Open-access Pela Ciência, contra os cientistas? Negacionismo e as disputas em torno das políticas de saúde durante a pandemia

For Science, against scientists? Science denial and the disputes over health policies during the pandemic

Resumo

Políticas de controle da pandemia de Covid-19 têm sido alvo de disputas no Brasil, com autoridades divergindo sobre formas de tratamento e os efeitos das estratégias de distanciamento social. Análises recentes caracterizam tais disputas como uma “batalha ideológica” de Bolsonaro contra “argumentos racionais” de especialistas e da OMS. Além disso, críticos caracterizam Bolsonaro como um representante do “populismo científico” que produz fake news para sustentar pautas negacionistas. Neste artigo, dialogamos com o campo de estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) para analisar os usos da ciência durante a pandemia. Demostramos que Bolsonaro não nega enunciados científicos in toto, mas busca legitimar suas políticas de saúde a partir das controvérsias públicas sobre a ciência. Ao explorar os meandros da produção de fatos científicos, o que Bolsonaro faz é questionar as credenciais da OMS e acusar opositores de politizarem pesquisas sobre formas de contenção da pandemia. Em outras palavras, Bolsonaro e seu entorno avançam uma imagem transcendental da Ciência, que reifica a divisão moderna entre o saber científico e a cultura, para criticar a contaminação ideológica de algumas instituições científicas no período de pandemia. Tal postura revela o jogo de poder epistêmico intrínseco ao debate contemporâneo sobre pós-verdade, no qual ideologia, esoterismo e desrazão são atribuídos sempre ao enunciado do outro.

Palavras-chave
negacionismo; fake news ; pandemia; ciência; populismo científico

Abstract

The politics of Covid-19’s pandemic control in Brazil has been engulfed in disputes, with local authorities disagreeing about alternatives of health treatment and the effects of social distancing strategies. Recent analyses have characterized such disputes as Bolsonaro’s “ideological battle” against “rational arguments” of specialists and the WHO. Also, critics have described Bolsonaro as a representative of “scientific populism” who produces fake news to support his anti-science politics. In this article, we engage with the field of Science and Technology Studies (STS) to observe the multiple uses of science during the pandemic. We argue that Bolsonaro does not deny scientific statements in toto but seeks to legitimize his government’s health politics based upon public controversies about science. Bolsonaro explores the interstices of the making of scientific facts to question WHO’s credibility and to accuse his adversaries of politicizing scientific research during the pandemic. Thus, Bolsonaro sustains a transcendental image of science, which reifies the modern separation between science knowledge and culture, to criticize the ideological contamination of certain institutions. This posture reveals the epistemic dispute intrinsic to contemporary debates on post-truth, which postulates that ideology, esoterism, and anti-reason are always attributes of others.

Keywords
denialism; fake news; pandemic; science; scientific populism

Introdução

Em janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a Covid-19 configurava uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). A organização reconheceu que ainda havia pouca informação sobre o vírus, mas optou por recomendar que os países implementassem estratégias de controle previstas no Regulamento Sanitário Internacional, incluindo “isolar e tratar casos, rastrear contatos e promover medidas de distanciamento social adequadas ao risco” (OMS, 2020, p. 1).1 No Brasil, as políticas de saúde logo se tornaram alvo de disputa. Autoridades públicas divergiram sobre a magnitude do risco e, fundamentalmente, sobre formas de tratamento e os efeitos da quarentena. Enquanto diversos estados aprovaram decretos emergenciais para suspender atividades não essenciais e monitorar aglomerações, o governo federal diminuiu a importância da crise sanitária e defendeu ações menos restritivas.

Em seu primeiro pronunciamento acerca da Covid-19, Bolsonaro (2020a) optou por caracterizá-la como uma “gripezinha” cujos efeitos só seriam preocupantes em populações idosas e em indivíduos com doenças crônicas e comorbidades. O mais indicado seria então uma política de mitigação focada em grupos prioritários (Fernandes, 2020). Não haveria a necessidade de fechamento de escolas ou do comércio, e as autoridades de saúde deveriam atentar para o monitoramento e o tratamento experimental de sintomas. Enquanto a população desenvolveria “imunidade de rebanho”, aqueles com maior risco ficariam seguros até que vacinas fossem disponibilizadas.

O ponto central da controvérsia naquele período se dava em torno da eficácia do distanciamento social e de suas consequências no médio prazo. Segundo o presidente, ao seguir protocolos da OMS para ESPIIs, alguns governadores e prefeitos estavam aderindo à histeria e adotando medidas que não apenas restringiam liberdades individuais, mas prejudicavam a economia, o que geraria uma crise social nos meses seguintes (Mazui, 2020). Em contraposição, o governo federal pautou as respostas iniciais ao coronavírus em duas estratégias. Por um lado, defendeu o isolamento vertical, que permitia o funcionamento de grande parte dos serviços e do setor produtivo, e, por outro, os indivíduos que contraíssem a doença seriam tratados com uma combinação de (hidroxi)cloroquina (CQ/HCQ) e azitromicina (AZ) que, apesar de não ter eficácia comprovada, seria a melhor solução disponível e cujos baixos custos permitiriam aplicação em larga escala.

Análises acerca das disputas do governo federal com lideranças locais e a OMS têm caracterizado as diferentes respostas à pandemia como uma “batalha ideológica” do presidente contra “argumentos racionais” (Caponi, 2020, p. 210). Nessa perspectiva, Bolsonaro representa a negação do conhecimento científico e alimenta conflitos políticos com fake news sobre formas alternativas de tratamento (Henriques; Vasconcellos, 2020), o que o torna “a maior ameaça às respostas do Brasil à Covid-19” (The Lancet, 2020, p. 1461).2 Essa literatura posiciona o presidente como mais um prócer da era da pós-verdade, cujas políticas “erodem o núcleo central do Iluminismo: a ideia de que pensamento crítico, debate aberto e evidências promoverão o florescimento humano e a boa governança” (Holman, 2020, p. 372).3

Neste artigo, argumentamos que, ao contrário das críticas apontadas acima, a postura de Bolsonaro, em muitos momentos, não nega diretamente a relevância do discurso científico e da formulação de políticas públicas pautadas em evidências. Não se trata exatamente de um jogo “Ciência versus Ideologia” (Carvalheiro, 2020, p. 13), mas da disputa pelo sentido das políticas de saúde a partir das controvérsias públicas sobre a ciência. Em outras palavras, ao invés de questionar a autoridade da epistemologia científica, Bolsonaro se vale de um discurso ambíguo. Por um lado, aposta em uma estratégia empregada há décadas por grupos de interesse para influenciar o debate público: “combater a ciência com ciência — ou ao menos com as lacunas e incertezas na ciência existente” (Oreskes; Conway, 2010, p. 13).4 Por outro, o presidente e seu entorno avançam uma imagem transcendental da ciência, que reifica a divisão moderna entre o saber científico e a cultura (Latour, 1993), para criticar a politização de algumas instituições científicas no período de pandemia. O negacionismo de Bolsonaro, portanto, não opera no sentido de substituição da ciência no lugar da portadora da verdade, mas sim de sua purificação. Ou seja, os “profissionais da negação” (Danowski, 2018) não são aqueles que desorganizam as coordenadas entre ciência e ideologia, mas os que demandam uma ciência realmente apartada de qualquer articulação social. Como coloca Alyne Costa (2021, p. 307), negacionistas “só podem ter sucesso se explorarem a imagem de uma ciência desinteressada que deve ser protegida das deturpações decorrentes da ignorância e de interesses mesquinhos”.

