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Justiça, gênero e famílias em O direito da liberdade, de Axel Honneth: elementos para uma contribuição ao projeto honnethiano

Justice, gender and families in Axel Honneth's Freedom's Right: elements for a contribution to the Honnethian project

Resumo

Se é verdade que o pensamento político ocidental, em geral, tem conservado no anonimato o espaço doméstico e suas implicações público-políticas, mesmo depois das críticas feministas, também é verdade que este não parece ser o caso de Axel Honneth, pelo menos não em O direito da liberdade. Honneth se vale, neste livro, de um método todo próprio – a reconstrução normativa –, que lhe permite destilar critérios de justiça social diretamente das reivindicações normativas que se desenvolveram no interior de um conjunto multifacetado de esferas de ação, aí incluído o domínio das famílias. Neste artigo, procuro mostrar que um projeto normativo desse tipo não só promove a reflexão sobre as conexões entre justiça e famílias, como também suscita análises mais robustas e mais abrangentes sobre cenários nacionais específicos. Procuro ainda apresentar, por isso mesmo, alguns elementos para uma reconstrução normativa da esfera das famílias no Brasil, não sem chamar a atenção para o que parece um tanto negligenciado pelo próprio Honneth: as implicações muito desiguais da divisão sexual do trabalho para mulheres, homens e crianças. Procuro argumentar, por fim, que o programa honnethiano muito ganharia se também dialogasse com os estudos sobre divisão sexual do trabalho.

Palavras-chave
Teoria da Justiça; famílias; O direito da liberdade ; Axel Honneth

Abstract

If it is true that Western political thought, in general, keeps the domestic space and its public-political implications in anonymity, despite feminist criticism, it is also true that this does not seem to be the case for Axel Honneth, at least not in Freedom´s Right. Honneth employs, in this book, a specific method – normative reconstruction –, which allows him to distil criteria of social justice directly from the normative claims that have evolved within a multifaceted set of spheres of action, including the family sphere. In this article, I seek to show that a normative project of this type not only promotes reflection on the connections between justice and families, but also requires more robust and comprehensive analysis of specific national scenarios. I also seek to present, for this very reason, some elements for a normative reconstruction of the sphere of families in Brazil, not without drawing attention to what seems to be more or less neglected by Honneth: the very uneven implications of the sexual division of labor for women, men and children. I also argue that the Honnethian program would benefit from a dialog with studies on the sexual division of labor.

Keywords
Theory of Justice; Families; Freedom's Right ; Axel Honneth

Considerações iniciais1 1 O presente artigo retoma e desdobra pesquisa desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG, sob orientação do Professor Doutor Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, a quem agradeço profundamente. A ele dedico este texto.

O pensamento democrático parece mesmo habituado a subtrair a vida doméstica do campo de visão, como se a intimidade e as famílias se opusessem ao olhar investigativo, como se constituíssem “um objeto a ser não propriamente investigado, mas protegido” (Silva, 201345 SILVA, Felipe G. Um ponto cego no pensamento político? Teoria crítica e a democratização da intimidade. In: MELO, Rúrio (org.). A teoria crítica de Axel Honneth. Reconhecimento, liberdade e justiça. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 201-233., p. 201) ou como se “o altruísmo e a harmonia de interesses”, típicos das relações amorosas, as relegassem, todas elas, à irrelevância (Okin, 200437 OKIN, Susan M. The Public/Private Dichotomy. In: FARRELLY, Colin (org.) Contemporary Political Theory. London: Sage, 2004. p. 184-194., p. 188).2 2 Todas as citações de textos em língua estrangeira são traduções minhas. Assume-se ou postula-se, em geral, quase por toda parte, a ideia, certamente mais pressuposta do que problematizada, de que o público e o doméstico são mesmo domínios suficientemente separados e suficientemente distintos, o que tem justificado, segundo críticas feministas, o desinteresse generalizado pelo universo íntimo e familiar (Rosaldo, 198042 ROSALDO, Michelle. The Use and Abuse of Anthropology: Reflections on feminism and cross-cultural understanding. Signs: Journal of Women in Culture and Society, v. 5, n. 3, p. 389-417, 1980.; Okin, 200437 OKIN, Susan M. The Public/Private Dichotomy. In: FARRELLY, Colin (org.) Contemporary Political Theory. London: Sage, 2004. p. 184-194.; 200836 OKIN, Susan M. Gênero, o público e o privado. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2, p. 305-332, 2008.; Connolly, 201014 CONNOLLY, Julie. Love in the private: Axel Honneth, feminism and the politics of recognition. Contemporary Political Theory, v. 9, n. 4, p. 414-433, 2010.; Pateman, 201338 PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013. p. 55-79). Um emaranhado de processos, aspectos ou fenômenos distintivos de campos como o da intimidade e o das famílias, assim como a cadeia de implicações recíprocas entre o público e o doméstico, passam, ainda hoje – fora dos círculos feministas – mais ou menos despercebidos.

Se é verdade que a reflexão democrática – ressalvadas, certamente, algumas poucas exceções – tem deixado como que suspensas as questões íntimas e familiares, também é verdade que Axel Honneth aparece mais recentemente entre essas exceções. Em O direito da liberdade3 3 Das Recht der Freiheit - Grundriß einer demokratischen Sittlichkeit. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2011 (publicado em 2011) – seu livro mais importante desde Luta por reconhecimento –, Honneth (2014, p. 9)25 HONNETH, Axel. El derecho de la libertad: esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires: Katz Editores, 2014. se vale do modelo da Filosofia do Direito, de Hegel, para “reconstruir os princípios da justiça social diretamente na forma de uma análise da sociedade”. A ideia, ali, é “derivar critérios relevantes de justiça social diretamente das reivindicações normativas que se desenvolveram dentro das esferas de ação que são constitutivas das sociedades modernas” (Honneth, 201528 HONNETH, Axel. Rejoinder. Critical Horizons, v. 16, n. 2, p. 204-226, 2015., p. 206), o que demanda um conjunto muito robusto de argumentos e provas empíricas de diferentes áreas do conhecimento. Procurando articular teoria da justiça e análise social, Honneth não só faz da infraestrutura normativa de instituições sociais nucleares o seu ponto de ancoragem, como também inclui a intimidade e as famílias entre essas instituições, pois, do contrário, adverte ele, permaneceria como que imprecisa ou muito incompleta a questão das exigências da justiça social.

Com um projeto normativo alternativo desse tipo, que se impõe “a tarefa de desvelar as esferas de ação das sociedades do presente em toda sua extensão”, Honneth (2014, p. 171, grifo nosso)25 HONNETH, Axel. El derecho de la libertad: esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires: Katz Editores, 2014. mais promove do que interdita a reflexão sobre as conexões entre justiça e famílias, que se mostram, ali, no livro de 2011, como que incontornáveis. Os dilemas típicos das relações íntimas e familiares, assim como as muitas e variadas interações que intercorrem entre o público e o doméstico, invadem o debate sobre justiça. Mais ainda: ele observa essas relações todas de um ângulo específico, o da gramática do reconhecimento, e leva adiante a possibilidade de uma crítica interna a esses campos normativos. E, se assim o é, Honneth, como procuro mostrar, parece contornar em alguma medida lacunas sensíveis e muito persistentes do pensamento político que ainda insiste em conservar no anonimato o que se passa na trama doméstica, como se se tratasse de um campo marginal, secundário ou mesmo irrelevante para o debate sobre justiça e democracia, mas não só.

Ele assume mesmo dimensões da intimidade e das famílias como questões de justiça de primeira ordem, propondo, além disso, uma abordagem toda própria, cujo aparato teórico-metodológico pode ser sempre de novo retomado para se examinar mais de perto esses campos e as relações que neles têm lugar. Afinal, se Honneth emprega, ali, o método de “reconstrução normativa” que lhe permite “destilar reivindicações normativas de cada uma das várias esferas de ação” (Honneth, 201528 HONNETH, Axel. Rejoinder. Critical Horizons, v. 16, n. 2, p. 204-226, 2015., p. 206), também ele admite que, apesar de todos os argumentos e provas empíricas mobilizadas, “ainda há muito que fazer”, seja porque parece “necessário diferenciar todas as trajetórias evolutivas [...] de acordo com os caminhos adotados por cada nação”, seja porque o diagnóstico do presente também demanda “aprofundamento” (Honneth, 201425 HONNETH, Axel. El derecho de la libertad: esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires: Katz Editores, 2014., p. 10). Partindo dessa “sensação do inevitavelmente inacabado” de que fala Honneth (p. 10) – própria mesmo, aliás, de um projeto como o de uma teoria da justiça como análise da sociedade –, procuro apresentar alguns elementos para uma reconstrução normativa da trajetória socio-histórica da esfera das famílias no Brasil.

Assumindo o lugar das famílias em O direito da liberdade como objeto central de minha reflexão, divido o presente artigo em duas seções. Na primeira delas, procuro reconstruir algumas das críticas feministas à dicotomia liberal público/doméstico, binarismo que tem mesmo sustentado o desinteresse generalizado pela trama íntima e familiar. Na segunda e última seção, procuro mostrar que Honneth parece compartilhar, pelo menos em O direito da liberdade, muitas daquelas críticas: se falta ao pensamento político ocidental, em geral, dar o passo adicional de que tanto falam teóricas e ativistas feministas, o de prestar “atenção à política do que” ainda é visto “como paradigmaticamente não político” (Okin, 200836 OKIN, Susan M. Gênero, o público e o privado. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2, p. 305-332, 2008., p. 313), Honneth parece dar esse passo adicional no seu trabalho de fôlego mais recente. Feitas então essas considerações, todas elas elementares para os propósitos de minha investigação, procuro chamar a atenção, em especial, para as discussões sobre divisão sexual do trabalho que, a meu ver, parecem escapar às considerações de Honneth. Procuro argumentar, por fim, e também já a título de conclusão, que um possível desdobramento do empreendimento honnethiano muito ganharia se também dialogasse com os estudos sobre divisão sexual do trabalho.

Críticas feministas à dicotomia liberal público/doméstico

O liberalismo e o feminismo guardam relações íntimas e tensas porque, em primeiro lugar, compartilham certa “concepção dos indivíduos como seres livres e iguais, emancipados dos títulos hierárquicos e atribuídos da sociedade tradicional” (Pateman, 201338 PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013. p. 55-79, p. 55) – sem a qual não seriam mesmo concebíveis, nem um nem outro –, embora muito divirjam sobre a liberdade e a igualdade. A tradição de tensões e paradoxos entre uma e outra corrente se estende pelas críticas feministas à dicotomia entre o público e o doméstico,4 4 Se o Estado é paradigmaticamente público e a família paradigmaticamente privada, o mesmo não podemos dizer da sociedade civil, arena mais nebulosa: pública ou privada? Esta é uma das ambiguidades da oposição liberal público/privado denunciadas por teóricas feministas (Pateman, 2013; Okin, 2008; Biroli, 2012; Kritsch, 2012). Considerando que a dicotomia público/privado envolve pelo menos dois usos correntemente pouco explicitados – um primeiro que opõe Estado e sociedade e situa a sociedade civil na esfera privada, e um segundo que distingue vida não-doméstica e vida doméstica e situa a sociedade civil na esfera pública –, acompanho, aqui, Okin (2008, p. 307), cuja crítica se dirige à distinção público/doméstico, precisamente porque “é a permanência dessa dicotomia que torna possível aos teóricos ignorarem a natureza política da família, a relevância da justiça na vida pessoal e, consequentemente, uma parte central das desigualdades de gênero”. central para a teoria e a prática liberais. No debate que se arrasta pelos últimos duzentos anos sobre onde, por que ou mesmo se devemos traçar uma linha divisória entre as esferas da vida social,5 5 Criticar a dicotomia público/doméstico não significa rejeitar, necessariamente, a “utilidade” do conceito e do valor da privacidade para homens, mulheres e crianças. Não significa rechaçar, necessariamente, a “razoabilidade” de distinções de algum tipo e de algum nível entre as esferas. Também não significa assumir uma “identificação simples ou total do pessoal e do político” (Okin, 2004, p. 187), da qual se esquivam mesmo críticas feministas como as de Okin (2008; 2004) e Pateman (2013). Uma postura crítica desse tipo, em poucas palavras, não sugere “que a mediação entre a esfera privada e a esfera pública não [...] [seja] mais necessária: ela se faz de outra maneira” (Lamoureux, 2009, p. 212). teóricas feministas têm criticado não só a teoria liberal, mas “quase toda a teoria política”, porque, em geral, a definição e a discussão sobre o mundo público ou sobre a sociedade civil ignoram, privatizam, idealizam ou naturalizam o mundo doméstico, como se falássemos de um domínio quase que suspenso no tempo e no espaço. Como se – e o que por ora mais me interessa – “a própria definição de família – natureza das ligações e sexo dos parceiros –” não estivesse, ela mesma, sempre novamente em questão (Devreux, 200918 DEVREUX, Anne-Marie. Família. In: HIRATA, Helena et al. (org.) Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 96-101., p. 99).

