Open-access O fascismo da cor de Muniz Sodré e a persistente tese da singularidade do racismo à brasileira

Muniz Sodré’s fascism of color and the persistent thesis of the singularity of Brazilian racism

SODRÉ, Muniz. O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional. Petrópolis: Vozes, 2023. 194

Resumo

Esta resenha analisa o livro O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional, que tem como objetivo criticar o conceito de racismo estrutural, de Silvio Almeida, e sustentar que a categoria forma social escravista seria capaz de explicar precisamente a singularidade do racismo à brasileira. Após apresentarmos os argumentos principais de Muniz Sodré, sustentamos que a obra repete as teses da sociologia das relações raciais dos anos 1950 e 1960 que analisava o preconceito de cor como herança pré-moderna da sociedade escravista e o racismo como ideologia. Embora o livro de Sodré identifique problemas inegáveis no conceito de racismo estrutural, sua proposta padece de uma concepção unitária e excessivamente estreita de estrutura social, que não considera a possibilidade de estruturas informais de desigualdade racial em diferentes níveis de generalização de sentido: macroestruturas, meso-estruturas e microestruturas. Assim, o livro, em que pese as críticas aos problemas existentes no conceito de racismo estrutural, oferece uma alternativa que, além de não conseguir explicar consistentemente o racismo brasileiro, reproduz a persistente tese da singularidade brasileira que é um importante entrave para que possamos compreender consistentemente as particularidades dos dilemas brasileiros numa ordem moderna e global.

Palavras-chave:
fascismo da cor; forma social escravista; racismo à brasileira; racismo estrutural; singularidade

Abstract

This review analyzes the book O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional, which aims to criticize the concept of structural racism, by Silvio Almeida, and argue that the slavery social form category would be able to precisely explain the singularity of Brazilian racism. After presenting Muniz Sodré’s main arguments, we argue that the work repeats the theses of the sociology of racial relations of the 1950s and 1960s, which analyzed color prejudice as a pre-modern inheritance of slave society and racism as an ideology. Although Sodré’s book identifies undeniable problems in the concept of structural racism, his proposal suffers from a unitary and excessively narrow conception of social structure, which does not consider the possibility of informal structures of racial inequality at different levels of generalization of meaning: macrostructures, mesostructures, and microstructures. Thus, the book, despite the criticisms of the problems existing in the concept of structural racism, offers an alternative that, in addition to failing to consistently explain Brazilian racism, reproduces the persistent thesis of Brazilian singularity, which is a major obstacle to being able to consistently understand the particularities of Brazilian dilemmas in a modern and global order.

Keywords:
fascism of color; slavery social form; Brazilian-style racism; structural racism; singularity

O racismo é, indubitavelmente, uma das maiores mazelas globais, responsável por violência, opressão e profundas desigualdades. No Brasil, por sua vez, o dilema teve, dos pontos de vista acadêmico e político, uma trajetória bastante controversa até o momento em que foi efetivamente considerado uma categoria de análise capaz de explicar um grande problema nacional. O tema surge no país com a Geração de 1870 como doutrina científica (Guimarães, 2004). Nesse primeiro sentido, o racismo foi uma categoria central para a produção acadêmica e, consequentemente, para legitimar o processo secular de exclusão dos ex-escravos. Com a obra de Gilberto Freyre (2006), o racismo científico foi substituído por uma leitura culturalista. Essa, por sua vez, teve um desdobramento ambivalente, uma vez que foi responsável por superar a leitura racista e formular o mito de origem crucial para que houvesse uma identidade nacional da qual pudéssemos nos orgulhar. Por outro lado, foi elemento decisivo para reproduzirmos o mito de uma sociedade sem conflitos raciais e formas estruturais de racismo. A demonstração dessa ideologia pode ser observada na justificativa para o Projeto Unesco, pois o Brasil era caracterizado como o país da democracia racial (Ianni, 2004).

Para pesquisas produzidas para o Projeto Unesco e derivadas delas, nos anos 1950 e 1960, a democracia racial significava um mito. Contudo, o racismo não era um problema brasileiro, pois o dilema estava no preconceito de cor, herança da sociedade escravista e tradicional. As estruturas de desigualdade racial não teriam, portanto, nenhuma função para a sociedade de classes e seus subsistemas.

