Open-access Uma leitura sobre trabalho e teoria crítica

A reading on labor and critical theory

Una lectura sobre trabajo y la teoría crítica

Resumo

Este artigo reconstrói a trajetória do trabalho como categoria conceitual internamente à tradição intelectual que se designa como teoria crítica da sociedade, em suas transformações ao longo do século XX e na passagem para o século XXI. O artigo demonstrará um movimento de pêndulo: partindo de uma formulação teórica nos primórdios da Escola de Frankfurt, passou-se a uma concepção puramente empírica na sociologia do trabalho nos anos 1980, associada ao diagnóstico do “fim da sociedade do trabalho”, diagnóstico que se revela hoje questionável à luz das novas relações de trabalho da Gig Economy. Com isso, chega-se hoje a um movimento em que o trabalho pode voltar a ocupar a centralidade do pensamento crítico, inclusive rearticulando um programa político. Este artigo remonta esse movimento, mostrando como a centralidade da categoria trabalho oscilou ao longo do tempo, de acordo com as transformações estruturais do capitalismo mundial.

Palavras- chave trabalho; teoria crítica; reificação; economia flexível; novo welfare state

Abstract

This paper reconstructs the development of labor as a conceptual category within the intellectual tradition that calls itself critical theory of society, in its transformations throughout the 20th century and into the 21st century. The paper will demonstrate a pendulum movement: starting from a theoretical formulation in the early days of the Frankfurt School, it moves to a purely empirical conception in the sociology of labor in the 1980s, associated with the diagnosis of the “end of the labor society”, a diagnosis that is now questionable in light of the new labor relations of the Gig Economy. So, we shift today to a context in which labor can once again occupy a central position for critical theory, perhaps enabling a new political project. This article reconstructs this movement, showing how the centrality of the labor category has oscillated over time, according to structural transformations of world capitalism.

Keywords labor; critical theory; reification; gig economy; new welfare state

Resumen

Este artículo reconstruye el desarrollo del trabajo como categoría conceptual en la tradición intelectual que se autodenomina teoría crítica de la sociedad, en sus transformaciones a lo largo del siglo XX e inicio del siglo XXI. El texto mostrará un movimiento pendular: partiendo de una formulación teórica en los inicios de la Escuela de Frankfurt, se pasa a una concepción puramente empírica en la sociología del trabajo en los años 80, asociada al diagnóstico del “fin de la sociedad del trabajo”, diagnóstico que hoy es cuestionable a la luz de las nuevas relaciones laborales de la economía Gig. Con eso, se llega hoy a un contexto en el que el trabajo puede volver a ocupar un lugar central para la teoría crítica, posibilitando quizás un nuevo proyecto político. Este artículo reconstruye este movimiento, mostrando cómo la centralidad de la categoría trabajo ha oscilado a lo largo del tiempo, de acuerdo con las transformaciones estructurales del capitalismo mundial.

Palabras clave trabajo; teoría crítica; reificación; economía gig; nuevo estado de bienestar

Introdução

Este artigo reconstrói a trajetória do trabalho como categoria conceitual internamente à tradição intelectual que se designa como teoria crítica da sociedade, em suas transformações ao longo do século XX e na passagem para o século XXI. O artigo demonstrará um movimento de pêndulo: partindo de uma formulação teórica nos primórdios da Escola de Frankfurt, passou-se a uma concepção puramente empírica na sociologia do trabalho nos anos 1980, associada ao diagnóstico do “fim da sociedade do trabalho”, diagnóstico que se revela hoje questionável à luz das novas relações de trabalho da Gig Economy. Com isso, o trabalho pode voltar a ocupar a centralidade do pensamento crítico. Este artigo elabora esse movimento, mostrando como a centralidade da categoria trabalho oscilou ao longo do tempo, de acordo com as transformações estruturais do capitalismo mundial.

A teoria crítica da sociedade, tomada aqui enquanto o grupo organizado em torno do IfS (Institut für Sozialforschung1), notadamente a partir da década de 1930 sob a direção de Max Horkheimer, teve no trabalho um de seus temas centrais, ao mesmo tempo em que parte significativa dos autores nunca chegou a se estabelecer enquanto contribuinte no debate envolvendo a sociologia do trabalho. Desse modo, o objetivo do nosso texto é, a partir de um amplo balanço, contribuir para situar o olhar de uma parcela desses autores sobre o tema, num esforço de articulação teórica que consiga identificar, também, as tensões que se fazem presentes nas mudanças de curso ao longo da história quase centenária do Instituto.

Considerando a ampla gama de autores que passou pelo Instituto, evidentemente o percurso aqui proposto terá de passar por apenas uma amostra deles. O pressuposto, de todo modo, é que esse pequeno conjunto se mostre significativo do ponto de vista qualitativo, isto é, represente o cerne dos trabalhos realizados no âmbito do IfS. Dado esse escopo, o artigo assume uma visada panorâmica sobre as transformações conceituais da categoria trabalho. Nesse sentido, nossa escolha recaiu sobre Friedrich Pollock, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas e, arrematando a reflexão, apontamentos sobre a recente troca de comando que levou Stephan Lessenich à direção do Instituto.2

O fulcro do nosso argumento se expressa na hipótese de que há uma continuidade do tema trabalho, mesclando o enfoque empírico ao conceitual, ao longo da trajetória do IfS. Buscaremos demonstrar rupturas e continuidades no tratamento dado ao conceito de trabalho por meio de um sobrevoo que aponte algumas das principais interpretações da teoria crítica ancorada em torno do IfS. Ao final elaboramos indicações no que se refere às produções contemporâneas no âmbito das novas questões que emergem das transformações nas relações de trabalho.

Abordaremos, na primeira seção, o papel do trabalho na teoria crítica a partir do conceito de reificação, desembocando no diagnóstico da sociedade administrada, baseado na junção entre a filosofia e a crítica da economia política delineada por Karl Marx. Na seção seguinte, veremos como o trabalho foi reduzido à relação de emprego em sentido puramente empírico, suportando o diagnóstico do fim da sociedade do trabalho – um diagnóstico induzido pela aparente estabilidade do welfare state apoiado no pleno emprego, típico na Europa continental do pós-guerra, mas que faria água nas últimas décadas do século XX, com o avanço do neoliberalismo. Nas considerações finais, além de retomar os principais aspectos de nosso argumento, apontaremos como as transformações recentes abrem a possibilidade de que o trabalho readquira centralidade no pensamento crítico.

As primeiras décadas: reificação, classe trabalhadora e sociedade administrada

A concepção inicial da teoria crítica apenas pode ser compreendida quando se considera o lugar central desempenhado pelo conceito de reificação (Verdinglichung). Esse recorte teórico está intimamente relacionado à interpretação de Georg Lukács, mediada pela leitura de Max Weber, acerca do fetichismo da mercadoria em Marx.3 Considerando o eixo proposto para este artigo, buscaremos sintetizar essa discussão, a fim de salientar seu lugar nuclear para os desdobramentos posteriores.

O que é mais central, para os nossos propósitos, diz respeito ao entendimento de que o conceito de reificação, conforme formulado por Lukács (2003/1923), elabora teoricamente a análise levada a cabo por Marx (1968/1867) na última seção do primeiro capítulo de seu opus magnum, O capital, que trata do caráter fetichista da mercadoria. Esse conceito, por sua vez, apenas pode ser plenamente compreendido quando se considera o papel vital que cabe ao trabalho humano, em geral, e à sua expressão, em particular, sob a égide do capital. Dito de maneira concisa: nessa formação social em particular, condicionada por relações sociais de trabalho caracterizadas pela exploração de classe, as relações humanas aparecem mediadas pela mercadoria. Diante disso, a crítica da sociedade capitalista passa, necessariamente, pela crítica da maneira por meio da qual as mercadorias são produzidas, constituindo as relações sociais de forma geral. Em Marx, o trabalho – e, sobretudo, a sua dupla condição sob a constituição capitalista, em sua forma concreta e abstrata, produzindo valores de uso e de troca – é central para se compreender a maneira como as relações sociais estão estruturadas. O argumento passa pela lógica de troca e seu papel na sociedade burguesa, estendendo-se até a sua consolidação na forma mercadoria.