Partirmos então das controvérsias em torno das posturas de Bolsonaro durante a pandemia para avançar uma análise sobre como o saber científico é produzido, suas múltiplas relações com o poder, e os usos do discurso científico no campo político. Para tanto, a primeira parte do artigo se debruça sobre a literatura recente em torno da pós-verdade e do “populismo científico”, mapeando alguns dos conceitos mobilizados pela crítica à postura do governo federal. Em seguida, nos afastamos de parte desse diagnóstico e apontamos que a análise da forma como Bolsonaro se apropria da epistemologia científica permite uma compreensão mais apurada das estratégias discursivas que sustentam suas políticas de saúde. Na segunda parte, observamos de perto como esta estratégia se desenvolveu em dois campos de disputa: a introdução de medidas de distanciamento social e a promoção do tratamento com cloroquina. Demonstramos que, em ambos os casos, Bolsonaro e seus apoiadores não questionaram a relevância da expertise ou a validade da ciência, mas buscaram sustentar seus argumentos com referências aos marcadores tradicionais da autoridade científica. Isso não quer dizer que seja impossível encontrar teorias da conspiração (Kalil et al., 2021) ou a defesa de “epistemologias alternativas” (Mede; Schäfer, 2020), mas indica que a relação de Bolsonaro com o negacionismo é mais complexa do que as críticas mais apressadas fazem parecer. Por fim, como aponta Costa (2021, p. 307), o que o negacionismo nega não é exatamente a ciência, mas “determinadas práticas e enunciados dos quais se duvida que sejam verdadeiramente científicos”. Membros do governo acusam alguns cientistas e instituições de corromper a ciência por suas inclinações pessoais ou políticas e, dessa forma, reificam o ideal da Ciência neutra e desinteressada.

Ao lançar luz sobre os fundamentos do discurso enunciado por representantes do governo federal, podemos entender melhor seus efeitos para além das disjuntivas verdade/mentira ou ciência/cultura. Na conclusão, argumentamos que, independentemente da legitimidade conferida (ou não) pelas instituições que definem os parâmetros aceitáveis para a prática científica, existem resultados concretos que decorrem dos cursos de ação implicados na defesa das posições tidas como negacionistas. Ou seja, discursos “negacionistas” produzem consequências no mundo que nos exigem um esforço de compreensão do seu funcionamento, mais do que sua simples refutação.

Populismo científico, negacionismo e pós-verdade: as chaves de interpretação das respostas de Bolsonaro à pandemia

A pandemia de Covid-19 intensificou uma tendência já observada no debate público de interpretação dos movimentos de extrema-direita que ascenderam ao poder na última década sob o signo de sua relação com a verdade. Os líderes desses movimentos têm sido identificados como populistas que combatem as elites políticas e intelectuais com o objetivo de libertar o povo das narrativas enganosas que garantem a autoridade, a legitimidade e a manutenção dos privilégios dessas mesmas elites (Mudde, 2017; Mede; Schäfer, 2020). Nesse processo, ganha destaque a contestação ao papel da imprensa tradicional na difusão de informações e das universidades como espaços privilegiados de produção de conhecimento. Há crescente adesão ao diagnóstico de que a crise da democracia liberal passa por uma relação problemática de certas forças políticas com instituições que desempenham papel central na produção e validação de enunciados reputados como verdadeiros (Bucci, 2019; Giusti; Piras, 2021). Não por acaso, em oposição às medidas de mitigação da pandemia propostas por Bolsonaro, vemos acusações de que “a ciência está sob ataque” (Hallal, 2021) e de que a recomendação de tratamentos ineficazes constituiria um “populismo pandêmico” (Muggah; Lago, 2020).

As teses do populismo científico e da alt-science (Mede; Schäfer, 2020; Oliveira, 2020; Casarões; Magalhães, 2021) partem, em geral, de dois pressupostos. Em primeiro lugar, identificam uma desconfiança de governantes em relação à autoridade e ao papel político de especialistas, o que leva à denúncia de que cientistas fariam parte de um grupo conspiracionista que trabalha contra os interesses do povo, ou que simplesmente ignora os interesses desse, gastando dinheiro público em projetos que servem para avançar as próprias carreiras, gerar descobertas inúteis e responder a demandas de cunho ideológico ou comercial (Ylä-Anttila, 2018). Em segundo lugar, esta literatura argumenta que líderes populistas questionam a validade do método científico e avançam uma “eu-pistemologia”, ou a ideia de que a experiência não mediada do indivíduo vale mais que evidências produzidas a partir de testes reprodutíveis e falseáveis (van Zoonen, 2012). Nessa perspectiva, há um reforço do antagonismo entre o povo, que carrega os atributos virtuosos do senso comum e do conhecimento autêntico, e as elites, organizadas em torno de algumas instituições e interesses escusos, que “nutrem uma epistemologia artificial e depreciam a epistemologia simples, naturalística e confiável das pessoas comuns” (Mede; Schäfer, 2020, p. 481).5

Não raro, a essas teses se somam análises acerca do impacto das mídias sociais na inédita capacidade de disseminação de notícias falsas (Da Empoli, 2019) e na criação de simulacros do debate público, ou bolhas informacionais homofílicas em que argumentos contraditórios são cada vez mais difíceis de encontrar (Pariser, 2011). Além disso, essa nova estrutura de comunicação social seria usada por líderes de extrema-direita para estratégias de firehosing e hedging narrativo (Cesarino, 2021), ou a emissão rápida e massiva de mensagens que apontam em múltiplas direções (diferentes públicos interagem com diferentes mensagens) e permitem a produção, teste e adaptação de narrativas. Para Cesarino, dessa estrutura caleidoscópica do discurso decorre a construção de realidades pulverizadas e o esvaziamento do sentido universal e incontestável do processo de construção da verdade. O resultado é um “caos epistêmico” (Zuboff, 2021), que se traduz na perda de confiança e legitimidade das instituições modernas que servem de âncora para ciência.

No Brasil, costuma-se apontar Olavo de Carvalho como ator central dessa crise epistêmica (Perez Oliveira, 2020). A denúncia de que o saber científico no país estaria impregnado pela manipulação do “marxismo cultural” leva à negação de qualquer evidência produzida nas universidades e laboratórios e confirmada pelo sistema de peritos. A solução para superar a corrompida estrutura cognoscente que a priori determina a produção científica seria a ação emancipatória de pensadores verdadeiramente livres, isto é, aqueles capazes de se insurgir contra a mediação metodológica ideologizada e construir “saberes pautados na observação direta e independente” (Carvalho apud Perez Oliveira, 2020, p. 84). Contrapondo o empirismo cartesiano ao relato testemunhal, Olavo de Carvalho afirma que a legitimidade do saber está na autoridade moral e pessoal daquele que o enuncia. O corpo do cientista é contextualizado e sociologizado, sendo relevante, portanto, o ponto de partida de sua representação da realidade.6

Nesse sentido, não é surpreendente que muitas das críticas ao governo federal que partem de órgãos científicos e da imprensa tradicional, instituições cuja credibilidade está em questão, argumentem que Bolsonaro teria no negacionismo seu modo de fazer política (Bucci, 2019; Mello, 2020). No contexto da pandemia, vemos a constatação de que o país se encontraria polarizado entre negacionistas e aqueles que avançam políticas de saúde baseadas em evidências (Duarte; César, 2020; Fonseca et al., 2021). Silva e Ventura (2020, p. 74), por exemplo, argumentam que, na retórica populista de Bolsonaro, “questões técnicas, como o uso de drogas sem efetividade comprovada e a adoção de medidas de quarentena, têm sido politizadas em meio a teorias da conspiração e fake news”.7 Em linha análoga, Caponi (2020, p. 22) afirma que as estratégias de Bolsonaro estão pautadas no “ódio, [n]a irracionalidade e [n]o discurso anticientífico [...] que se impõe[m] à racionalidade, à argumentação, à solidariedade e ao diálogo informado e cientificamente fundamentado”. Em resumo, Bolsonaro tem sido descrito como um “presidente autoritário com pouca consideração em relação à ciência” (Duarte, 2020, p. 290).8

Seria de se esperar, portanto, que o sucesso político de Bolsonaro estivesse refletido no descrédito da epistemologia científica e na sustentação de políticas públicas embasadas apenas por convicções pessoais ou religiosas. Contudo, estudos recentes têm problematizado esse diagnóstico. Pesquisas de opinião indicam que o índice de confiança na ciência entre brasileiros subiu durante a pandemia e chegou a 89% (acima da média mundial) (Andrade, 2020). Ainda, para 91% da população, cientistas são a fonte de conhecimento mais confiável sobre a Covid-19. Isso não quer dizer que apenas 9% da população esteja ao lado de Bolsonaro no questionamento às recomendações da OMS e às evidências em torno do isolamento social e do tratamento com cloroquina.9 Ciência é um conceito polissêmico e “negacionismo científico” também (Diethelm; McKee, 2009). O que esses números indicam é que as estratégias discursivas do governo federal e de seu círculo de apoiadores em relação às evidências científicas produzidas sobre a Covid-19 são mais diversas do que fazem crer os diagnósticos acerca do relativismo da “eu-pistemologia” ou da negação da capacidade da ciência de produzir conhecimentos especializados e se aproximar da verdade.