Com o trabalho de Carlos Hasenbalg (2005), por sua vez, o racismo torna-se um dilema efetivo da sociedade brasileira moderna e de classes. No entanto, se academicamente o racismo tornou-se uma categoria heurística para interpretar os conflitos raciais no país, em termos políticos e no senso comum, a ideologia da democracia racial continuava a ser reproduzida sem que houvesse outra semântica capaz de contrapô-la efetivamente.

Com o trabalho de Silvio Almeida (2021), contudo, o Brasil torna-se o país do racismo estrutural. O conceito passou a ser mobilizado em trabalhos acadêmicos para chancelar cientificamente na esfera pública o racismo enquanto fenômeno sociológico (porque estrutural), destacando o componente racista como dimensão específica e autônoma presente em conflitos envolvendo classes sociais, o Estado e a população negra, pobre e periférica.

Se politicamente os movimentos sociais popularizaram uma semântica capaz de legitimar suas ações contra o racismo no país, academicamente o racismo estrutural apresenta uma série de questões que têm feito com que o conceito seja alvo de críticas, como é o caso de Jessé Souza (2021) e do livro resenhado. Nesse sentido, exporemos os principais argumentos do livro de Muniz Sodré para sustentar que, apesar das críticas ao conceito mobilizado por Silvio Almeida, a categoria alternativa formulada pelo autor, forma social escravista, repete as interpretações presentes, por exemplo, na obra de Octávio Ianni (1962), para o qual o Brasil teria uma forma singular de relações raciais, isto é, o preconceito de cor herdado da sociedade escravista e tradicional. O livro de Sodré é dividido em prólogo, quatro capítulos e um posfácio, dos quais apresentaremos os elementos mais importantes, para, em seguida, desenvolvermos argumentos para sustentar nossa hipótese levantada nesta introdução.

No prólogo, Muniz Sodré tem como objetivo principal sustentar a especificidade do racismo americano, isto é, o seu caráter estrutural que, por sua vez, seria o antípoda das relações raciais à brasileira. Sodré enfoca o processo de Independência dos Estados Unidos para defender que o racismo é um elemento estrutural no país. Apesar do constitucionalismo que triunfou, os Estados Unidos incentivaram a segregação racial como ideologia nacional no pós-Guerra Civil (Sodré, 2023, p. 19). Para além da declaração formal de igualdade, o elemento concreto da sociedade americana é o caráter exclusivamente branco e estruturalmente bíblico, o que fez com que as diretrizes republicanas e federativas da igualdade predominassem sobre a igualdade democrática. Por conseguinte, a democracia que triunfou no país, alardeada como modelo universal, é internamente perversa, posto que o poder do privilégio branco – a leucracia – prevaleceu (Sodré, 2023, p. 21). Assim, o racismo se constituiu como elemento estrutural da vida social e política dos Estados Unidos. Como consequência, as instituições americanas foram marcadas pela hipocrisia, pois suas complexas ritualizações jurídicas e eleitorais encobrem as desigualdades cívicas de cunho racial, pois o país é marcado por uma cruel estrutura hierárquica de “castas raciais” (Sodré, 2023, p. 27). O racismo sustenta, portanto, que a excepcionalidade americana é, efetivamente, uma crença republicana (Sodré, 2023, p. 36).

Após discorrer sobre as especificidades da história americana e do seu racismo estrutural subjacente, Sodré desenvolve, no primeiro capítulo, o mesmo exercício expositivo com o caso brasileiro para alcançar dois objetivos entrelaçados – negar o caráter estrutural do racismo brasileiro e defender a centralidade da categoria forma social escravista como semântica capaz de explicar a singularidade da questão racial brasileira.

Para tanto, o autor sustenta que a sociedade escravista tinha no racismo o componente estrutural de organização social e de controle exercido pelas elites. O passado escravista, marcado pela empresa agrícola e pelo domínio senhorial e patrimonial, fez com que a história nacional – como um vício de origem – fosse marcada por relações de compadrio, oligarquização e privatismo, isto é, por um passado elitista que se reproduziu ideologicamente forte (Sodré, 2023, p. 39).