Essa relação é que, de acordo com Lukács, se daria de maneira reificada, o que, também, afetaria a própria consciência humana, sobretudo a consciência de classe. Esse viés apresenta dois elementos fundamentais: de um lado, o autor desenvolve uma discussão que restou incompleta nos escritos de Marx. De outro, dá continuidade à interpretação que Marx e Engels haviam esboçado n’O Manifesto do Partido Comunista, a saber, que se encob32ntraria na classe trabalhadora, e nas contradições encarnadas por sua existência, a possibilidade de uma transformação revolucionária do status quo. Isso, também, constituirá um tema de reflexão e investigação da teoria crítica nos anos 1930.

Também não se pode negligenciar a contribuição de Max Weber para esse olhar da teoria crítica (Cohn, 2003/1978; Musse & Klein, 2018). Ainda que a questão do trabalho seja menos devedora dessa mediação, é, no mínimo, bastante limitador deixar de considerar o lugar do processo de racionalização e desencantamento do mundo (Weber, 1992/1917) para a compreensão da sociedade administrada. Ela também configura, na nossa interpretação, um conceito-chave para apreender de maneira adequada o modo de olhar para o trabalho e, em particular, para abordar criticamente o lugar ocupado pela classe trabalhadora ao longo desse conjunto de transformações do capitalismo. Afinal de contas, é a sua desestabilização – ou a sua integração, por meio do consumo e do desmonte das energias utópicas, conforme será discutido mais à frente – que coloca em xeque o lugar revolucionário atribuído à classe trabalhadora e, sobretudo, a possibilidade de desempenhar esse papel.

De todo modo, haja vista as questões envolvendo a Rússia, a União Soviética, e as diferentes disputas, tanto de ordem política quanto teórica (Lenhard, 2019, p. 8-11), é possível destacar muito mais uma diversidade na interpretação dos principais teóricos do IfS do que uma convergência e homogeneidade. Ao nos referirmos, aqui, aos principais teóricos, decidimos privilegiar, diante do escopo deste artigo, aqueles que estiveram oficialmente vinculados ao Instituto e, além disso, alcançaram projeção e centralidade no trabalho do IfS com seus escritos. Este é, também, o motivo pelo qual, por exemplo, alguém como Henryk Grossmann é deixado de lado em nossa análise, pois se distanciou do cerne dos debates e interpretações já após Horkheimer assumir a direção, em 1930.

Ainda no quesito das marcas deixadas pelos diferentes embates no contexto europeu, cabe destacar o fato de que a extensa Habilitationsschrift de Pollock, tratando de um assunto tão relevante em termos de uma sociologia econômica ou do trabalho quanto as tentativas de planificação na União Soviética de 1917-1927 (Pollock, 1929), dedica-se aprofundadamente à obra de Lenin, porém deixa de lado por completo qualquer menção seja a Engels, seja a Marx. Assim, é a relação entre as crises – tema que há tempos era central às preocupações marxistas e da história econômica – e a planificação (enquanto possível resposta a essa tendência do capitalismo) que constitui o cerne das análises avançadas por Pollock.

Ou seja, desde o seu trabalho sobre a União Soviética, passando pelas reflexões que olham para contextos mais amplos, encontramos o germe do que culminaria nas teses e interpretação acerca do capitalismo de Estado. Já em 1932 Pollock se mostrava atento ao modo como as contradições marcavam a expansão da produção capitalista, que sustentava uma riqueza cada vez maior sobre a destruição planejada. Desse modo, como podemos ver a seguir, ele considera fundamental tomar o duplo empobrecimento como característico dessa formação social:

A humanidade, que não conheceu em toda a sua história nenhum período no qual fosse per capita tão rica em meios de produção e força de trabalho altamente qualificada como hoje, se empobrece de modo duplo: pela monstruosa ociosidade das forças produtivas materiais e pessoais e pela aniquilação de uma parte do produzido

(Pollock, 2019a/1932, p. 36).4

A grandeza e a recorrência das crises contribuíram, também, para que ganhasse tração um conjunto de iniciativas de planificação, inclusive no contexto britânico, berço do liberalismo econômico. Pollock considerava que se consolidava a necessidade dessa guinada para atenuar o impacto das crises ou até mesmo tentar preveni-las. Destacava, portanto, uma tendência em torno da constatação de que o Estado desempenhava um papel relevante para garantir o equilíbrio (ou a organização) econômico.5

Da mesma maneira, ele se dirige à bastante conhecida defesa de que o livre mercado é a forma mais eficaz, quando não a única, de promover o atendimento dos interesses de cada indivíduo, isto é, promoveria, também, a liberdade individual. No entanto: “Nunca houve liberdade de consumo, ao menos em sentido absoluto, para a imensa maioria das pessoas, e ela só é pensável em um grau de riqueza da sociedade que por enquanto não é realizável” (Pollock, 2019a, p. 52).

Em suma, já nos primórdios dos trabalhos da primeira geração da teoria crítica é possível encontrar a atenção à dialética entre as potencialidades colocadas no âmbito do capitalismo, e a realidade efetivamente produzida por ele. Avançando no debate mais amplo acerca da planificação no contexto de reorganização do capitalismo, isto é, o regime que ele denominou capitalismo de estado, também se mostra qual a maneira de abordar o lugar do trabalho na análise. A questão principal reside “na esfera política, nos princípios a serem aplicados ao decidir quais necessidades devem ter preferência, quanto tempo deve ser despendido para o trabalho, quanto do produto social deve ser consumido e quanto deve ser usado para expansão, etc.” (Pollock, 2019b/1941, p. 94).

A ênfase passa a ser a política em detrimento da economia, ainda que, por óbvio, essa de modo algum desapareça, mas sim altere o tipo de mediação do trabalho, e os desafios postos dizem respeito, por exemplo, à garantia do pleno emprego. Entendemos que, novamente, esse aspecto caminha no sentido de realçar como permanece a relevância do trabalho nas investigações e diagnósticos da teoria crítica, em linha com os esforços de se compreender as dinâmicas do capital.

A arguta reflexão exposta por Marcuse em Novas fontes para a fundamentação do materialismo histórico (2004a/1932), quando se debruça sobre os Manuscritos econômico-filosóficos, à época recém-descobertos, aparece assim como uma mediação central no trabalho conceitual da teoria crítica. Isso decorre, sobretudo, do seu esforço de, tomando por base o pensamento de Marx, repensar o sentido do trabalho na concepção materialista. Em outros termos, Marcuse reconhece a centralidade do argumento conceitual, porém delineia uma reinterpretação das relações de trabalho e das relações sociais em sentido mais amplo, no que informa, de maneira rigorosa e crítica, as discussões envolvendo a concepção de trabalho.

Esse esforço irá repercutir posteriormente em suas análises, como por exemplo na sua obra Eros e civilização, publicada em 1955 (Marcuse, 2004b/1955), quando investiga as formas de tensão e conflito pulsional, recorrendo às pulsões de vida e de morte. É importante, aqui, salientar como o olhar sobre os processos civilizacionais repressivos é que, efetivamente, guiou a mirada de Marcuse, mantendo a continuidade no que concerne ao olhar voltado à mediação do trabalho.

Tal enfoque se mostra mais adiante em O homem unidimensional (Marcuse, 2007/1964), que pode ser considerado seu opus magnum, em que analisa todo um conjunto de mudanças que permearam as transformações das relações de trabalho no que denominou a sociedade industrial avançada. O destaque recai sobre as novas formas de controle, isto é, as maneiras por meio das quais, no esteio da mecanização já preconizada por Marx, ocorre o advento de novas tecnologias, de modo que a reorganização do trabalho ressignifica o sentido da atividade. Isso o levou a constatar: “O novo mundo do trabalho técnico produz, assim, um enfraquecimento da posição negativa da classe trabalhadora: a última não aparece mais como a contradição viva da sociedade existente” (Marcuse, 2007, p. 35).

