Resumo
Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa mais ampla realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O objetivo deste trabalho é elucidar as relações entre agentes estatais da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul, bem como suas posições no campo. A pesquisa foi aplicada com profissionais da cidade de Porto Alegre e retrata a situação da rede ao longo dos mandatos do governador Eduardo Leite (2018-2024). Conceitos de Pierre Bourdieu foram articulados para interpretar o fenômeno investigado. Foram usados questionários e entrevistas para a construção de dados com professores, gestores e profissionais da Secretaria da Educação (SEDUCRS). O questionário recebeu 33 respostas em duas escolas e 15 profissionais foram entrevistados. A permanência no campo parece induzir os docentes da rede a cultivarem uma prática desmotivada e displicente frente às demandas da mantenedora (SEDUCRS), tendo em vista as condições de trabalho precárias e a descrença nas intenções das propostas. Os profissionais da SEDUCRS costumam ser professores que saíram da escola em busca de um ambiente de trabalho menos desgastante, mas sua aproximação ao campo burocrático parece afastá-los da realidade escolar e alinhá-los aos valores e discursos desse campo. Esses agentes, porém, também acabam embricados em uma complexa rede de relações de poder que os impede de trabalhar como gostariam. Por fim, percebeu-se que a rede é composta por um grupo pouco coeso, havendo hostilidade e desconfiança nas relações entre os agentes.
Palavras-chave:
rede pública de educação; administração educacional; campo escolar; Seducrs
Abstract
This article presents partial results of a larger study conducted within the Postgraduate Program in Education at Pontifical Catholic University of Rio Grande do Sul. The aim of this work is to elucidate the relations among state agents of the educational system of Rio Grande do Sul, as well as their position in the field. The research was conducted with professionals from the city of Porto Alegre and portrays the state of the educational system throughout the terms of Governor Eduardo Leite (2018-2024). Concepts elaborated by Bourdieu were articulated to interpret the investigated phenomenon. Questionnaires and interviews were used to build data with teachers, managers and workers of the State Department of Education (SEDUCRS). The questionnaire received 33 answers at two schools, and 15 professionals were interviewed. Their permanence in the field seems to induce the teachers of the system to cultivate an unmotivated and careless professional performance in face of SEDUCRS’ demands. This is due to their precarious labor conditions and their disbelief in the intentions of the Department’s propositions. SEDUCRS’ workers usually are teachers who left the school, searching for a calmer working environment, but their approach to the bureaucratic field seems to distance them from the school’s reality and align them with the values and discourses of this field. These agents, however, also get entangled in a complex network of power relations that prevent them from working as they wished. Finally, it was observed that the system is composed of a weakly cohesive group, marked by hostility and distrust in the relationships among its agents.
Keywords:
public educational system; educational administration; school field; Seducrs
1. Introdução
Atualmente, reconhece-se a educação como um direito inerente a todo indivíduo. Esse direito, contudo, acarreta a necessidade de que haja um dever correspondente de garanti-lo, com possibilidade de responsabilização legal em casos de negligência. Nos principais documentos normativos que tratam do tema, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), atribui-se à família um papel central na efetivação desse direito, inclusive com a obrigação de assegurar a matrícula de crianças na rede regular de ensino (Brasil, 1996). Essa rede, por sua vez, é socialmente legitimada por estar estruturada e regulamentada por outra entidade que possui deveres legais com a educação: o Estado. Mas, afinal, o que é esse Estado que, em sua própria legislação, assume para si a responsabilidade de garantir a educação e a legitimidade para regulamentá-la?
Embora o Estado seja uma construção social relativamente recente, ele adquiriu uma posição central na sociedade ocidental moderna. Defini-lo, no entanto, apresenta desafios, pois sua existência e a forma que assume dependem diretamente do modo como ele é concebido pela sociedade. Adotando a construção teórica bourdiana sobre o espaço social e sua percepção de Estado, desenvolvida especialmente em Bourdieu (2014), considera-se que o Estado evoluiu como uma ficção coletiva, desenvolvida principalmente pelo campo jurídico, que fundamenta um conjunto de recursos organizacionais e à qual foi concedido o monopólio da violência legítima (física e simbólica). Desse modo, ao contrário do que o discurso oficial tende a sugerir, o Estado não é sujeito, ele não realiza ações, mas é uma representação coletiva que influencia a organização da sociedade e que é representada por diferentes agentes que agem sob a legitimidade proporcionada por essa ficção.
De fundamental importância na consolidação desta ficção, o campo jurídico desempenhou um papel central ao construir a ideia de Estado de Direito (Bourdieu, 2014). Foi por meio da evolução desse conceito que se iniciou um processo de ampliação da legislação, no qual o Estado transcendeu a mera garantia dos direitos civis dos cidadãos, responsabilizando-se também pelos direitos políticos e sociais, como o direito à educação. Com o avanço do capitalismo, porém, o campo econômico assumiu um protagonismo nas disputas do campo de poder, obtendo êxito em infiltrar seus discursos e práticas em diversos campos sociais, incluindo os campos político e burocrático (mais diretamente associados ao Estado), ainda que eles preservem uma autonomia relativa em relação a ele (Bourdieu, 1998, 2014). Nesse sentido, políticas sociais que visem à efetivação de direitos podem ser bastante fragilizadas, quando não totalmente descartadas, se elas forem consideradas um risco aos interesses do “mercado”, que consegue influenciar os agentes responsáveis por tais políticas.
Na atualidade, os impactos do campo econômico sobre o mundo social são evidentes em grande parte do globo, e o Brasil não constitui uma exceção. Embora apresente características que remetam a um Estado de bem-estar social, diversos autores indicam que o país tem se alinhado progressivamente aos discursos e às práticas neoliberais, que privilegiam o dito Estado mínimo (Lima; Gandin, 2017, Cóssio, 2018). Esse alinhamento é perceptível tanto nas políticas públicas recentes, que refletem uma crescente afinidade com os interesses do mercado, quanto no modus operandi da administração pública, que tem se aproximado de um conjunto heterogêneo de transformações frequentemente denominado de Nova Gestão Pública (NGP) ou gerencialismo (Secchi, 2009). Isso não implica que a lógica estatal anteriormente estabelecida tenha sido completamente substituída, dando origem a um Estado inteiramente subordinado ao campo econômico, mas evidencia uma reconfiguração de determinados papéis do Estado na sociedade brasileira, resultando em hibridismos que articulam aqueles historicamente instituídos com as novas influências.
Nessa conjuntura, abundam publicações acadêmicas denunciando os diversos prejuízos sociais de tais mudanças, inclusive na educação. Segundo Lima e Gandin (2017), Cóssio (2018), Costa (2019), Souza (2019), entre outros, as lógicas neoliberal e gerencialista vêm permeando a área educacional no Brasil nos seguintes aspectos: ganham forças as avaliações de larga escala para verificar o rendimento escolar, levando à construção de rankings das melhores e piores escolas; cede-se espaço para as escolas terem mais autonomia, mas, simultaneamente, cria-se uma lógica de competição na qual as instituições passam a ser responsabilizadas pelos resultados obtidos (princípio da accountability); ainda que mascarado por um discurso de flexibilidade e autonomia, constroem-se currículos padronizados com ênfase no desenvolvimento de habilidades voltadas à preparação para o mercado de trabalho; qualidade educacional tem sido cada vez mais entendida como a obtenção de resultados mensuráveis em provas padronizadas (baseadas no currículo oficial imposto); flexibilidade na contratação e demissão de profissionais; há grande atuação da iniciativa privada, mesmo na rede pública de ensino, por meio de diversas estratégias (parcerias público-privadas, compra de sistemas apostilados de ensino, contratos de gestão etc.).