Com a abolição, por sua vez, tivemos a herança da sociedade escravista em um contexto em que o racismo não era mais estrutural, pois houve a propagação da forma social escravista. A República, portanto, seria marcada pelo entrelaçamento de temporalidades distintas porque o passado arcaico teria o papel central para o racismo no contexto moderno, por meio da junção entre capitalismo e patriarcalismo. Como consequência, não houve o reconhecimento do negro como cidadão (Sodré, 2023, p. 43).

Apesar de elogiar Almeida ao defender que o seu trabalho tem o mérito de demonstrar como o racismo é um elemento constitutivo da sociedade, isto é, não é nenhuma patologia ou desarranjo institucional, Sodré (2023, p. 49) defende, contudo, que não existe uma estrutura econômica, política e jurídica que sustente as formas de discriminação de maneira similar à sociedade escravista. A categoria forma social escravista, por conseguinte, sustentaria conceitualmente a singularidade do racismo à brasileira, sobretudo quando comparamos com os casos da África do Sul e dos Estados Unidos, onde ele tem um papel estrutural. Sodré nega, portanto, o caráter estrutural da discriminação racial brasileira.

Por conseguinte, a sociedade estruturalmente racista, de caráter senhorial e patrimonial, de razão essencialmente distinta da sociedade moderna, capitalista e de classes, teria se encerrado com a abolição da escravatura e a Proclamação da República. Sua herança funcional, contudo, teria se perpetuado nas representações sociais anacrônicas entre brancos e negros, fazendo do racismo uma “significação imaginária central” (Sodré, 2023, p. 59). Como a esquematização do racismo tem como objetivo a hierarquização excludente da cidadania negra, sua morfologia faz com que ele seja epidérmico no Brasil (Sodré, 2023, p. 61).

Ao contrário dos casos da África do Sul e dos Estados Unidos e da tese de Silvio Almeida, a sociedade de classes brasileira teria herdado do país agrário e estruturalmente escravista a dimensão simbólica e o colorismo (Sodré, 2023, p. 91), o que denotaria a centralidade das representações escravistas na sociedade contemporânea: “No Brasil é forte a memória escravista assentada sobre o fenótipo negro, mas igualmente sobre particularidades da forma de vida afro-brasileira” (Sodré, 2023, p. 72).

Para sustentar a originalidade de sua tese, Sodré dialoga seletivamente com alguns intérpretes do Brasil, como Celso Furtado, que não abordou a questão do negro em sua leitura da formação econômica do país (Sodré, 2023, p. 52-53), Darcy Ribeiro e Jocob Gorender, que não formularam abordagens sobre o racismo (Sodré, 2023, p. 63). O autor critica o que caracteriza como mainstream sociológico, que deteria uma interpretação pautada pela superficialidade por meio da ênfase nas dimensões econômica e jurídica da sociedade escravista (Sodré, 2023, p. 95).

O racismo brasileiro, “[...] no entanto, é exercido na prática por perversões institucionais orientadas por representações derivadas de uma reflexividade social específica” (Sodré, 2023, p. 105). Sodré empreende um esforço para, em suas palavras, elucidar a forma social escravista que passaria ao largo das macro-explicações sociológicas.

No segundo capítulo, o autor aprofunda os argumentos sobre a singularidade do fenômeno no país. Por conta de sua reprodução em contexto diverso, o racismo brasileiro vai ser definido por um caráter encapuçado, subterrâneo, visto que publicamente será marcado por negação e mascaramento (Sodré, 2023, p. 123). Precisamente, a forma social escravista não representa a essência da escravidão, pois é a reconstrução de maneira expressiva de uma realidade requerida pelas elites dirigentes, isto é, uma consciência senhorial-escravista (Sodré, 2023, p. 148).

Na sociedade de classes, portanto, houve o subdesenvolvimento em termos culturais e o discurso de inferiorização do reprimido, que fizeram com que as representações da sociedade escravista – estruturada pela dicotomia senhor-escravo – fossem perpetuadas. Ao contrário de um racismo estrutural, a sociedade brasileira foi marcada por um fascismo de cor (Sodré, 2023, p. 153). Assim, o negro é caracterizado como um potencial escravo mesmo sem um discurso público que sustente tal atitude (Sodré, 2023, p. 163).