Buscando trazer mais complexidade ao debate sobre negacionismo, Diethelm e McKee (2009, p. 2) o definem como “o emprego de argumentos retóricos que dão a aparência de debate legítimo onde esse não ocorre, uma abordagem que tem como objetivo último rejeitar proposições sobre as quais existam consensos científicos”.10 Segundo os autores, existem cinco estratégias discursivas comumente mobilizadas: a identificação de conspirações; o uso de falsos experts; a seletividade ou ênfase em pesquisas isoladas que contrariam o consenso científico; a criação de expectativas impossíveis para as pesquisas científicas; e o uso de falácias lógicas e deturpações. Análises que buscam mapear o debate público nas redes sociais apontam que muitas dessas estratégias não são estranhas ao círculo político de Bolsonaro e revelam o esforço por parte do governo de se apropriar dos signos de autoridade epistêmica da ciência (Oliveira et al., 2021; Ruediger, 2021). Em levantamento de interações da base governista no Twitter, Oliveira et al. (2021, p. 170) argumentam que, embora algumas das fontes citadas e disseminadas sejam de conhecidos veículos de desinformação, as principais notícias que animavam bolsonaristas circularam em grandes jornais e buscavam acumular credenciais científicas, de modo que a estratégia de comunicação do governo federal

se apropria da autoridade científica de formas diferentes para fortalecer seus argumentos. Não há oposição à ciência, nem negação da validade do conhecimento científico. [...] [está em curso um] projeto de ocupação do campo científico e a busca por autoridade através do uso de linguagem e padrões científicos.11

De modo semelhante, estudo da DAPP/FGV (Ruediger, 2021, p. 9) aponta que os grupos descritos como negacionistas têm “recorrido ao repertório e a fontes científicas e/ou pseudocientíficas em busca de legitimidade epistêmica”. Ao investigar “os usos sociais do estatuto de autoridade científica”, o estudo conclui que “reivindicações de cientificidade” são incorporadas nas disputas discursivas sobre o caminho das políticas públicas de saúde durante a pandemia.

Apesar dos avanços proporcionados à análise do discurso negacionista, a definição de Diethelm e McKee (2009) apresenta uma limitação central: reproduz a distinção entre “boa ciência”, aquela apartada de laços sociais e que segue o éthos mertoniano,12 e “má ciência”, cujas dinâmicas internas são contaminadas por interesses políticos ou econômicos. Esta mesma limitação se faz presente na literatura que contrapõe controvérsias “autênticas”, que se nutrem supostamente apenas de incongruências epistemológicas e metodológicas, e “fabricadas”, que decorrem da falsificação do debate científico de modo a avançar pautas estranhas ao campo (Oreskes; Conway, 2010; Ceccarelli, 2011, Weinel, 2019).13

Nesse sentido, quando comparada às críticas ao “populismo científico”, a abordagem de Diethelm e McKee (2009) oferece mais subsídios à análise do discurso negacionista, mas esta não escapa da simplificação herdada do enquadramento dicotômico e assimétrico da prática científica. Uma vez que os autores reiteram a possibilidade de uma ciência autônoma e negam que esta seja um empreendimento inerentemente social, eles não renunciam à premissa da antinomia entre poder político e saber científico que assenta um dos mitos de origem das sociedades ocidentais modernas (Latour, 1993). Nessa perspectiva, onde há interesse pessoal, motivação política e ambição de poder, não pode haver verdade pura, saber científico neutro e universal. O pressuposto dessas críticas é que Bolsonaro e suas motivações ideológicas estão de um lado e as instituições científicas e suas propostas politicamente desinteressadas de outro. No entanto, como veremos ao longo do artigo, é justamente a ideia de que determinados cientistas são capazes de produzir um saber científico livre de amarras ideológicas e econômicas que Bolsonaro explora para desconstruir a autoridade epistêmica de seus críticos.

Na próxima seção, demostramos que não há o abandono da epistemologia científica em prol de outras formas de acesso à verdade ou de justificação das políticas públicas, de modo que não é de se estranhar que o apoio político a Bolsonaro e a confiança na ciência possam conviver. Como destacamos a seguir, não são campos necessariamente antagônicos. Na parte final do artigo nos debruçamos sobre o risco de mobilizar o ideal da Ciência moderna na crítica ao negacionismo de Bolsonaro.

A disputa pela verdade: a “ciência” de Bolsonaro

Como nos lembram Aradau e Huysmans (2018, p. 50-51), ao observar o processo de validação do conhecimento científico, “a questão crítica não é simplesmente epistemológica ou metodológica, mas o engajamento com a forma pela qual a credibilidade é construída atualmente – como o conhecimento é autorizado ou desacreditado”.14 Ou seja, o ponto central é a produção de confiança no processo de acumulação de conhecimento qualificado, o que dá autoridade e legitimidade ao cientista. Como leigos não são capazes de avaliar os meandros das pesquisas e a precisão dos diferentes estudos para tomar posição acerca das controvérsias, seu engajamento com a ciência se dá a partir de mecanismos de deferência epistêmica. Nesse sentido, o que está em jogo é a capacidade de determinadas instituições de se colocarem como porta-vozes legítimos do saber científico.

Nesta seção, analisamos dois campos de disputa pela construção da credibilidade científica. Especificamente, observamos o debate entre medidas de distanciamento social e isolamento vertical, e as controvérsias acerca do uso da cloroquina. Em ambos os casos, demostramos que é possível identificar a exploração de brechas nos processos de produção de fatos científicos e o esforço sistemático em desacreditar determinados atores hegemônicos do campo, como já mapeado pela literatura (Diethelm; Mckee, 2009; Oreskes; Conway, 2010; Oliveira, 2020; Casarões; Magalhães, 2021; Cesarino, 2021), mas também a promoção de um ideal de ciência livre de laços sociais.

Ao buscar a complexificação da compreensão sobre o negacionismo do círculo político bolsonarista, foi necessário captar a maneira pela qual certos atores se relacionaram com enunciados tidos como científicos e as instituições emissoras dos mesmos. Foi preciso também entender de que forma alegações de cientificidade foram construídas, o que nos levou a analisar a produção científica mobilizada nos discursos bolsonaristas, bem como a posição de instituições que tiveram papel central nas duas controvérsias analisadas, como a Associação Brasileira de Medicina (ABM) e o Conselho Federal de Medicina (CFM). Além dos posicionamentos oficiais, registrados em notas técnicas e demais tipos de manifestação pública, recorremos a outros três grupos de fontes: (1) falas retratadas nos meios de comunicação tradicionais; (2) manifestações em mídias sociais e (3) discursos de atores políticos e científicos registradas nos primeiros trabalhos acadêmicos que discutem as posições do governo diante da crise sanitária. Essa seleção não pretende abarcar o caráter caleidoscópico dos discursos bolsonaristas (Cesarino, 2021), mas trazer para o centro um grupo de evidências que permanece negligenciado por grande parte da crítica. Essa escolha não implica a coleta de meras evidências anedóticas, uma vez que estudos mais sistemáticos reconhecem a incidência e relevância ilustrativa dos discursos aqui trabalhados (Oliveira et al., 2021; Ruediger, 2021). Assim, reconhecemos que o discurso político ativo não forma uma totalidade coerente, cuja fonte emissora é passível de apreensão objetiva (Foucault, 1999). Antes, ele se manifesta em pontos distintos da vida social e política, o que requer – em particular no caso de um objeto do tempo presente – esforço analítico para determinar seu sentido.