De toda a estrutura institucional vinculada ao Estado e à educação, optou-se por concentrar a pesquisa a um órgão público em especial, a saber: a Secretaria Estadual da Educação do Rio Grande do Sul (SEDUCRS). Responsável pela administração do sistema estadual de ensino, a SEDUCRS, juntamente com suas coordenadorias, atua na linha de frente da relação entre o poder executivo e as instituições de ensino da rede estadual. Embora façam parte de um mesmo sistema de ensino e, em teoria, trabalhem pelo mesmo objetivo, as escolas e os professores frequentemente demonstram resistências às orientações e normas emanadas pelo órgão. Em vez de parceiros colaborando em prol de um objetivo comum, percebe-se que muitos docentes enxergam a secretaria como uma adversária, por vezes autoritária, que dificulta o trabalho pedagógico e compromete suas condições profissionais.
Ainda assim, considera-se aqui que o Estado não age, mas que pessoas atuam em nome dele. Dessa forma, o foco deste trabalho não é nem o Estado, nem a SEDUCRS, enquanto entidades abstratas, mas agentes estatais que atuam respaldados pela legitimidade do Estado e do oficial, ou seja, os profissionais da SEDUCRS e aqueles que atuam nas escolas (gestores escolares e professores).
A partir dessas reflexões iniciais, foi desenvolvida uma pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com a seguinte pergunta de pesquisa: como se caracterizam as tomadas de posições dos agentes estatais na rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul?
Este artigo, entretanto, concentra-se em apenas uma parte dos resultados e tem como objetivo elucidar as relações entre os agentes da rede em Porto Alegre, bem como suas posições no campo. Pretende-se, portanto, apresentar um recorte dos resultados obtidos na pesquisa.
2. O campo investigado
Podemos entender um campo como uma estrutura social relativamente autônoma, composta por agentes e instituições que interagem e competem por recursos e poder específicos ao campo, de acordo com regras e lógicas próprias. Ao adaptarem-se às regras do campo, os agentes desenvolvem um senso prático sobre como agir nesse espaço, chamado por Bourdieu de habitus (Bourdieu, 1994).
O habitus formado no campo leva os agentes a perceberem e valorizarem o jogo social de maneira específica, facilitando sua adaptação ao meio. Dessa forma, pode-se falar em habitus jurídico, artístico, acadêmico etc., sendo que um agente pode construir diferentes “sensos práticos” para agir de acordo com as expectativas de cada campo em que participa. A incorporação do habitus é parte essencial do jogo, pois o campo “[...] é um espaço de lutas, uma arena onde está em jogo uma concorrência ou competição entre os agentes que ocupam as diversas posições” (Lahire, 2017, p. 65). Isso significa que, embora todos os agentes do campo acreditem no valor do jogo ali existente, eles estão constantemente em tensão, disputando a apropriação ou a redefinição do capital específico do campo (Bourdieu, 1994).
Isso posto, surge a questão: qual seria exatamente o campo investigado? Galarza (2016) observa que, em sua obra clássica sobre o sistema escolar (La Reproduction), Bourdieu não menciona o termo “campo escolar”; porém, em Homo Academicus e La Noblesse d’État, o conceito de campo começa a ser incorporado às problemáticas educativas. Embora o autor não forneça uma definição precisa do termo e se refira às Grandes Escolas de ensino superior na França, ele menciona diversas vezes um suposto champ scolaire em La Noblesse d’État.
Dialogando com outros autores, Galarza (2016) conclui que o conceito de campo escolar é uma ferramenta analítica potente para examinar os espaços sociais dos sistemas escolares, inclusive na América Latina. Ademais, pesquisadores brasileiros, como Almeida (2005) e Genovez (2008), também utilizaram esse conceito em suas análises.
Sem dúvida, o sistema escolar se configura como um espaço estruturado de posições ocupadas por agentes que valorizam um capital cultural específico e compartilham regras e sensos de jogo historicamente instituídos (embora sem completa homogeneidade). Ainda assim, resta a pergunta: ele possui autonomia relativa em relação a outros campos?
Observa-se que o chamado campo escolar é fortemente influenciado por outros campos, como o acadêmico/científico (que forma professores, valida conhecimentos e constrói discursos frequentemente repetidos nas escolas); o político (que legisla e organiza o sistema educacional); e o econômico (que influencia o campo político na elaboração de leis e políticas públicas). Contudo, essas influências têm limites. Muitos estudos relatam a dificuldade de aplicar a teoria na prática docente, com os professores frequentemente sendo criticados como “tradicionais” ou resistentes à mudança. De forma semelhante, diversas políticas públicas e orientações legais costumam ser distorcidas ao serem executadas pelos agentes do campo escolar. Desse modo, embora a autonomia do campo escolar seja limitada, é possível considerar que haja uma autonomia relativa nesse microcosmo do espaço social, como argumentam Almeida (2005) e Galarza (2016).
É difícil afirmar se essa limitada margem de autonomia seria suficiente para classificá-lo como um campo social stricto sensu, no sentido estrito de Bourdieu. Além disso, sua heterogeneidade é evidente, já que as práticas em redes privadas de elite podem diferir significativamente daquelas das redes públicas, sugerindo a existência de subcampos dentro desse espaço. De qualquer forma, o conceito de campo escolar, mesmo em um sentido amplo, parece oferecer um valor heurístico relevante, podendo ser uma ferramenta analítica útil para pesquisas na área.
Como o campo artístico, ele pode ser entendido como um espaço social que valoriza um determinado capital cultural e a quantidade desse capital influenciará diretamente a posição dos agentes no campo. Crianças e adolescentes sem capital cultural institucionalizado (diploma) assumem, compulsoriamente, posições dominadas, passando por um processo de violência simbólica em que agentes estatais (nós, educadores) buscam incentivá-los a incorporar o capital cultural valorizado no campo (embora a experiência escolar vá além disso). Do outro lado, agentes com maior capital cultural podem retornar ao campo escolar em posições mais ou menos dominantes, atuando como professores, diretores, especialistas etc.
O que está constantemente em disputa no campo é a definição da verdade sobre o que constitui uma educação de qualidade. Entre os agentes, há diferentes visões sobre o que ensinar, como estruturar o trabalho escolar e como realizá-lo, gerando conflitos entre eles. Ainda assim, cabe a pergunta: quem são os agentes desse campo?
É difícil conceber o campo escolar sem os alunos, pois eles são sua própria razão de ser. Diferentemente dos materiais inertes usados por um pintor, os estudantes, embora objetos do trabalho docente, também são agentes ativos que influenciam o jogo escolar. Ainda que internalizem, em certa medida, o discurso legitimador da escola e valorizem o capital cultural oferecido, a maioria entra no campo de forma compulsória e sem intenção de permanecer nele como profissionais, algo evidenciado pela baixa procura por cursos de licenciatura. Embora sua presença no campo seja forçada e temporária, sua atuação ativa os coloca como parte integrante do campo enquanto frequentam a escola. Ocupam a posição mais dominada possível, ainda que consigam exercer influência sobre a dinâmica escolar. Muitos, enfrentando dificuldades para jogar conforme as regras, desenvolvem estratégias de subversão para tentar alterá-las, enquanto outros se adaptam rapidamente, assimilando os valores defendidos pela escola.
