas veredas ou vargens existentes na região foram impossibilitadas, principalmente nos últimos anos do Século XX e início do Século XXI. Dessa forma, a relação com esses espaços foi alterada em diversos aspectos, o que refletiu em todas as esferas da vida social.

ÁGUA, IDENTIDADE E TERRITORIALIDADE NAS “VEREDAS DO SERTÃO”

Expressões da identidade e da territorialidade dos grupos podem ser percebidas na fala de representates destas comunidades estudadas, como a do “Morador C”, antigo tropeiro e conhecedor de muitas localidades. Ao perguntarmos para ele onde é o sertão, o mesmo responde apontando com a mão:

Sabe ali oh, depois da Estiva. Pra lá pras bandas de Juramento, é naquela redondeza ali. Eu viajava pra lá troperando, vendia boi, vendia diamante, só comprava sal e uma vez que eu comprei um rádio, daqueles grande assim, eu vim de lá aqui com esse rádio na cabeça com medo de quebrar. (Morador C/Gigante, entrevista em janeiro de 2010).

Na fala acima, quando o morador fala depois da Estiva ele concebe o sertão como um lugar seco, sem água, já que a estiva e suas imediações são para ele, uma fronteira que separa o oásis do sertão. A Vargem da Estiva é uma vereda majestosa, com quilômetros de nascentes e buritizais, sendo um marco territorial entre as comunidades estudadas e o sertão. Na concepção do morador, o sertão é um lugar distante, cuja importância se limitou, há algum tempo, apenas pelo fornecimento do sal para as comunidades. Quando se passa da estiva, em direção à Itacambira, Bocaiúva, os ambientes naturais mudam, e assim mudam as relações, mudam os valores morais. São as veredas, seus solos úmidos, suas nascentes e suas serras adjacentes os elementos que conferem a essas comunidades sua identidade. Identidade de veredeiros, identidade vinculada ao ambiente (PARAJULI,1996PARAJULI, P. Ecological Ethnicity in the Making: Developmentalist Hegemonies and Emergent Identities in India. Identities, Vol. 3(1-2), p.1-10, 1996.).

Muitos autores se dedicaram a entender a concepção de sertão para os próprios sertanejos, entre eles destacamos Brandão (1995)BRANDÃO, C. R. A partilha da vida. Taubaté: Cabral. 1995. e Ribeiro (2006)RIBEIRO, R. F. Florestas anãs do sertão: o cerrado na história de Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica. Vol. 1. 2006 .. O primeiro autor enfatiza a percepção da paisagem sertão como um lugar distante, sem relação ou importância econômica específica e por isso: sinônimo de lugar isolado ou não utilizado. O segundo apresenta a concepção histórica hegemônica do sertão como um lugar deserto de pessoas, não desbravado. Os dois autores enfatizam elementos semelhantes na percepção de um espaço ainda não apropriado por humanos, sendo este o sertão. Em contrapartida, na percepção das pessoas de Gigante e Pé da Serra, o sertão é um lugar seco, cujo acesso à água é escasso.

A água, como elemento identitário e orientador de territorialidades é discutida no trabalho de Ribeiro e Galizoni (2003)RIBEIRO, E.M. & GALIZONI. Água, população rural e políticas de gestão: o caso do vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Ambiente & Sociedade, vol. VI, n. 1, 2003., em pesquisa em várias comunidades do Vale do Jequitinhonha. Os autores destacam a representatividade da água como um elemento demarcador da identidade e dos territórios através de um processo de classificação hierarquizada das várias formas com que a água emerge no ambiente. Perceberam também aspectos relacionados à percepção do aprisionamento da água:

Nas comunidades rurais do vale do Jequitinhonha, nascentes e pequenos cursos d’água são balizas importantes para a organização social e produtiva. Nascentes servem como referência na sociabilidade e identidade, na delimitação do território e localização da população. Camponeses se orientam espacialmente e às vezes se autonomeiam por morarem em localidades que retiram sua denominação de cursos d’água: Joaquim (da vereda) do Sítio Novo; Zé Mateus (do córrego) do Degredo; Jesus do (ribeirão) Capivari. Eles assentam as moradias perto dos cursos d’água, buscando neles referência para a construção; maior distância da água pode ser o fator para exclusão de herdeiros que a família não quer dotar com terra. Os sítios são demarcados levando em consideração as “águas vertentes”, isto é, a posição em relação ao destino da água. (RIBEIRO e GALIZONI. 2003RIBEIRO, E.M. & GALIZONI. Água, população rural e políticas de gestão: o caso do vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Ambiente & Sociedade, vol. VI, n. 1, 2003., p.7).