A oposição liberal público/doméstico, acusam teóricas feministas, mais do que sugerir “uma distinção entre dois tipos de atividades sociais”, mais do que evocar um arranjo social específico, cujas esferas são regidas por princípios distintos, opostos, separados ou independentes (Pateman, 201338 PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013. p. 55-79, p. 55-56), encobre ou mesmo favorece relações de poder e de desigualdade, dentro e fora de casa (Rosaldo, 198042 ROSALDO, Michelle. The Use and Abuse of Anthropology: Reflections on feminism and cross-cultural understanding. Signs: Journal of Women in Culture and Society, v. 5, n. 3, p. 389-417, 1980.; Okin, 200437 OKIN, Susan M. The Public/Private Dichotomy. In: FARRELLY, Colin (org.) Contemporary Political Theory. London: Sage, 2004. p. 184-194.; 2008; Connolly, 201014 CONNOLLY, Julie. Love in the private: Axel Honneth, feminism and the politics of recognition. Contemporary Political Theory, v. 9, n. 4, p. 414-433, 2010.). E isso porque o discurso das esferas separadas se apoia sobre outro discurso, o “da diferença ‘natural’ entre os sexos, que distribui os papéis sociais segundo a filiação sexual” (Lamoureux, 200932 LAMOUREUX, Diane. Público/privado. In: HIRATA, Helena et al. (org.) Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 208-213., p. 211), como se passíveis, homens e mulheres, “de serem confundidos com a dupla categorização biologizante machos-fêmeas” (Kergoat, 200930 KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, Helena et al. (org.) Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 67-75., p. 71). Esses discursos, juntos, alertam pensadoras feministas, concorrem mesmo para a alocação muito desigual de recursos e oportunidades.

Se, por um lado, o pensamento político ocidental passa ao largo das relações íntimas e familiares, se subtrai essas relações do debate público e da agenda política, sobretudo porque assume ou postula a dicotomia público/doméstico, por outro lado, a reprodução de papéis sexuados nas famílias e as suas implicações extradomésticas mais refutam do que afirmam essa dicotomia, tão insistente quanto dissimuladora e, por isso mesmo, “central para quase dois séculos de escrita e luta feministas” (Pateman, 201338 PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013. p. 55-79, p. 55). Central, porque esse binarismo, geralmente esboçado em termos abstratos e a-históricos, obscurece processos socio-históricos que inauguram fronteiras muito bem definidas entre o chão da fábrica e o chão da casa, realocando territorialmente a produção econômica e diferenciando estruturalmente a economia familiar doméstica da economia orientada pelo lucro do capitalismo (Costa, 200415 COSTA, Jurandir F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004.; Davis, 201617 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.; Gama, 201419 GAMA, Andréa de S. Trabalho, família e gênero. Impactos do Direito do Trabalho e da Educação Infantil. São Paulo: Cortez Editora, 2014.).

Com o encobrimento desses processos socio-históricos, acusam teóricas e ativistas feministas, perdemos mesmo de vista a cadeia de implicações recíprocas entre a esfera doméstica e as esferas não domésticas. Como que nos escapa que a família passa a evocar ou reproduzir, nesse meio-tempo, lembra-nos Biroli (2012, p. 220)8 BIROLI, Flávia. Gênero e família em uma sociedade justa. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia (org.). Teoria política e feminismo: abordagens brasileiras. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012, p. 211-242., as descontinuidades entre as esferas da vida social, mas, também, as continuidades entre elas: a família passa a organizar “a intimidade, na esfera privada, em torno de valores para os quais é central a domesticidade feminina”, em contraposição às relações travadas fora de casa, na esfera pública, ali onde teria lugar “a interação entre indivíduos igualmente livres”. Mas a família também passa a diferenciar “os papéis de homens e mulheres em cada uma dessas esferas” e tornar “complementares a participação dos homens na esfera pública” e a das mulheres na esfera doméstica. Perdemos, assim, no mais das vezes, a própria “história das conexões entre a separação da produção em relação ao agregado familiar e o surgimento da família como paradigmaticamente privada” (Pateman, 201338 PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013. p. 55-79, p. 61), como se a produção mercantil e a reprodução da vida não fossem, elas mesmas, dimensões inter-relacionadas, como se público e doméstico não se alimentassem reciprocamente, não se ressignificassem mutuamente ou não estivessem sob influências cruzadas as mais diversas. E como se essa interdependência, nas suas formas mais correntes, não produzisse e reproduzisse hierarquias e desigualdades de todo tipo, afinal, as “relações entre as esferas pública e privada”, mesmo aquelas “estabelecidas em ações cotidianas banais”, escreve Costa (2002, p. 308)16 COSTA, Suely G. Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 2, p. 301-323, 2002., “formatam desigualdades sociais”.

A dicotomia liberal público/doméstico, pelas lentes feministas, opera, assim, como dispositivo de dissimulação da forma específica de divisão sexual do trabalho que emerge com o desenvolvimento do capitalismo. Ela encobre não só essa forma específica de divisão sexual do trabalho, como também as concepções convencionais do feminino e do masculino que ela carrega e os constrangimentos ou limitações que impõe à liberdade das mulheres, não só na esfera familiar, esta mesma permeada por relações de poder e por iniquidades específicas. Como se fossem marginais ou mesmo naturais processos socio-históricos que empurram as mulheres ou para ocupações segregadas, em geral desprestigiadas e mal pagas, ou para o espaço doméstico, onde assumiriam o seu lugar “natural”, o de esposa-mãe-dona de casa devotada (Costa, 200216 COSTA, Suely G. Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 2, p. 301-323, 2002.; Costa, 200415 COSTA, Jurandir F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004.; Rago, 201440 RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista. Brasil 1890-1930. São Paulo: Paz e Terra, 2014.; Cattoni de Oliveira; Marques, 202010 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MARQUES, Stanley S. Contribuições para uma reconstrução crítica da gramática moderna da maternidade. Revista Estudos Feministas, v. 28, n. 2, p. 1-16, 2020.).

O binarismo liberal público/doméstico mascara, ainda, advertem teóricas feministas, o caráter inescapavelmente político de uma diferenciação entre dois tipos de esferas, uma sujeita e a outra alheia ao escrutínio democrático, como se aspectos fundamentais da vida íntima e familiar não fossem, também eles, constitucional e democraticamente condicionados. Como se a “alocação de responsabilidades” intrafamiliares, por exemplo, não fosse “institucionalizada” ou não tivesse relação com “decisões políticas” (Biroli, 20185 BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 66). Ou como se o afeto não fosse objeto de uma série de regulamentações jurídicas; “[q]uem pode se casar com quem, quem é legalmente o filho de quem, com que fundamento os casamentos podem ser dissolvidos e se ambos os cônjuges ou apenas um deve consentir em sua dissolução são” apenas alguns poucos exemplos de questões doméstico-familiares definidas pela legislação (Okin, 200437 OKIN, Susan M. The Public/Private Dichotomy. In: FARRELLY, Colin (org.) Contemporary Political Theory. London: Sage, 2004. p. 184-194., p. 189). E mais: como se tudo isso não se mostrasse, é verdade, de uma perspectiva histórica, especialmente vantajoso “para quem pode exercer poder e agredir, amparado na conjugalidade e em laços vistos como naturais e amorosos” (Biroli, 20185 BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 113); o que ajuda mesmo a explicar por que o pensamento e a prática feministas têm procurado subverter a dicotomia liberal público/doméstico,6 6 A reivindicação feminista de que “o pessoal é político” reúne, a propósito, muitas das críticas dirigidas à dicotomia liberal público/doméstico. Com uma reivindicação desse tipo, de caráter polissêmico (Lamoureux, 2009, p. 211) e “central” para a maior parte do feminismo contemporâneo (Okin, 2004, p.186), feministas afirmam, por um lado, que “o que acontece na vida pessoal, particularmente nas relações entre os sexos, não é imune em relação à dinâmica de poder, que tem tipicamente sido vista como a face distintiva do político,” e, por outro, que não se discutem os domínios doméstico e não doméstico “em termos de suas estruturas e práticas, suposições e expectativas, divisão do trabalho e distribuição de poder, [...] sem uma referência constante ao outro” (Okin, 2008, p. 314). Varikas (2013, p.181), na mesma direção, atribui a força da máxima “o pessoal é político” à “sua capacidade de evidenciar a dominação oculta em relações consideradas como parte da natureza humana”, à “suspeição que levantou sobre domínios e instituições consideradas ao abrigo do político” e a “seu espírito de utopia.” reafirmando as relações que intercorrem entre um e outro, muitas vezes a partir de uma perspectiva interna ao campo das famílias, ainda amplamente marginalizado pelo pensamento político ocidental.

O desinteresse generalizado pela vida doméstica tem levado gerações de teóricas feministas a projetar na família uma dimensão central da política do feminismo e da teoria feminista (Okin, 200836 OKIN, Susan M. Gênero, o público e o privado. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2, p. 305-332, 2008., p. 313). Tem levado mesmo o pensamento feminista a tomar como seu alvo preferencial “a redefinição moderna da família como ‘base de apoio natural para a formação de laços de convenção’, uma definição”, alertam muitas feministas, “que neutraliza o potencial subversivo da percepção artificial, voluntária, convencional da sociedade moderna” (Varikas, 201348 VARIKAS, Eleni. “O pessoal é político”: desventuras de uma promessa subversiva. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013. p. 173-193., p. 173, grifo da autora). Por diferentes ângulos de análise e em uma variedade de campos disciplinares, essas teóricas têm explorado os impactos da dinâmica familiar na socialização e constituição dos sujeitos, na formulação e perseguição de seus projetos de autorrealização. Têm explicitado os desdobramentos das relações familiares sobre a integridade, a dignidade e a autonomia de mulheres, homens e crianças. Têm posto em discussão as definições mesmas de política, de democracia e de justiça, não sem recorrer às experiências históricas das mulheres e não sem dialogar com os movimentos feministas. Essas teóricas têm diagnosticado, em momentos e contextos os mais diversos, que a maioria das “oportunidades para o prestígio e influência pública, a capacidade para forjar relações, determinar inimizades, falar em público, usar ou renunciar ao uso da força” aparecem mesmo “como um privilégio e direito masculinos” (Rosaldo, 198042 ROSALDO, Michelle. The Use and Abuse of Anthropology: Reflections on feminism and cross-cultural understanding. Signs: Journal of Women in Culture and Society, v. 5, n. 3, p. 389-417, 1980., p. 394) e que parte disso se deve a um tipo específico de organização da esfera doméstico-familiar, o que faz dela uma “questão de justiça” e um “problema político” (Biroli, 20176 BIROLI, Flávia. Teorias feministas da política, empiria e normatividade. Lua Nova, n. 102, p. 173-210, 2017., p. 191).

Dizer que a família se tornou alvo preferencial da ofensiva feminista não significa dizer, contudo, que teóricas e ativistas feministas ou, pelo menos, que a maioria delas abra mão da família. A crítica se dirige, antes, contra uma versão específica da família, aquela estruturada pelo gênero e desproporcionalmente desvantajosa para as mulheres. Critica-se aquele modelo familiar tantas vezes registrado ou mesmo satirizado pela literatura de autoria feminina brasileira (Lispector, 200933 LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.; Piñon, 201639 PIÑON, Nélida. A camisa do marido. Rio de Janeiro: Record, 2016.; Almeida, 20191 ALMEIDA, Júlia Lopes de. A falência. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.): “[m]uitas [feministas] defendem que a ‘família’ seja definida de modo a incluir qualquer grupo intimamente conectado e comprometido, endossando especificamente o casamento homossexual”. A maioria delas, “certamente, se recusa a aceitar que a escolha deva ser entre aceitar o duplo fardo das mulheres e abolir a família.” Elas recusam-se, pois, “a desistir da instituição da família e a aceitar a divisão do trabalho entre os sexos como natural e imutável” (Okin, 200437 OKIN, Susan M. The Public/Private Dichotomy. In: FARRELLY, Colin (org.) Contemporary Political Theory. London: Sage, 2004. p. 184-194., p. 185). Critica-se, enfim, por diferentes lentes, uma concepção específica de família: aquela que assume esse complexo institucional como domínio paradigmático “do feminino, do ‘comezinho’, da servidão às necessidades de sobrevivência do organismo”, lugar do “exercício da tirania [...], com mulheres e filhos”, em oposição ao espaço público, tomado como a arena por excelência das “relações livres para o exercício da persuasão” (Sawaia, 201844 SAWAIA, Bader B. Família e afetividade: a configuração de uma práxis ético-política, perigos e oportunidades. In: ACOSTA, Ana R.; VITALE, Maria Amalia F. (org.). Família: redes, laços e políticas públicas. São Paulo: Cortez/Instituto de Estudos Especiais – PUC/SP, 2018. p. 55-67., p. 57).