Quanto aos docentes, não há dúvidas de que são agentes do campo. Sua decisão de atuar nesse espaço implica, no mínimo, uma aceitação da importância do capital cultural e simbólico promovido pela escola. Geralmente, exercem dominação legítima sobre os alunos, mas são subordinados a instâncias superiores. Alguns podem assumir posições na equipe diretiva, supervisão ou orientação, adquirindo autoridade legítima para dar ordens aos seus pares. Outros podem optar por atuar na SEDUCRS ou em órgãos similares, exercendo influência sobre toda a rede de ensino.
A SEDUCRS, por sua vez, pode ser pensada na intersecção do campo escolar com o que Bourdieu (1994) chama de campo burocrático (pertencendo a ambos). Ela deve jogar conforme as regras do campo burocrático, que exige representar o universal e o neutro, mesmo servindo a interesses políticos (visto que suas lideranças são escolhas políticas). Ao mesmo tempo, precisa se adaptar ao jogo escolar para tentar impor suas normas e interesses à rede de ensino (mantendo a aparência de neutralidade).
De qualquer forma, ao representarem o Estado, ambos os lados do jogo estariam atrelados a um setor do campo do poder que Bourdieu (2014) chama de campo da função pública ou campo administrativo, no qual os agentes conseguem acessar os recursos estatais para representar o oficial e o universal. Para ele, “[...] o Estado não é um bloco, é um campo. O campo administrativo, como setor particular do campo do poder, é um campo, isto é, um espaço estruturado segundo oposições ligadas a formas de capital específicas, interesses diferentes” (Bourdieu, 2014, p. 61-62).
Desse modo, o Estado, enquanto setor do campo de poder, seria estruturado por posições, em diferentes campos sociais, que conferem aos agentes acesso a recursos materiais e simbólicos. Ocupando uma posição no campo, os agentes passam a representar a palavra oficial e a influenciar o jogo público. Como argumenta Bourdieu (2014), podemos pensar em uma escala hierárquica em que os agentes mais ao topo possuem mais acesso aos recursos estatais e mais poder no jogo. Nesse sentido, alguns agentes acessam recursos públicos que estão inacessíveis a outros e, com isso, realizam intervenções no mundo social que os outros não conseguem. Para ele,
[...] seria possível falar de “foco dos valores estatais” e criar um indicador bastante simples de uma hierarquia linear de distâncias do foco de valores estatais tomando-se, por exemplo, a capacidade de fazer intervenções, de conseguir anular as multas de trânsito etc. Poder-se-ia criar um indicador acumulado, mais ou menos rigoroso, da proximidade diferencial dos diferentes agentes sociais em relação a esse centro de recursos de tipo estatal (Bourdieu, 2014, p. 90).
Isso posto, os agentes do campo escolar ocupam posições desiguais nas disputas pelas regras do jogo. No contexto analisado, os agentes da SEDUCRS possuem não apenas maior acesso aos recursos administrativos da rede, mas também a legitimidade, conferida em nome do Estado, para determinar ações a serem seguidas pelas escolas. Ocupam, assim, posições que acessam “[...] um conjunto de recursos específicos que autorizam seus detentores a dizerem o que é certo para o mundo social em conjunto, a enunciar o oficial e a pronunciar palavras que são, na verdade, ordens, porque têm atrás de si a força do oficial” (Bourdieu, 2014, p. 84).
Os agentes na escola, contudo, também têm acesso a recursos estatais, podendo exercer violência simbólica em nome do oficial, como nos alunos ou seus responsáveis. Assim, ao analisar essas duas posições no campo, não se busca criar uma oposição entre agentes da SEDUCRS, com poder para mandar nas escolas, e agentes escolares, que apenas obedeceriam. Apesar de ocuparem posições diferentes, todos os agentes possuem algum grau de força no campo para disputar interesses, ainda que o desequilíbrio os obrigue a fazê-lo de formas distintas.
É igualmente relevante notar que há uma hierarquia dentro da própria SEDUCRS, que está subordinada à autoridade do governador eleito (que escolhe quem comandará o órgão e nomeia pessoas para cargos de confiança). Dessa forma, os agentes do campo político parecem ser os responsáveis por definir a linha de trabalho adotada no órgão, ainda que influenciados por outros campos, especialmente o econômico.
De fato, as grandes lutas no campo escolar no Rio Grande do Sul não se deram contra agentes da SEDUCRS/CRE, mas contra os governos eleitos, ou seja, contra agentes do campo político. Desde 1945, a categoria dispõe de um movimento sindical de grande alcance, promovendo articulações, paralisações e passeatas para garantir direitos dos profissionais da área e melhorar a qualidade da educação pública (Correa, 2006). Desse modo, analisando a trajetória sindical de entidades como o Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS) e o Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (SINPRORS), nota-se que os agentes do campo escolar têm uma história de lutas constantes por melhores condições de trabalho e direitos. Essa trajetória combativa certamente moldou o habitus do campo e continua influenciando como os agentes percebem a si mesmos e aos demais participantes do jogo.
3. Procedimentos metodológicos
A pesquisa, de caráter qualitativo, valeu-se de dois instrumentos para construção dos dados: questionário (com questões abertas e fechadas) e entrevista semiestruturada. Com a aplicação do questionário em 2023 e a realização das entrevistas em 2024, os dados construídos delinearam a situação da rede estadual de ensino durante os mandatos do governador Eduardo Leite (2018-2021; 2022-2024), ainda que alguns profissionais tenham feito referências a outros períodos para fins de comparação.
Devido à proximidade do pesquisador com duas escolas da rede em Porto Alegre, estas foram inicialmente escolhidas para aplicação dos questionários e realização das entrevistas. Além disso, procurou-se entrevistar agentes da SEDUCRS e da 1ª Coordenadoria Regional de Ensino (CRE). Apesar da dificuldade inicial, obteve-se a colaboração de quatro profissionais com experiência recente nesses órgãos.
Sobre as escolas participantes, a Escola 1 oferece os anos finais do Ensino Fundamental, Ensino Médio regular e Ensino Médio na modalidade EJA, funcionando nos três turnos. Costuma apresentar, aproximadamente, um corpo docente de 50 professores, um grupo de 10 funcionários e mais de mil estudantes. A Escola 2, por sua vez, oferece Ensino Médio regular nos três turnos. Costuma ter em torno de 60 professores, 15 funcionários e mais de mil estudantes.
Na época da realização da pesquisa, porém, algumas escolas estaduais estavam sendo municipalizadas, ou seja, o governo gaúcho estava transferindo a gestão dessas instituições para os municípios. Para entender melhor a situação, a equipe diretiva de uma escola de Porto Alegre nessa situação foi entrevistada. A Escola 3 é uma pequena instituição de Ensino Fundamental, com cerca de 15 professores e funcionamento apenas durante o dia.
Com relação ao questionário, foram obtidas 33 respostas. Dos 33 profissionais, 26 estavam atuando na rede como professores, 3 como supervisores, 2 como orientadores e 4 como membros da equipe diretiva (sendo que 2 ocupavam dois cargos simultaneamente). Do total, 21 eram concursados e 12 atuavam em regime de contrato temporário. Quanto à escolaridade, 11 tinham apenas o ensino superior completo, 16 possuíam pós-graduação lato-sensu, 4 possuíam mestrado e 2 possuíam doutorado. Quanto ao tempo de docência, a maioria dos participantes têm muitos anos de experiência, pois 10 atuam/atuaram como professores por mais de 20 anos e 14 por mais de 10 e menos de 20 anos.