Disputas acerca das políticas de contenção do contágio e controle social

Em cenários endêmicos de novas zoonoses, nos quais não há instrumentos específicos de proteção e diagnósticos precoces para tratamento, medidas pré-patogênicas (etiqueta respiratória, uso de máscaras, hábitos de higiene e redução do contato físico) se tornam os procedimentos centrais de prevenção (Chu et al., 2020). Diversos estudos apontam que o isolamento de indivíduos infectados, quarentenas preventivas e medidas de distanciamento social têm graus diferentes de eficácia na redução da taxa de retransmissão do vírus e, logo, na curva de contágio. Em outras palavras, não há uma medida única que deva ser adotada em todos os momentos e lugares, mas diferentes estratégias que se mostram mais ou menos adequadas dependendo do grau de disseminação da doença e das condições do sistema de saúde de rastrear novos casos e oferecer tratamento (Wilder-Smith; Freedman, 2020). Nesse sentido, as respostas a serem implementadas dependem de estimativas de incidência, prevalência e duração da Covid-19. Hellewell et al. (2020), por exemplo, argumentam que, se as autoridades de saúde forem capazes de rastrear e isolar 80% dos casos iniciais, a taxa de contágio cai 90%, o que dispensaria medidas mais restritivas de circulação. Quando já se atingiu o grau de transmissão comunitária, há convergência na recomendação de medidas de supressão, ou seja, de redução do contato físico (Ferguson et al., 2020). No entanto, incertezas acerca dos registros médicos (i.e., subnotificação) e da precisão dos variados testes empregados, induzem projeções de contágio que variam muito (Koerth et al., 2020), alimentando controvérsias sobre a magnitude do problema e os melhores métodos de gestão da pandemia.

Ao questionar estudos que sustentam políticas de distanciamento social, Bolsonaro propôs que estratégias de mitigação deveriam ter caráter limitado geográfica e demograficamente. Na prática, as recomendações do presidente levariam a ações mais flexíveis de controle da circulação, de modo que o fechamento do comércio e demais serviços só seria adotado em algumas cidades com surtos crescentes de contágio e, mesmo nessas, em bairros específicos. Além disso, o equilíbrio entre segurança sanitária e econômica exigiria uma estratégia de “isolamento vertical” (Fernandes, 2020). Pautado nas evidências empíricas de “intervenções baseadas no risco” (Smith; Spieglehalter, 2020), o governo federal argumentava que as medidas restritivas deveriam se adequar à vulnerabilidade prevista de cada grupo populacional (Ministério da Saúde, 2020a). Enquanto indivíduos saudáveis estariam protegidos com medidas básicas de higiene, aqueles mais vulneráveis seriam foco de cuidados especiais, incluindo quarentenas, medicações profiláticas e monitoramento permanente das condições de saúde. De fato, uma série de modelos experimentais de estratégias de “estratificar e proteger” encontraram evidências em favor de quarentenas focalizadas (Acemoglu et al., 2020; McKeigue; Colhoun, 2020) e pelo menos um trabalho (Meunier, 2020), bastante citado por detratores de medidas radicais de distanciamento social no Brasil (Pontes; Lima, 2020), aponta que países que adotaram medidas menos restritivas tiveram experiências semelhantes no que tange à evolução da pandemia.

Buscando alternativas ao lockdown, Bolsonaro e seus apoiadores fizeram ainda repetidas menções ao trabalho de Michael Levitt, professor da faculdade de medicina de Stanford e prêmio Nobel de química (“Bolsonaro cita fala...”, 2020; Terra, 2020). Levitt publicou artigo em que argumenta que a curva de infecção seria não exponencial – ao contrário do que defendiam muitos epidemiologistas e a OMS –, o que teria implicações significativas para políticas de supressão (Levitt et al., 2020).15 Em resumo, para Levitt, o achatamento da curva de transmissão dos vírus se daria de forma natural a partir das primeiras semanas epidemiológicas, e não em função de medidas de controle social.

Segundo o presidente, a adoção de intervenções baseadas no risco se justificava, fundamentalmente, pelos efeitos econômicos do lockdown, já que a interrupção das cadeias produtivas causaria o fechamento de empresas e aguda recessão, acarretando, no médio prazo, no aumento da pobreza e da fome. Nas palavras de Bolsonaro, “as consequências [de medidas de distanciamento social], vão ser muito mais danosas do que o próprio vírus. Não podemos ter um remédio que no final das contas a dose vai ser tão grande que o número de problemas vai ser muito maior que o vírus em si” (Carvalho; Della Colletta, 2020). As propostas do governo federal reconheciam, portanto, que não era possível interromper novas transmissões, mas apenas frear a curva, gerando uma situação de “contágio controlado”. No cenário ideal, testagens em massa e o rastreamento de contatos de infectados permitiriam uma gestão mais eficiente da pandemia. Aos poucos, os níveis de imunização atingiriam patamares altos e novas transmissões tenderiam a zero (McKeigue; Colhoun, 2020).

Indo além, o deputado Osmar Terra, aliado do governo em defesa de ações menos restritivas, alegava que muitas das medidas de controle de contágio propostas pela OMS não seriam viáveis no Brasil. Mesmo que o governo promovesse uma quarentena radical, sua capacidade de assegurar o distanciamento social era limitada por questões culturais e pela arquitetura das grandes cidades. Em suas palavras: “Não existe isolamento social no Complexo do Alemão, não existe no Complexo da Maré. Isso é uma construção teórica só para a classe média achar que está protegida. Não tem resultado. Não tem possibilidade, não tem estudo científico mostrando impacto” (“Em debate, Osmar Terra...”, 2020).

Corroborando o argumento de Terra, há evidências na literatura de saúde pública de que estratégias amplas de contenção do vírus não são de fácil implementação. Essas precisam ser monitoradas e garantidas pelas forças policiais, gerando riscos de violação dos direitos humanos (Wilder-Smith; Freedman, 2020). Além disso, quarentenas também teriam impacto na mortalidade de outras doenças. Estudos evidenciam que o isolamento aumenta a incidência de doenças psicossociais, o sedentarismo gera riscos de doenças cardíacas, e o confinamento contribui para o crescimento de casos de violência doméstica (Abel; McQueen, 2020; VanderWeele, 2020). Como apontam Walker et al. (2020, p. 5), “enquanto a supressão terá sempre mais impacto na morbidade e mortalidade da Covid-19, a intensidade das intervenções precisa ser equilibrada e não deve negligenciar os riscos mais amplos à saúde que podem decorrer da atenção total a uma única doença”.16

É importante notar que o trade-off apontado por Bolsonaro (gestores públicos têm que escolher entre maior controle do contágio ou melhor desempenho econômico) não é consensual. Indicadores econômicos parecem corroborar a narrativa do presidente, e há evidências de que recessões e o aumento da pobreza causam o aumento da mortalidade no longo prazo (Hone et al., 2019). Contudo, há pesquisas sobre impactos econômicos de pandemias que apontam que os prejuízos podem ser minorados com a aplicação adequada de medidas de distanciamento social (Baldwin; di Mauro, 2020). Analisando o cenário de diferentes cidades dos EUA durante a “gripe espanhola” em 1918, Correia, Luk e Verne (2020) concluem que o uso de intervenções não farmacológicas está associado a melhores resultados econômicos posteriores. Observando os efeitos da ampla quarentena implementada em Toronto, em 2003, Gupta, Moyer e Stern (2005) chegam a resultados semelhantes. Para os autores (2005, p. 392-393): “não é apenas por interesse humanitário que profissionais da saúde devem se manter agressivos em suas respostas a novas infecções, mas também pelo interesse econômico coletivo. Apesar de custos iniciais assustadores, quarentenas salvam tanto vidas quanto dinheiro”.17

Frente às incertezas sobre os impactos econômicos, pesquisas apontam que a questão chave para decidir sobre a resposta mais adequada de combate à pandemia é a identificação da taxa de mortalidade da doença, o que pode variar em diferentes locais e períodos. Nesse sentido, John Ioannidis (2021) foi especialmente influente para aqueles que defendiam medidas mais flexíveis. Ioannidis compilou estimativas de taxas de mortalidade apresentadas em 36 estudos e apontou que o cálculo inicial de mortalidade divulgado pela OMS, que embasou propostas mais severas de distanciamento social, estava superestimado. Ao invés de 3,4% de mortalidade, o autor argumenta que as taxas variaram entre 0,1% e 0,9%, sendo a média corrigida para pessoas abaixo de 70 anos de 0,04%. Esse tipo de discrepância nos dados levou Bolsonaro a declarar que a OMS “está deixando muito a desejar. Fala-se tanto em foco na ciência, o que menos tem de ciência é a OMS, parece que não acerta nada” (Schuch, 2020). Nesse cenário, caberia ao governo discernir entre fontes confiáveis e aquelas que produzem ciência com viés ideológico. Como coloca Terra, “A OMS está muito politizada. O cara que é o diretor geral da OMS é do Partido da Liberação do Tigré da Etiópia... Eles são marxistas, leninistas e maoístas… Eu quero falar com o CDC lá dos Estados Unidos..., o maior centro científico do mundo” (Almeida Filho, 2020).