A representação idílica da família como uma esfera puramente de afetos, como se a afetividade suprimisse o conflito – como parece sugerir boa parte da produção teórica –, dá lugar, assim, em abordagens feministas, a uma outra representação, particularmente mais complexa, porque contingente, artificial, tensa e contraditória, na qual liberdade, solidariedade, violência, hierarquias, iniquidades, desigualdades materiais e simbólicas se cruzam e se superpõem ou na qual a cooperação e o conflito ocupam lugar especialmente destacado. Conjuntos monolíticos dão lugar, então, a espaços intermediários. Interessam àquelas teóricas os laços de família que protegem, mas também constrangem os sujeitos, sobretudo os do sexo feminino, como registrados mesmo por textos ficcionais de autoria feminina brasileira, no mais das vezes, provocativamente, é verdade, como os de Júlia Lopes de Almeida (2019)1 ALMEIDA, Júlia Lopes de. A falência. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., Clarice Lispector (2009)33 LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.7 7 Muitos dos contos de Laços de família, de Clarice Lispector, parecem antes registros críticos da domesticidade feminina, o que faz dessa obra, publicada originalmente em 1960, “um marco no tratamento ficcional do tema da família” (Xavier, 2006), e cuja influência alcança escritoras como Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon. Fiquemos, por ora, em apenas um dos contos dessa coletânea: Uma galinha. A domesticidade feminina aparece, ali, mas não só ali, como princípio de muitas das tensões familiares. Acompanhamos, no conto, a fuga vacilante de uma ave, logo interditada pelo dono da casa; uma metáfora do cotidiano da família nuclear burguesa. “Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga”. Devolvida à cozinha, de onde inadvertidamente fugira, “[d]e pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta”. Como que “nascida [...] para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. [...] Esquentando seu filho, esta não era nem suave, nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha”. A família, maravilhada com o acontecimento, atribui-lhe novo status, “a galinha torna-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam” (Lispector, 2009, p. 31-32). e Nélida Piñon (2016)39 PIÑON, Nélida. A camisa do marido. Rio de Janeiro: Record, 2016.; ali onde encontramos um emaranhado de aspectos ou fenômenos familiares nada fictícios.8 8 Compartilho com Axel Honneth a ideia de que tomar romances e obras de arte como “testemunhos fenomenológicos de certas estruturas da vida cotidiana” confere aos nossos escritos “uma certa base empírica, que não [...] [se pode] obter da pesquisa empírica em sociologia, porque essa pesquisa é muitas vezes quantitativa demais e não é sensível o suficiente às nuances da vida cotidiana” (Marcelo, 2013, p. 215).

Teóricas feministas têm questionado, por tudo isso, e já há muito tempo, se a desatenção às injustiças intrafamiliares, apoiada sobre a dualidade público/doméstico, não coloca em xeque as pretensões liberais mais fundamentais, a saber, a autonomia e a igual oportunidade. Elas têm indagado se a própria noção liberal de autonomia, que conjuga individualidade da liberdade com isolamento pessoal, mesmo em suas versões mais sofisticadas, como em John Rawls, não parece antes desgastada se levada a sério a posição das mulheres nas relações de poder generificadas. Ou se levadas a sério as conexões entre o público e o doméstico, que têm se mostrado, nas suas formas mais correntes, muito “profundas”, muito “difusas” e muito desiguais para homens e mulheres (Okin, 200437 OKIN, Susan M. The Public/Private Dichotomy. In: FARRELLY, Colin (org.) Contemporary Political Theory. London: Sage, 2004. p. 184-194., p. 186); senão, vejamos.

As experiências cotidianas de mulheres e homens concretos, por um lado, evocam a “separação sexuada e topográfica entre privado e público” (Varikas, 201348 VARIKAS, Eleni. “O pessoal é político”: desventuras de uma promessa subversiva. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013. p. 173-193., p. 173), mas, por outro, contradizem essa mesma desconexão: “[a] separação do público e do privado faz parte das nossas vidas reais, ao mesmo tempo que é uma mistificação ideológica da realidade liberal-patriarcal” (Pateman, 201338 PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013. p. 55-79, p. 71). A distribuição de renda, emprego, bens e serviços impacta a liberdade dos sujeitos e o universo de escolhas disponíveis no ambiente doméstico, assim como a organização da esfera doméstico-familiar condiciona o acesso de homens e de mulheres a cargos e rendimentos e o arranjo mesmo de instituições e de políticas públicas. Dois exemplos são elucidativos dessas conexões: “a presunção de que o principal provedor em qualquer família é um pai com responsabilidades domésticas limitadas ainda é feita por políticas públicas”, e mais: “na maioria das vezes, as práticas de emprego continuam a presumir que os funcionários não têm responsabilidades de cuidado significativas que poderiam interromper sua disponibilidade para o trabalho” (Connolly, 201014 CONNOLLY, Julie. Love in the private: Axel Honneth, feminism and the politics of recognition. Contemporary Political Theory, v. 9, n. 4, p. 414-433, 2010., p. 421). Se, por um lado, a articulação historicamente forjada entre natureza, feminilidade, maternidade, cuidado e domesticidade (Cattoni de Oliveira; Marques, 202010 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MARQUES, Stanley S. Contribuições para uma reconstrução crítica da gramática moderna da maternidade. Revista Estudos Feministas, v. 28, n. 2, p. 1-16, 2020.) embaraça o acesso das mulheres ao mercado de trabalho e ao espaço da política institucionalizada, por outro, a construção moderna da paternidade como provimento material (Cattoni de Oliveira; Marques, 201712 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MARQUES, Stanley S. Direito fundamental à licença-paternidade e masculinidades no Estado Democrático de Direito. Revista Culturas Jurídicas, v. 4, n. 9, p. 222-248, 2017.) não só não cria obstáculos como favorece o trânsito dos homens no mercado de trabalho, no espaço da representação política e na intimidade do lar: “o dinheiro ‘do marido’ desdobra-se em formas de valorização e de exercício de poder nas esferas não doméstica e doméstica”, muito diferente do “exercício contido do cuidado com a família e do suporte à vida profissional do homem”, que se desdobra “em restrições a uma atuação exitosa da mulher em outras esferas” (Biroli, 20137 BIROLI, Flávia. Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática. Vinhedo/Niterói: Editora Horizonte/Eduff, 2013., p. 143).

Se o pensamento político ocidental tem se mostrado incapaz de lidar não só com as transformações democráticas, mas também com as injustiças que encontram no universo íntimo-familiar condições favoráveis de reprodução; se, passa-lhe despercebido o caráter político-moral da intimidade e das famílias; se não enxerga ou não quer enxergar a família como um campo conflagrado por disputas de todo tipo, para o qual convergem a reprodução de relações desiguais entre gêneros e entre gerações e a transformação democrática dessas mesmas relações, falta-lhe dar o passo adicional de que tanto falam teóricas e ativistas feministas, o de levar suficientemente a sério as relações íntimas e familiares, assim como os múltiplos fios que as conectam a um emaranhado muito complexo de relações sociais: “o feminismo contemporâneo, portanto, coloca um desafio significativo à suposição que vem há muito tempo sustentando boa parte das teorias políticas”, a saber, “a de que a esfera da família e da vida pessoal é tão separada e distinta do resto da vida social que essas teorias poderiam legitimamente ignorá-la” (Okin, 200836 OKIN, Susan M. Gênero, o público e o privado. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2, p. 305-332, 2008., p. 313). Honneth, em O direito da liberdade, sua obra de fôlego mais recente, parece dar esse passo adicional, como procurarei mostrar imediatamente a seguir.

Justiça, gênero e famílias em cena em O direito da liberdade, de Axel Honneth

Honneth (2014, p. 9-10)25 HONNETH, Axel. El derecho de la libertad: esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires: Katz Editores, 2014., em O direito da liberdade, vale-se do modelo da Filosofia do Direito, de Hegel, para “reconstruir os princípios da justiça social diretamente na forma de uma análise da sociedade”. Um projeto normativo alternativo desse tipo, escreve ele já no prólogo do livro de 2011 – antecipando a primeira e provavelmente a mais importante de suas quatro premissas –, deve poder conceber as esferas sociais constitutivas de sociedades modernas como “encarnações institucionais de determinados valores, cuja pretensão imanente de realização pode servir como indicação dos princípios de justiça específicos de cada esfera”. Deve poder conceber, também – acrescenta ele, mais uma vez com Hegel – uma fusão entre o conjunto desses valores e um outro valor, a liberdade, de caráter inescapavelmente polissêmico, e que funcionaria mesmo como uma espécie de “metavalor” (McNay, 201535 McNAY, Lois. Social freedom and progress in the family: reflections on care, gender and inequality. Critical Horizons, v. 16, n. 2, p. 170-186, 2015., p. 172). Em sociedades liberal-democráticas modernas, e este é o diagnóstico de Honneth (2014, p.10)25 HONNETH, Axel. El derecho de la libertad: esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires: Katz Editores, 2014., “cada esfera [...] corporifica [...] um determinado aspecto de nossa experiência de liberdade individual”.

A “noção moderna de justiça se fragmenta, assim”, continua Honneth (2014, p. 10)25 HONNETH, Axel. El derecho de la libertad: esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires: Katz Editores, 2014., “em tantos pontos de vista quantas são as esferas que institucionalizam uma promessa de liberdade”. Se “em cada um desses sistemas de ação, comportar-se ‘de maneira justa’ frente ao outro significa algo distinto, já que para a realização da liberdade prometida são necessárias, em cada caso, condições sociais especiais e contemplações mútuas”, uma teoria da justiça como análise da sociedade, tal como ele propõe, deve mesmo explicitar tanto quanto possível o que significa, em cada caso, comportar-se de maneira justa. Se uma rede complexa de práticas e instituições concretas corporifica os princípios mais basilares, sedimentando “determinados contextos de socialização”, no seio dos quais os sujeitos podem exercer tipos específicos de liberdade, sempre e somente nas interações interpessoais cotidianas, é deles – desses “contextos de socialização” –, afinal, que “uma teoria crítica da justiça deve partir na reconstrução de seus princípios normativos” (Werle, 201650 WERLE, Denílson Luis. Reconhecimento e autonomia na teoria da justiça de Axel Honneth. Síntese, v. 43, n. 137, p. 401-420, 2016., p. 409).

Com uma teoria da justiça desse tipo – que procura “um suporte mais concreto, ancorado em práticas sociais e instituições, para a realização da liberdade individual” (Werle; Melo, 200751 WERLE, Denílson Luis; MELO, Rúrion S. Teoria crítica, teorias da justiça e a “reatualização” de Hegel. In: HONNETH, Axel. Sofrimento de indeterminação: uma reatualização da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Editora Singular, Esfera Pública, 2007. p. 7-44., p. 36) – Honneth (2014, p. 13-14)25 HONNETH, Axel. El derecho de la libertad: esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires: Katz Editores, 2014. se desvia daquilo que para ele constitui “[u]ma das grandes limitações de que padece a filosofia política contemporânea”. Ele se refere, aqui, a teorias da justiça no mais das vezes caducas de análises da sociedade ou desprovidas de qualquer exploração empírica. Nesses casos, os princípios normativos “pelos quais se deve mensurar a legitimidade moral do ordenamento social” não são “desenvolvidos com base na estrutura institucional existente, mas a partir de dispositivos independentes dela, de maneira autônoma”. Honneth, por sua vez, e muito a seu modo, certamente, procura senão se esquivar desse esquema ainda muito corrente no campo das teorias da justiça (Sobottka, 201346 SOBOTTKA, Emil A. Liberdade, reconhecimento e emancipação: raízes da teoria da justiça de Axel Honneth. Sociologias, n. 33, p. 142-168, 2013.; Marcelo, 201334 MARCELO, Gonçalo. Recognition and Critical Theory today: An interview with Axel Honneth. Philosophy and Social Criticism, v. 39, n. 2, p. 209-221, 2013.; Zurn, 201553 ZURN, Christopher. Axel Honneth: A critical theory of the social. Cambridge: Polity Press, 2015.; McNay, 201535 McNAY, Lois. Social freedom and progress in the family: reflections on care, gender and inequality. Critical Horizons, v. 16, n. 2, p. 170-186, 2015.; Werle, 201650 WERLE, Denílson Luis. Reconhecimento e autonomia na teoria da justiça de Axel Honneth. Síntese, v. 43, n. 137, p. 401-420, 2016.; Souza, 201747 SOUZA, Luiz Gustavo da C. de. Do reconhecimento recíproco à sociedade efetivamente social. Civitas, v. 17, n. 3, p. a98-a114, 2017.). Ele reorienta a teoria normativa na direção do mundo social, provocando com isso uma guinada social no debate contemporâneo sobre justiça; mas não só.