Avançando para os últimos anos de seus escritos, é notável a permanência desse tema. Ao mesmo tempo, há uma guinada no que diz respeito a vislumbrar certas possibilidades de transformação e abertura de possibilidades sustentadas, em especial, sobre os estímulos com os quais se deparou, nos EUA, a partir das formas de protesto estudantis e da população negra e de mulheres pelos direitos civis e contra as formas de racismo e sexismo.

O embrião dessa reflexão estava posto em O homem unidimensional. Recuperando as possibilidades de resistir à repressão e refletindo a partir das possibilidades emancipatórias do estranhamento, afirma: “Contrastando com o conceito marxista, que denota a relação humana consigo e com o seu trabalho na sociedade capitalista, a alienação artística é a transcendência consciente da existência alienada” (Marcuse, 2007, p. 63).

A articulação dessa visada com o diálogo presente em Eros e civilização acabou por desdobrar-se em relacionar as possibilidades emancipatórias com a apropriação crítica da pulsão erótica. Ou seja, se de um lado havia um viés de enorme repressão das possibilidades transformadoras em decorrência da intensificação da exploração, ocultada por diversos mecanismos ideológicos, ao mesmo tempo era possível alimentar as energias que se voltavam aos anseios emancipadores. Uma de suas obras tardias, O ensaio sobre a libertação, conclui com a seguinte passagem:

A expressão social da pulsão de trabalho libertada é a cooperação, que, fundada sobre a solidariedade, orienta a organização do reino da necessidade e o desenvolvimento do reino da liberdade. Há uma resposta à pergunta que perturba os espíritos de tantos seres humanos de boa vontade: o que as pessoas devem fazer em uma sociedade livre? A resposta que, creio eu, acerta em cheio, vem de uma garota negra: ‘Pela primeira vez em nossa vida seremos livres para pensar a respeito de o que iremos fazer

(Marcuse, 1969, p. 91).

Esse recorte permite notar como, ao mesmo tempo em que está consolidada no olhar da teoria crítica, a perspectiva lançada sobre o trabalho assume contornos distintos de acordo com os tipos de relações e transformações sociais em curso. Reflete, portanto, o núcleo temporal (Zeitkern) de cada contexto, e também aparecerá de outros modos na reflexão de Habermas, conforme discutido em mais detalhes abaixo.

Um embate semelhante é encontrado na interpretação de Horkheimer e Adorno, tal como exposto na Dialética do esclarecimento. A primeira relação mais fundamental identificada por ambos reside na associação entre a dominação e o trabalho. “A natureza não deve mais ser influenciada por meio da apropriação, mas dominada por meio do trabalho” (Horkheimer; Adorno, 1997/1947, p. 41). Trata-se de colocar as relações de trabalho como aspecto basilar da forma de dominação.6 Isso ocorre, assim o sugerimos, de maneira dupla: de um lado, no papel central exercido pelo trabalho na estruturação do social, de modo que ali se produzem a sociabilidade e, quando assim se desejar, a exploração e a dominação sociais. De outro, em decorrência do princípio de realidade que acaba por tornar a atividade laboral algo necessário e imposto, impedindo que ela exerça seu potencial criativo e emancipador.

De maneira análoga, Horkheimer e Adorno também se esforçam para construir a articulação entre os elementos individuais e os sociais. De modo semelhante ao que fora avançado por Marcuse em Eros e civilização, notadamente no que concerne à relevância de considerar a filogênese e a ontogênese, o foco reside sobre demarcar as características e as condições concretas, individuais de trabalho, e sua relação com as formas de dominação social em sentido mais geral e abrangente, que estruturam aquela formação social particular.

Os remadores, que não podem se falar, estão atrelados a um compasso, assim como o trabalhador moderno na fábrica, no cinema e no coletivo. São as condições concretas do trabalho na sociedade que forçam o conformismo, e não as influências conscientes, as quais por acréscimo embruteceriam e afastariam da verdade os indivíduos oprimidos. A impotência dos trabalhadores não é mero pretexto dos dominantes, mas a consequência lógica da sociedade industrial, na qual o fato antigo acabou por se transformar sob o esforço de lhe escapar

(Horkheimer; Adorno, 1997, p. 60).

De maneira análoga, a tese que Adorno (1969) desenvolve por ocasião de sua fala de abertura do 16º Congresso Alemão de Sociologia, realizado em Frankfurt no ano de 1968 e intitulada “Capitalismo tardio ou sociedade industrial?”, aborda as dinâmicas de estabilização tão características ao desenvolvimento capitalista, que encontram formas de mitigar as tensões sociais e os conflitos de classe dessa formação social.

Se esse conjunto de reflexões esteve localizado no âmbito do diagnóstico que ambos apresentaram acerca da sociedade administrada e, conforme o título, da dialética que havia no processo de esclarecimento, a temática continuou presente mesmo após o falecimento deles e a saída de Jürgen Habermas rumo ao trabalho no Max-Planck-Institut em Starnberg. Agora, a pessoa encarregada desse foco era Ludwig von Friedeburg. O foco de sua direção se voltou ao que ficou conhecido como “sociologia industrial”, investigando o modo como as relações de trabalho se organizavam no âmbito das empresas, notadamente em sua forma industrial, que ganhou maior relevância ao longo da primeira metade do século XX.

Destaca-se o levantamento que Friedeburg (1963) realiza acerca do clima empresarial (Betriebsklima), que impactou a sociologia na Alemanha do período. A obra expressa a tradição da teoria crítica da sociedade, ao articular amplo trabalho de campo, levado a cabo nas fábricas e empresas, a diagnósticos que fundamentaram teoricamente perspectivas críticas sobre as relações humanas ou, para ficar com o jargão, os recursos humanos. Desse modo, avançou a interpretação de elementos objetivos e subjetivos, abarcando a dimensão simbólica da maneira como essas relações estruturam a compreensão do lugar de quem atua como trabalhador, permitindo, com isso, tensionar – sem abandonar – o lugar da classe no debate.

Conforme também argumentam Alex Demirović e Heinz Steinert, é recorrente escantear-se esse olhar nos panoramas acerca da teoria crítica:

Que estudos sobre o imaginário de trabalhadores [Arbeiterschaft] fazem parte do repertório da teoria crítica desde o estudo de Erich Fromm, em 1931, e das metodologicamente tão interessantes quanto arriscadas investigações sobre o autoritarismo entre os trabalhadores estadunidenses, em 1944, é frequentemente negligenciado em sua história

(Demirović; Steinert, 2010, p. 488).

Como foi possível perceber, a primeira geração da teoria crítica da sociedade é perpassada por uma constante preocupação com o trabalho. A categoria da reificação é o desenvolvimento conceitual mais acabado dessa preocupação, pois expressa o padrão de sociabilidade dominante na sociedade capitalista. O final dessa primeira geração ainda retoma a preocupação imediata de aferir, empiricamente, aspectos relacionados à cultura do trabalho industrial. Na sequência, um desdobramento específico da sociologia do trabalho colocaria em questão o potencial explicativo da categoria trabalho para a sociologia.

Fim da sociedade do trabalho?

Nesta seção, veremos como o argumento do fim da sociedade do trabalho é desenvolvido em um contexto geral de crise do welfare state. De forma geral, há uma mudança de registro. De Marx a Adorno, Horkheimer e Marcuse, o trabalho é a categoria filosófica que expressa a contradição constitutiva do capitalismo industrial: a energia humana é convertida em coisas que passam a ocupar o centro de gravidade em torno do qual os indivíduos orbitam. O trabalho expressa a capacidade humana de projetar, sobre a matéria, uma intervenção transformadora. Mas o produto dessa atividade se emancipa e aparece como autônomo. Por essa razão, a diferença entre trabalho concreto e abstrato em Marx fundamenta o conceito de reificação, com base no fetichismo da mercadoria. Agora, o foco recai sobre Habermas e Claus Offe, em cujos diagnósticos o trabalho (e a reificação) deixaram de ser uma categoria analítica que descreve o padrão de sociabilidade típico da sociedade capitalista, pois foram reduzidos à categoria empírica da relação de emprego. O giro se fundamenta na sociedade salarial da social-democracia europeia, ancorada no pleno emprego. Nessa interpretação, toma-se como definitivamente resolvido o conflito entre capital e trabalho. A generalização da relação de trabalho assalariada é tomada como um descritivo empírico, e não como uma categoria analítica.