(...) percebe-se que, se as famílias ou a comunidade prenderem água do ribeirão para uso doméstico, estarão cometendo duplo equívoco, porque além de “cercar” as impurezas produzidas águas acima, retém a própria sujeira que seus usuários produzem. Isto não significa que famílias e comunidades recusem-se sempre a usar águas barradas ou grandes. Quer dizer, apenas, que o farão somente quando existem severas restrições de água, tendo consciência da precariedade que é “prender água” como solução para consegui-la, porque assim somente disponibilizam um recurso poluído, parado, que é, sempre, um último recurso. (RIBEIRO e GALIZONI p. 10, 2003RIBEIRO, E.M. & GALIZONI. Água, população rural e políticas de gestão: o caso do vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Ambiente & Sociedade, vol. VI, n. 1, 2003.. Grifos dos autores).

Percepções semelhantes às descritas acima foram observadas também nas comunidades Gigante e Pé da Serra, onde a apropriação da água é feita segundo as próprias comunidades, de forma livre, livre no sentido de não haver propriedade da água e livre no sentido de liberdade da água, ou seja, na condição de vê-la livre correndo pelos quintais, umidificando o ambiente, adentrando as raízes das árvores frutíferas que circundam a casa de morada. A água, confirma-se assim, como um dos elementos mais expressivos que contribuem para a formação cultural dos grupos pesquisados. A lógica da liberdade da água como elemento da diferença, ou seja, uma afirmação identitária que nega uma lógica distinta e oposto, que entende que conservar a água, como um recurso natural que precisa ser preservado, é aprisionar, individualizar o uso ou mesmo, impedir o uso, o que pode ser compreendido como privatização do recurso. As falas de alguns moradores mostram as percepções distintas desta lógica de mercado e de bem natural privatizado:

Quando eu vou pra Itacambira, na casa que eu fico lá, é um nojo pra não desperdiçar água. Ficam chamando atenção da gente! Aqui não tem esse problema. É água a vontade! (Moradora E/Pé da Serra, entrevista em novembro de 2008).

A água fica caindo assim, Nem! O tempo todo, mas ela acaba voltando pro mesmo rio. Ela vai embebendo pela terra abaixo sabe? Quando pensa que não ela cai no rio de novo (Morador D/Pé da Serra, entrevista em novembro de 2008).

A relação com a água abundante, que brota de todos os lados através da infinidade de nascentes, contribuiu para que práticas ancestrais orientadas por crenças relacionadas à apropriação da água influenciassem a formação identitária dessas comunidades. Assim, mitos são criados em função da representatividade desse elemento, como demonstra a fala de uma moradora da comunidade Curral, ao se referir às crenças relativas à apropriação das águas pelas pessoas das comunidades:

Um dia que Clenilda dormiu aqui, ela dormia com um copo de água debaixo da cama. Ela falava que era pecado dormir com sede. Falava que se a gente dormir com sede a alma sai para beber água, e se ela não voltar, a gente morre. (Moradora F/Curral, falando sobre Clenilda do Gigante, entrevista em janeiro de 2010).

A dinâmica das águas orienta o sistema de produção e a reprodução material das comunidades. Conhecer o ciclo das águas é primordial para orientação sobre a época e o local adequado ao plantio. Nas comunidade Gigante e Pé da Serra, em comparação ao Norte de Minas, o tempo de planta e de colheita são diferentes, como compara um dos moradores destas:

Feijão das águas é plantado junto com a roça de milho, de outubro até novembro, plantado nas terras mais altas. Tem a planta de feijão das secas que já é plantado mais nas margens do rio de fevereiro até abril. E vem o temporão que é plantado na faixa de junho até principio de agosto. Aqui não é bom pra feijão das águas, o problema daqui é que as terras são muito baixas e o feijão mela. O forte lá pra região suas lá, Juramento, é o feijão das águas, né? Aqui pra nós o forte tá sendo o feijão das secas. Agora com o recurso da irrigação o temporão também tem vez que dá certo. (Morador A/Gigante, entrevista em janeiro de 2010)