Honneth procura reconstruir normativamente a trajetória socio-histórica de um conjunto de âmbitos da vida social, com o propósito mesmo de testar, em cada caso, o grau de realização da promessa interna de liberdade (Sobottka, 201346 SOBOTTKA, Emil A. Liberdade, reconhecimento e emancipação: raízes da teoria da justiça de Axel Honneth. Sociologias, n. 33, p. 142-168, 2013.; Werle, 201650 WERLE, Denílson Luis. Reconhecimento e autonomia na teoria da justiça de Axel Honneth. Síntese, v. 43, n. 137, p. 401-420, 2016.; Souza, 201747 SOUZA, Luiz Gustavo da C. de. Do reconhecimento recíproco à sociedade efetivamente social. Civitas, v. 17, n. 3, p. a98-a114, 2017.). Move-se, assim, seguramente, na contramão de teorias puramente normativas. Mas Honneth (2015, p. 206)28 HONNETH, Axel. Rejoinder. Critical Horizons, v. 16, n. 2, p. 204-226, 2015. não só se vale do método de “reconstrução normativa”, que lhe permite “destilar reivindicações normativas de cada uma das várias esferas de ação”, como também combate “o monopólio jurídico sobre as esferas de relacionamento pessoal”. Honneth “alarga os campos sociais submetidos à investigação democrática,” apresentando domínios como o da intimidade e o das famílias como “esfera[s] de efetivação da liberdade social, a ser[em] liberada[s] de uma submissão necessária às figuras da tutela privada” (Silva, 201345 SILVA, Felipe G. Um ponto cego no pensamento político? Teoria crítica e a democratização da intimidade. In: MELO, Rúrio (org.). A teoria crítica de Axel Honneth. Reconhecimento, liberdade e justiça. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 201-233., p. 215). Campos sociais como o da intimidade e o das famílias aparecem ali, em O direito da liberdade, entre aquelas práticas e instituições, no interior das quais, sob condições favoráveis, os sujeitos podem identificar a si mesmos e os seus objetivos “como a contraparte do outro”, o que faz da liberdade ali, mas não só ali, uma experiência “intersubjetivamente partilhada” (Souza, 201747 SOUZA, Luiz Gustavo da C. de. Do reconhecimento recíproco à sociedade efetivamente social. Civitas, v. 17, n. 3, p. a98-a114, 2017., p. a1030).

Se a esfera das famílias ainda “é claramente pressuposta” pelo pensamento político ocidental, por exemplo, “quando se pensa no fato de que os teóricos políticos tomam como sujeitos de suas teorias seres humanos maduros, independentes, sem explicar como chegam a ser assim” (Okin, 200836 OKIN, Susan M. Gênero, o público e o privado. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2, p. 305-332, 2008., p. 309); se muitos dos teóricos se limitam “ao estudo daquilo que foi definido, em uma era pré-feminista, como legitimamente político” (Okin, 200836 OKIN, Susan M. Gênero, o público e o privado. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2, p. 305-332, 2008., p. 320); se eles pouco ou nada dizem sobre as famílias, que, em geral, operam “fora do âmbito das teorias políticas” (p. 311); se os teóricos de fora dos círculos feministas tendem a “proteger [...] [essa] esfera significante da vida humana (e especialmente da vida das mulheres) do exame atento ao qual o político é submetido” (p. 315); se a conceptualização bastante difundida da “família como algo fora do mundo” leva a “pensar que coisas como amor e altruísmo, gênero, a organização do parentesco e a textura da vida familiar não podem ser entendidas adequadamente nos mesmos termos” usados “para analisar a sociedade como um todo” (Rosaldo, 198042 ROSALDO, Michelle. The Use and Abuse of Anthropology: Reflections on feminism and cross-cultural understanding. Signs: Journal of Women in Culture and Society, v. 5, n. 3, p. 389-417, 1980., p. 407-408); se “um modo de pensamento [ainda muito corrente] [...] vê em todos os grupos domésticos um campo afetivo e altruístico imutável – em oposição aos laços mais contingentes que compõem ordens sociais mais englobantes” (p. 416); se as “preocupações acerca da justeza das práticas sociais e das instituições políticas não se estendem, de modo geral, ao mundo privado” (Kritsch, 201331 KRITSCH, Raquel. O gênero do público. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia (org.). Teoria política e feminismo: abordagens brasileiras. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012. p. 17-45., p. 23); se pouco se diz sobre como se estabelecem as relações intrafamiliares e como elas se conectam “com as relações de poder em outras esferas”, mesmo quando a família aparece “como instituição central à socialização dos indivíduos e, como tal, à definição das relações e valores que organizam uma dada sociedade” (Biroli, 20128 BIROLI, Flávia. Gênero e família em uma sociedade justa. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia (org.). Teoria política e feminismo: abordagens brasileiras. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012, p. 211-242., p. 213), Honneth, em O direito da liberdade, move-se na direção contrária desse esquema tão combatido pelo pensamento e pela prática feministas. Ele faz da dicotomia liberal público/doméstico, como o fazem teóricas feministas, um de seus alvos preferenciais. Honneth situa no centro do debate sobre justiça questões como amor, intimidade, cuidado e sexualidade, porque sujeitas, todas elas, “à autodeterminação democrática” (Silva, 201345 SILVA, Felipe G. Um ponto cego no pensamento político? Teoria crítica e a democratização da intimidade. In: MELO, Rúrio (org.). A teoria crítica de Axel Honneth. Reconhecimento, liberdade e justiça. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 201-233., p. 215).

A vida íntima e familiar, em O direito da liberdade, é mais discutida do que pressuposta, é mais politizada e historicizada do que naturalizada, e sua justiça interna, decididamente, importa. Honneth procura esquadrinhar as concepções que os próprios sujeitos elaboram e reelaboram, não sem tensões e contradições, sobre intimidade e família, cujos contornos institucionais se mostram artificiais, contingentes e situados. Ele dirige sua atenção para as relações historicamente forjadas por homens, mulheres e crianças. Reconstrói a trajetória socio-histórica de uma esfera social fabricada por esses homens, por essas mulheres e por essas crianças, no interior da qual se definem, são definidos, organizam suas vidas e suas reivindicações políticas e exercem um tipo específico de liberdade nas interações interpessoais cotidianas. A definição, a disposição e a distribuição dos papéis das mulheres, dos homens e das crianças no seio do complexo institucional das famílias aparecem, antes, como produto de relações sociais em sociedades históricas concretas. Mais ainda: o próprio processo de definição, disposição e distribuição dos papéis intrafamiliares aparece ali, em O direito da liberdade, como que condicionado por fenômenos e processos que operam muito longe dali, nas esferas não domésticas. Honneth, assim, em poucas palavras, nem suspende nem se antecipa à realidade intrafamiliar e às suas múltiplas conexões com outros tantos campos sociais.

Se o liberalismo político, “cujos princípios ainda hoje balizam a autocompreensão normativa de nossas sociedades” e, ressalvadas algumas poucas exceções, como John Rawls,9 9 Em Uma teoria da justiça, Rawls (2008, p. 8) inclui a “família monogâmica” na estrutura básica da sociedade, ainda que de forma particularmente ambígua. Ele se dirige à família em diferentes ocasiões, mas sem jamais discutir sua justiça interna. Rawls segue de perto, por exemplo, as correlações entre o problema da estabilidade, a aquisição do senso de justiça pelos membros de uma sociedade bem-ordenada e as dinâmicas específicas da família (p. 571-583), cuja justiça é mais uma vez pressuposta: a família operária, segundo Rawls, como uma “escola primária da justiça” (Biroli, 2012, p. 226) ou uma “escola de ensinamentos morais” (2013, p. 144), aspecto, a propósito, também realçado por Honneth, muito a seu modo, certamente, quando reconstrói a trajetória socio-histórica da esfera das famílias em O direito da liberdade. “deixou sempre à margem toda a esfera familiar e de criação dos filhos”, “se a considerou como historicamente dada” e, mais, “se não refletiu mais profundamente sobre as condições a partir das quais ela poderia contribuir para a reprodução político-moral das sociedades”, Honneth (2014, p. 229-230)25 HONNETH, Axel. El derecho de la libertad: esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires: Katz Editores, 2014., diferentemente, muito se interessa pela “constituição interna das famílias”, pelas “condições de socialização sob as quais as crianças podem se converter em futuros cidadãos”. Reconhece o “valor democrático que tem uma criação plena de atenção e amor”. Assume o “significado político-moral da esfera familiar”, indissociável, ele mesmo, a propósito, da oportunidade nela inscrita de qualificação de seus membros para o individualismo cooperativo. Em uma teoria da justiça como a de Honneth, que procura reconstruir as condições sociais de existência da liberdade em toda a sua extensão, não há lugar para premissas liberais que tomam “a esfera familiar [...] como uma magnitude simplesmente dada na estrutura de sociedades modernas”, como se passível de ser pensada fora do tempo e do espaço, mas não só.

Se é verdade que o tipo de teoria da justiça que emerge de O direito da liberdade, como já sugeri, “não toma a forma de um conjunto definitivo de princípios morais, mas de um processo contínuo e perpetuamente inacabado de autoescrutínio social e ético conduzido em nome de um potencial normativo parcialmente instanciado” (McNay, 201535 McNAY, Lois. Social freedom and progress in the family: reflections on care, gender and inequality. Critical Horizons, v. 16, n. 2, p. 170-186, 2015., p. 171), também é verdade que é o próprio empreendimento honnethiano que demanda novos achados sociológicos, novas pesquisas concretas, novas investigações empíricas que possam, assim, e pouco a pouco, compor um quadro teórico e normativo mais atualizado, mais abrangente e mais robusto, sobretudo quando em jogo diferentes cenários nacionais; o que me leva a sugerir, então, imediatamente a seguir, com Honneth, mas não só com Honneth, uma reconstrução normativa da trajetória socio-histórica da esfera das famílias no Brasil.

Elementos para um desdobramento do programa honnethiano

Honneth (2014, p. 11)25 HONNETH, Axel. El derecho de la libertad: esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires: Katz Editores, 2014. procura reconstruir normativamente, como já sugeri, processos socio-históricos de realização conflituosa e não linear de uma série de princípios de justiça, o que lhe possibilita iluminar muitas das oportunidades já inscritas ou já disponíveis nas esferas sociais modernas mais fundamentais, assim como os desenvolvimentos errados ou patologias que cercam essas mesmas esferas. A ideia, pois, em O direito da liberdade, é mesmo tentar reconstruir, “de forma idealizadora, aqueles conflitos e desacordos sociais até então travados pela correta interpretação e realização das normas tacitamente aceitas por todos os participantes como subjacentes às diversas esferas de atuação”. E “isso é feito na esperança de que, em cada uma das trajetórias que podemos reconstruir a partir dos desenvolvimentos que essas lutas produzem [...], possamos traçar uma linha de progresso moral”, que tanto “nos diz qual das reivindicações normativas implícitas já foram realizadas”, como “também o que devemos fazer agora para realizá-las de forma mais completa e adequada”. Com um expediente metodológico desse tipo, Honneth (2015, p. 206)28 HONNETH, Axel. Rejoinder. Critical Horizons, v. 16, n. 2, p. 204-226, 2015. acredita poder identificar, também ali, em que ponto essa “linha de progresso moral” é abandonada, é dizer, onde a aplicação mais compreensiva e mais apropriada das normas típicas dos complexos de ação é corrompida, degradada ou gravemente ameaçada.

Um empreendimento de fôlego desse tipo mobiliza, é verdade, um conjunto muito robusto de argumentos e provas empíricas de diferentes áreas do conhecimento, como mostra, sobretudo, a terceira e mais longa seção de O direito da liberdade, a “realidade da liberdade”; o que não impede Honneth de admitir, já no prólogo do livro de 2011, que “ainda há muito que fazer”, seja porque parece “necessário diferenciar todas as trajetórias evolutivas [...] de acordo com os caminhos adotados por cada nação”, seja porque o diagnóstico do presente também demanda “aprofundamento”. Essa “sensação do inevitavelmente inacabado” de que fala Honneth (2014, p. 10)25 HONNETH, Axel. El derecho de la libertad: esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires: Katz Editores, 2014., se considerada a esfera das famílias, que mais particularmente me interessa, reflete antes o fato de que família, parentesco e assimetria sexual “parecem existir em toda parte, mas não sem um desafio constante ou uma variação quase infinita em seu conteúdo e forma” (Rosaldo, 198042 ROSALDO, Michelle. The Use and Abuse of Anthropology: Reflections on feminism and cross-cultural understanding. Signs: Journal of Women in Culture and Society, v. 5, n. 3, p. 389-417, 1980., p. 395), o que demanda, certamente, lentes mais apuradas para a análise de cenários específicos.

Partindo dessa “sensação do inevitavelmente inacabado” admitida por Honneth (2014, p. 10)25 HONNETH, Axel. El derecho de la libertad: esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires: Katz Editores, 2014. – própria mesmo, aliás, de um projeto como o de uma teoria da justiça como análise da sociedade – sugiro, e por ora só posso mesmo sugerir,10 10 Levar adiante uma reconstrução normativa da trajetória socio-histórica da esfera das famílias no Brasil muito extrapolaria os propósitos e os limites impostos à investigação que desenvolvo neste artigo. O presente texto pode ser lido, contudo, como uma espécie de matriz de direção para uma reconstrução normativa do desenvolvimento geral da esfera das famílias no Brasil. uma reconstrução normativa da trajetória socio-histórica da esfera das famílias no Brasil. Se essa esfera assume muitas formas históricas – elas mesmas especialmente variáveis em termos de estrutura, exercício de liberdade e autoridade, funções características, manifestações do parentesco ou autonomia institucional – não podemos observá-la senão a partir de uma perspectiva interna: não se examina a trajetória de desenvolvimento geral da esfera das famílias senão de um ângulo específico, o de sua lógica moral, que se institucionaliza e se diferencia daquelas típicas de outros âmbitos da vida social, e não sem fazer do Brasil o palco principal dessa reconstrução.