A utopia de uma sociedade do trabalho pretendeu-se implantar no século XX conforme três projetos concretos diferentes: o comunismo soviético, o nazi-fascismo e o reformismo social-democrata nos Estados sociais ocidentais. Segundo Habermas, apenas este último incorporou a herança dos movimentos burgueses de emancipação, em uma utopia da sociedade do trabalho. A “sociedade do trabalho” (“Arbeitsgesellschaft”) designa costumeiramente a estrutura social típica do welfare state das democracias ocidentais europeias, na medida em que ela significa a orientação das relações sociais a partir do trabalho assalariado, pois é justamente isso que sintetiza a fusão entre capacidade de consumo de massa, produção industrial em larga escala, tributação e direitos sociais. Entretanto, para Habermas, o Estado social perdeu a capacidade de orientar o futuro, e não representaria hoje uma alternativa viável, dando mostras de um esgotamento incontornável:

Entretanto, desde a metade dos anos 70 os limites do projeto do Estado social ficaram evidentes, sem que até agora uma alternativa clara seja reconhecível. Em razão disso, gostaria de precisar minha tese acima: a nova ininteligibilidade é própria de uma situação na qual um programa de Estado social, que se nutre reiteradamente da utopia de uma sociedade do trabalho, perdeu a capacidade de abrir possibilidades futuras de uma vida coletivamente melhor e menos ameaçada

(Habermas, 1987, p. 106).

Assim representada, não é de se estranhar que grande parte dos argumentos críticos ao Estado social se desenvolva em torno do desmantelamento (ou melhor, da reformulação) de uma sociedade baseada no salário (Castel, 1999). Um dos argumentos mais centrais nesse âmbito é oferecido por Habermas e Offe, que compartilham a tese de que o trabalho teria deixado de ser a categoria sociológica fundamental.

O Estado social legitima-se a partir das eleições democráticas nas quais o projeto social a ser levado a efeito pelo Estado é implementado conforme uma incessante busca do pleno emprego associada às prestações sociais providas pela burocracia – o conflito de classe é apaziguado, pois os elementos de conflito inerentes ao status de trabalhador assalariado são neutralizados. Esse objetivo é atingido pela legislação social e pela barganha salarial, de sorte que o êxito do projeto depende da habilidade de o aparato estatal intervir na economia de mercado de forma a garantir o crescimento econômico. Logo, é o poder estatal democraticamente legitimado que garante o sucesso do projeto distributivo do Estado social. Mas esse projeto continua (e só pode continuar) nutrido pela utopia de uma sociedade do trabalho que tenta se manter presente, de modo que a massa da população consiga viver em liberdade política com justiça social e crescente prosperidade – pelo menos nos países capitalistas centrais.

Diante desse contexto, Habermas se propõe duas questões fundamentais: É possível conciliar capitalismo e democracia? É possível implementar tal conciliação a partir de instrumentos burocrático-jurídicos? (Habermas, 1987, p. 107).

Quanto à primeira pergunta, Habermas argumenta que o quadro político keynesiano fora sempre demasiado estreito para conter os imperativos capitalistas. Os custos sociais (tanto de financiamento fiscal do Estado social quanto de institucionalização de direitos trabalhistas) exigiram crescentes investimentos em racionalização da produção mediante a cientificização da técnica na linha de montagem. Isso tornou a força de trabalho uma mercadoria não mais escassa, pois à medida que o Estado social ajusta marginalmente o sistema econômico, mantém a estrutura de concentração dos meios de produção sem interferir nos investimentos privados, mantendo inalterada a estrutura de poder de classe, o que torna explícito que tal Estado não pode garantir o êxito completo do projeto, perdendo suas bases sociais de legitimação democrática.

Quanto à segunda pergunta, se o sucesso do Estado social não denunciasse seus efeitos colaterais, um problema permaneceria insolúvel: o recurso à atividade legislativa parlamentar apareceria como sendo “tão inocente quanto indispensável”, pois a interferência no sistema econômico significa, também, uma interferência no mundo da vida dos cidadãos, o que torna o cotidiano congestionado por uma malha de comandos técnicos jurídico-administrativos (leis, decretos, resoluções, decisões administrativas e judiciais, requerimentos etc.).

Isso explicita o paradoxo entre fins e meios do Estado social: não é possível eliminar a brutal reificação do mundo da vida porque, a despeito do aumento do grau de justiça social alcançado, os meios instrumentais de implementação de direitos sociais não são passivos ou neutros. Muito pelo contrário, trazem consigo uma carga de normatização e vigilância que sobrecarrega as estruturas simbólicas do mundo da vida, colonizando-as. Trata-se de uma contradição entre meios e fins: o objetivo de criar formas de vida cotidiana conforme padrões distributivos igualitários, garantindo liberdade de movimentos para a autorrealização e a espontaneidade individuais, não pode ser direta e imediatamente alcançado pela mera transposição do aparato jurídico-administrativa conforme um programa político – dinheiro e poder não dão conta da tarefa que lhes foi imposta. Fica nítido, portanto, o dilema que denuncia o esgotamento das energias utópicas de uma sociedade do trabalho:

o capitalismo desenvolvido nem pode viver sem o Estado social nem coexistir com sua expansão contínua. As reações mais ou menos desorientadas a este dilema indicam que o potencial de sugestão política da utopia de uma sociedade do trabalho está esgotado

(Habermas, 1987, p. 109);

O desenvolvimento do Estado social acabou num beco sem saída. Com ele esgotaram-se as energias da utopia de uma sociedade do trabalho

(Habermas, 1987, p. 112).

Mas Habermas não crê que as energias utópicas tenham se esvaído completamente do pensamento histórico contemporâneo – ao contrário, apenas as energias utópicas relacionadas à sociedade do trabalho é que perderam seu potencial de orientação porque o próprio trabalho perdeu a capacidade de centrar a individualidade:

chegou ao fim uma determinada utopia que, no passado, cristalizou-se em torno do potencial de uma sociedade do trabalho

(Habermas, 1987, p. 105).

A utopia de uma sociedade do trabalho perdeu sua força persuasiva – e isso não apenas porque as forças produtivas perderam sua inocência ou porque a abolição da propriedade privada dos meios de produção manifestamente não resulta por si só no governo autônomo dos trabalhadores. Acima de tudo, a utopia perdeu seu ponto de referência na realidade: a força estruturadora e socializadora do trabalho abstrato

(Habermas, 1987, p. 106).

A perda da força do trabalho enquanto categoria sociológica é o ponto de contato entre Habermas e Offe, no artigo seminal deste último intitulado “Trabalho: categoria sociológica chave?”, de 1982. Offe foi o primeiro a apontar a perda da tradicional centralidade conceitual da categoria sociológica do trabalho, dadas as alterações estruturais da sociedade do trabalho e do Estado social. A tradição sociológica, tanto clássica quanto contemporânea, sempre considerou o trabalho a categoria analítica central porque, quando do estabelecimento definitivo da sociologia como ramo particular do conhecimento, historicamente condicionado pelo desenvolvimento da sociedade burguesa industrial, o trabalho – então eminentemente proletário – estivera depurado, por assim dizer, de outras atividades culturais. Isolado das demais esferas sociais erguidas por sobre o mundo operário, a condição de “trabalhador assalariado” se tornara bastante indigna e socialmente estigmatizante, e seu ápice pode ser identificado no advento do proletariado como classe social.