Em síntese, observa-se um grupo composto majoritariamente por profissionais experientes e que realizaram pelo menos um curso de pós-graduação. Percebe-se, ainda, que a maioria é concursada, mas o número de professores em regime de contrato temporário é significativo (36%), visto que esses contratos deveriam ser instrumentos excepcionais para atender a demandas pontuais. A Figura 1 apresenta alguns gráficos que podem ser úteis para entendermos as condições de trabalho desses profissionais.
Com relação aos participantes das entrevistas, foram entrevistados 15 profissionais em um total de 12 entrevistas (duas entrevistas foram feitas com mais de um membro da equipe diretiva simultaneamente). No Quadro 1, apresenta-se uma síntese dos entrevistados.
Os participantes das entrevistas receberam nomes fictícios para preservar seu anonimato e as respostas anônimas obtidas no questionário serão citadas como “Anônimo 1”, “Anônimo 2” e assim por diante.
Visando organizar os dados e facilitar a análise, os relatos foram fragmentados em unidades de análise, e elas foram categorizadas. A partir dessa classificação, os dados foram divididos em três seções, a saber: os agentes da rede estadual; as relações entre os agentes; das táticas e das estratégias ao longo do jogo. As duas primeiras são o foco deste artigo e estão apresentas a seguir.
4. Os agentes da rede estadual
Esta seção tem como intuito analisar: as condições de trabalho dos professores; como elas poderiam influenciar nas tomadas de posições e, em alguma medida, no habitus profissional dos docentes; o que leva alguns professores a saírem da escola e ir para os órgãos administrativos da rede; e a adaptação desses agentes ao mudar de campo.
Dialogando com os professores, dois fatores sobre suas condições de trabalho emergem: sobrecarga e desvalorização. As falas de Adriana, atuante na CRE, e da supervisora Anelise sintetizam bem essa percepção e a reação dos docentes.
Também leva a algo que eu ouvi muito: “não vale mais a pena tu ser um profissional concursado do estado”. [...] Então isso leva a essa ideia, tanto de quem é contrato quanto de quem é efetivo, de pensar “bom, nem vou fazer assim, porque tanto faz. Se eu fizer, ninguém vai saber, ninguém vai reconhecer, não vai mudar nada, enfim”. Se sente desvalorizado, e isso desmotiva (Adriana).
Sabemos que não é desculpa o professor não fazer um bom trabalho por causa do salário, que não é adequado; mas sabemos que isso vai desmotivar e desestimular. Vemos pessoas chegando aqui com todo o gás e toda a vontade, mas vamos ver como que essas pessoas vão estar daqui a 10 anos. [...] A vida vai cobrando e trazendo percalços, daí a pessoa começa a se questionar: “poxa vida, por quê?” (Anelise).
As participantes destacam que a falta de valorização desmotiva os professores, levando muitos a acreditar que o esforço não vale a pena devido à ausência de reconhecimento. Anelise observa que, embora os ingressantes demonstrem um comportamento diferente, tendem a adotar o padrão predominante à medida que enfrentam os desafios da carreira. Assim, esses e outros dados sugerem um padrão de atuação profissional na rede1 marcado por apatia e uma certa displicência frente às demandas da mantenedora (ainda que não englobe todos os profissionais). Ressalta-se, todavia, que esse padrão não decorre de incapacidade ou falha de caráter, mas de fatores externos que desmotivam e afetam as condições emocionais dos docentes. Nesse contexto, muitos recorrem à autopreservação, limitando-se ao que conseguem fazer nas condições adversas disponíveis.
Reforçando essa percepção, alguns participantes trazem relatos interessantes. Por exemplo:
Quando eu penso naquele tempo [início de carreira], eu fico: “onde é que está aquela pessoa?” Eu amo o que eu faço na sala de aula, mas o que mudou na minha percepção é que eu realmente acreditava no valor da profissão. Não no valor de salário, isso a gente sempre soube, mas na questão do desrespeito da sociedade, da comunidade escolar, da desvalorização frente aos nossos alunos. [...] É uma vergonha. Muitas vezes, tu fala que tu é professor e as pessoas te olham e “ai, tadinha” (Júlia).
Júlia relata o quanto se sente desvalorizada nas reações das outras pessoas, como se estivessem sempre com pena dela por saber que é professora. Essa e outras falas, portanto, vão ao encontro das conclusões de Lucyk e Graupmann (2017), que percebem que, no Brasil, a profissão docente vem se desvalorizando e que as condições de trabalho vêm piorando, gerando sobrecarga e dificuldade de exercer suas funções de forma adequada.
Igor, da SEDUCRS, oferece uma comparação emblemática entre sua experiência na rede privada de ensino e o que observa na rede estadual:
Lá os professores recebem muito bem e o colégio é bem elitizado em Porto Alegre, então os professores estão sempre muito dispostos, pelo menos aparentam estar, porque querem manter o seu emprego. Eles sempre estão muito proativos, muito ativos, muito alto astral, muito felizes. Tu vai no colégio público e é o oposto, é só reclamação. A gente foi em várias escolas no ano passado para ver como que estava, para conversar com eles [...] “É horrível”. “Não tem como trabalhar com os alunos”. Acabam sempre trazendo muitas dores. [...] Não os novos, eu vejo que os novos chegam na escola pública com gás, mas às vezes os mais velhos dão uma desmotivada nos mais novos. “Ah tu está assim, porque tu entrou agora, mas tu vai ver daqui a pouco” (Igor).
Ao fazer essa comparação, Igor indica que o problema não é a profissão em si, mas o ser professor em uma rede que não te valoriza, é o sentir-se insignificante. Essa não é apenas a percepção dele, pois todos os entrevistados identificam esse quadro de cansaço, de desmotivação e de reclamações. Essa comparação reforça a posição de Silva, Miranda e Bordas (2019, p. 12), ao defenderem que “[...] existe uma relação direta entre a qualidade do salário dos professores e sua valorização perante a sociedade, gerando efeitos psicossociais positivos para ele, como satisfação, motivação e consequentemente afetando diretamente na qualidade do trabalho executado e na melhoria da educação de forma geral”. A desvalorização salarial pode não explicar tudo, mas impacta a identidade dos profissionais, visto que “[...] o desprezo por uma função se marca inicialmente pela remuneração mais ou menos irrisória que se acorda a ela” (Bourdieu, 1998, p. 11, tradução própria).
Interessante notar, ainda, que ele também percebe que os professores novos apresentam comportamentos diferentes, mas que os antigos os influenciariam a se alinhar ao padrão. Percebe-se, assim, que a permanência no campo gera uma aproximação de valores e práticas, levando os agentes a incorporarem um sentido de jogo semelhante.
A percepção dos docentes, como observado em outras falas, é de que há um projeto político deliberado de desmonte da escola pública e de precarização da carreira na rede. Além dos baixos salários, os governos evitam abrir concursos públicos para suprir a demanda, optando por contratos “emergenciais” que se prolongam indefinidamente. Essa percepção vai ao encontro da posição de Bourdieu (1998, p. 98, tradução própria), ao argumentar que “[...] começa-se, assim, a se suspeitar que a precariedade não é produto de uma fatalidade econômica [...], mas de uma vontade política”. Como salienta Bourdieu (1998), o avanço do neoliberalismo fragilizou as leis trabalhistas, aumentando o número de contratos temporários e discursos sobre flexibilidade no mundo do trabalho, o que ele chama de flexploitation.