Uma empreitada desse tipo muito contribuiria para o desdobramento do projeto honnethiano. Poderia, inclusive, incrementar a própria constelação disciplinar de que Honneth se vale, concorrendo mesmo para um diagnóstico de tempo mais denso, suficientemente capaz de apontar aqui e agora para possibilidades reais de emancipação. Para alcançar os aspectos mais fundamentais da organização das famílias brasileiras, capturar a especialização e a democratização das relações familiares e ainda acessar as desigualdades ou anomias que encontram nas famílias condições favoráveis de reprodução, poder-se-ia apelar, mais destacadamente, para os estudos sobre divisão sexual do trabalho, que parecem um tanto negligenciados pelo próprio Honneth (McNay, 2015; Zurn, 201553 ZURN, Christopher. Axel Honneth: A critical theory of the social. Cambridge: Polity Press, 2015.), como se a divisão do trabalho entre os sexos não fosse, ela mesma, uma variável-chave para a compreensão mais apurada das hierarquias e das disputas típicas (não só) da trama familiar.

São muitas as pesquisas que já há algumas décadas têm apontado o papel que joga a divisão sexual do trabalho não só no acirramento de “conflitos conjugais que conduzem a separações” (Araújo et al., 20182 ARAÚJO, Clara et al. Evolução das percepções de gênero, trabalho e família no Brasil: 2003-2016. In: ARAÚJO, Clara et al. (ed.). Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 1-81., p. 13), mas, sobretudo, na manutenção de desigualdades de todo tipo, ora domésticas, ora não domésticas, aí incluído o “desequilíbrio entre os sexos na distribuição das horas gastas nas atividades domésticas”, qualquer que seja o tipo de arranjo familiar para o qual se olhe, se mais ou menos democrático (Araújo et al., 20182 ARAÚJO, Clara et al. Evolução das percepções de gênero, trabalho e família no Brasil: 2003-2016. In: ARAÚJO, Clara et al. (ed.). Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 1-81., p. 17). As pesquisas sobre divisão sexual do trabalho, mais do que meramente descrever, têm articulado uma “descrição do real com uma reflexão sobre os processos pelos quais a sociedade utiliza a diferenciação para hierarquizar” espaços e atividades (Kergoat, 200930 KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, Helena et al. (org.) Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 67-75., p. 72). E, por isso mesmo, podem ajudar a iluminar muitas das tensões entre os princípios de reconhecimento e os processos sociais que compõem a própria realidade social.

Se uma teoria da justiça sociologicamente ancorada, como a de Honneth, procura explicitar a rede de complexos institucionais em que sujeitos concretos podem realmente experimentar a liberdade em uma interação intersubjetiva normativamente orientada e, mais, se uma teoria da justiça desse tipo procura sobretudo proteger os “contextos de reconhecimento recíprocos ameaçados, assegurando assim a realização da liberdade [...] em toda sua extensão” (Werle, 201650 WERLE, Denílson Luis. Reconhecimento e autonomia na teoria da justiça de Axel Honneth. Síntese, v. 43, n. 137, p. 401-420, 2016., p. 410), são muitas as contribuições potenciais de uma excursão interdisciplinar como a que ora sugiro. Os estudos sobre divisão sexual do trabalho, desenvolvidos nos mais diversos campos disciplinares, podem irrigar o empreendimento honnethiano e o campo mesmo das teorias da justiça, interpelando-os sobre pontos sensíveis do pensamento sobre as famílias e os vínculos entre amor e justiça. Sob muitos aspectos, são eles que melhor dão conta da dinâmica e complexidade gerais dessa instituição relacional, que aparece, hoje, como um campo convulso, multifacetado, mas também muito mais democrático do que no passado, fruto, certamente, de lutas por reconhecimento mais ou menos bem-sucedidas, travadas dentro e fora de casa. Eles registram a intensidade e o rumo das mudanças por que passam a esfera das famílias no Brasil. Pensemos, por ora, em algumas das questões correntemente presentes nas “[c]onfrontações interdisciplinares em torno da divisão sexual do trabalho” (Hirata; Kergoat, 200324 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. A divisão sexual do trabalho revisitada. In: MARUANI, Margaret; HIRATA, Helena (org.). As novas fronteiras da desigualdade: homens e mulheres no mercado de trabalho. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003. p. 111-123., p. 116): “[q]ual a extensão das transformações [intrafamiliares] e quais os aspectos mais refratários a mudanças? Como os padrões conhecidos vêm sendo alterados?” Ou: “[q]ue fatores estruturais e subjetivos interferem e conformam essas relações e qual o peso dos contextos sociais nesse processo?” Ou ainda: “[c]omo a igualdade de gênero é percebida hoje por homens e mulheres? Qual o impacto desses valores de igualdade, consagrados e disseminados socialmente, sobre as práticas domésticas cotidianas envolvidas na reprodução social?” (Araújo; Scalon, 20053 ARAÚJO, Clara; SCALON, Celi. Apresentação. Percepções e atitudes de mulheres e de homens sobre a conciliação entre família e trabalho pago no Brasil. In: ARAÚJO, Clara; SCALON, Celi. Gênero, família e trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005a. p. 15-77., p. 10).

Esses estudos têm mesmo afiado os instrumentos para melhor captar as alternativas ou as oportunidades, mas também os limites ou os constrangimentos que pesam diferenciadamente sobre homens, mulheres e crianças no ambiente doméstico-familiar e fora dele, o que lhes têm permitido descortinar as cadeias de violência latente que tantas vezes emanam do círculo doméstico. Essas pesquisas têm desvelado as formas pelas quais o gênero penetra a vida e a experiência familiar cotidiana, sem relegar a um segundo plano a conjunção ou a interdependência das relações de poder de sexo, classe e raça (Hirata, 201422 HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça: Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, v. 26, n. 1, p. 61-73, 2014.). Têm vindo à tona, assim, não apenas os vínculos de solidariedade específicos dessa esfera de liberdade ou os vínculos emocionais de atenção e de cuidado, mas também uma estrutura de relações entre desiguais. No quadro geral de uma reconstrução normativa desse tipo, como a que ora sugiro, a direção do desenvolvimento socio-histórico da esfera das famílias no Brasil pode ganhar contornos mais bem definidos, embora sempre provisórios. Podem emergir, assim, os seus potenciais normativos e as fontes de inefetividade da liberdade intrafamiliar. Pode ficar mais e mais evidente se, como e em que medida as relações familiares se diferenciam ou especializam-se, generalizam-se ou democratizam-se e se, como e em que medida esse tipo de relação primária se mutualiza.

Se aposto na teoria da justiça como análise da sociedade é porque um projeto desse tipo mais favorece do que interdita a reflexão sobre as conexões entre justiça e famílias, que se mostram mesmo, ali, no livro de 2011, como que inarredáveis. Mover-se no marco da teoria honnethiana da justiça não compromete, seguramente, diagnósticos alternativos; pelo contrário. Sem antecipar o que não pode ser antecipado, é possível afirmar, desde já, com Honneth, ainda que muito provisoriamente, que a esfera das famílias, assim como outras tantas esferas, corporifica e efetiva um aspecto ou faceta do valor geral de liberdade. Aciona-se, então, ali, um princípio de reconhecimento interno, a partir do qual os indivíduos se orientam, engajam-se politicamente, experienciam uma forma de liberdade social só agora mais ou menos disponível e é possível avaliar criticamente as práticas intrafamiliares. Mas suspeito, contra Honneth, tendo em conta o cenário nacional – e somente uma reconstrução normativa poderá confirmar ou não essa suspeita, por ora, ainda muito provisória –, que o ingresso em massa das mulheres no mercado de trabalho e as mudanças nas práticas de educação da prole não foram capazes de subverter certas “formas ideológicas de reconhecimento” das mulheres.

Para Honneth (2014, p. 217-218)25 HONNETH, Axel. El derecho de la libertad: esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires: Katz Editores, 2014., dois eventos muito recentes teriam como que desmanchado os “obstáculos ideológicos” que embaraçavam, no passado, o exercício da liberdade intrafamiliar. O primeiro deles, o ingresso vertiginoso das mulheres no mercado de trabalho, que teria demolido “o fundamento de legitimação da velha ideologia, segundo a qual as mães satisfazem sua ‘verdadeira’ natureza nas sacrificantes tarefas domésticas e de cuidado dos filhos”, e o segundo, as reviravoltas nas práticas de educação, que agora e só agora incluiriam os/as filhos/as na interação familiar como parceiros/as em igualdade de direitos. Esses fenômenos, combinados, apontariam, segundo Honneth, para a realização institucional e conflituosa da promessa típica da família moderna, a de que mães, pais e filhos/as, mutuamente tomados como titulares de iguais direitos e obrigações e em atenção às suas individualidades ou idiossincrasias, sejam reciprocamente cuidados, protegidos e obtenham empatia segundo as suas necessidades específicas, tão variáveis quanto as etapas ou fases pelas quais transitam ao longo da vida.

Muito embora os integrantes da família, em suas diferentes configurações, pareçam estar, hoje, em condições desproporcionalmente mais favoráveis do que no passado de poder esperar uns dos outros “a empatia, a dedicação e o cuidado que exige a necessidade específica da fase na qual se encontram” (Honneth, 201425 HONNETH, Axel. El derecho de la libertad: esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires: Katz Editores, 2014., p. 218), sugiro, e por ora só posso mesmo sugerir, um enquadramento distinto do crescimento e da diversificação do trabalho remunerado feminino e das mudanças nas práticas educativas. Se, por um lado, a entrada em massa das mulheres no mundo laboral parece ter impactado o modelo ideológico de mulher dona de casa em período integral, muito prestigiado no século passado, sobretudo entre as famílias de camadas médias e altas, por outro, parece pouco ter afetado outro modelo ideológico, o da maternidade devotada ou absorvente. O modelo da “rainha do lar” (Rago, 201440 RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista. Brasil 1890-1930. São Paulo: Paz e Terra, 2014.) parece sair de cena. Parece mesmo cada vez mais despropositado para a maioria das mulheres; o que não significa dizer que o “mito do amor materno” (Badinter, 19854 BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.) tenha também ficado para trás. O crescimento e a diversificação do trabalho remunerado feminino e, consequentemente, a expansão da participação feminina na composição da renda familiar parecem mediados, à primeira vista, mediados pela posição específica da mulher na dinâmica familiar e, mais especialmente, pelo papel de cuidadora (não só) da prole, sobretudo quando os/as filho/as são pequenos/as, como tem mostrado um conjunto muito diverso e robusto de pesquisas (Costa, 200216 COSTA, Suely G. Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 2, p. 301-323, 2002.; Costa, 200415 COSTA, Jurandir F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004.; Araújo, Scalon, 20053 ARAÚJO, Clara; SCALON, Celi. Apresentação. Percepções e atitudes de mulheres e de homens sobre a conciliação entre família e trabalho pago no Brasil. In: ARAÚJO, Clara; SCALON, Celi. Gênero, família e trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005a. p. 15-77.; Carloto; Mariano, 20109 CARLOTO, Cássia Maria; MARIANO, Silvana Aparecida. No meio do caminho entre o privado e o público: um debate sobre o papel das mulheres na política de assistência social. Estudos Feministas, v. 18, n. 2, 2010.; Gama, 201419 GAMA, Andréa de S. Trabalho, família e gênero. Impactos do Direito do Trabalho e da Educação Infantil. São Paulo: Cortez Editora, 2014.; Itaboraí, 201729 ITABORAÍ, Nathalie R. Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): uma perspectiva de classe e gênero. Rio de Janeiro: Garamond, 2017.; Araújo, 20182 ARAÚJO, Clara et al. Evolução das percepções de gênero, trabalho e família no Brasil: 2003-2016. In: ARAÚJO, Clara et al. (ed.). Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 1-81.; Cattoni de Oliveira; Marques, 201811 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MARQUES, Stanley S. Paternidades e a identidade do sujeito constitucional no Brasil: um estudo a partir do direito fundamental à licença-paternidade. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 63, n. 2, p. 9-38, 2018.; Gama et al., 201820 GAMA, Andréa de S. et al. Tensões entre trabalho e família: recomposições na divisão sexual do trabalho. In: ARAÚJO, Clara et al. Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 83-113.; Cattoni de Oliveira; Marques, 202010 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MARQUES, Stanley S. Contribuições para uma reconstrução crítica da gramática moderna da maternidade. Revista Estudos Feministas, v. 28, n. 2, p. 1-16, 2020.)..