Na sociedade em que as elites têm no patrimonialismo o pilar central, a forma social escravista se torna um mecanismo para que possam burlar as normas legais (Sodré, 2023, p. 164). O patrimonialismo, por conseguinte, cumpre o papel de linha de sentido e herança cultural, uma vez que funciona como fator responsável pela perpetuação do imaginário do país como latifúndio e da herança do sentimento senhorial (Sodré, 2023, p. 172). Em decorrência desse domínio, foi mantido um ethos autoritário da velha ordem semicolonial em contexto republicano (Sodré, 2023, p. 176).

No terceiro capítulo, Sodré prossegue os seus argumentos sobre a centralidade da forma social escravista para a compreensão do singular racismo brasileiro, que se reproduz como elemento disfuncional na sociedade moderna, capitalista e de classes. O autor argumenta sobre a dualidade constitutiva do racismo à brasileira, ou seja, a sua negação pública e sua efetivação na vida concreta, privada.

O dualismo da forma social escravista segue a lógica autoritária do rito damattiano do Você Sabe com quem está falando?, cujas variações seriam uma demonstração inequívoca da relação entre negacionismo, tergiversação e o sigilo da admissão do racismo e, consequentemente, da dificuldade de sua apreensão no Brasil (Sodré, 2023, p. 222). O rito também assevera como o racismo é derivado da senhorialidade que foi exercida de modo perverso sobre os negros (Sodré, 2023, p. 203).

No quarto capítulo, Sodré endereça suas críticas à esquerda – que não teria conseguido compreender a singularidade do racismo brasileiro – e prossegue seus argumentos para sustentar a tese sobre a forma social escravista. A cegueira da esquerda ocorre porque estaria presa a um abstrato republicanismo liberal, ficando cega à forma social escravista existente na vida cotidiana (Sodré, 2023, p. 229).

A singularidade do racismo brasileiro é baseada nos vínculos entre aceitação e rejeição, ou seja, em um sentimento subconsciente e arcaico. Assim, a persistência da forma social escravista ocorre sobretudo na releitura social e afetiva da “saudade do escravo” (Sodré, 2023, p. 242). Dessa forma, nosso racismo encoberto seria pautado por reações emocionais enraizadas, o que faz da cor da pele a representação da vantagem de cunho patrimonial estabelecida na sociedade escravista (Sodré, 2023, p. 244-245).

No posfácio, Sodré argumenta sobre o caráter especulativo do livro, bem como acerca da pouca explicação dos efeitos do racismo no comportamento humano. Contudo, o elemento primordial desta parte é a reiteração da defesa da categoria forma social escravista para a compreensão do racismo à brasileira, o que depõe sobre a suposta caracterização especulativa da obra. Sodré, fundamentalmente, defende que o conceito proposto por ele seria capaz de explicar, no lugar do racismo estrutural, os dilemas e desigualdades raciais da sociedade brasileira.

O livro de Muniz Sodré tem o mérito de problematizar o conceito de racismo estrutural (Campos, 2023), que – apesar da importância política para caracterizar o Brasil como essencialmente racista – possui problemas do ponto de vista acadêmico que merecem ser tematizados e criticados como faz o autor. Além das relevantes críticas, Sodré também propõe a categoria teórica forma social escravista para compreender o racismo à brasileira1.

Contudo, existem significativos problemas no livro resenhado que limitam o alcance e originalidade da proposta. O primeiro problema está no título, uma vez que a noção de fascismo da cor não foi devidamente explicada. O livro passa rápido demais por um conceito que mereceria explicação, pois carrega história, conflito e, portanto, contradições internas e implicações externas na sua instrumentalização dentro e fora das ciências sociais. O problema do título é que não encontramos ao longo do livro uma argumentação mais demorada e uma tese que o justifiquem.

A brevidade argumentativa se intensifica pelos conteúdos diversos que vão de discussões sobre religião e raça, formas sociais, senhorialidade e relações escravistas até frases peremptórias que desconsideram a dinâmica social brasileira e as lutas dos movimentos sociais negros, cujos avanços são citados muito rapidamente e de forma pouco didática.