Assim, o eixo analítico sociológico fora desenvolvido sempre em torno do trabalho como categoria central, e.g., a distinção entre solidariedade mecânica e orgânica em Durkheim ou a análise da racionalização do trabalho como especificidade do capitalismo ocidental em Weber – sendo despicienda qualquer referência à importância dessa categoria em Marx. Ora, “É precisamente este poder determinante abrangente do fato social trabalho (assalariado) e de suas contradições que, hoje em dia, se tornou sociologicamente questionável” (Offe 1989, p. 171). O trabalho teria perdido sua centralidade como categoria analítica:

A partir deste ponto de observação, é possível encontrar amplas evidências para a conclusão de que o trabalho e a posição dos trabalhadores no processo de produção não são tratados como o princípio básico da organização das estruturas sociais; que a dinâmica do desenvolvimento social não é concebida como emergente dos conflitos a respeito de quem controla a empresa industrial; e que a otimização das relações entre meios e fins técnico-organizacionais ou econômicos através da racionalidade capitalista industrial não é compreendida como a forma de racionalidade precursora de mais desenvolvimento social

(Offe, 1989, p, 171).

A tese de Offe se sustenta em três evidências amplamente difundidas nos anos 1980: (i) a heterogeneidade ampliada na esfera do salário (relacionada à expansão do setor de serviços), (ii) a erosão de uma identidade coletiva culturalmente erigida em torno do trabalho e (iii) o declínio da ética do trabalho.

Inicialmente, o fato de a sociedade toda ser assalariada – mas não proletária, devido ao incremento do setor de serviços – já não significa coisa alguma; a condição de assalariado não permite atribuir um sentido à identidade pessoal como permitia a condição de proletário desde o século XIX até a Primeira Guerra Mundial, pelo menos. Dada a generalização da condição de empregado, ela não representa mais um fator de agregação social em torno de um estilo de vida integral e autônomo. O trabalho não é mais o fator determinante para a atividade social em geral, quer dizer, não é mais possível deduzir da condição de assalariado um estilo de vida próprio e distinto das demais classes sociais não especificamente identificadas pelo trabalho assalariado (porque tais classes não mais existem, na medida em que todas as classes sociais se definem profissionalmente nos termos da relação salarial); da mesma forma como não é mais pertinente identificar interesses “de classe” centrados na tradicional oposição entre as trade unions e o empresariado em torno da duração da jornada de trabalho.

A difusão pulverizada da condição de trabalhador assalariado traz um resultado dúplice: de um lado, significa um crescente movimento de generalização social e, de outro, importa também um movimento de diferenciação das relações de emprego específicas. Em primeiro lugar, seguindo esse argumento, a generalização da relação salarial tornou a dependência da força de trabalho em relação ao capital uma característica universal, pois todos os trabalhadores são assalariados e nenhum deles é proprietário. Da mesma maneira, foram universalizadas as circunstâncias de subordinação à administração empresarial corporativamente organizada e o confronto incessante com os riscos representados pelo desemprego e pela competição do mercado.

Em segundo lugar, essa efetiva homogeneização das circunstâncias profissionais e econômicas é quebrada por uma ampla variação na renda paga a título de salário, nas qualificações profissionais acessíveis, nos níveis de autonomia funcional alcançados, no grau de estabilidade permitido pelo cargo e no reconhecimento social do emprego ocupado. É claro que hoje, após a crise financeira de 1980 e do novo trabalho flexível do capitalismo de plataformas, esse diagnóstico perdeu aderência à realidade. Hoje o trabalhador típico da gig economy, na base da pirâmide social, talvez represente uma nova unificação do estilo de vida e das chances biográficas em função de sua ocupação.

A crise da sociedade do trabalho, uma vez diagnosticada, é incontornável. Isso porque um dos principais objetivos do projeto distributivo do Estado social é o ímpeto de promover uma crescente desmercadorização da força de trabalho, torná-la cada vez menos uma mercadoria e cada vez mais uma questão de titularidade de direitos sociais garantidos pela cidadania, para lembrar Esping-Andersen (1990) e T. H. Marshall (1967). Isso se revela, do ponto de vista da força de trabalho, em uma tendência à exclusão de crescentes parcelas com relação à dependência do mercado.7

Ora, quanto mais eficiente o aparato de serviços sociais do Estado, maior o nível de desmercadorização da força de trabalho e, nesse sentido, menor a relevância do mercado da própria força de trabalho. Se o trabalho deixou de organizar tanto a esfera da reprodução material da sociedade quanto a esfera da reprodução simbólica,

há então nitidamente necessidade de um sistema conceitual que ajude a planejar detalhadamente as áreas da realidade social não inteiramente determinadas pelas esferas do trabalho e da produção. Uma proposta teórica elaborada, fundamentada na história da teoria sociológica, e que poderia satisfazer essa necessidade encontra-se desenvolvida na Theorie des kommunikativen Handelns, de Habermas

(Offe, 1989, p. 195).

Offe está, destarte, em estreito alinhamento com os desenvolvimentos da teoria do agir comunicativo.8 Habermas e Offe assumem que o trabalho já não configura estruturalmente as principais relações sociais e, por essa razão, já não pode ser considerado uma categoria sociológica capaz de captar todas as dimensões sociais – daí a mudança para o paradigma comunicativo, que não discutiremos neste artigo (Bachur, 2017).

Com efeito, a tese da perda da centralidade da categoria trabalho somente fez sentido se admitidas evidências empíricas típicas da antiga República Federal da Alemanha, já que a incorporação da antiga República Democrática da Alemanha após a queda do muro de Berlim recolocou a questão do desemprego na própria pauta alemã e, também, na ordem do dia para a União Europeia na década de 1990. É claro que, para o observador que escreve já no século XXI, a crítica é facilitada, pois a onda neoliberal ainda não havia produzido todos os seus efeitos, muito embora já estivesse em curso na Inglaterra de Thatcher e nos EUA de Reagan, tendo inclusive alcançado a própria Alemanha de Helmut Kohl. Não obstante, tanto Habermas quanto Offe se apegam com excessiva confiança ao momento em que observam a realidade. O cenário político europeu logo seria novamente dominado pelo desemprego como problema central.

E o problema teórico do diagnóstico de Habermas e Offe está em assimilar trabalho e emprego. Na tradição da teoria crítica, trabalho é um conceito filosófico que expressa um padrão de sociabilidade – portanto, da interação entre indivíduos – historicamente determinado, moldado por uma interação com a natureza estruturada pela racionalidade instrumental.9 Em Marx, o trabalho nunca foi mera ação instrumental, como sustenta Habermas: o trabalho só é estruturante porque tem uma dimensão intersubjetiva relacionada à capacidade de projetar o futuro e realizá-lo (Balibar, 2001, p. 17-24; bem como p. 39 e p. 46). Aliás, é justamente essa característica que torna possível uma utopia baseada no trabalho, i.e., na capacidade de que a esfera da produção não reifique a dimensão simbólica e significativa da vida (Haddad, 2004). Determinado pela razão instrumental, dominar a natureza é uma tarefa incrustada na dominação de classe.

Mas Habermas e Offe não exploram as determinações filosóficas da categoria trabalho e o entendem como emprego: como atividade instrumental determinada de forma exógena e remunerada em uma relação salarial. Com a assimilação empírica de trabalho a emprego, o conceito de trabalho torna-se fundamentalmente contraditório dentro dos próprios pressupostos da teoria da ação comunicativa. De fato, se o trabalho for considerado, como faz Habermas, exclusivamente como “ação instrumental” em oposição à interação como “ação comunicativa”, ele nunca poderia perder sua centralidade – o conceito de “sociedade do trabalho” seria, assim, reduzido a uma “trivialidade sociológica, visto que se refere a uma eterna necessidade natural da vida social” (Offe, 1989, p. 168).10 Habermas desconsidera a capacidade do trabalho de constituir um fator de coesão social indissociável da interação – afinal, é quase impensável isolar uma atividade laboral da comunicação. Qual atividade pode ser desenvolvida de forma plenamente monológica? Qual trabalho é possível sem interação?