Se os apelos emocionais à “boa” mãe induzem as mulheres a “persistirem em uma autoimagem” que alimenta, “com perfeição”, os esquemas “da divisão especificamente sexual do trabalho” (Honneth, 201226 HONNETH, Axel. Recognition as Ideology: The connection between morality and power. In: HONNETH, Axel. The I in We. Studies in the Theory of Recognition. Cambridge, UK: Polity Press, 2012. p. 75-97., p. 77),, travando, como suspeito, os ganhos mais recentes de liberdade intrafamiliar (Honneth, 201226 HONNETH, Axel. Recognition as Ideology: The connection between morality and power. In: HONNETH, Axel. The I in We. Studies in the Theory of Recognition. Cambridge, UK: Polity Press, 2012. p. 75-97., p. 77), esses enunciados de valor devem mesmo ser tomados pelo que verdadeiramente são, é dizer, formas ideológicas de reconhecimento, tanto do passado como do presente, por mais modificadas que pareçam à primeira vista, na contramão do diagnóstico honnethiano, pelo menos se consideradas nossas peculiaridades nacionais. Desconfio que esses modelos operam enquanto ficções reguladoras da maternidade, reproduzindo um esquema já há muito conhecido, ainda que sob novos contornos. E se é verdade que, no seio de discursos mais ou menos hegemônicos – de caráter conservador, mas também progressista –, o cuidado da prole, o cuidado materno e a natureza parecem ainda se confundir, também é verdade que esses mesmos discursos se apoiam senão no status recém-atribuído à criança, como num circuito que se retroalimenta, como tem mostrado a literatura especializada (Badinter, 19854 BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.; Costa, 200216 COSTA, Suely G. Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 2, p. 301-323, 2002.; Costa, 200415 COSTA, Jurandir F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004.; Rago, 201440 RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista. Brasil 1890-1930. São Paulo: Paz e Terra, 2014.; Cattoni de Oliveira; Marques, 201811 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MARQUES, Stanley S. Paternidades e a identidade do sujeito constitucional no Brasil: um estudo a partir do direito fundamental à licença-paternidade. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 63, n. 2, p. 9-38, 2018., 202010 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MARQUES, Stanley S. Contribuições para uma reconstrução crítica da gramática moderna da maternidade. Revista Estudos Feministas, v. 28, n. 2, p. 1-16, 2020., Alves, 2018; Araújo, 20182 ARAÚJO, Clara et al. Evolução das percepções de gênero, trabalho e família no Brasil: 2003-2016. In: ARAÚJO, Clara et al. (ed.). Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 1-81.; Gama et al., 201820 GAMA, Andréa de S. et al. Tensões entre trabalho e família: recomposições na divisão sexual do trabalho. In: ARAÚJO, Clara et al. Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 83-113.).

Quanto mais a família se dirige para os/as filhos/as, que demandam cada vez mais cuidado e atenção especiais, mais se espera e mais se exige das mães, independentemente de seu engajamento no mercado de trabalho e de suas necessidades específicas (Araújo; Scalon, 20053 ARAÚJO, Clara; SCALON, Celi. Apresentação. Percepções e atitudes de mulheres e de homens sobre a conciliação entre família e trabalho pago no Brasil. In: ARAÚJO, Clara; SCALON, Celi. Gênero, família e trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005a. p. 15-77.; Hirata; Kergoat, 200723 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Caderno de Pesquisa, v. 37, n. 132, 2007.; Gama, 201419 GAMA, Andréa de S. Trabalho, família e gênero. Impactos do Direito do Trabalho e da Educação Infantil. São Paulo: Cortez Editora, 2014.; Gama et al., 201820 GAMA, Andréa de S. et al. Tensões entre trabalho e família: recomposições na divisão sexual do trabalho. In: ARAÚJO, Clara et al. Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 83-113.; Itaboraí, 201729 ITABORAÍ, Nathalie R. Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): uma perspectiva de classe e gênero. Rio de Janeiro: Garamond, 2017.; Araújo, 20182 ARAÚJO, Clara et al. Evolução das percepções de gênero, trabalho e família no Brasil: 2003-2016. In: ARAÚJO, Clara et al. (ed.). Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 1-81.; Cavenaghi; Alves, 201813 CAVENAGHI, Suzana; ALVES, José Eustáquio Diniz. Mulheres chefes de família no Brasil: avanços e desafios. Rio de Janeiro: ENS-CPES, 2018.; Cattoni de Oliveira; Marques, 201811 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MARQUES, Stanley S. Paternidades e a identidade do sujeito constitucional no Brasil: um estudo a partir do direito fundamental à licença-paternidade. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 63, n. 2, p. 9-38, 2018., 202010 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MARQUES, Stanley S. Contribuições para uma reconstrução crítica da gramática moderna da maternidade. Revista Estudos Feministas, v. 28, n. 2, p. 1-16, 2020.), na direção contrária das tendências democratizantes de longa duração da vida familiar, que, a seu passo, também dificilmente podem ser subestimadas. Tendo em conta aqui apenas uma das muitas dimensões com as quais se terá de enfrentar uma reconstrução normativa da esfera das famílias, pode-se dizer que expressões como “dupla jornada” ou “tripla jornada” captariam, agora, o que muitas mulheres, desproporcionalmente pobres e negras, experimentam já há alguns séculos, dada a sobrecarga desproporcional de dois tipos de trabalho, o remunerado e o doméstico/de cuidado (Costa, 200216 COSTA, Suely G. Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 2, p. 301-323, 2002.; Hirata; Kergoat, 200324 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. A divisão sexual do trabalho revisitada. In: MARUANI, Margaret; HIRATA, Helena (org.). As novas fronteiras da desigualdade: homens e mulheres no mercado de trabalho. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003. p. 111-123.; Gama, 201419 GAMA, Andréa de S. Trabalho, família e gênero. Impactos do Direito do Trabalho e da Educação Infantil. São Paulo: Cortez Editora, 2014.; Hirata, 201422 HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça: Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, v. 26, n. 1, p. 61-73, 2014.; Itaboraí, 201729 ITABORAÍ, Nathalie R. Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): uma perspectiva de classe e gênero. Rio de Janeiro: Garamond, 2017.; Davis, 201617 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.; Cavenaghi; Alves, 201813 CAVENAGHI, Suzana; ALVES, José Eustáquio Diniz. Mulheres chefes de família no Brasil: avanços e desafios. Rio de Janeiro: ENS-CPES, 2018.); senão vejamos.

Mudanças na composição sexual do mercado de trabalho (se alimentam e) concorrem, certamente – como afirma Honneth –, para a implosão do modelo ideológico de mulher dona de casa em período integral, muito prestigiado no século passado, sobretudo entre as famílias de camadas médias e altas. Mas não concorrem – na contramão do diagnóstico honnethiano, pelo menos se considerado o contexto brasileiro – para a dessexualização do trabalho reprodutivo (Hirata; Kergoat, 200324 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. A divisão sexual do trabalho revisitada. In: MARUANI, Margaret; HIRATA, Helena (org.). As novas fronteiras da desigualdade: homens e mulheres no mercado de trabalho. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003. p. 111-123.; Araújo; Scalon, 20053 ARAÚJO, Clara; SCALON, Celi. Apresentação. Percepções e atitudes de mulheres e de homens sobre a conciliação entre família e trabalho pago no Brasil. In: ARAÚJO, Clara; SCALON, Celi. Gênero, família e trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005a. p. 15-77.; Gama, 201419 GAMA, Andréa de S. Trabalho, família e gênero. Impactos do Direito do Trabalho e da Educação Infantil. São Paulo: Cortez Editora, 2014.; Hirata, 201422 HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça: Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, v. 26, n. 1, p. 61-73, 2014.; Itaboraí, 201729 ITABORAÍ, Nathalie R. Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): uma perspectiva de classe e gênero. Rio de Janeiro: Garamond, 2017.; Cattoni de Oliveira; Marques, 201811 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MARQUES, Stanley S. Paternidades e a identidade do sujeito constitucional no Brasil: um estudo a partir do direito fundamental à licença-paternidade. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 63, n. 2, p. 9-38, 2018., 202010 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MARQUES, Stanley S. Contribuições para uma reconstrução crítica da gramática moderna da maternidade. Revista Estudos Feministas, v. 28, n. 2, p. 1-16, 2020.; Araújo, 20182 ARAÚJO, Clara et al. Evolução das percepções de gênero, trabalho e família no Brasil: 2003-2016. In: ARAÚJO, Clara et al. (ed.). Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 1-81.; Araújo et al., 20182 ARAÚJO, Clara et al. Evolução das percepções de gênero, trabalho e família no Brasil: 2003-2016. In: ARAÚJO, Clara et al. (ed.). Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 1-81.; Gama et al., 201820 GAMA, Andréa de S. et al. Tensões entre trabalho e família: recomposições na divisão sexual do trabalho. In: ARAÚJO, Clara et al. Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 83-113.; Cavenaghi; Alves, 201813 CAVENAGHI, Suzana; ALVES, José Eustáquio Diniz. Mulheres chefes de família no Brasil: avanços e desafios. Rio de Janeiro: ENS-CPES, 2018.). Muito embora a expectativa social de que a mulher se dedique aos labores femininos na “insossa domesticidade de esposa obediente, sem imaginação, sem vontade, feliz em ser sujeita, [e] em bem servir a um só homem” pareça dizer sobre um modelo familiar já ultrapassado, tão bem representado por narrativas de autoria feminina do século XX, caso de A falência, de Júlia Lopes de Almeida (2019, p. 295)1 ALMEIDA, Júlia Lopes de. A falência. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., o trabalho reprodutivo ainda empurra as mulheres para aquela “insossa domesticidade”.

Quanto a esse aspecto em particular, nada de novo na dinâmica familiar: são as esposas/mães, as vizinhas, as parentes do sexo feminino ou as empregadas domésticas aquelas que geralmente assumem esse tipo de trabalho,11 11 “Mesmo que exista delegação”, advertem Hirata e Kergoat (2007, p. 607), “um de seus limites está na própria estrutura do trabalho doméstico e familiar: a gestão do conjunto do trabalho delegado é sempre da competência daquelas que delegam”. É preciso ter em conta, contudo, que, no caso das mulheres, o suporte do emprego doméstico é um dos fatores que mais impactam na média de horas dedicadas aos afazeres domésticos. E que são relativamente poucas as mulheres que recorrem ou podem recorrer às diaristas ou às empregadas domésticas. O survey Gênero, trabalho e família, de 2016, mostra que, entre o universo pesquisado que vivia em união, “as mulheres com empregadas domésticas dedicavam 18,7 horas em média [ao trabalho reprodutivo] e as mulheres sem empregada, 31,9 horas” (Araújo et al., 2018, p. 30). Ou seja, para um percentual relativamente pequeno de mulheres, o recurso às diaristas e às empregadas domésticas aparece como estratégia para lidar com a sobrecarga do trabalho reprodutivo. Delegar não significa, como podemos mesmo observar, desobrigar-se desse tipo de trabalho: “a presença da empregada/diarista não elimina o tempo gasto com o trabalho doméstico, apenas reduz esse tempo, tanto para homens como para mulheres; e essa redução é tanto maior quanto mais dias possam delegar as tarefas para as empregadas” (Sartor et al., 2018, p. 203). E se é verdade que esse tipo de delegação do trabalho doméstico pode atenuar muitas das tensões entre trabalho e família para um grupo relativamente pequeno de mulheres, também é verdade que essa mesma delegação “reforça a responsabilização feminina” e, com ela, as desigualdades entre homens e mulheres e entre as próprias mulheres (Sartor et al., 2018, p. 204). ainda sexualmente codificado e, por isso mesmo, nem sempre percebido pelas próprias mulheres como fonte deflagradora de tensões ou mesmo como forma de injustiça ou privação (Araújo; Scalon, 20053 ARAÚJO, Clara; SCALON, Celi. Apresentação. Percepções e atitudes de mulheres e de homens sobre a conciliação entre família e trabalho pago no Brasil. In: ARAÚJO, Clara; SCALON, Celi. Gênero, família e trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005a. p. 15-77.; Araújo et al., 20182 ARAÚJO, Clara et al. Evolução das percepções de gênero, trabalho e família no Brasil: 2003-2016. In: ARAÚJO, Clara et al. (ed.). Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 1-81.; Guedes, 201821 GUEDES, Moema. Escolaridade e gênero: percepções mais igualitárias? In: ARAÚJO, Clara et al. Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018a. p. 115-128.).12 12 Os resultados do survey Gênero, trabalho e família, de 2016, ajudam a iluminar algumas das tensões e contradições de que falamos: “[d]e modo espelhado e articulado, enquanto as mulheres se percebem majoritariamente fazendo mais (ou muito mais) do que a parte [de trabalho doméstico] que seria justa (56,2%), os homens se percebem fazendo menos (ou muito menos) do que a parte que seria justa (40%). É interessante notar, contudo, que o peso relativo dos que se percebem fazendo exatamente a parte que seria justa é bastante próximo entre homens e mulheres, o que sugere que parte dos casais já vivenciam dinâmicas de divisão nas quais ambos estão satisfeitos com o arranjo vivenciado” (Guedes, 2018, p. 125). A satisfação, nesses casos, não significa, necessariamente, contudo, arranjos mais igualitários: se é verdade que em alguns deles essa divisão pode ser, sim, mais equilibrada, o que explicaria a satisfação de parcela dos entrevistados, também é verdade que em outros casos é provável que essa divisão siga o esquema tradicional e a satisfação dos implicados tenha que ver antes com práticas e valores mais tradicionais professados pelos próprios respondentes, que não enxergariam na feminização do trabalho reprodutivo uma forma de injustiça ou privação. Se é verdade que “há posições mais abertas e menos tradicionais para o envolvimento feminino com a vida profissional”, também é verdade que “essas posições não parecem implicar ou vir acompanhadas de redefinições do papel maternal e da centralidade da maternidade na vida doméstica” (Araújo; Scalon, 20053 ARAÚJO, Clara; SCALON, Celi. Apresentação. Percepções e atitudes de mulheres e de homens sobre a conciliação entre família e trabalho pago no Brasil. In: ARAÚJO, Clara; SCALON, Celi. Gênero, família e trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005a. p. 15-77., p. 67); o que faz das formas contemporâneas de organização das famílias brasileiras formas mais custosas ou restritivas para as mulheres do que para os homens, ainda que muito menos custosas ou restritivas do que aquelas do passado (Biroli, 20185 BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 100).