Em seu estudo, Ioannidis alerta que é necessário cautela, já que os dados acerca da dimensão da Covid-19 são pouco confiáveis. A falta de testes faz com que não saibamos se a subnotificação se dá por um fator de 3 ou 300. Na ausência de dados consolidados, o autor argumenta que demoraremos algum tempo até poder ter certeza se a opção por intervenções baseadas no risco foi “brilhante ou catastrófica” (Ioannidis, 2020). Portanto, o processo de análise estatística que permitiria aferir a validade de diferentes medidas de contenção da Covid-19 foi, ao menos nos primeiros meses da pandemia, atravessado por controvérsias. Em um primeiro nível, havia dificuldades na coleta e sistematização de informações em tempo real, e permaneciam dúvidas sobre as taxas de falso positivo e falso negativo dos testes realizados. Uma vez que dados sobre infecções e mortes eram processados, novas incertezas apareciam. Havia também controvérsias sobre a análise de impacto de diferentes intervenções implementadas. O número de variáveis entrelaçadas é enorme e a possibilidade da realização de estudos mais conclusivos (i.e., RCTs com grupos de controle) durante a pandemia é bastante limitada.18 Ocorrem, simultaneamente, mudanças de hábito (uso de máscara, álcool gel e contato físico), implementação de campanhas de conscientização e a adoção de diferentes níveis de quarentena que, por sua vez, guardam graus diferentes de execução e conformidade. Nesse sentido, a capacidade de epidemiologistas e estatísticos de produzirem modelos precisos sobre os diferentes cenários é reduzida. Pequenas diferenças nas estimativas de taxas de transmissão do vírus, um fato comum em modelos de novas epidemias, podem levar, em um período de vários meses, a projeções que variam entre alguns milhares e alguns milhões de infectados, ou, como colocam Koerth et al. (2020), “um número com o qual podemos conviver, ou que transforma um país para sempre”.19

Bolsonaro não estava sozinho ao sugerir que o lockdown tem efeitos colaterais que não devem ser ignorados. O governo também não apelou para um discurso religioso, promovendo bases de legitimação política por fora da ciência ou contra a ciência. O que o presidente fez foi engajar no debate público sobre as diferentes formas de contenção da pandemia afirmando que a ciência estava ao seu lado. Em suas palavras, “a desinformação mata mais até que o próprio vírus. O tempo e a ciência nos mostrarão que o uso político da Covid [...] trouxe-nos mortes que poderiam ter sido evitadas” (Bolsonaro 2020b).

Politização dos tratamentos: “quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, tubaína”20

Em março de 2020, o Ministério da Saúde publicou nota técnica promovendo a cloroquina para tratamento de pacientes com diagnóstico positivo de Covid-19. Nesta nota, o ministério reconhece a ausência de estudos que comprovem os benefícios do tratamento e informa que todos os pacientes devem assinar um termo de consentimento no qual consta que: “não há, até o momento, estudos suficientes para garantir certeza de melhora clínica dos pacientes com Covid-19” (Ministério da Saúde, 2020b). A nota reconhece ainda que o tratamento pode gerar efeitos colaterais, mas afirma que, “em razão da insuficiência de alternativas terapêuticas” e “considerando que... é um tratamento de baixo custo, de fácil acesso e também [que a droga é] facilmente administrada”, seu uso deve ser liberado para médicos dos sistemas público e privado (Ministério da Saúde, 2020b).

Apesar de experimental, o ministério argumentava que o tratamento com CQ/HCQ+AZ inibiria “a replicação de SARS COV, por meio da glicosilação terminal da Enzima Conversora de Angiotensina 2, produzida pelos vasos pulmonares, que pode afetar negativamente a ligação vírus receptor” (Ministério da Saúde, 2020b). Em outras palavras, a cloroquina impediria o vírus de entrar em novas células e se multiplicar. No entanto, pesquisas que agregam resultados de diferentes estudos de impacto do tratamento de pacientes de Covid-19 com CQ/HCQ+AZ reforçam que não há benefícios para a melhora das condições de saúde dos pacientes (Singh et al., 2020). Segundo revisão publicada por Singh et al. (2020), “meta-análises não apresentam benefício para depuração viral, mas um aumento significativo de mortes foi observado com o uso de hidroxicloroquina em pacientes de Covid-19 quando comparado com o grupo de controle”.21 RCTs realizados nos EUA (Boulware et al., 2020), no Canadá (Skipper et al., 2020) e em Barcelona (Mitjà et al., 2020), apesar de aplicarem métodos distintos, chegaram a resultados semelhantes: não há efeito observável na redução dos sintomas da doença. Até mesmo um dos estudos citados na nota do Ministério da Saúde aponta que, após revisão sistemática de 17 artigos, “a eficácia e a segurança da hidroxicloroquina... em pacientes com Covid-19 é incerta e seu uso de rotina para esta situação não pode [ser] recomendado até que os resultados dos estudos em andamento possam avaliar seus efeitos de modo apropriado” (Riera; Pacheco, 2020, p. 2).

Questionado sobre as incertezas acerca da eficácia da CQ/HCQ e os riscos para pacientes já debilitados pela Covid-19, Bolsonaro repetidamente depositou o ônus da prova científica naqueles que defendem cautela com tratamentos experimentais: “Não é o meu entendimento, porque eu não sou médico. É o entendimento de muitos médicos do Brasil e de outras entidades de outros países que entendem que a cloroquina pode e deve ser usada... apesar de saberem que não tem uma confirmação científica da sua eficácia” (Maia, 2020).

Pasternak e Orsi (2020a) mapearam as controvérsias científicas em torno da cloroquina e apontaram estudo realizado pelo microbiologista Didier Raoult como base para políticas de incentivo ao tratamento. Este estudo apontava que indivíduos tratados com uma combinação de CQ/HCQ+AZ apresentaram melhoras clínicas ou cura virológica após seis dias (Million et al., 2020). No entanto, desde a publicação seus autores foram acusados por parte da comunidade científica de manipular a metodologia (Rosendaal, 2020). Conforme apontam Pasternak e Orsi, este tratamento não tem sequer plausibilidade biológica. Para os autores (2020b):

Nem todos os estudos científicos nascem iguais. O Ministério da Saúde... [se baseia] em evidências fracas, de má qualidade ou inadequadas... [Em] um ambiente de políticas públicas de saúde mais racional e menos conflagrado, as autoridades já teriam reconhecido que a recomendação de CQ/HCQ... tornou-se insustentável frente aos resultados científicos publicados.

De fato, muitos dos céticos em relação aos efeitos da CQ/HCQ afirmam que a busca por tratamentos eficazes é prejudicada pela proliferação de estudos pouco criteriosos e cujos resultados são ilusórios. Como apontam Jones, Woodford e Platt-Mills (2020, p. 1) a maioria dos testes clínicos realizados na busca de tratamentos para a Covid-19 “carecem de características essenciais [no desenho de pesquisa] e o poder necessário para oferecer estimativas acuradas sobre o efeito dos tratamentos”.22 O que é pior, alguns desses testes ainda representam graves riscos para os pacientes. Estudo realizado em Manaus identificou efeitos colaterais severos, e indicou que o uso pouco criterioso poderia levar à morte. Frente a esse resultado, Marcus Lacerda e sua equipe concluíram que seria melhor interromper os testes clínicos (Borba et al., 2020). Contudo, os pesquisadores foram criticados por administrar dosagens muito altas, o que deturparia os resultados. Experimentos posteriores com dosagens menores mostraram que os efeitos colaterais eram realmente menos significativos (Wessel, 2020). Em meio aos questionamentos sobre a qualidade e segurança do estudo clínico, os pesquisadores foram acusados por Eduardo Bolsonaro (2020) de fazer “militância médica de esquerda”, administrando doses altas apenas para “desqualificar a cloroquina”.