Esses problemas, na verdade, não são novos. Nesse sentimento de rancor frente ao governo, o corpo docente costuma ser muito resistente às determinações que vêm da mantenedora, como se observa abaixo.
Nós temos uma resistência que já é cultural. Em algum lugar da nossa história do magistério, se instituiu isso aí. Eu acho que tu pode dar flores todos os dias, com carta de amor, para o professor que não vai dar certo (Érica).
Acho que é porque não vemos muito sentido nas determinações, elas não têm intencionalidade claras, não são bem justificadas, só são burocráticas e impostas sem flexibilidade. [...] E as condições de trabalho já não são das melhores, o salário nem se fala. E as determinações só pioram as condições de trabalho, não são coisas que vejam que vão contribuir pra minha rotina, só atrapalhar. Acho que tem um pouco de “birra” também. Se eu me sentisse mais valorizado por esses órgãos superiores, eu resistiria menos (Anônimo 23).
Muitas vezes, tem também uma contrariedade que é quase uma birra. Tem orientações que são viáveis, que são importantes que a gente cumpra, enfim, faz parte do nosso trabalho, mas, às vezes, não se faz porque “ah não, vou ser contra porque é da SEDUC” (Rafael).
Percebe-se, nas falas, que a resistência do corpo docente à mantenedora “já é cultural (sic)”, ou seja, resistir às determinações oficiais parece ser um dos aspectos que compõem o habitus profissional dos professores da rede. Habitus antigo, resultado de uma longa história de lutas, com o CPERS e suas batalhas sendo um símbolo dessa busca constante por melhores condições na rede (Correa, 2006).
Vale destacar, ainda, que alguns entrevistados consideram que algumas resistências são injustificadas, ou seja, motivadas mais por “birra (sic)” do que por razões legítimas e/ou racionais. Nesse sentido, haveria uma resistência justa (contra uma ordem equivocada ou ilegítima) e uma resistência injustificada. Ao analisar com mais atenção, entretanto, conclui-se que não se trata de uma resistência injustificada, como a expressão sugere. Em alguns casos, os professores resistem a demandas bem-intencionadas e viáveis, mas sua resistência não se deve apenas à teimosia. Como destaca o Anônimo 23, os professores resistem a novas tarefas porque já se sentem esgotados e desvalorizados nas atividades que desempenham. Assim, faz pouco sentido se esforçar mais em ações adicionais nas quais não veem propósito. Embora pareça injustificado à primeira vista, trata-se de uma ação razoável em busca de autopreservação por parte do agente dominado.
Analisando o outro lado do jogo, os agentes dos órgãos administrativos, vemos que muitos deles saem das escolas e vão para a SEDUCRS/CRE pelos mesmos motivos que levam os professores a resistir: sobrecarga, desvalorização e/ou frustração com a carreira. As falas a seguir ilustram esse cenário.
A maioria acaba ficando muitos anos naquele ranço, só esperando aposentadoria. [...] Acabam se tornando, a grande maioria, pessoas acomodadas, que não querem se incomodar com alunos na escola, e que ali é um bom local. [...] “Ruim na Secretaria, pior na escola por causa dos alunos” (Débora).
Isso já estava me deixando bastante desgostosa, porque eu tinha um período só e tinha que preparar 3 aulas diferentes. Aí, [...] a minha coordenadora na SEDUC fez uma indicação para que eu trabalhasse na CRE, porque eu não queria voltar para aquela escola (Adriana).
Entrei na SEDUC através de um convite de uma debutada. Eu comecei a trabalhar com ela, e ela queria alguém lá na SEDUC. [...] Quando aceitei essa proposta, aceitei por causa da diferença salarial, os CCs acabam recebendo um pouco a mais (Igor).
Com essas falas, já é possível perceber que os professores vão para a mantenedora porque não querem continuar na escola e veem na troca a oportunidade de realizar um trabalho mais tranquilo (como foi o caso das três entrevistadas). Por fim, algumas falas dos profissionais da mantenedora merecem destaque, pois sugerem que, ao se adaptarem às suas novas posições, os agentes passam a compartilhar os valores internos do novo campo e seu habitus. Nos trechos a seguir, os participantes relatam sobre a experiência visitando escolas.
Nunca vamos para fazer inspeção, pelo menos esse é o peixe que me é vendido, e eu acredito. Vamos para verificar como as coisas estão acontecendo e oferecer ajuda. [...] Ainda assim, quando eu chego, a receptividade é sempre difícil (Érica).
A gente chegava, às vezes, de surpresa nas salas de aula só para dar um “Opa, o que está acontecendo aí?”.[...] E a gente viu que, muitas vezes, a proposta que a gente tinha feito não estava sendo executada. [...] A gente costuma escrever um trechinho combinando as coisas que a gente vai falar na escola e a primeira sempre é “nós não viemos fiscalizar”. A gente fala que quer trocar uma ideia, que quer ajudar. [...] A gente cria coisas para, de certa forma, os professores executarem, e eles acabam vendo como se fosse um chefe que vai lá fiscalizar para ver se o funcionário está fazendo certo; mas, na verdade, não é assim. Vou te dizer, a gente lá não vê dessa forma (Igor).
Os relatos sugerem que a SEDUCRS “vende o peixe (sic)” de que não fiscaliza e de que vai às escolas apenas para ajudar. Na citação de Igor, porém, já aparecem indícios de fiscalização, pois ele menciona que, às vezes, entravam de surpresa nas salas de aula para verificar se os professores estavam seguindo as orientações. Essa suspeita é reforçada na continuidade do seu relato:
Teve uma professora bem revoltada que falou: “eu acho isso uma palhaçada e não sei o quê”. Aí, a gente teve que chamar ela para conversar e falar: “olha, a gente realmente espera que tu faça, porque é essa a determinação. Se não, a gente vai ter que ver, falar com o diretor, falar com a CRE e ver que medidas vão ser tomadas”. Porque, enfim, ela é uma funcionária do estado, e, se o estado diz para fazer tal coisa, não importa se tu gosta ou não, precisa ser executada (Igor).
Ao que parece, eles não estão mentindo sobre ir para ajudar, mas a ajuda que oferecem se limita a explicar como executar as ordens que emitem. Não se trata de um diálogo de mão dupla para construir projetos em conjunto, mas de uma conversa voltada para assegurar que as ordens sejam seguidas corretamente. O teatro do diálogo e da ajuda funciona enquanto as escolas estão cumprindo as ordens, teatralizando a execução ou convencendo os agentes da SEDUCRS de que vão corrigir os problemas. Entretanto, se alguém se recusar a executar e romper com o teatro, a fiscalização é exposta, e os agentes tentam convencer a pessoa a obedecer sob o risco de punição. Tudo indica, portanto, que as visitas têm caráter fiscalizatório, mas os agentes da SEDUCRS acabam inconscientemente acreditando no contrário ao vivenciarem o campo burocrático-administrativo e internalizarem seus valores e discursos.
Encerrando essa discussão, acrescenta-se um relato da agente Adriana:
Por exemplo, durante a pandemia, a gente preencheu muitas planilhas. Eu reclamava muito disso e dizia “ninguém olha isso, isso é só para nos dar trabalho”. Mas, na verdade, eu vi depois na Coordenadoria que tem todo um acompanhamento, que, inclusive, eu achava que era desnecessário, mas é para respaldo do nosso trabalho, para comprovar o que a gente faz. [...] é um respaldo para o trabalho do professor, até por conta de ações dos alunos ou das famílias (Adriana).