A disponibilidade de água também orienta a localização da moradia. Os espaços das águas conferem uma hierarquia na tomada de decisão sobre os espaços de morada:

Nós escolhemos aqui por causa da água, né? Porque pra outro canto a água era longe, porque antes não tinha mangueira. Eles compraram ai e escolheram aqui pra fazer porque a água vinha pela terra, fazendo rego no chão. (Morador B do Pé da Serra, entrevista em novembro de 2008)

A água da nascente, água de dentro, é a mais nobre e reservada ao consumo direto, alimentação, ou seja, para o uso direto beber e cozinhar. A água das nascentes era transportada diretamente pela terra, os regos, sem o uso de qualquer tipo de reservatório ou canalização, até recentemente. Água era conduzida até bem próximo à casa por meio de regos que transportavam a água pela declividade dos terrenos. Atualmente, são construídas barraginhas e as mangueiras substituíram os regos, mas a estratégia de transporte da água por declividade do terreno se mantem a mesma. O morador explica:

A minha água eu tiro de uma minação. Aí eu fiz uma barraginha de terra aí a água subiu. Aí eu fiz um ralo de uma lata de óleo, aí eu furei com um prego, levei a mangueira e pus ela na lata sabe? Pra evitar de vir cisco. Aí eu pus 100 metros, ela veio, aí eu fui pondo de 100 em 100, ela foi vindo foi vindo, até chegou aqui. A lata fica lá no meio da barraginha. Pra fazer a barraginha, primeiro eu ponho um terrinha, depois eu ponho umas pedras. Aí pra não dá vazamento eu ponho umas folhas, aquelas folhas secas sabe? Eu vou encostando as folhas assim(...).(Morador C/Pé da Serra, entrevista em novembro de 2008)

Cada família tem o direito de uso hierárquico da nascente próxima a sua residência, de modo que o uso da nascente fica restrito relações de parentesco:

Minha água vem lá de cima, ela passa lá na minha irmã e de lá ela vem pra cá. (Morador D/ Pé da Serra)”.

A água do córrego e do ribeirão, água de fora, chega aos quintais por uma mangueira colocada diretamente do curso d’água, sempre acima da residência, se movimentando por declividade.. A água de fora é utilizada para pequenas irrigações, afazeres domésticos e alimentação dos animais.

Embora alguns locais possuam nomenclaturas oficiais externas, essas não são legitimadas pela comunidade, de modo que a orientação interna se dá pela referencia aos cursos d’água, como analisa o morador:

Aqui onde eu moro não chama Fonseca, a gente trata Fonseca porque... Aqui é perto do Fonseca e tal, mas aqui é, é, é, esse aqui que corre aqui no fundo de casa é córrego do moinho (Lá tem um moinho de moer barro para fazer telha), aquele córrego de lá, é córrego João Gomes, aquele outro ali, onde tem uma fazenda na beira da estrada chama Córrego Quilombo, e o lá do grupo que é o do Fonseca. Então o povo trata tudo Fonseca. Agora, vão supor, agente chega em Itacambira, qualquer lugar, Caçaratiba ou Montes Claros para fazer um papel, um documento qualquer, eles perguntam: Onde você Mora? Ai a gente fala: Eu moro no Fonseca. (Morador C/ Pé da Serra, entrevista em novembro de 2008)

O nome oficial Fonseca, conforme relata o morador, possui validade para questões burocráticas, onde os limites políticos são importantes. Porém, no âmbito das relações entre eles e com a circunvizinhança, vale a referência dos cursos de água, que pode ser uma nascente, um córrego, um ribeirão ou as serras, que também são citadas como pontos de localização e de limites para as territorializações. A exemplo disto, a denominação de uma das comunidades estudadas, Comunidade Pé da Serra. Porém, nos picos e orifícios das serras estão as nascentes que abastecem as comunidades e são identificadas por elas conforme o direito hierárquico do uso familiar (barraginha do “Vitalino”, barraginha do “Joaquim Ferreira”, barraginha do “Zé do Teotone”, entre outros).