Contribuiu para esta controvérsia o fato de que, em maio de 2020, a OMS recomendou a interrupção de tratamentos e pesquisas com cloroquina pautada em um artigo que foi posteriormente retirado da Lancet por acusação de fraude. A pesquisa de Mehra et al. (2020) afirmava que, após análise de 96 mil pacientes, a cloroquina não apenas não causava melhora clínica, como ainda aumentava o risco de arritmia cardíaca. Os resultados, no entanto, não foram disponibilizados para os revisores e não puderam ser confirmados. O fato de o maior estudo contrário à cloroquina ter se revelado “não científico”, gerou reações por parte dos defensores do governo. Estes acusaram os detratores da cloroquina de “impedir acesso a medicamentos por radicalismo ideológico – e fazer isso em nome da ciência – [configurando] crime contra a humanidade” (Motta, 2020).

As dúvidas lançadas sobre os estudos de Didier Raoult, Marcus Lacerda e Mehra et al., além da falta de pesquisas mais extensas sobre o tema, alimentaram disputas na comunidade médica brasileira e entre associações científicas sobre os riscos e benefícios da cloroquina. Em agosto de 2020, Bolsonaro organizou em Brasília o evento “Brasil vencendo a Covid-19” em que recebeu uma carta assinada por 10 mil médicos em defesa do tratamento com diferentes remédios, incluindo CQ/HCQ. Durante o evento, Bolsonaro declarou: “se a hidroxicloroquina não tivesse sido politizada, muitas mais vidas poderiam ter sido salvas” (Palácio do Planalto, 2020).

Para o presidente, exige-se da cloroquina um nível de rigor científico que não foi cobrado de outros tratamentos implementados em casos de emergência no passado.

Eu sempre ouvia do Mandetta, ‘não tem comprovação científica’. Ora bolas, eu sei que não tem. Como sempre citei na história militar, a guerra na Coreia, a guerra do Pacífico, onde os soldados chegavam feridos e não tinha ninguém mais para doar sangue para ele, e acabaram botando na veia dele água de coco. E deu certo. Se tivesse que esperar uma comprovação científica, o que no futuro podia se ver que muitas vidas poderiam ter sido salvas com água de coco. Aqui a cloroquina é a mesma coisa

(Palácio do Planalto, 2020).

A lógica de Bolsonaro reproduz o conteúdo da nota do Ministério da Saúde, publicada em março de 2020, que recomendava o uso compassivo da cloroquina e apenas em casos graves. Ou seja, frente à falta de informações sobre o vírus, à urgência representada pela pandemia e à ausência de opções terapêuticas, valeria a tentativa de tratamento com a droga. O Conselho Federal de Medicina (CFM) corroborou a posição do ministério e decidiu que os médicos devem ter autonomia para prescrever tratamentos a seus pacientes. No entanto, o caráter experimental deve ser destacado, os riscos de efeitos colaterais devem ser mencionados e a anuência do paciente deve ser clara (CFM, 2020). Em contraposição ao CFM, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) publicou comunicado criticando o uso de CQ/HCQ em casos de Covid-19. Para a SBI (2020), sem evidências científicas sobre sua eficácia e segurança, “é urgente e necessário que... a hidroxicloroquina seja abandonada”. Diretores de alguns dos principais centros de pesquisas biomédicas do país e a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia também publicaram comunicados recomendando a interrupção do uso da CQ/HCQ (ENSP, 2020; SBPT, 2020). Indo além, a SBPT criticou profissionais da saúde que se valiam das redes sociais para recomendar tratamentos à despeito das recomendações de órgãos técnicos. Segundo a nota, “redes sociais não são textos médicos e, com frequência, transmitem informações infundadas, impulsionadas por interesses obscuros” (SBPT, 2020). Em reposta, a Associação Médica Brasileira (AMB) chancelou o protocolo do Ministério da Saúde e apoiou a postura adotada pelo CFM. A nota da AMB (“Hidroxicloroquina...”, 2020) acusou ainda algumas entidades profissionais de ideologizarem o debate e abandonarem os parâmetros científicos que deveriam pautar sua conduta:

O derby político em torno da hidroxicloroquina deixará um legado sombrio para a medicina brasileira... Muitos sairão da pandemia apequenados, principalmente médicos e entidades médicas que escolherem manipular a ciência para usá-la como arma no campo político-partidário.

Através dessa breve descrição das controvérsias em torno da cloroquina, podemos ver que muitos dos argumentos em defesa da droga não estão relacionados a teorias de conspiração nem a trata como “panaceia” ou “bala de prata” capaz de pôr fim à pandemia, como descrevem alguns autores (Mantovani; Caponi, 2020; Pimentel, 2020). Apesar de incertezas sobre seus efeitos terem alimentado críticas a Bolsonaro, cuja defesa do tratamento foi desqualificada como uma “performance médica populista” que revelaria o compromisso do presidente com uma “alt-science” (Casarões; Magalhães, 2021, p. 197), membros do governo federal assumem que os benefícios da cloroquina não são (ainda) comprovados cientificamente. Ao ponderar que resultados preliminares em testes clínicos sugeriam a eficácia do tratamento e, dada a situação de urgência, configurariam razão suficiente para investir em estoques de cloroquina, o que Bolsonaro fez foi explorar as controvérsias científicas em curso.23

Nesta seção, nos valemos da descrição de duas disputas em torno de formas de contenção da pandemia para argumentar que diagnósticos que dão conta de um jogo entre razão e ideologia são incapazes de capturar a complexidade do problema. Como pudemos ver, as estratégias discursivas de Bolsonaro e seu entorno também apelam para os modos de justificação próprios da ciência e, fundamentalmente, buscam demostrar que seus detratores não fazem jus aos postulados de uma ciência que prima pela técnica e pela idoneidade. Dessa forma, a reprodução do ideal de Ciência desinteressada tem servido mais para Bolsonaro contestar a credibilidade da OMS e de cientistas que o desfiam do que ao esforço da crítica.

Pela ciência, contra os cientistas? Outro olhar sobre o negacionismo

Na seção anterior demonstramos que o governo Bolsonaro não é marcado por uma recusa cética do valor do conhecimento científico e sua capacidade de aumentar o bem-estar coletivo durante a pandemia. Também não põe em dúvida a competência dos especialistas, em geral, em provar a existência de relações de causalidade que devem informar políticas públicas baseadas em evidências. No entanto, bolsonaristas argumentam que, em muitos momentos, a produção científica é enviesada por motivações políticas. Ao invés de se mostrarem abertos a debater os limites de suas pesquisas e pesarem os custos e benefícios de diferentes formas de supressão do contágio, alguns cientistas estariam corrompendo a ciência para manipular a opinião pública e avançar seus interesses políticos ou econômicos.

Desse modo, em que pesem as críticas acerca da popularização da “eu-pistemologia”, mesmo entre os bolsonaristas parte da comunidade científica mantém o papel de produtora e legitimadora de conhecimento especializado. Os discursos de Bolsonaro “acionam elementos próprios de signos científicos, como jalecos, textos acadêmicos publicados em espaços de prestígio e reforço pela titulação de quem produz conteúdo, como uma forma de validar seus argumentos” (Oliveira et al., 2020, p. 104). Como explica Lynch (2020, p. 55), “longe de ser uma oposição à ‘ciência’, [este tipo de estratégia] faz uso seletivo dos emblemas e idiomas da autoridade científica... O problema não é anticiência per se, mas a substituição do debate nuançado por reivindicações ‘científicas’ muito gerais”.24 Dessa forma, o que está em disputa não é uma dicotomia entre consensos técnicos e puro charlatanismo, mas a produção de representações científicas da Covid-19, formas de mensuração, protocolos de tratamento e metodologias de testes de novas drogas. Ao explorar os meandros da produção de fatos científicos, Bolsonaro nega que já tenhamos chegado a uma “verdadeira verdade” sobre a pandemia (Henriques; Vasconcellos, 2020, p. 37) e traz para o escrutínio público o sistema de peritos e modos de validação de conhecimento. Nesse sentido, Bolsonaro mimetiza seus críticos e argumenta que, para se manter como a portadora do saber, a ciência precisa ser resguardada dos cientistas-ideólogos.