São elas, de todo modo, que “continuam a se incumbir do essencial” do trabalho doméstico/de cuidado (Hirata; Kergoat, 200723 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Caderno de Pesquisa, v. 37, n. 132, 2007., p. 607),13 13 Com base nos dados da PNAD, do IBGE, para o Brasil Metropolitano, no ano de 2006, Gama (2014, p. 177) mostra que, em famílias com filhos entre 0 e 6 anos, aproximadamente 59% dos pais, 97,5% das mães com cônjuge e 92,5% das mães sem cônjuge realizavam trabalho doméstico. sobretudo em países como o Brasil, onde são tímidos os direitos, os equipamentos coletivos ou as políticas públicas que poderiam favorecer a redistribuição ou a socialização dos custos do cuidado (Costa, 200216 COSTA, Suely G. Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 2, p. 301-323, 2002.; Carloto; Mariano, 20109 CARLOTO, Cássia Maria; MARIANO, Silvana Aparecida. No meio do caminho entre o privado e o público: um debate sobre o papel das mulheres na política de assistência social. Estudos Feministas, v. 18, n. 2, 2010.; Araújo et al., 20182 ARAÚJO, Clara et al. Evolução das percepções de gênero, trabalho e família no Brasil: 2003-2016. In: ARAÚJO, Clara et al. (ed.). Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 1-81.; Cavenaghi; Alves, 201813 CAVENAGHI, Suzana; ALVES, José Eustáquio Diniz. Mulheres chefes de família no Brasil: avanços e desafios. Rio de Janeiro: ENS-CPES, 2018.; Cattoni de Oliveira; Marques, 201811 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MARQUES, Stanley S. Paternidades e a identidade do sujeito constitucional no Brasil: um estudo a partir do direito fundamental à licença-paternidade. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 63, n. 2, p. 9-38, 2018.);14 14 Os valores evocados pelas próprias mulheres, se mais ou menos igualitários ou mais ou menos tradicionais, não impactam no volume de trabalho reprodutivo realizado, segundo o survey Gênero, trabalho e família, de 2016, cujos resultados “mostram que as mulheres com uma percepção mais igualitária dos papeis de gênero são tão responsáveis pela realização das tarefas domésticas quanto as mulheres com percepções mais tradicionais” (Araújo et al., 2018, p. 62). o que me leva a perguntar, com Biroli (2018, p. 109)5 BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018., “[q]uem cuida das crianças no horário em que não estão na escola? E o que isso implica para as mulheres, para as próprias crianças e para a renda familiar?”. Em contextos como o nosso, onde prevalecem “políticas de traços familistas e centradas nas mulheres como mães”, mesmo quando se avança muito timidamente nessa área, são muitos os descompassos entre o ingresso feminino em massa no mercado de trabalho, o engajamento masculino no trabalho doméstico – quase que monotônico ao longo da vida – e as iniciativas públicas de apoio a cuidados, muitas vezes, escassas, muito precárias e reprodutoras, elas mesmas, de concepções tradicionais de maternidade e paternidade,15 15 Os debates travados em torno da licença paternidade ainda no curso da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, assim como os debates parlamentares mais recentes em torno da regulamentação do direito fundamental à licença paternidade são especialmente ilustrativos dos aspectos acima aludidos. Para uma reconstrução desses debates, ver Cattoni de Oliveira; Marques (2018). como tem indicado farta literatura a respeito (Costa, 200216 COSTA, Suely G. Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 2, p. 301-323, 2002.; Hirata; Kergoat, 200723 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Caderno de Pesquisa, v. 37, n. 132, 2007.; Carloto; Mariano, 20109 CARLOTO, Cássia Maria; MARIANO, Silvana Aparecida. No meio do caminho entre o privado e o público: um debate sobre o papel das mulheres na política de assistência social. Estudos Feministas, v. 18, n. 2, 2010.; Itaboraí, 201729 ITABORAÍ, Nathalie R. Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): uma perspectiva de classe e gênero. Rio de Janeiro: Garamond, 2017.; Cattoni de Oliveira; Marques, 201712 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MARQUES, Stanley S. Direito fundamental à licença-paternidade e masculinidades no Estado Democrático de Direito. Revista Culturas Jurídicas, v. 4, n. 9, p. 222-248, 2017., 202010 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MARQUES, Stanley S. Contribuições para uma reconstrução crítica da gramática moderna da maternidade. Revista Estudos Feministas, v. 28, n. 2, p. 1-16, 2020.; Cavenaghi; Alves, 201813 CAVENAGHI, Suzana; ALVES, José Eustáquio Diniz. Mulheres chefes de família no Brasil: avanços e desafios. Rio de Janeiro: ENS-CPES, 2018.; Alves et al., 2019).

Considerações finais

Longe de tratar o domínio das relações pessoais como “um mero reduto da ética particular ou do arbítrio pessoal” e com isso apequenar a constelação de problemas típicos da reflexão democrática, Honneth, em O direito da liberdade, assume a intimidade e as famílias como “esferas da sociedade nas quais é permitido se exigir condições de autodeterminação coletiva que” merecem mesmo “ser chamadas, em um sentido que certamente extrapola seu uso tradicional, de condições democráticas” (Silva, 201345 SILVA, Felipe G. Um ponto cego no pensamento político? Teoria crítica e a democratização da intimidade. In: MELO, Rúrio (org.). A teoria crítica de Axel Honneth. Reconhecimento, liberdade e justiça. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 201-233., p. 231). Tanto toma dimensões importantes da vida íntima e familiar como questões de justiça de primeira ordem que tensionam os limites mais convencionais da política. Deixa entrever, desse modo – e na contramão da “maioria dos teóricos políticos contemporâneos que escrevem sobre justiça” (Okin, 200437 OKIN, Susan M. The Public/Private Dichotomy. In: FARRELLY, Colin (org.) Contemporary Political Theory. London: Sage, 2004. p. 184-194., p. 186) –, alguns dos vínculos internos entre justiça e famílias, que se mostram mesmo como que incontornáveis no quadro de uma teoria da justiça como análise da sociedade.

Entram em cena, ali, no livro de 2011, muitos dos aspectos, dos sentidos e das experiências típicas da vida moderna, algumas delas, domésticas, outras, não domésticas, mas todas elas agora tomadas como questões política e moralmente relevantes ou como parte do problema da justiça social; vêm à tona as suas especificidades e implicações recíprocas, não sem ecoar o pressuposto teórico feminista de que a relação entre família, violência e sociedade é tão estreita, que seja qual for o elemento do qual se parte – família, violência ou sociedade –, “[e]m algum ponto eles se imbricam” (Vitale, 201849 VITALE, Maria Amalia F. Prefácio: vida em família. In: ACOSTA, Ana R.; VITALE, Maria Amalia F. (org.). Família: redes, laços e políticas públicas. São Paulo: Cortez/Instituto de Estudos Especiais – PUC/SP, 2018. p. 31-33., p. 32). Se a literatura feminista já há algumas décadas se pergunta “como os indivíduos vivenciam e compatibilizam” demandas dos diferentes domínios da vida social “e quais fatores endógenos e exógenos a esses [...] espaços podem, eventual ou frequentemente, interferir nessas dinâmicas” (Araújo et al., 20182 ARAÚJO, Clara et al. Evolução das percepções de gênero, trabalho e família no Brasil: 2003-2016. In: ARAÚJO, Clara et al. (ed.). Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 1-81., p. 1), no caso de Honneth, questões desse tipo parecem importar só mais recentemente a ponto de merecer tratamento mais ou menos acurado; mas não só.

Honneth, como procurei mostrar até aqui, incorpora dimensões importantes da intimidade e das famílias ao debate sobre justiça, como também apresenta uma abordagem toda própria das relações íntimas e familiares, cujo aparato teórico-metodológico pode ser sempre de novo mobilizado para se examinar mais de perto essas mesmas relações, assim como os múltiplos fios que as conectam a um emaranhado muito complexo de relações sociais. Ele observa essas e outras tantas relações, assim como suas implicações mútuas, de um ângulo específico – o da gramática do reconhecimento – e leva adiante a possibilidade de uma crítica interna a esses campos normativos, movendo-se mesmo na contracorrente do pensamento hegemônico. Isso, certamente, faz desse projeto normativo alternativo, que toma a vida íntima e familiar como parte do problema da justiça social, uma contribuição muito particular e não menos provocativa à teoria contemporânea, que parece, antes, e em “grande medida [...] como no passado (ainda que de maneira menos óbvia), [...] sobre homens que têm esposas em casa” (Okin, 200836 OKIN, Susan M. Gênero, o público e o privado. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2, p. 305-332, 2008., p. 311).

Daí a aposta no desdobramento de um programa como o honnethiano, embora não sem certas ressalvas. Quem quer que procure esboçar tanto quanto possível as linhas de progresso moral que a própria trajetória de desenvolvimento geral da esfera das famílias no Brasil exibe, ou seja, quem quer que procure examinar, na esteira de Honneth, se e em que medida se pode falar de desconstrução, desmonte ou implosão de papéis sexuados ou de “estereótipos e atribuições culturais que impedem estruturalmente a adaptação às necessidades dos outros” (Honneth, 200627 HONNETH, Axel. Redistribución como reconocimiento: respuesta a Nancy Fraser. In: FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. ¿Redistribución o reconocimiento? Un debate político-filosófico. Madri: Ediciones Morata e Fundación Paidéia Galiza, 2006. p. 89-148b, p. 146), muito ganharia se também incorporasse as contribuições dos estudos sobre divisão sexual do trabalho. Uma excursão interdisciplinar como a que procurei apenas sugerir no presente texto poderia melhor rastrear ali onde sucumbem os aprimoramentos institucionais internos a campos como o das famílias ou onde eles parecem pelo menos ameaçados. Poderia melhor esquadrinhar se e em que medida “estereótipos e atribuições culturais [...] [ainda] impedem estruturalmente a adaptação às necessidades dos outros” (Honneth, 200627 HONNETH, Axel. Redistribución como reconocimiento: respuesta a Nancy Fraser. In: FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. ¿Redistribución o reconocimiento? Un debate político-filosófico. Madri: Ediciones Morata e Fundación Paidéia Galiza, 2006. p. 89-148, p. 146). Poderia melhor sondar ali onde se fazem presentes os déficits de liberdade ou muito daquilo que limita, mina ou corrói a liberdade intrafamiliar, como reclama, aliás, o próprio script honnethiano.

Uma reconstrução normativa da esfera das famílias no Brasil, por fim, como procurei sugerir – por mais que mobilize um conjunto muito sofisticado de análises empíricas, sociológicas e históricas e eventualmente incremente o próprio repertório honnethiano –, não pode afastar, é verdade, aquela sensação admitida por Honneth (2014, p. 9)25 HONNETH, Axel. El derecho de la libertad: esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires: Katz Editores, 2014. já no prólogo de O direito da liberdade, a “de ter de fornecer mais argumentos e provas empíricas”, já que se trata mesmo de uma impressão como que inafastável no caso de um uma teoria da justiça como análise da sociedade. Mas uma reconstrução normativa da trajetória de desenvolvimento geral da esfera das famílias no Brasil pode pelo menos desdobrar o projeto normativo alternativo de Honneth, seja porque, em diálogo com a literatura feminista, pode iluminar processos, aspectos ou fenômenos mais ou menos despercebidos pela reconstrução honnethiana, seja porque pode ajudar a iluminar uma realidade sensivelmente distinta daquela de que fala Honneth em primeiro lugar.