Pode se observar que no caso de Gigante e Pé da Serra, a água é um elemento significativo para constituição territorial e identitária dos grupos, já que a dinâmica das águas em seus vários espaços é classificada, hierarquizada, e orienta várias praticas que contribuem para a reprodução física e simbólica do grupo.

EMPREENDIMENTOS DO DESENVOLVIMENTO, POLÍTICA AMBIENTAL E CONFLITOS AMBIENTAIS

A Usina Hidrelétrica de Irapé construída no Rio Jequitinhonha, entre os municípios de Berilo e Grão Mogol no Estado de Minas Gerais, foi Inaugurada em Junho de 2006. O espelho d’água atingiu mais cinco municípios (Turmalina, Leme do Prado, José Gonçalves de Minas, Botumirim e Cristália) e inundou uma área de cerca de 134.000 hectares. Conforme relatório da Companhia Energética de Minas Gerais - CEMIG, os números do empreendimento chegaram a cerca de 40 comunidades de lavradores e garimpeiros, sendo 1.200 famílias e aproximadamente 5 mil pessoas removidas para outros espaços ao redor da usina.

No município de Botumirm-MG, localizam-se as comunidades Gigante e Pé da Serra, que, embora não façam parte dos números acima citados, foram impactadas social e ambientalmente pelo empreendimento da UHE de Irapé. Embora essas comunidades estejam localizadas a doze quilômetros do rio Jequitinhonha (por estrada cavaleira) e mais de cem quilômetros das obras efetivas, duas comunidades ribeirinhas que estabeleciam relações diversas, principalmente com a comunidade Gigante, foram removidas e reassentadas longe do ciclo social que contribuía para a reprodução material e social dessa comunidade. Nos estudos de Rodrigues (2010)RODRIGUES, L.R. A casa como um microcosmo: processos sociais nas comunidades Gigante e Pé da Serra, Botumirim-MG. Monografia. UNIMONTES. Montes Claros, 2010., foi observado que no período posterior a remoção dessas duas comunidades, as relações de casamento e do mercado de trocas sofreram abruptas mudanças, refletindo em conflitos internos e intercomunidades, tanto no âmbito social como ambiental.

No âmbito social, foi observado que as relações de casamentos preferenciais, nas quais homens da comunidade Gigante buscavam as esposas na comunidade Canabrava, foram interrompidas, de modo que, no período de adaptação, houve uma certa ansiedade, tanto por parte dos homens quanto das mulheres com relação ao casamento. Em alguns casos, foram identificados conflitos familiares quando um membro buscava relacionamentos fora do ciclo social compreendido como aceitável, mesmo sendo com outras comunidades do entorno. Anterior a UHE-Irapé, os casamentos aconteciam com o transito por estradas cavaleiras que davam acesso ao rio Jequitinhonha, principalmente na altura da comunidade Peixe Cru, onde o rio era estreito e permitia a travessia. As atividades religiosas, casamentos, batizados, festas de santo, também eram realizadas na comunidade Peixe Cru, principalmente pelos membros da comunidade Gigante, que, após a remoção desta comunidade, ficaram sem referencia religiosa. Algumas famílias aderiram ao protestantismo, principalmente à igreja Cristã do Brasil.

No âmbito ambiental, a inviabilização do mercado de trocas através do transito pelo rio Jequitinhonha, devido o aumento da vazão do rio, contribuiu para a modificação da paisagem e para as formas de uso dos ambientes em torno das comunidades, com destaque a ampliação das atividades agrícolas. Muitas culturas antes garantidas pela troca, passaram a produzidas localmente, ou tiveram aumento na sua produção para adentrar a outros mercados externos convencionais – o comércio regional. A ampliação das atividades agrícolas se deram principalmente nas áreas de vazante dos rios, já que são áreas mais férteis e próximas às moradias. Em contrapartida, surgiram as restrições impostas pelos órgãos governamentais, o IEF - Instituto Estadual de Florestas e o IGAM - Instituto Mineiro de Gestão das águas, os quais passaram a controlar as atividades nas vazantes, nas encostas das serras e o uso direto das nascentes para o consumo familiar. A região de Gigante tem sido cogitada ainda para subsidiar a criação de uma unidade de conservação, porém as restrições com relação à utilização dos recursos naturais, principalmente das águas, já têm introduzido muitos questionamentos entre os moradores. Um morador da Comunidade Gigante relata sobre essa possibilidade:

O senhor acha que eles ainda têm intenção de fazer uma reserva aqui?