Percebe-se que houve uma alteração na percepção da agente ao sair da escola e ingressar nos órgãos administrativos. A mudança de campo possibilitou que ela acessasse informações antes desconhecidas e, também, aproximou-a dos valores do campo burocrático, levando-a a aceitar a importância dos documentos oficiais (o burocrata tende a valorizar a burocracia). Curiosamente, a defesa desses documentos não ocorre devido à sua relevância no processo educacional, mas porque permitem um acompanhamento (controle) da mantenedora e oferecem respaldo em casos de problemas com alunos/familiares ou entre os agentes da escola.
A questão do respaldo é interessante, pois diversos documentos preenchidos na escola não correspondem totalmente à realidade, como evidenciado em outros dados não apresentados aqui. Nesse sentido, eles exemplificam a teatralização do oficial, pois fornecem um registro formal que pode ser utilizado como argumento em conflitos, embora seu conteúdo não reflita com precisão a realidade. Assim, os profissionais do campo burocrático acabam valorizando o instrumento em si devido à sua importância protocolar, mesmo cientes de que podem não corresponder à realidade, não ser úteis ao processo pedagógico e sobrecarregar os professores.
5. As relações entre os agentes
Nesta pesquisa, os agentes investigados ocupam posições relativamente próximas no espaço social, mas a diferença na hierarquia estatal e na aproximação com o campo burocrático leva a um afastamento que compromete a forma com que esses agentes se relacionam.
Primeiramente, destacam-se diversas falas que denotam grande antipatia dos agentes das escolas frente aos agentes da mantenedora:
As coordenadorias tratam os professores de forma muito deselegante, sem respeito. Não ouvem o que temos para dizer, apenas querem “solucionar” problemas empurrando gente de lá pra cá, sem de fato resolver o que é necessário (Anônimo 6).
[Há resistência dos professores], porque muitas vezes não são ouvidos sobre nada, são explorados e humilhados pelos próprios colegas das coordenadorias. Poder pequeno que sobe à cabeça(Anônimo 10).
Constata-se que a relação entre os agentes apresenta certa hostilidade, visto que os profissionais das escolas se sentem frequentemente desrespeitados e menosprezados pelos colegas do administrativo, ainda que nem todos se comportem dessa forma. Outra narrativa que chamou atenção foi a da participante Elisa, ao narrar a reunião que tiveram com a SEDUCRS sobre o processo de municipalização.
Na reunião em que a gente estava, a fala que mais chocou a gente foi em um momento em que uma colega estava bem transtornada, chorando bastante, e a secretária falou “desapeguem, gurias, desapeguem das escolas de vocês”. Mas como é que tu consegue desvincular o trabalho pedagógico, o envolvimento que tu tem com a tua comunidade e com os teus alunos e o teu papel na equipe diretiva? (Elisa).
Essa fala se alinha com as anteriores, mas demonstra um sentimento um pouco diferente: insensibilidade. De um lado, professores desenvolvem um habitus profissional com técnica, mas forte fator humano, criando fortes vínculos emocionais. Do outro, o campo burocrático opera no nível técnico, sem contato direto com os alunos, resultando em menor envolvimento emocional. Essa diferença leva a decisões distintas, com os agentes técnicos adotando uma visão mais pragmática e, por isso, aparentando maior insensibilidade em relação à escola.
Os agentes da SEDUCRS, por sua vez, também demonstram desconforto ao ir à escola e interagir com os professores, como observado abaixo:
Eles [na SEDUCRS] dizem para tentar não entrar na sala dos professores, porque é bem difícil. Eu tento, mas, geralmente, perguntam “quer uma aguinha? Vamos ali na sala dos professores”. Aí, eu fico sem jeito de dizer que não. Tem colega que é taxativo: “eu não entro na sala dos professores”. Eu pergunto, na cara dura, “eu vou sobreviver lá dentro?” (Érica).
O grande problema é que existem coisas que é lei, não tem o que fazer. Isso o professor deveria entender.Eu nunca discuti em sala dos professores, eu não vou estar dando aulinha pra marmanjos, uns até com mais estudo e mais velhos do que eu. Tinha coisas que diziam que tinham toda razão, mastem coisas que falam que eu penso: “cara, isso daí está na LDB desde 96, para de xaropear. Não tem o que fazer, te informa, coleguinha, estuda, vai ler, vai ler referencial gaúcho, vai ler BNCC” (Érica).
Por exemplo, a gente vai lá porque os professores não estão colocando as habilidades e competências que são desenvolvidas e, aí, chega um professor de 80 anos e fala: “ah mas eu nunca fiz assim na minha vida, eu não preciso fazer isso, nunca foi feito assim”. “Pô, professor, mas isso aí já é feito há algum tempo”. [...] Tem esses dois pontos: a resistência a sair da zona de conforto e a questão financeira, que para mim é a mais forte (Igor).
A sensação relatada pelos docentes não é idêntica àquela dos agentes da SEDUCRS, mas estes percebem o clima de hostilidade. Conscientes da relação que se instituiu historicamente entre eles, os agentes da mantenedora adotam uma postura defensiva, evitando contato para prevenir conflitos. Tal hostilidade resulta em afastamento, reduzindo a interação em um cenário em que deveria ser buscado justamente o contrário, isto é, o diálogo.
Um ponto interessante é a oposição entre cumprir a palavra oficial ou resistir a ela. Muitos professores resistem às demandas estatais ao teatralizar o seu cumprimento, mas ignorando-as nos bastidores (tema não aprofundado aqui). Os agentes da SEDUCRS, por sua vez, internalizaram os valores do campo burocrático e precisam seguir rigorosamente todos os instrumentos legais em sua atuação. Dessa forma, ao irem nas escolas, ele não poderão concordar que elas façam algo diferente do estabelecido legalmente e estranharão posições contrárias. Para Érica, parece não existir a opção de burlar a palavra oficial, então essa atitude só pode refletir desinformação. Já Igor associa a resistência à acomodação ou à insatisfação com a remuneração, mas também indica que os professores parecem desconhecer certas exigências. Ambos os relatos podem apresentar elementos da verdade, mas ignoram que a palavra oficial pode expressar um interesse particular mascarado como universal, e que a resistência a ela pode ser consciente e legítima.
Dialogando com essa questão, é interessante analisar a seguinte fala: “É tudo muito respaldado na lei, tudo. Tudo que sai da SEDUC tem lei, tem portaria por trás. Inclusive, quando eu te disse que eu cheguei a ter burnout, foi por isso” (Érica). O relato evidencia a importância da lei no campo burocrático. Enquanto a escola executa propostas, os agentes da mantenedora emitem ordens cuja legitimidade depende da reprodução do discurso oficial. É comum ouvir um professor admitir que não segue as orientações legais, mas é praticamente impossível que a SEDUCRS comunique algo contrário à lei. Assim, as diferenças de posição geram diferenças de valores (com o campo burocrático valorizando a regra) e um habitus distinto, que orienta ações divergentes no jogo.
Retomando a questão da falta de diálogo, houve alguns relatos relevantes por parte dos professores:
Em quase 30 anos de carreira, nunca vi o cara ir para dentro da escola, sentar com os professores e discutir com os professores.Não é discutir com o sindicato, [...] é ir para dentro da escola e conhecer a realidade dela. [...] Os caras se encastelam e, lá de cima, vão administrando (Rafael).
Todo mundo que vem aqui para a escola quer trabalhar bem, quer ensinar bem e quer viver bem, mas, quando vem esse monte de imposições, vai criando um clima de adoecimento e de desgaste. Mesmo um governo sem dinheiro pode mobilizar a rede e a comunidade escolar por um projeto educacional,mas se quiser impor, se quiser cobrar, se quiser vir de cima para baixo, aí não vai funcionar (Diogo).