A abordagem sobre o papel da mídia como um bloco único desconsidera os esforços criados por outros canais e as lutas pela democratização dos meios de comunicação. Há uma ausência sobre o debate que aponta para o Estado como perpetuador do racismo na forma do controle social: população carcerária, execuções em favela e atuação de um Judiciário que nega a existência de crimes com base na Lei 7.716 /89, um marco no debate constitucional sobre o tema.

Outro ponto problemático é a ausência de interlocução com os estudos sobre as relações raciais no Brasil, como os trabalhos de Souza (2021), Guimarães (1999) e, sobretudo, a sociologia das relações raciais (Guimarães, 2004) dos anos 1950 e 1960. Em que pese a interdisciplinaridade da abordagem, o livro repete, em formato distinto, as mesmas teses formuladas pelo trabalho de Octávio Ianni (1962) sobre as metamorfoses do escravo, para quem o regime escravista tinha um caráter estrutural em que o preconceito de cor tinha um papel funcional. Ianni defende que o preconceito de cor é fruto da sociedade tradicional, cuja lógica é essencialmente distinta da modernidade. Sua existência é explicada por uma sociedade cujo processo de modernização deu-se de modo incompleto, preservando uma discriminação fora de lugar na modernidade (Guimarães, 2004, Campos, 2023). A forma social escravista – assim como o preconceito de cor – representa uma sobrevivência fora do lugar e disfuncional, bem como a incapacidade das elites e classes dominantes de superarem as sobrevivências do passado (Guimarães, 2004, p. 21). O conceito de forma social escravista está preso, por conseguinte, ao mesmo horizonte epistêmico da interpretação de Ianni.

Ao contrário de uma contribuição efetivamente original, Sodré prossegue a tese de um irredutível racismo à brasileira como presente em DaMatta (2010), cuja sociedade seria organizada por um sistema social marcado por relações hierárquicas de cunho pessoal, que sustentariam empiricamente a diferença essencial do racismo brasileiro em relação ao existente na sociedade americana. O livro de Sodré reitera a persistente tese da singularidade brasileira (Tavolaro, 2014), que, fundamentalmente, tem o papel de entrave epistêmico para que possamos compreender consistentemente as particularidades dos dilemas brasileiros numa ordem moderna e global.

Além da repetição de uma perspectiva superada, a proposta de Sodré apresenta um déficit sociológico e teórico semelhante ao que ele critica no conceito de racismo estrutural de Almeida. Como aponta Campos (2023), se o conceito de estrutura de Silvio Almeida é amplo demais, a noção de estrutura mobilizada por Sodré é demasiadamente restrita. Para ser estrutural, a desigualdade racial não precisa ser constituída como uma macroestrutura unitária formalizada explicitamente no direito. É um déficit sociológico crasso supor que estruturas de desigualdade racial existem apenas desse modo para afirmar que o racismo no Brasil seria um produto de relações pessoais informais e hierárquicas e, por esta razão, não seria um fenômeno estrutural.

Além do formalismo presente no conceito de Sodré, podemos identificar dois outros grandes problemas: o unitarismo estrutural e o estruturalismo. Tanto Muniz Sodré como Sílvio Almeida, apesar de suas diferenças, entendem o conceito de estrutura como definidor da unidade societária. Esta visão unitária supõe que a sociedade é definida por uma única estrutura de desigualdade racial que penetra em todas as suas esferas e dimensões. Além disso, ao supor uma relação de unidade entre sociedade e a estrutura do racismo, este conceito não explica como as estruturas de desigualdades emergem, se reproduzem ou se transformam. Assim, estruturas sociais são assumidas como a dimensão constituinte última da vida social, com uma capacidade de auto-reprodução que confere ao racismo e a outras formas de desigualdade uma onipotência que não deixa margem para a transformação.

Sodré critica corretamente a perspectiva estruturalista no conceito de Almeida, mas padece de um problema conceitual da mesma gravidade: por se apoiar em uma noção unitária de estrutura que descarta a existência de desigualdades estruturadas de modo informal e implícito em diferentes níveis da vida social, ele acaba negando a existência de estruturas de desigualdade racial, em vez de contribuir com uma reformulação conceitual.

Devemos buscar uma teoria não determinista sobre a desigualdade que pode ajudar a compreender as desigualdades raciais existentes no Brasil como o resultado de práticas e decisões organizacionais dos mais diversos tipos. Trata-se de observar como o Estado e suas várias organizações, as empresas, as escolas, os tribunais, constroem, reproduzem, transformam ou superam diferentes estruturas de desigualdade racial.