“É! Eles aproveitaram lá [Grão Mongol] porque lá já era uma reserva, mas tinha posseiros que moravam lá. Agora, aqui não foi constatada a reserva que era pra ser, se não a gente tinha que ter negociado com eles. Mas ultimamente ficou quase sendo reserva mesmo, porque o que acontece? Hoje não pode fazer nada nessa área: não pode caçar, não pode tirar madeira, acabou sendo reserva do mesmo jeito”

Como é que ficou aquele projeto de preservação das águas pelo IGAM aqui na região?

Esse programa chama Bolsa Verde. Ele diz o seguinte: é a preservação das nascentes de água. Todo mundo tem que cadastrar as nascentes. Ouvi dizer que vai sair uma verba pras pessoas cercar as nascentes pra não estragar. Eu só cadastrei porque eles fizeram uma pressão de que quem não cadastrasse ia sofrer uma multa altíssima.

O senhor acha que o senhor estraga as nascentes de água?

Eu? Eu não! Eu preservo. Inclusive essas nascentes, todas aqui nunca secaram. Nós sempre mexemos ai pra cima e pra baixo e elas ta ai, nunca faltou água. (Morador A/Gigante, entrevista em janeiro de 2010)

Atualmente, a intervenção estatal nas práticas locais de apropriação das águas, conduzida pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas – IGAM, tem sido o principal fator de conflito entre moradores locais e órgãos governamentais e de representação, como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Esse conflito se deve às lógicas de apropriação dos recursos hídricos introduzidas pelo IGAM, que condenam algumas práticas de utilização das águas, como o uso de mangueiras sem torneira e medidor. Outra ação do IGAM é referente ao cadastro das águas de cada propriedade, bem como das práticas de apropriação para dar subsídios a um processo de cobrança pelo uso da mesma.

Outro fator que contribui para que essas áreas estejam sob o olhar de instituições estatais está relacionado a ações de compensação ambiental por grandes projetos desenvolvimentistas, como a UHE de Irapé, já em atividade, além dos rumores de uma possível intensificação da mineração na região.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As Comunidades de Gigante e Pé de Serra criaram territórios e elementos identitários tendo como referência os cursos das águas. Convivem com a diversidade e utilizam esses espaços conforme a potencialidade de cada um, numa relação de interdependência e respeito mútuo com o ambiente.

Para essas comunidades, prender a água a torna inadequada para o uso, já que não permite o processo de autodepuração e o ciclo natural hidrológico, só possível com a água solta.

Os lugares das águas (águas de fora, águas de dentro, água das nascentes, córregos, vargens, ribeirões) e o Rio Jequitinhonha, relacionam a apropriação dos recursos hídricos como um elemento de fixação num espaço que contribuiu para a formação da identidade dessas comunidades e, em virtude dos processos sociais, despontam como sendo os elementos de conflitos com instituições governamentais.

A grande disponibilidade de recursos naturais e hídricos dessa região tem despertado o interesse para exploração econômica de diversos tipos de empreendimentos, seja de geração de energia, do agronegócio ou da mineração, tornando estas comunidades que tradicionalmente ocuparam e instituíram regras de uso desses ambientes, ameaçadas na sua reprodução econômica e cultural, e inclusive, na possível perda de seus territórios ancestrais, como já ocorrido para outras comunidades impactadas pela UHE de Irapé.

Sujeitos externos articulam várias estratégias para intervir de forma contrastiva aos usos e manejos tradicionais dessas populações, as quais podem ser consideradas como “reservas socializadas”, ou seja, espaços nos quais as paisagens naturais, com sua biodiversidade e demais recursos naturais, encontram-se conservados devido a uma presença e manejo humano específico. Assim, contribuem para a conservação de um importante ambiente - Veredas - e na reprodução física e simbólica de um modo de vida específico, veredeiro.

AGRADECIMENTOS

A pesquisa resulta de auxílios financeiros da FAPEMIG e CNPq-Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    jan-apr 2014

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2012
  • Aceito
    01 Out 2013
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