Além dessas falas, acrescento os relatos de Larissa e de Elisa, contando sobre o processo de municipalização da escola.
Dentro do que eles colocam, a gente sente que só resta ficar esperando. Falta clareza, acho que principalmente isso. [...] Poderia até ter o processo aberto, onde todo mundo está visualizando, mas, como eles querem que a coisa seja do jeito deles e não como deve ser (obedecendo leis, obedecendo a democracia), é tudo muito escondido (Elisa).
[...] talvez eu tentasse fazer valer aquilo que é pregado, que é a gestão democrática. [...] Eu acho que não podemos, no serviço público, dar um passo sem ouvir as partes interessadas. Claro, temos consciência de que tem coisas que são decisões necessárias e pontuais, mas, assim, a transparência, ela não é só necessária, ela é urgente (Larissa).
As falas revelam que os docentes se sentem ignorados, já que a mantenedora toma decisões “lá de cima” e apenas comunica como devem ser executadas. A relação entre os agentes, por vezes, torna-se quase uma não relação, ou seja, o afastamento é tal que quase não há interação direta entre eles. Entende-se, porém, que esse distanciamento, em um regime democrático, é problemático e contraproducente, sendo um dos fatores que comprometem a legitimidade da autoridade para dar ordens em nome do Estado.
Atualmente, os agentes da SEDUCRS não baseiam sua legitimidade na tradição ou no carisma, mas no capital simbólico conferido pela estrutura jurídica e burocrática que sustenta o Estado e suas posições. Todavia, essa estrutura apresenta discursos oficiais que defendem, por exemplo, a liberdade de ensinar, a valorização do profissional da educação, a gestão democrática do ensino público, progressiva autonomia às unidades escolares públicas, entre outros (Brasil, 1996). O problema, na verdade, é que os conceitos envolvidos nessas ideias são polissêmicos, permitindo múltiplas interpretações e distorções alinhadas a diferentes visões. No seu exercício de violência simbólica, portanto, o Estado tem sucesso universalizando determinadas ideias, mas deixa espaço para conflitos dentro desses consensos (todos aceitamos a gestão democrática, por exemplo, mas o que se entende por isso é objeto de disputas).
De um lado, os agentes da SEDUCRS, que têm sua autoridade fundada na estrutura jurídica e burocrática, seguem rigorosamente a lei quando estão atuando. Do outro, porém, agentes nas escolas defendem que a lei, em seu sentido “correto”, não está sendo respeitada em muitas situações que lhe são impostas. Reclamam, por exemplo, da falta de liberdade para ensinar, da desvalorização, das limitações na gestão democrática e da autonomia insuficiente nas escolas. Sentem, de fato, que quem está fazendo as regras “lá em cima” não os representa, mas serve a outros interesses, como se observa abaixo:
Infelizmente, vejo quenão estão preocupadas com a melhora da educação, mas, sim, em atender a interesses políticos e de empresas privadas. Sinceramente, sinto que o verdadeiro Governador/Secretário da Educação do Estado é o Sr. Lehman,preocupado apenas em lucrar mais às nossas custas (Anônimo 1).
Parece que isso faz parte de um grande projeto para cada vez mais sucatear a educação pública. Interesse em privatizar, fazer tudo curso online das empresas privadas, vender cursos (Roberto).
Em diálogo com estudos que identificam a lógica neoliberal e da NGP na educação (Lima; Gandin, 2017, Costa, 2019; entre outros), os participantes demonstram consciência do crescente impacto do campo econômico no campo escolar, resultando numa progressiva diminuição da autonomia da escola frente aos interesses do setor privado. Essa percepção fragiliza a legitimidade da autoridade e a eficácia de sua influência. Não é a mera desobediência a leis porque não se informa ou porque é acomodado, mas porque não se aceita que determinadas regras sejam impostas ao campo escolar sem discussão pública transparente.
Esses relatos, ainda, vão ao encontro da percepção de Bourdieu sobre os sentimentos dos trabalhadores das áreas sociais com o avanço do neoliberalismo, pois, para ele:
Todas essas mudanças possuem algo de surpreendente, sobretudo para aqueles que são enviados à linha de frente para realizar essas funções ditas “sociais” e remediar as insuficiências mais intoleráveis da lógica do mercado sem lhes dar os meios de cumprir realmente a sua missão. Como eles não teriam o sentimento de estar constantemente sendo enganados ou desaprovados? (Bourdieu, 1998, p. 11, tradução própria).
Esse distanciamento também produz nos professores a sensação de que os agentes da mantenedora se esqueceram dos problemas da sala de aula, passando a criar propostas inviáveis:
Percebo que, de fato, elas estão totalmente distantes do ambiente da sala de aula. São instâncias que criam propostas inviáveis para as realidades dos alunos que atendemos (Anônimo 4).
Ambas as entidades acabam se distanciando da realidade escolar, planejam e promovem ações que acabam por atrapalhar o trabalho da escola (Anônimo 21).
Embora muitos agentes da SEDUCRS tenham sido professores, é comum ouvir que se distanciaram da realidade escolar. Eles lembram de suas experiências nas escolas, mas algo na sua mudança de posição e de habitus os leva a decisões que parecem destoar das necessidades delas. Em posições mais altas na escala estatal, podem acreditar que os problemas educacionais podem ser resolvidos tecnicamente (com projetos, métodos e técnicas criados por eles), esquecendo que, sem condições adequadas e sem voz, os professores dificilmente terão motivação para executar as demandas impostas.
Ainda assim, agentes da SEDUCRS poderiam argumentar que a comunicação com as escolas está mais ativa do que nunca. De fato, é possível constatar esse movimento, mas talvez não no formato esperado pelas escolas, visto que se resume a reuniões online e transmissões ao vivo no YouTube.
No Youtube ou as reuniões feitas pela própria CRE, que aí eles mandam o link para a direção acompanhar. Aí, eles vão passando as orientações, [...] vão dizendo como que a gente tem que fazer. [...] Parece que tu teria que estar sempre disponível para ficar assistindo reunião ou assistindo live. Tem a todo momento e acho que isso complica. Eu acho que é importante [ter reuniões], porque era uma das coisas que a gente reclamava, só que é uma agenda que às vezes é apertada para a escola (Anelise).
Como destacado pela participante, as escolas reclamavam da falta de comunicação e de reuniões, mas, atualmente, esse não é mais o problema, pois há até um excesso de reuniões ou transmissões ao vivo. O problema, na verdade, deixou de ser quantitativo para ser qualitativo. Abaixo, mais um relato sobre esse tópico:
Desde o ano passado, quando tudo começou [Novo Ensino Médio], não notei que foi oferecida uma formação digna para nós. Todo mundo meio perdido aprendendo como fazer na prática mesmo. Fizemos lives entediantes e ineficientes que chamam de Jornada Pedagógica, que de pedagógica não tem muita coisa. Querem que a gente inove nas aulas fazendo “formações” que de inovadoras só têm a plataforma, que é digital. As lives são longas, expositivas, sem interação e só pra passar informação burocrática. Eles oferecem cursos de formação na plataforma também, até tentei fazer alguns, mas são nesse mesmo formato. Me dá impressão de que eles estão tão perdidos quanto a gente (Anônimo 23).