Essa teoria deve propor um conceito plural e multidimensional de racismo estrutural que leve a sério a diferenciação da sociedade em esferas com racionalidades próprias e em distintos níveis de formação sistêmica e generalização de sentido. Deste modo, podemos observar práticas, ideologias e estruturas racistas em diferentes subsistemas funcionais e em distintos níveis sistêmicos sem precisar supor a onipresença e a reprodução automática e necessária de estruturas de desigualdade racial. Além disso, podemos também considerar a existência de diversos tipos de estruturas como o resultado de práticas e ideologias que se articulam em diferenciados sistemas funcionais, organizações e interações. Como resultado, superamos a visão unitária e podemos propor um conceito plural e multidimensional de racismo estrutural, capaz de levar em conta uma variedade de estruturas de desigualdade racial: macroestruturas em sistemas funcionais, estruturas intermediárias e informais em organizações e microestruturas em interações face a face (Collins, 2000).

O decisivo aqui é uma noção temporalizada da estruturação de desigualdades raciais que não toma o passado como dotado de inércia e capacidade de reprodução própria. As desigualdades do passado são evidentemente importantes, mas sua relevância é sempre decidida e atualizada no presente das práticas sociais, nos níveis micro, intermediário e macro da vida social.

Tomemos como exemplo o caso da chamada herança da escravidão. O passado de trabalho escravo em massa foi certamente um obstáculo estrutural à inclusão dos libertos e de seus descendentes nos diferentes sistemas da sociedade: na economia, no ensino, na política, e até mesmo na esfera da vida afetiva em família. Mas esta herança da escravidão não determinou de modo necessário a exclusão dos negros na sociedade pós-escravista. O significado do passado é definido no presente de práticas e decisões sistêmicas, como a política de bloquear o acesso dos negros à propriedade da terra, a direitos trabalhistas, à educação etc. Não é uma estrutura do passado que se projeta por si mesma no presente de sistemas sociais que reproduzem passivamente esta estrutura. É o presente que seleciona e atualiza o passado.

Em resumo, embora o livro de Sodré identifique problemas inegáveis no conceito de racismo estrutural, sua proposta padece de uma concepção unitária e excessivamente estreita de estrutura social, que não considera a possibilidade de estruturas informais de desigualdade racial em diferentes níveis de generalização de sentido: macroestruturas, meso-estruturas e microestruturas (Dutra, 2023).

No entanto, como já havia notado Campos (2023), devemos acolher e desenvolver o esforço de Sodré no sentido de uma concepção não determinista sobre o racismo. Para isso, o caminho mais promissor nos parece ser o de assumir uma relação circular entre estruturas e eventos/práticas sociais, na qual as estruturas são tanto pré-condição como resultado de eventos. Os eventos decidem se as estruturas são mantidas ou alteradas.

  • 1
    Sobre o pouco desenvolvimento teórico do conceito de racismo no Brasil, Campos (2017, p. 3) argumenta: “Isso reflete não apenas a predominância no início do século XX da visão freyreana das relações raciais, segundo a qual o racismo seria exógeno à formação nacional, mas também as articulações conceituais de sociólogos reconhecidos por denunciarem a existência de preconceito no Brasil. Florestan Fernandes, por exemplo, hesitou em chamar de racismo os preconceitos de cor ou raciais que identificava no país. Ele via o preconceito no Brasil como expressão da subalternidade moral dos ex-escravos, sobrevivência anacrônica, porém operante, ainda na sociedade competitiva (Fernandes, 2007)”. Como sustentamos nesta resenha, este é o caso da interpretação de Muniz Sodré.
  • SODRÉ, Muniz. O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional. Petrópolis: Vozes, 2023.
  • Fonte de financiamento:
    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ); Fundação Alexander von Humboldt (AvH).
  • Aprovação do Comitê de Ética:
    Não se aplica.
  • Disponibilidade de Dados:
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Editado por

  • Editor:
    Jalcione Almeida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    27 Nov 2023
  • Aceito
    30 Abr 2024
Creative Common - by 4.0
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/), que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.
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