Debates sobre as demarcações modernas entre os domínios da política e o espaço da ciência, da técnica e dos fatos precedem em muito preocupações com a “pós-verdade” e o “populismo científico”. Latour (1987), por exemplo, propõe que teorias e cientistas bem-sucedidos – com mais credibilidade científica – não são necessariamente aqueles capazes de entender e descrever o funcionamento do mundo, mas sim os que somam mais “aliados” às suas redes, traduzindo (forçando, moldando, seduzindo e organizando) o interesse de outros e, assim, se tornando seus representantes. Ciência, nessa perspectiva, é uma ferramenta poderosa de convencimento que, ao agregar práticas de laboratório, dados, vírus, técnicas de visualização e mensuração, políticos e instituições, é capaz de produzir enunciados de difícil contestação (Latour; Woolgar, 1986). Dessa forma, a legitimidade dos diferentes enunciados é aferida por sua capacidade de construir redes no laboratório e fora deste, agregando mais elementos e aumentando a realidade dos fatos.

Em sua busca por descrições mais realistas da ciência, Latour propõe observar a rotina dos laboratórios, acompanhando tarefas diárias de coleta e processamento de informações, desenho de gráficos e tabelas e, finalmente, a formulação e comprovação de hipóteses. Quando lemos publicações científicas temos acesso apenas a versões purificadas desse longo caminho. Todo o processo de composição sociotécnica, a forma como o enunciado foi realmente construído, é apagado. Cabe então ao pesquisador reabrir esses processos e explorar os esforços e controvérsias que marcaram a construção dos enunciados. Afinal, a “ciência não fala com uma voz única” (Nature, 2017, p. 134).25

Ao abrir a caixa-preta, não encontramos apenas discussões no laboratório, erros honestos e a acumulação progressiva de evidências que desbancam hipóteses mais antigas em prol de novas formulações. Se dentro dos laboratórios já é possível identificar os determinantes sociais da produção científica, quando observamos o debate público é impossível descartar as redes de aliados que sustentam ou enfraquecem os enunciados em disputa. A construção de hipóteses sobre temas contemporâneos como as causas das mudanças climáticas, os efeitos do uso prolongado de tabaco e formas mais eficazes de conter um contágio não se resumem ao resultado de experimentos. O conhecimento científico acerca desses temas se equilibra necessariamente nas relações instáveis entre aspectos técnicos, políticos, legais, econômicos e morais. Em outras palavras, a credibilidade dos fatos científicos não decorre nem de descobertas sobre a verdade da natureza, nem simplesmente de discursos ou construções sociais, mas é o resultado contingente de composições sociotécnicas. O conhecimento científico é, portanto, uma realização socio-histórica atravessada por relações de poder, não um dado epistemológico.

A pandemia de Covid-19 é um momento privilegiado para a observação da ciência como um processo de composição. Todos os dias, jornais e as redes sociais discutem novos achados, desbancam hipóteses que pareciam plausíveis, comemoram evidências de artigos recém-publicados e tentam fazer sentido das disputas entre enunciados contraditórios. De fato, “nunca a ciência foi tão evidentemente um processo, mais músculo que osso” (Burdick, 2021).26 Nesse cenário, a construção da credibilidade científica requer a mobilização de enormes contingentes de atores (políticos, jornalistas, cientistas), saberes (epidemiologia, microbiologia, infectologia, sociologia), instrumentos (de coleta de dados, mensuração, visualização) e instituições (OMS, associações científicas, corporações de classe, ministérios). É na conturbada dinâmica de agregação desses múltiplos entes que se constitui a autoridade sobre o fenômeno representado. As controvérsias, as confusões, os erros e as orientações políticas, morais e financeiras da produção científica não são a negação da ciência, mas parte inerente da própria construção do fato científico. Portanto, o que caracteriza a “boa” ciência não é sua pureza de técnicas e princípios, como argumentam Diethelm e McKee (2009) e Oreskes e Conway (2010), mas justamente o oposto.

Assim, não há uma controvérsia política (governo versus oposição) que coloniza a produção científica (negacionismo versus razão pura), mas um emaranhado de enunciados que se sustentam justamente na composição entre interesses políticos e econômicos, nas diferentes técnicas de mensuração, formas de registro e traduções do vírus. O que vimos nos primeiros meses de pandemia foi que o governo federal mostrou habilidade em navegar pelos múltiplos enunciados em disputa de forma a avançar suas propostas por políticas mais brandas de controle do contágio. Ou seja, o bolsonarismo opera com sucesso nas brechas entre a prática científica do dia a dia e a idealização de uma Ciência desinteressada.

Desse modo, o negacionismo de Bolsonaro é uma espécie de desejo de ser mais científico que a ciência, ao menos em sua forma real (Costa, 2021). Seu fundamentalismo é pela purificação, não pela relativização. Ao identificar os múltiplos condicionantes sociais que povoam os enunciados que sustentam políticas radicais de quarentena e condenam o tratamento com cloroquina, Bolsonaro é capaz de se colocar com o último bastião do desejo modernista de separação entre verdade e política. O negacionismo é, portanto, a busca de produção de uma verdade pura quando as fronteiras entre ciência e sociedade já se mostram por demais porosas (Costa, 2021).

Conclusão

Não é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não engendre poder. “Libertemos a pesquisa científica das exigências do capitalismo monopolista”, é talvez um excelente slogan, mas não será jamais nada além de um slogan

(Foucault, 2019, p. 231).

Críticos do governo federal apontam que Bolsonaro seria culpado por disseminar “fake science” e que caberia à sociedade resgatar a verdade, pois esta, “mais do que nunca, não pode ser tratada como uma opção. Para o pesadelo dos terraplanistas, precisamos da ciência para salvar vidas, inclusive as deles.” (Lima, 2020). A esses argumentos, contrapomos evidências de que Bolsonaro não constrói sua narrativa necessariamente a partir da negação da ciência. Ao explorar as controvérsias na produção de fatos científicos, o que Bolsonaro faz é questionar as credenciais da OMS e acusar opositores de politizarem pesquisas sobre formas de contenção da pandemia. Em outras palavras, Bolsonaro presta um tributo ainda maior à ciência (Costa, 2021) e condena aqueles que supostamente a deturpam. Tal postura “assimétrica” é característica do jogo de poder epistêmico intrínseco ao debate contemporâneo sobre fake news e pós-verdade, no qual política, esoterismo e desrazão são atribuídos sempre ao enunciado do outro.

Esse jogo de poder alimentou diferentes modos de governo da pandemia. Enquanto a oposição apontava para a necessidade da combinação entre políticas de supressão das cadeias de contágio, investimento na expansão das redes de UTI e programas emergenciais de transferência de renda, as estratégias do governo federal configuraram uma antibiopolítica que delegou aos indivíduos a decisão pela exposição ao risco, enquanto buscou preservar uma política fiscal contracionista. Nessa perspectiva, não caberia ao Estado organizar respostas comuns à pandemia e se responsabilizar por práticas de cuidado coletivo, mas apenas indicar bons comportamentos e regular as ações do setor privado (Jones; Hameiri, 2021). Mais que isso, há evidências de que Bolsonaro contribuiu ativamente para a disseminação da Covid-19 em determinados grupos objetivando que o país atingisse rapidamente os supostos patamares da imunidade de rebanho e retornasse à normalidade (Ventura; Reis, 2021). Nesse sentido, o “negacionismo” de Bolsonaro não é uma afronta à Ciência moderna, mas a recusa em considerar os limites extraeconômicos ao crescimento econômico, mesmo que apenas no intervalo de uma quarentena. Semelhante à dinâmica do debate sobre mudanças climáticas, nega-se que a solução da pandemia passe pela suspensão de nosso modo de vida ou pela recuperação do papel do Estado como promotor de políticas públicas de larga escala. Aceita-se políticas de mitigação, correção ou aperfeiçoamento, mas não medidas que coloquem em xeque os pilares atuais do desenvolvimento capitalista (Danowski, 2012).

O desafio, portanto, não é a restauração das velhas hierarquias epistemológicas e estruturas de autoridade que colocavam a ciência acima da política, ou “retraçar as fronteiras entre ciência e política” (Roque, 2021), mas buscar dentro dos imbróglios da produção científica formas de levantar preocupações sociais relevantes. Se a ciência continuar sendo vista como portadora de uma verdade revelada, caberá a cada indivíduo escolher entre narrativas dogmáticas mensuráveis apenas pelas habilidades retóricas daqueles que as anunciam. E é nesse campo que Bolsonaro tem mostrado bom desempenho. Dada a segmentação das esferas de comunicação e a enorme velocidade de produção de conteúdo nas plataformas digitais, os esforços de gerar contrapontos para enunciados específicos, como a eficácia do isolamento vertical e da cloroquina, são incapazes de acessar grupos bolsonaristas e enfraquecer suas convicções. Iniciativas como as agências de “checagem de fatos” produzem mais enunciados em meio à cacofonia existente e são efetivas como vieses de confirmação para aqueles que já depositam sua confiança na OMS e nos especialistas alavancados pela mídia tradicional, mas têm efeito limitado nos demais (Ball, 2018). Além disso, muitas dessas iniciativas reforçam a divisão elitista entre os “detentores de conhecimento” e o “resto” que está na origem da crise recente da democracia liberal (Marres, 2018).