A facilidade para realizar encontros e transmissões online gerou um excesso dessas iniciativas, tornando difícil para a gestão escolar acompanhar tudo. Os professores, por sua vez, não são convidados para as reuniões e, em sua maioria, não acessam as gravações no YouTube, pois não há motivação para tal. Como exposto acima, alguns até tentam assistir, mas desistem por acharem o conteúdo irrelevante.
Com base no que foi apresentado, constata-se que a relação entre os agentes escolares e da mantenedora é marcada por hostilidade e distanciamento. Ainda assim, o conflito não é exclusividade da relação entre esses agentes, estando também presente entre os agentes da SEDUCRS e entre eles e os agentes de outros órgãos, como se observa abaixo.
Eles [concursados da SEDUCRS] têm uma experiência maior do que eu em sala de aula. [...] E acabam não me vendo com muitos bons olhos. Os CCs recebem um pouco mais que eles, mas não têm estabilidade. [...] Só que eu vejo que tem uma certa hostilidade. Até foi um dos motivos pelo qual eu saí do pedagógico. Estava meio hostil o negócio, e acabei indo para essa parte do técnico (Igor).
Eu queria mudar de ilha, mas minha chefia não deixava. Por quê? Porque existe, sim, uma concorrência, como se tu quisesse tirar o lugar do outro, mas a única coisa que eu não queria era tirar o lugar do outro (Débora).
Muita coisa que eu queria fazer, boas ideias, não passavam, porque eu sou um grão de areia, eu sou assessora técnica lá. Em cima de mim, eu tenho a chefia, a secretária, todo mundo. Então, é muito complicado. [...] Quer ver coisa difícil, é reunião com o Conselho Estadual de Educação. O pessoal tenta, mas não passa no Conselho. [...] E tu não tem noção do quanto a gente apanha do MEC (Érica).
O caso de Igor ilustra a relação entre agentes concursados e os que ocupam Cargos de Confiança (CCs). Embora ocupem o mesmo cargo, os concursados não veem os CCs como iguais. De um lado, os concursados validaram seu capital cultural ao serem aprovados em concurso público; do outro, os CCs entraram no mesmo cargo graças ao seu capital político e têm um maior retorno em capital econômico (ainda que não tenham outras vantagens). A fala de Igor sugere, então, que os concursados sentem desconforto com os CCs, podendo ser hostis em determinados momentos (mesmo que de forma sutil e inconsciente).
Débora, por sua vez, reforça a existência de conflitos internos na mantenedora. Em um órgão com diferentes posições, incluindo chefias, há uma competição velada por melhores postos, gerando conflitos de interesse. Devido a esses problemas, inclusive, os dois participantes relataram que desistiram de permanecer na posição. Já Érica aponta outro desafio: os frequentes conflitos entre assessores pedagógicos e outros setores ou órgãos.
Como havia sido sugerido anteriormente, a aparente oposição entre agentes escolares e da SEDUCRS não deve ser simplificada em dominados (professores) e dominantes (mantenedora). Embora os agentes da SEDUCRS tenham mais acesso aos recursos estatais, ambos estão longe do topo na escala do poder estatal. Nesse sentido, os professores reclamam das condições inadequadas, mas os profissionais da SEDUCRS enfrentam desafios semelhantes. No setor pedagógico, espera-se que desenvolvam soluções para o ensino na rede, mas eles: não têm condições, individualmente, de se sentar para dialogar com todos os profissionais da rede; têm recursos financeiros limitados; enfrentam um ambiente de trabalho que pode ser hostil; têm que se alinhar às determinações legais; têm uma série de agentes superiores com poder para barrar seus projetos e/ou coagi-los; entre outras limitações. Não se trata, portanto, de definir vítimas e agressores, mas de perceber que os dois lados têm seus momentos de domínio e seus momentos como dominados (o que não significa que os agentes da SEDUCRS não tomem decisões problemáticas).
6. Considerações finais
Ante o exposto, os dados parecem indicar que alguns fatores (como sobrecarga, desvalorização e estabilidade) induzem os professores da rede a desenvolverem um padrão de comportamento que normalizou a atuação profissional apática (desmotivada) e displicente às demandas da mantenedora como uma forma de autopreservação (o que não significa que todos atuem assim). Profissionais novos costumam apresentar um comportamento diferente, mas as condições da profissão e as estratégias de conservação dos agentes mais antigos os influenciam a alterar sua postura profissional.
Agentes costumam decidir ir para os órgãos administrativos numa tentativa de fugir da escola. Seja porque estão cansados do trabalho na sala de aula, seja porque estão desconfortáveis com a escola de maneira geral, o trabalho administrativo se apresenta como uma opção mais tranquila para eles. Em alguns casos, porém, os agentes podem não pertencer à rede e acabam entrando na mantenedora por indicação política, assumindo cargos em comissão. Estes não têm estabilidade, e a aceitação do cargo deve se dar principalmente pelo ganho em capital (econômico, político e simbólico). Houve indícios de que a mudança de campo gera mudanças na percepção dos agentes, alterando suas verdades, seu habitus e suas tomadas de posição. Tal fato, inclusive, pode estar associado à suposta desconexão dos agentes com a realidade escolar, o que gera mais resistência às suas propostas.
Com relação ao que foi exposto na segunda seção de análise, há elementos indicando que a rede estadual é composta por um grupo pouco coeso, isto é, composto por agentes estatais com interesses divergentes e que frequentemente entram em conflito. A hostilidade e o distanciamento entre os agentes das escolas e os da mantenedora são fatores que intensificam a resistência dos professores frente às determinações da SEDUCRS, mas não são suas únicas causas. Os professores não se opõem apenas por “birra”, por falta de informação ou por acomodação (justificativa que povoa o pensamento do senso comum), mas podem resistir de forma consciente a determinadas demandas por não as considerarem legítimas.
Esses resultados, portanto, revelam problemas recorrentes na rede estadual de ensino, os quais impactam diretamente o direito a uma educação de qualidade. Todo ano, muito dinheiro público é gasto para que profissionais do setor administrativo planejem e implementem ideias que são total ou parcialmente rechaçadas nas salas de aula, em um notório desperdício de tempo e recursos. Tanto os profissionais das escolas quanto os da mantenedora trabalham em situações difíceis e desmotivadoras, mas é evidente que o processo educacional dificilmente será melhorado com projetos, técnicas e análises de gestão impostas às escolas. No fim, enquanto esses aparentes rivais se hostilizam no jogo que se desenrola no campo, quem realmente sai perdendo são aqueles a quem todos nós deveríamos proteger e auxiliar: os estudantes.
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1
Os agentes da SEDUCRS indicam que o padrão pode ser recorrente na rede de forma geral.
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Fonte de financiamento:
Bolsa CAPES/PROEX Modalidade II-Taxa (Processo 88887.605927/2021-00).
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Aprovação do Comitê de Ética:
Nada a declarar.
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Disponibilidade de Dados:
Alguns dados da pesquisa estão disponíveis no corpo do texto e outros podem ser obtidos a partir de solicitação aos autores.
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Uso de tecnologia assistida por inteligência artificial:
Os autores declaram que não foram utilizadas ferramentas de inteligência artificial para a realização da pesquisa apresentada nem para a escrita deste artigo.
Referências
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Editado por
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Editor:
Bernardo Caprara (UFRGS, Brasil).
Disponibilidade de dados
Alguns dados da pesquisa estão disponíveis no corpo do texto e outros podem ser obtidos a partir de solicitação aos autores.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
28 Jan 2025 -
Aceito
25 Jul 2025


Fonte: Elaboração própria (2025).