Ora, o trabalho assumiu a posição central na sociologia justamente porque nunca significara apenas essa redução simplista – o trabalho assalariado sempre foi uma forma de interação intersubjetiva, ao mesmo tempo que é, desde sempre, uma atividade técnico-instrumental: é “uma atividade que se realiza na esfera pública [...] Por isso, a sociedade industrial pode perceber a si mesma como uma sociedade de trabalhadores, distinta de todas as demais que a precederam” (Gorz, 2003, p. 21).

Assim, na concepção de uma “utopia da sociedade do trabalho” e na tese da perda de sua centralidade, a categoria “trabalho” já não pode ser a mera manipulação técnica e instrumental da natureza – tem de ser trabalho como interação – caso contrário, a solidariedade comunicativa não poderia ser considerada um sucedâneo satisfatório. Ora, trabalho como “agir instrumental” está presente em Habermas no que tange à reprodução material do mundo da vida, ponto absolutamente incontornável para viabilizar a própria racionalização simbólica do mundo da vida – nesse sentido, o trabalho não pode perder a centralidade. Ao reduzirem o trabalho ao manejo instrumental de objetos inertes, sem uma dimensão intersubjetiva, Offe e Habermas neutralizam o potencial analítico do trabalho enquanto categoria sociológica.

De reconhecimento e redistribuição à sociedade da externalização

Por sua vez, Axel Honneth, naquela que talvez tenha sido a sua principal contribuição em termos desse debate, a obra Luta por reconhecimento (Honneth, 2003/1992), propõe uma reorganização profunda ao secundarizar a teoria crítica de Marx,11 que enxerga como eivada de uma série de pressupostos antropológicos e filosóficos que dificultariam as condições de tomá-la enquanto inspiração para um olhar contemporâneo. Ele retoma como centrais, para a sua tese sobre o lugar do trabalho, de um lado as reflexões de Georg Wilhelm Friedrich Hegel12 e, de outro, a contribuição de George Herbert Mead.13

Enfatiza, desse modo, a centralidade das concepções éticas, morais e jurídicas das formas de reconhecimento que haviam sido debatidas extensamente por Hegel. Por sua vez, no que diz respeito ao olhar de Mead, encontra nas suas análises, referentes sobretudo – ainda que não exclusivamente – à divisão do trabalho, uma fonte relevante de apoio, por mais que, ao final de sua obra, Honneth reconheça a insuficiência14 desse pensamento. Portanto, ainda que a proposta teórica de Honneth tenha se voltado a delinear o quão multifacetados são os diferentes esforços na busca por reconhecimento, em relação ao que se pode sugerir que o conceito de trabalho ocupa um lugar menor, uma análise mais detida nos mostra que ele ainda permanece enquanto pano de fundo desse debate.15

Quando Nancy Fraser se propõe a disputar o lugar do conceito de reconhecimento, contrapondo-lhe o de redistribuição, entre outros aspectos ela remonta o movimento de trazer questões materiais, e em particular o trabalho, para o cerne de sua análise. Talvez ainda mais importante, para essa análise, seja também o recurso ao conceito de exploração, que fora deixado de lado por completo na análise de Honneth. Assim, ela nota como ele pode ser usado com vistas a chamar a atenção tanto para o grau de exclusão de grupos racialmente classificados, que sequer adentrariam os limites da exploração, e igualmente nos lembra da relevância de se levar em consideração o trabalho não pago, que recai, em sua grande maioria, sobre as mulheres (Fraser; Honneth, 2003, p. 25). Com isso, ela também borra a divisão um tanto quanto estanque entre trabalho produtivo e improdutivo, conforme apresentado por Marx n’O capital.

Além disso, após reconstruir o lugar central ocupado pelo conceito na crítica marxista, desdobra sua própria análise a fim de, por exemplo, indicar a existência da “exploração condicionada por gênero” (Fraser; Honneth, 2003, p. 33). Entendemos que se encontra aqui uma das principais (se não a principal) contribuições de Fraser, a saber, questionar a unidimensionalidade da maneira como o conceito se fizera presente na obra de Marx e, ao mesmo tempo, contrapor-se à ideia de deixá-lo em segundo plano, como foi feito – com sustentação preponderantemente filosófica – na obra de Honneth. Assim, mobiliza o conceito criticamente, apontando potenciais políticos para o seu uso na sociologia e na teorização.

Na primeira década do atual século, ao pautar o debate envolvendo os rumos do Estado social, sob a ideia da reinvenção do social, Lessenich (2008) trouxe a formulação do capitalismo flexível para o cerne de sua análise. É fundamental, nesse sentido, o movimento de reaproximação de uma crítica abrangente ao capitalismo enquanto formação social. Essa linha de argumentação acabou por se desdobrar, mais recentemente, em sua tese sobre a sociedade da externalização. Tendo por referência o diagnóstico de Horkheimer e Adorno na Dialética do esclarecimento, e pensando os modos como atualmente se estruturam as lutas entre capital e trabalho, ele afirma:

Quando se considera, como neste livro, a história e a contemporaneidade das sociedades de bem-estar europeias como uma questão de externalização, então entra em cena uma segunda, não menos fundamental, dialética do esclarecimento – uma estrutura de contradição que encobre o usual “acerto de contas interno” do progresso social. [...] Nas sociedades da externalização a ação social é estruturalmente guiada numa direção que não é generalizável [verallgemeinerungsfähig]

(Lessenich, 2016, p. 79-80).

Importante destacar que ele toma como ponto de partida da análise que apresenta na obra o desastre ambiental, social e ecológico ocorrido na cidade de Mariana, no Brasil, isto é, efetivamente amplia o alcance de seu olhar crítico centrado sobre o capitalismo ao ir além dos efeitos restritos ou, ao menos, preponderantemente presentes na assim chamada metrópole. Ao tomar como fundamentais os entrelaçamentos e a dinâmica capitalista estruturada a partir das relações centro-periferia, ele contempla um dos elementos que foi historicamente deixado de lado por completo ou, ao menos, marginalizado na análise da teoria crítica. Esse reparo confere maior rigor conceitual e capacidade crítica às suas formulações.

A produção sistemática de desigualdades bem como o aumento contínuo do fosso que separa as classes mais abastadas daquelas pauperizadas podem ser observados tanto a partir de mensurações universalizadas, como o coeficiente de Gini, quanto tomando por base os olhares mais estruturais, que buscam compreender o lugar desses novos traços à luz das abordagens do sistema-mundo. Nessa concepção crítica e relacional pode-se encontrar, assim, os modos por meio dos quais, no contexto da metrópole, há diferenciações internas. Há, desse modo, um reposicionamento contínuo dos mecanismos de externalização, identificando-se as periferias no contexto metropolitano, e as periferias (e semiperiferias) “globais” – mas que, também em seu interior, novamente produzem tais diferenciações. Ao considerar, ainda, os elementos e efeitos psíquicos desses processos de externalização, identifica-se outro traço compartilhado com parte significativa dos diagnósticos da teoria crítica e que distingue esse conjunto de interpretações de outras óticas da filosofia e da sociologia ao longo do tempo.

Com isso, chegamos aos desenvolvimentos finais da tese exposta neste artigo. O que se pode demarcar como diferença dos momentos que tratamos e do percurso da teoria crítica nas duas décadas mais recentes encontra-se bem expresso por Nancy Fraser num diálogo que travou com Rahel Jaeggi. Fraser constata que o projeto da teoria crítica de compreender a sociedade enquanto totalidade ficou de lado, e isso trouxe, também, o escanteamento do olhar voltado ao capitalismo: “Não houve mais esforços de identificar suas estruturas profundas e mecanismos de ação, suas contradições e tensões definidoras, ou suas formas características de conflito e possibilidades emancipatórias” (Fraser; Jaeggi, 2018, p. 5).