Nesse sentido, a recuperação da autoridade das instituições tradicionais de produção científica talvez passe por seguir as trilhas de Latour, apostando na explicitação dos múltiplos elementos da mediação que compõem os enunciados de verdade. O fato de as plataformas digitais terem reduzido o custo de produção e disseminação desses enunciados não quer dizer que todos são iguais e que não temos como optar por um em detrimento dos outros. Como vimos, o fato científico pode ser uma produção, mas é uma produção robusta, que articula muitos entes. Para Latour (1987), ao apresentar a ciência como um empreendimento sociotécnico que mobiliza enormes contingentes de saberes e atores, criamos dispositivos sistêmicos de reflexividade crítica e uma melhor capacidade de avaliação dos mecanismos de produção dos diferentes enunciados. Ou seja, ao explicitar o processo de construção de consensos, incluindo controvérsias, erros, testes, limitações históricas, influências do mercado e da política, demonstramos também que nem toda verdade é construída da mesma forma. Qualquer observador que queira se contrapor a um fato científico deve ser capaz de escrutinar os diversos elementos que o compõe (os profissionais, discursos, diagramas, estatísticas, saberes compartilhados). De certa maneira, os enunciados de fatos científicos são porta-vozes de inúmeros elementos conjugados, e é dessa composição que advém sua autoridade. Como Latour (1987, p. 72) nos lembra: “pode ser fácil duvidar da palavra de uma pessoa. Mas duvidar da palavra de um porta-voz requer um esforço muito mais extenuante, pois agora é uma pessoa...contra uma multidão”.27 Contra o negacionismo, precisamos, portanto, de uma ciência que se mostre mais social.

  • 1
    No original: “isolate and treat cases, trace contacts, and promote social distancing measures commensurate with the risk”. É nossa a tradução desta e de todas as demais citações de trabalhos em inglês.
  • 2
    No original: “the biggest threat to Brazil's COVID-19 response”.
  • 3
    No original: “erodes the very core of the enlightenment: the idea that critical thinking, open debate, and evidence will promote human flourishing and good governance”.
  • 4
    No original: “to fight science with science – or at least with the gaps and uncertainties in existing science”.
  • 5
    No original: “cherish an artificial epistemology and disparage the simple, naturalistic, and reliable epistemology of ordinary people”.
  • 6
    Há um relevante debate sobre o questionamento ao programa metodológico cartesiano no negacionismo bolsonarista e nos movimentos identitários de esquerda. Para Perez Oliveira (2020), embora os direcionamentos políticos sejam opostos, a insatisfação com o observador cartersiano incorpóreo, destacado do meio estudado, é comum ao discurso de Olavo de Carvalho e aos argumentos acerca do “lugar de fala” que ganharam tração entre progressistas.
  • 7
    No original: “technical issues such as the use of drugs with no proven effectiveness and the adoption of quarantine measures have been highly politicized amid conspiracy theories and fake news”.
  • 8
    No original: “authoritarian president that has very little regard for science”.
  • 9
    A avaliação do desempenho de Bolsonaro no combate à pandemia variou ao longo dos meses, mas a aprovação (avaliação ótima, boa ou regular) manteve, ao longo do primeiro ano de pandemia, um patamar mínimo de 50%. (“Datafolha…”, 2021).
  • 10
    No original: “the employment of rhetorical arguments to give the appearance of legitimate debate where there is none, an approach that has the ultimate goal of rejecting a proposition on which a scientific consensus exists”.
  • 11
    No original: “appropriates scientific authority in different ways to strengthen the argument. It did not oppose science, nor did it deny the validity of scientific knowledge. […] project to occupy the scientific field and sought authority through the use of scientific language and standards”.
  • 12
    Robert Merton definiu o éthos da ciência moderna a partir de quatro eixos: universalismo, comunismo (no sentido de uma ciência aberta em que as descobertas são compartilhadas), desinteresse e ceticismo organizado. Para mais, ver: Merton (1973).
  • 13
    Para uma crítica mais específica ao debate sobre “controvérsias fabricadas”, ver: Fuller (2013).
  • 14
    No original: “the critical issue is not simply epistemological or methodological but an engagement with how credibility of knowledge is assembled today – how knowledge is accredited and discredited”
  • 15
    Para reações ao artigo e à atuação de Levitt como intelectual público durante a pandemia, ver: Pachter (2020).
  • 16
    No original: “while suppression will always have the greatest impact on COVID-related morbidity and mortality, the intensity of interventions required needs to be balanced against the wider health risks that diverting all attention to a single disease could entail”.
  • 17
    No original: “it is not only in our humanitarian interest for public health and healthcare officials to remain aggressive in their response to newly emerging infections, but also in our collective economic interest. Despite somewhat daunting initial costs, quarantine saves both lives and money”.
  • 18
    RCT é a sigla em inglês para randomized control trial (experimentos randomizados com duplo-cego e grupos de controle) que são apontados pela literatura como o padrão-ouro na produção de evidências sobre os efeitos de tratamentos médicos. Uma busca pelo termo “covid 19” na base PubMed mostra que, até 15 de dezembro de 2020, foram publicados mais de 82 mil artigos sobre o tema. No entanto, apenas 131 RCTs. Ou seja, apesar da proliferação de estudos sobre a pandemia, pesquisas metodologicamente robustas ainda eram escassas (Shyr et al., 2021).
  • 19
    No original: “a number we routinely live with, and one that changes a country forever”.
  • 20
    Citação de declaração de Bolsonaro (Uribe; Carvalho, 2021).
  • 21
    No original: “meta-analysis showed no benefit on viral clearance, although a significant increase in death was observed with hydroxychloroquine in patients with COVID-19, compared to the control”.
  • 22
    No original: “lack essential design features and power necessary to provide accurate treatment effect estimates”.
  • 23
    Contudo, não se deve perder de vista que Bolsonaro explora também a temporalidade das controvérsias. A pandemia é um evento sui generis e tem sido acompanhada por uma produção científica cuja escala e velocidade são inéditas. Em meio à sucessão de hipóteses e testes realizados com graus diferentes de rigor, conclusões científicas são mais plurais, mas também mais provisórias. Hipóteses de tratamento e de medidas pré-patogênicas que se mostravam plausíveis nos primeiros meses de pandemia, foram descartadas pelo sistema de peritos e não fazem mais parte do consenso científico. Em outras palavras, se algumas das ponderações de Bolsonaro em torno da cloroquina ou do isolamento vertical encontravam, de fato, evidências provisórias para sua sustentação no início de 2020, isso não quer dizer que os argumentos sejam igualmente válidos (ou tenham igual aceitação por seus pares) meses depois.
  • 24
    No original: “far from being an opposition to ‘science,’ makes selective use of emblems and idioms of scientific authority… the problem is not anti-science per se, but the collapse of more nuanced debate into over-generalized ‘scientific’ claims”.
  • 25
    No original: “science does not speak with a single voice”
  • 26
    No original: “never has science been so evidently a process, more muscle than bone”.
  • 27
    No original: “It may be easy to doubt one person’s word. Doubting a spokesperson’s word requires a much more strenuous effort however because it is now one person… against a crowd”.

Agradecimentos

Agradecemos os comentários recebidos sobre versões preliminares do texto apresentadas no GT “Ciência, tecnologia e sociedade” do 45º encontro nacional da ANPOCS, no seminário da Rede IPS Brasil e no seminário interno do grupo de estudos “Autoritarismo, Discursos e Mídia”, constituído no âmbito do departamento de sociologia da USP. Agradecemos ainda as críticas e sugestões enviadas pelos(as) pareceristas e que nos ajudaram a refinar aspectos importantes do argumento. A pesquisa para este artigo foi financiada pela FAPESP (processo 2020/05628-1).

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2021
  • Aceito
    08 Jul 2022
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