  • 1
    O presente artigo retoma e desdobra pesquisa desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG, sob orientação do Professor Doutor Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, a quem agradeço profundamente. A ele dedico este texto.
  • 2
    Todas as citações de textos em língua estrangeira são traduções minhas.
  • 3
    Das Recht der Freiheit - Grundriß einer demokratischen Sittlichkeit. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2011
  • 4
    Se o Estado é paradigmaticamente público e a família paradigmaticamente privada, o mesmo não podemos dizer da sociedade civil, arena mais nebulosa: pública ou privada? Esta é uma das ambiguidades da oposição liberal público/privado denunciadas por teóricas feministas (Pateman, 201338 PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013. p. 55-79; Okin, 200836 OKIN, Susan M. Gênero, o público e o privado. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2, p. 305-332, 2008.; Biroli, 20128 BIROLI, Flávia. Gênero e família em uma sociedade justa. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia (org.). Teoria política e feminismo: abordagens brasileiras. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012, p. 211-242.; Kritsch, 201231 KRITSCH, Raquel. O gênero do público. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia (org.). Teoria política e feminismo: abordagens brasileiras. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012. p. 17-45.). Considerando que a dicotomia público/privado envolve pelo menos dois usos correntemente pouco explicitados – um primeiro que opõe Estado e sociedade e situa a sociedade civil na esfera privada, e um segundo que distingue vida não-doméstica e vida doméstica e situa a sociedade civil na esfera pública –, acompanho, aqui, Okin (2008, p. 307)36 OKIN, Susan M. Gênero, o público e o privado. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2, p. 305-332, 2008., cuja crítica se dirige à distinção público/doméstico, precisamente porque “é a permanência dessa dicotomia que torna possível aos teóricos ignorarem a natureza política da família, a relevância da justiça na vida pessoal e, consequentemente, uma parte central das desigualdades de gênero”.
  • 5
    Criticar a dicotomia público/doméstico não significa rejeitar, necessariamente, a “utilidade” do conceito e do valor da privacidade para homens, mulheres e crianças. Não significa rechaçar, necessariamente, a “razoabilidade” de distinções de algum tipo e de algum nível entre as esferas. Também não significa assumir uma “identificação simples ou total do pessoal e do político” (Okin, 200437 OKIN, Susan M. The Public/Private Dichotomy. In: FARRELLY, Colin (org.) Contemporary Political Theory. London: Sage, 2004. p. 184-194., p. 187), da qual se esquivam mesmo críticas feministas como as de Okin (200836 OKIN, Susan M. Gênero, o público e o privado. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2, p. 305-332, 2008.; 2004)37 OKIN, Susan M. The Public/Private Dichotomy. In: FARRELLY, Colin (org.) Contemporary Political Theory. London: Sage, 2004. p. 184-194. e Pateman (2013)38 PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013. p. 55-79. Uma postura crítica desse tipo, em poucas palavras, não sugere “que a mediação entre a esfera privada e a esfera pública não [...] [seja] mais necessária: ela se faz de outra maneira” (Lamoureux, 200932 LAMOUREUX, Diane. Público/privado. In: HIRATA, Helena et al. (org.) Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 208-213., p. 212).
  • 6
    A reivindicação feminista de que “o pessoal é político” reúne, a propósito, muitas das críticas dirigidas à dicotomia liberal público/doméstico. Com uma reivindicação desse tipo, de caráter polissêmico (Lamoureux, 200932 LAMOUREUX, Diane. Público/privado. In: HIRATA, Helena et al. (org.) Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 208-213., p. 211) e “central” para a maior parte do feminismo contemporâneo (Okin, 200437 OKIN, Susan M. The Public/Private Dichotomy. In: FARRELLY, Colin (org.) Contemporary Political Theory. London: Sage, 2004. p. 184-194., p.186), feministas afirmam, por um lado, que “o que acontece na vida pessoal, particularmente nas relações entre os sexos, não é imune em relação à dinâmica de poder, que tem tipicamente sido vista como a face distintiva do político,” e, por outro, que não se discutem os domínios doméstico e não doméstico “em termos de suas estruturas e práticas, suposições e expectativas, divisão do trabalho e distribuição de poder, [...] sem uma referência constante ao outro” (Okin, 200836 OKIN, Susan M. Gênero, o público e o privado. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2, p. 305-332, 2008., p. 314). Varikas (2013, p.181)48 VARIKAS, Eleni. “O pessoal é político”: desventuras de uma promessa subversiva. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013. p. 173-193., na mesma direção, atribui a força da máxima “o pessoal é político” à “sua capacidade de evidenciar a dominação oculta em relações consideradas como parte da natureza humana”, à “suspeição que levantou sobre domínios e instituições consideradas ao abrigo do político” e a “seu espírito de utopia.”
  • 7
    Muitos dos contos de Laços de família, de Clarice Lispector, parecem antes registros críticos da domesticidade feminina, o que faz dessa obra, publicada originalmente em 1960, “um marco no tratamento ficcional do tema da família” (Xavier, 200652 XAVIER, Elódia. A representação da família no banco dos réus. Interdisciplinar, v. 1, n. 1, 2006.), e cuja influência alcança escritoras como Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon. Fiquemos, por ora, em apenas um dos contos dessa coletânea: Uma galinha. A domesticidade feminina aparece, ali, mas não só ali, como princípio de muitas das tensões familiares. Acompanhamos, no conto, a fuga vacilante de uma ave, logo interditada pelo dono da casa; uma metáfora do cotidiano da família nuclear burguesa. “Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga”. Devolvida à cozinha, de onde inadvertidamente fugira, “[d]e pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta”. Como que “nascida [...] para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. [...] Esquentando seu filho, esta não era nem suave, nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha”. A família, maravilhada com o acontecimento, atribui-lhe novo status, “a galinha torna-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam” (Lispector, 200933 LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 2009., p. 31-32).
  • 8
    Compartilho com Axel Honneth a ideia de que tomar romances e obras de arte como “testemunhos fenomenológicos de certas estruturas da vida cotidiana” confere aos nossos escritos “uma certa base empírica, que não [...] [se pode] obter da pesquisa empírica em sociologia, porque essa pesquisa é muitas vezes quantitativa demais e não é sensível o suficiente às nuances da vida cotidiana” (Marcelo, 201334 MARCELO, Gonçalo. Recognition and Critical Theory today: An interview with Axel Honneth. Philosophy and Social Criticism, v. 39, n. 2, p. 209-221, 2013., p. 215).
  • 9
    Em Uma teoria da justiça, Rawls (2008, p. 8)41 RAWLS, JOHN. Uma teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008. inclui a “família monogâmica” na estrutura básica da sociedade, ainda que de forma particularmente ambígua. Ele se dirige à família em diferentes ocasiões, mas sem jamais discutir sua justiça interna. Rawls segue de perto, por exemplo, as correlações entre o problema da estabilidade, a aquisição do senso de justiça pelos membros de uma sociedade bem-ordenada e as dinâmicas específicas da família (p. 571-583), cuja justiça é mais uma vez pressuposta: a família operária, segundo Rawls, como uma “escola primária da justiça” (Biroli, 20128 BIROLI, Flávia. Gênero e família em uma sociedade justa. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia (org.). Teoria política e feminismo: abordagens brasileiras. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012, p. 211-242., p. 226) ou uma “escola de ensinamentos morais” (2013, p. 144), aspecto, a propósito, também realçado por Honneth, muito a seu modo, certamente, quando reconstrói a trajetória socio-histórica da esfera das famílias em O direito da liberdade.
  • 10
    Levar adiante uma reconstrução normativa da trajetória socio-histórica da esfera das famílias no Brasil muito extrapolaria os propósitos e os limites impostos à investigação que desenvolvo neste artigo. O presente texto pode ser lido, contudo, como uma espécie de matriz de direção para uma reconstrução normativa do desenvolvimento geral da esfera das famílias no Brasil.
  • 11
    “Mesmo que exista delegação”, advertem Hirata e Kergoat (2007, p. 607)23 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Caderno de Pesquisa, v. 37, n. 132, 2007., “um de seus limites está na própria estrutura do trabalho doméstico e familiar: a gestão do conjunto do trabalho delegado é sempre da competência daquelas que delegam”. É preciso ter em conta, contudo, que, no caso das mulheres, o suporte do emprego doméstico é um dos fatores que mais impactam na média de horas dedicadas aos afazeres domésticos. E que são relativamente poucas as mulheres que recorrem ou podem recorrer às diaristas ou às empregadas domésticas. O survey Gênero, trabalho e família, de 2016, mostra que, entre o universo pesquisado que vivia em união, “as mulheres com empregadas domésticas dedicavam 18,7 horas em média [ao trabalho reprodutivo] e as mulheres sem empregada, 31,9 horas” (Araújo et al., 20182 ARAÚJO, Clara et al. Evolução das percepções de gênero, trabalho e família no Brasil: 2003-2016. In: ARAÚJO, Clara et al. (ed.). Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 1-81., p. 30). Ou seja, para um percentual relativamente pequeno de mulheres, o recurso às diaristas e às empregadas domésticas aparece como estratégia para lidar com a sobrecarga do trabalho reprodutivo. Delegar não significa, como podemos mesmo observar, desobrigar-se desse tipo de trabalho: “a presença da empregada/diarista não elimina o tempo gasto com o trabalho doméstico, apenas reduz esse tempo, tanto para homens como para mulheres; e essa redução é tanto maior quanto mais dias possam delegar as tarefas para as empregadas” (Sartor et al., 201843 SARTOR, Ângela et al. Emprego doméstico: mediações na conciliação entre família e trabalho no Brasil. In: ARAÚJO, Clara et al. Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018b. p. 199-218., p. 203). E se é verdade que esse tipo de delegação do trabalho doméstico pode atenuar muitas das tensões entre trabalho e família para um grupo relativamente pequeno de mulheres, também é verdade que essa mesma delegação “reforça a responsabilização feminina” e, com ela, as desigualdades entre homens e mulheres e entre as próprias mulheres (Sartor et al., 201843 SARTOR, Ângela et al. Emprego doméstico: mediações na conciliação entre família e trabalho no Brasil. In: ARAÚJO, Clara et al. Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018b. p. 199-218., p. 204).
  • 12
    Os resultados do survey Gênero, trabalho e família, de 2016, ajudam a iluminar algumas das tensões e contradições de que falamos: “[d]e modo espelhado e articulado, enquanto as mulheres se percebem majoritariamente fazendo mais (ou muito mais) do que a parte [de trabalho doméstico] que seria justa (56,2%), os homens se percebem fazendo menos (ou muito menos) do que a parte que seria justa (40%). É interessante notar, contudo, que o peso relativo dos que se percebem fazendo exatamente a parte que seria justa é bastante próximo entre homens e mulheres, o que sugere que parte dos casais já vivenciam dinâmicas de divisão nas quais ambos estão satisfeitos com o arranjo vivenciado” (Guedes, 201821 GUEDES, Moema. Escolaridade e gênero: percepções mais igualitárias? In: ARAÚJO, Clara et al. Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018a. p. 115-128., p. 125). A satisfação, nesses casos, não significa, necessariamente, contudo, arranjos mais igualitários: se é verdade que em alguns deles essa divisão pode ser, sim, mais equilibrada, o que explicaria a satisfação de parcela dos entrevistados, também é verdade que em outros casos é provável que essa divisão siga o esquema tradicional e a satisfação dos implicados tenha que ver antes com práticas e valores mais tradicionais professados pelos próprios respondentes, que não enxergariam na feminização do trabalho reprodutivo uma forma de injustiça ou privação.
  • 13
    Com base nos dados da PNAD, do IBGE, para o Brasil Metropolitano, no ano de 2006, Gama (2014, p. 177)19 GAMA, Andréa de S. Trabalho, família e gênero. Impactos do Direito do Trabalho e da Educação Infantil. São Paulo: Cortez Editora, 2014. mostra que, em famílias com filhos entre 0 e 6 anos, aproximadamente 59% dos pais, 97,5% das mães com cônjuge e 92,5% das mães sem cônjuge realizavam trabalho doméstico.
  • 14
    Os valores evocados pelas próprias mulheres, se mais ou menos igualitários ou mais ou menos tradicionais, não impactam no volume de trabalho reprodutivo realizado, segundo o survey Gênero, trabalho e família, de 2016, cujos resultados “mostram que as mulheres com uma percepção mais igualitária dos papeis de gênero são tão responsáveis pela realização das tarefas domésticas quanto as mulheres com percepções mais tradicionais” (Araújo et al., 20182 ARAÚJO, Clara et al. Evolução das percepções de gênero, trabalho e família no Brasil: 2003-2016. In: ARAÚJO, Clara et al. (ed.). Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. p. 1-81., p. 62).
  • 15
    Os debates travados em torno da licença paternidade ainda no curso da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, assim como os debates parlamentares mais recentes em torno da regulamentação do direito fundamental à licença paternidade são especialmente ilustrativos dos aspectos acima aludidos. Para uma reconstrução desses debates, ver Cattoni de Oliveira; Marques (2018)11 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MARQUES, Stanley S. Paternidades e a identidade do sujeito constitucional no Brasil: um estudo a partir do direito fundamental à licença-paternidade. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 63, n. 2, p. 9-38, 2018..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2022
  • Aceito
    28 Set 2022
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