Por sua vez, enxergamos nas abordagens fundamentadas por Lessenich ao longo da última década e meia o potencial de rearticulação do cerne da crítica social ao capitalismo. É relevante, ainda, enfatizar a articulação desse recorte com a preocupação voltada à constatação de que se trata de relações de exploração, e que produzem e aprofundam desigualdades e assimetrias que se assentaram ao longo do tempo. Ao reiterar, no início e nas linhas finais de sua obra, que – apesar de todos os efeitos sobre a natureza – o episódio em questão é tudo menos um desastre natural, sendo o produto de decisões humanas ligadas de modo íntimo à intensificação e extensão de busca do lucro e dos territórios a serem explorados, Lessenich também abre espaço para recordar o potencial de mudança. Afinal, os processos resultam de escolhas. Sujeitas a limitações e implicando consequências danosas, essas são, frequentemente, externalizadas para as periferias do capitalismo e as classes subalternas – mas poderia ser diferentes, no espírito do que Horkheimer denominava a Sehnsucht nach dem ganz Anderen (anseio pelo totalmente diferente).

Considerações finais: desdobramentos contemporâneos

Ao voltarmos as nossas observações da seção anterior ao debate envolvendo, inicialmente, a proposta da luta por reconhecimento de Honneth e, em seguida, a recepção crítica que teve por parte de Fraser e, finalmente, culminar no diagnóstico de Fraser e Jaeggi, consideramos que as autoras supracitadas colocaram novos ventos nas preocupações atuais da teoria crítica. Além de ampliarem o espaço, que fora negado durante décadas, ao reconhecimento da produção feminina no escopo da teoria crítica, reiteram a resposta às críticas que enxergam esse debate proposto como marginal e que, em grande medida, imputam aos trabalhos do IfS uma verve demasiadamente teórica. Falar-se numa formulação teórica desvinculada de investigações e/ou reflexões empíricas implica reificar a concepção de teoria, tomando especulações e delineamentos metafísicos enquanto teoria. Nesse sentido, é um truísmo remeter à teoria ancorada na empiria. O equívoco, no mais das vezes, decorre de um entendimento estreito de empiria, isto é, sendo apenas o que decorre de surveys ou outros tipos de trabalho de campo. De todo modo, o longo percurso da teoria crítica da sociedade apresenta um bem sustentado acúmulo desse viés de pesquisa.

Ainda que o Institut für Sozialforschung continue existindo, a concepção de teoria crítica se alargou ao longo do tempo, e de diferentes maneiras. Nesse sentido, é patente a proximidade, por exemplo, de Hartmut Rosa, Stephan Lessenich e Klaus Dörre, no que diz respeito a pensar criticamente a realidade e as relações sociais, com ênfase sobre a produção de teoria. A escolha desses autores não é casual: em 2011 eles obtiveram um financiamento vultoso que deu início ao projeto Postwachstumsgesellschaften (sociedades pós-crescimento), que continuou realizando investigações por quase dez anos, encerrando-se em abril de 2021. Neste mesmo ano, após ter sido docente na LMU-München, Stephan Lessenich acabou sendo nomeado como docente de teoria e pesquisa social e diretor do IfS em Frankfurt.

Em suma, a tese que buscamos expor é a de que, ao longo dos esforços de pesquisa e teorização da teoria crítica da sociedade, o trabalho e a tese da reificação sustentam a crítica ao capitalismo. Longe de ser óbvio, a literatura sociológica dominante apenas aborda o trabalho como elemento fundante da própria existência ou da interação humanas. O ponto a ser destacado é a centralidade do trabalho na teoria crítica desenvolvida no IfS. Inicialmente associada à reificação, posteriormente ao debate entre distribuição e reconhecimento e, agora, mais recentemente, à questão da precarização e pauperização. Isto é, mesmo sob a condução de Honneth, que voltou o cerne de suas publicações a outros elementos, a mediação do trabalho permanece, havendo uma miríade de investigações que se aprofundam sobre as transformações no mundo do trabalho e nos diferentes contextos do cotidiano das relações trabalhistas. Entendemos que, em parte, isso pode e deve ser interpretado como fundamento da teoria social crítica, baseada na reflexão de Marcuse (1941) em Razão e revolução. Afinal, para recuperar a concepção fundadora: a visada de Marx olha para o trabalho pelo trabalho, ou com vistas a criticar o capitalismo? Entendemos que, considerando a articulação de teoria e prática intelectuais, é o segundo caminho que guiou as reflexões dessa perspectiva ao longo de mais de um século.

Conforme indicamos acima, essa visão que foca o trabalho para estruturar a crítica ao capitalismo já vinha ganhando fôlego com estudos de Lessenich sobre o novo welfare state (Lessenich, 2003, 2008). Em suas investigações, Lessenich vem marcadamente apontando a necessidade de mobilizar o aparato de seguridade social contra as novas pressões do capitalismo da economia flexível, mas também as novas formas pelas quais o imbricamento entre aparato estatal e economia se realiza. Nesse “novo” capitalismo, flexibilidade, mobilidade e produtividade organizam novas formas de ocupação, no chamado capitalismo de multidão (Sundararajan, 2017). Uma série de atividades rotineiras pode hoje ser realizada on-demand, por meio de plataformas digitais que operam a mediação entre serviços e consumidores finais – mobilidade urbana, hospedagem, compras, delivery de comida e remédios, advogados, cuidadores de idosos, babás, reparos domésticos etc. Esse novo formato da chamada gig economy elimina a fronteira entre o público e o privado, e implode tanto o conceito de empresa quanto o da própria relação de emprego. Isso muda o papel do próprio welfare state, que não será mais uma espécie de “provedor” direto de prestações e serviços sociais compensadores da desigualdade, mas um fomentador de novas formas de ocupação, com graus variados de proteção social.

Nesse contexto, o trabalho – ou as múltiplas formas de ocupação profissional, formais e não formais – continua sendo uma categoria analítica fundamental para compreender a moderna sociedade e seu capitalismo de plataformas digitais. Isso renova ao invés de invalidar a perspectiva da teoria crítica, pois os movimentos do capital se sucedem historicamente de forma dialética, isto é, negando o próprio pressuposto concreto do processo de geração de valor. Com Marx, o movimento do capital como sujeito automático realizava a negação do trabalho concreto pela valorização embutida no trabalho abstrato. A base, para isso, foi a jornada de trabalho: organizado como jornada, o trabalho se tornava abstrato porque poderia ser gerido pelo capital de forma a maximizar a produção, descolando-a das necessidades concretas da sociedade. No capitalismo de Estado, o capitalismo administrado negava o capitalismo anárquico dos primórdios do liberalismo, e o trabalho improdutivo guiava a reprodução do capital, preponderando sobre o trabalho “produtivo”. Ou seja, a financeirização da produção e o controle administrativo desse processo contradizem o trabalho chamado produtivo. Atualmente, o capitalismo se reinventa negando a própria relação de emprego, o próprio contrato de trabalho e a jornada de trabalho dos quais partiu Marx n’O capital. O capital, viabilizado como generalização do contrato de trabalho no século XIX e exponenciado pela generalização de uma sociedade salarial no século XX, reproduz-se hoje independentemente do emprego. Na gig economy só há empresários e “micro-empresários”, como se costuma dizer. Nesse contexto, repensar o papel do trabalho como categoria analítica é mais importante do que pode parecer à primeira vista.

  • Os autores agradecem a leitura atenta e as sugestões recebidas por meio de dois pareceres anônimos, que decerto contribuíram para tornar mais consistente o argumento do artigo. Agradecem, ainda, ao auxílio recebido por meio do Edital DPI/DPG 02/2023.
  • 1
    Para mais detalhes acerca do contexto de sua fundação, dos principais personagens e outros aspectos, recomendamos a obra de Martin Jay (1991/1973). Também o discurso de posse de Horkheimer (1988/1931) apresenta diretrizes importantes envolvendo a agenda de investigações.
  • 2
    Entendemos que a guinada da abordagem de Honneth encontra-se bem estabelecida, seja pelo distanciamento face ao seu projeto inicial (Bressiani, 2020), ou pelo caráter estritamente de filosofia política e moral (Araújo Neto, 2016) do debate sobre o trabalho em suas obras. Para um olhar que se preocupou mais diretamente com o teor sociológico de seu argumento, ver Souza (2012).
  • 3
    Considerando a qualidade e diversidade de análises a respeito do papel da reificação em Lukács e em particular sua relação com a teoria crítica da sociedade, deixaremos de aprofundar esse debate. Para maiores detalhes a respeito ver, entre outros, Nobre (2001); Bachur (2005) e Melo (2010).
  • 4
    Ou, conforme afirma mais à frente: “Nenhuma terminologia eufemística que faça pouco das destruições realizadas por esse automatismo grosseiro como sendo apenas ‘fricções’ pode apagar o fato de que o sistema capitalista, desde que existe, sempre saiu da situação de equilíbrio em intervalos mais ou menos uniformes e que as proporcionalidades necessárias tiveram de ser produzidas a cada vez através da destruição massiva de valores e de vidas humanas” (Pollock, 2019a, p. 42, aspas no original).
  • 5
    “Eles reconhecem, assim, que o mecanismo de mercado fracassa justamente no que é mais decisivo e precisa ser complementado pela intervenção estatal” (Pollock, 2019a, p. 48).
  • 6
    Uma parte do argumento deles se localiza em torno do papel do mito no exercício da dominação. “Coagido pela dominação, o trabalho humano sempre tendeu a se afastar do mito, voltando a cair sob o seu influxo [Bannkreis], levado por essa mesma dominação” (Horkheimer; Adorno, 1997, p. 55).
  • 7
    Isso, naturalmente, nos países em que o projeto distributivo do welfare State alcança parcela significativa dos resultados propostos. Em países de capitalismo periférico, como e.g. o Brasil, o projeto distributivo (no nosso caso, constitucional) resulta sempre frustrado e incompleto, de forma que, alternativamente à desmercadorização positiva da força de trabalho (“positiva” porque permite a sobrevivência fora do mercado com base em direitos sociais), ocorre uma desmercadorização negativa, na medida em que a força de trabalho se reproduz não com base em direitos, mas a despeito deles, a partir da economia informal – é o fenômeno da “brasilianização” (“Brasilienisierung”) do mercado de trabalho, na terminologia de Ulrich Beck (1999).
  • 8
    Apesar da indiscutível relevância da Teoria do agir comunicativo no arcabouço teórico de Habermas, entendemos que ela introduz uma guinada e um olhar inovador no que se refere às suas preocupações investigativas. Assim, diante das constrições de espaço de um artigo e buscando garantir que fosse possível percorrer outras abordagens da teoria crítica, deixamo-la de lado em nossa análise.
  • 9
    Basta, aqui, remeter à obra Eclipse da razão (Horkheimer, 2016/1946).
  • 10
    Habermas faz essa redução conceitual em Técnica e ciência como “ideologia” e a transporta também para sua Teoria da ação comunicativa (cf. Habermas, 2001, p. 57; também, Haddad, 1996, p. 229): “no discurso marxista, o trabalho não pode ser entendido como uma modalidade do agir instrumental”. As presentes considerações se referem exclusivamente ao trabalho assalariado – o trabalho ainda não organizado conforme o cálculo capitalista, o trabalho “pré-moderno”, por assim dizer, era desenvolvido no domínio da economia privada particular, na casa (“oikos”), sem relação com a interação intersubjetiva.
  • 11
    Logo ao início da parte em que apresenta diretamente os argumentos que o levam a distanciar-se da perspectiva de Marx, ele afirma: “Marx, que teve à disposição a Fenomenologia do espírito, mas não a Realphilosophie de Jena, retoma nos Manuscritos parisienses a ideia da luta por reconhecimento somente na versão estreita que havia assumido na dialética do senhor e o escravo; com isso, porém, ele sucumbiu, já no começo de sua obra, à tendência problemática de reduzir o espectro das exigências do reconhecimento à dimensão da autorrealização no trabalho" (Honneth, 2003, p. 230).
  • 12
    Ver, em especial, o capítulo 3 “Luta por reconhecimento: a teoria social da Realphilosophie de Jena”, em Honneth (2003, p. 69-114).
  • 13
    Em relação à interpretação de Mead cf., sobretudo, o capítulo 4 “Reconhecimento e socialização: Mead e a transformação naturalista da ideia hegeliana”, em Honneth (2003, p. 125-154).
  • 14
    “Sua proposta, porém, tinha de fracassar, porque a organização do trabalho social, mas mais ainda a avaliação das diversas realizações laborais, depende por seu lado de representações de valores éticos, que justamente como tais iriam ser neutralizadas com a referência às exigências técnicas” (Honneth, 2003, p. 280).
  • 15
    Observando-se instigantes desdobramentos contemporâneos dessa discussão, incluindo entre eles o conceito de desreconhecimento, pode-se confirmar o lugar secundário da categoria trabalho (Souza, 2018b). Para uma discussão mais ampla acerca do debate de Fraser e Honneth, ver Souza (2018a).

Referências

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  • 3 BACHUR, João Paulo. Intersubjetividade ou Solipsismo? Aporias da Teoria do Agir Comunicativo de Jürgen Habermas. Dados – Revista de Ciências Sociais, v. 60, n. 2, p. 541-575, 2017. https://doi.org/10.1590/001152582017128
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  • 4 BACHUR, João Paulo. Reificação como categoria crítica da teoria marxista. Cadernos CEMARX, v. 2, n. 2, p. 94-101, 2005. https://doi.org/10.20396/cemarx.v2i2.10828
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  • 5 BALIBAR, Étienne. La philosophie de Marx Paris: La Découverte, 2001.
  • 6 BECK, Ulrich. Schöne neue Arbeitswelt Frankfurt: Campus, 1999.
  • 7 BRESSIANI, Nathalie. Do trabalho ao reconhecimento: Axel Honneth entre Marx e Habermas. Cadernos de Filosofia Alemã, v. 25, n. 3, p. 13-34, 2020. https://doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v25i3p13-34
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  • 8 CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. São Paulo: Vozes, 1999.
  • 9 COHN, Gabriel. Crítica e resignação: Max Weber e a teoria social. São Paulo: Martins Fontes, 2003/1978.
  • 10 DEMIROVIĆ, Alex; STEINERT, Heinz. In memoriam Ludwig von Friedeburg (21.5.1924 – 17.5.2010). Soziologie, v. 39, n. 4, p. 485-492, 2010.
  • 11 ESPING-ANDERSEN, Gøsta. The three worlds of welfare capitalism Princeton: Princeton University, 1990.
  • 12 FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Umverteilung oder Anerkennung? Eine politisch-philosophische Kontroverse. Frankfurt: Suhrkamp, 2003.
  • 13 FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalism A conversation in critical theory. Cambridge: Polity, 2018.
  • 14 FRIEDEBURG, Ludwig von. Soziologie des Betriebsklimas Studien zur Deutung empirischer Untersuchungen in industriellen Großbetrieben. Frankfurt: Europäische Verlagsanstalt, 1963.
  • 15 GORZ, André. Metamorfoses do trabalho: crítica da razão econômica. São Paulo: Annablume, 2003.
  • 16 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia” Lisboa: Edições 70, 2001.
  • 17 HABERMAS, Jürgen. A nova intransparência: a crise do estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas. Novos Estudos CEBRAP, v. 18, p. 103-114, 1987.
  • 18 HADDAD, Fernando. Trabalho e linguagem Rio de Janeiro: Azougue, 2004.
  • 19 HADDAD, Fernando. De Marx a Habermas: o materialismo histórico e seu paradigma adequado. Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996. https://doi.org/10.11606/T.8.1996.tde-05082022-143202
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  • 20 HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento São Paulo: Editora 34, 2003/1992.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2023
  • Aceito
    09 Fev 2024
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