Resumo
Este artigo bibliográfico apresenta uma revisão crítica da obra mais recente de Denise Ferreira da Silva em português. Para além de narrar a história intelectual racializada e excludente do próprio sujeito da teoria social hegemônica (o Homo Modernus), sugerimos que o livro deve ser lido e interpretado como uma proposta de avanço teórico-epistemológico significativo para o debate teórico contemporâneo geral das ciências sociais e, especialmente da sociologia em escala global.
Palavras-chave:
teoria social; modernidade; raça; epistemologia; ontologia
Abstract
The article presents a critical review of the latest book in Portuguese by Denise Ferreira da Silva. Beyond the description of the intellectual history of the hegemonic social theory subject, the Homo Modernus, as racialized and exclusionary, the oeuvre should be interpreted as a theoretical and methodological advancement for sociology and the social sciences in a global scale.
Keywords:
social theory; modernity; race; epistemology; ontology
Em termos globais e com presença original também no Brasil, uma série de publicações que emergiram no século XXI passou a lidar com os limites teóricos e metodológicos da teoria social e sociológica hegemônicas, demonstrando que suas construções são limitadas por vieses regionais, de gênero e raciais euro-americanos (Reed, 2006; Connell, 2007; Alatas; Sinha, 2017; Daflon; Campos, 2022; Hamlin; Weiss; Brito, 2023). Deste grupo de publicações emergem proposições de ampliação do cânone, agora por meio da adição de perspectivas forjadas por teóricos e teóricas excluídas dos circuitos de consagração. Na grande maioria dos casos abordados, a ampliação do cânone branco, masculino e euro-americano ocorre por meio da introdução de textos e autoras que apresentariam contribuições originais significativas sobre temas e questões já presentes no espectro teórico consagrado. Além da adição de regionalismos (Costa, 2010; Rosa; Ribeiro, 2021), o momento presente se caracteriza pela possibilidade de ampliação do número de intelectuais mulheres trazidas aos debates de teoria. A solução inicial para os limites do restrito cânone disciplinar residiria na ampliação das experiências sociais e textuais, especificamente de mulheres indígenas e negras, que contribuiriam para tornar mais complexa a teoria hegemônica (Rosa, 2020).
Diante dessas características, defendo aqui que a publicação de Homo Modernus se trata de uma contribuição teórica inaudita para a renovação teórica das ciências sociais em âmbito global. O tema central, desenvolvido de forma complexa e densa ao longo do livro, é a crítica contundente ao contexto de produção do próprio sujeito que constituiu a ciência social canônica: o Homo Modernus. Destoando das contribuições contemporâneas acima mencionadas, esta obra constrói um quadro analítico denso para demonstrar que o ato de adição de regionalismos ou de experiências excluídas é, ainda, uma ferramenta intelectual de subjugação ontológica daquelas e daqueles que estiveram fora do cânone. Sua crítica, portanto, é da ciência social e sua Teoria como um instrumento histórico de produção e reprodução de hierarquias onto-epistemológicas e espaço-temporais.
O livro tem origem na tese de doutorado da autora, concluída no final da década de 1990 nos Estados Unidos e publicada em inglês em 2007, e agora traduzida e apresentada ao público brasileiro. O fato de o livro ter passado desapercebido aos olhos da sociologia nacional e internacional por uma década e meia pode ter várias explicações. No contexto atual dos debates sobre teoria, gostaria de chamar a atenção para uma delas: o próprio título do livro. A versão em inglês se chama “Para uma ideia global de raça” (subtítulo da edição em português), contribuindo para que leitoras e leitores (versadas em inglês) chegassem ao livro apenas se estivessem interessadas nos temas da raça e do racismo. Assim como acontece com a maior parte dos debates teóricos contemporâneos realizados por mulheres e enquadrados como Teoria Feminista, as teorias feitas por intelectuais negras e negros que mencionam Raça são lidos pelo rótulo Teoria Racial Crítica nos Estados Unidos, ou como sociologia da relações raciais no Brasil. Isolando essas obras como teorias específicas para tratar de sujeitas em relações de gênero e raciais (pretensamente não gerais), contribuímos por mais de um século para alijar reflexões construídas a partir destes temas dos debates hegemônicos sobre teoria social.
Entre o ano da sua publicação em inglês e 2023, uma série mobilizações sociais transnacionais, denunciando desigualdades raciais e de gênero, contribuiu para que cientistas sociais em posições hegemônicas dedicassem algum esforço para compreender o impacto dessas desigualdades na própria constituição teórica e intelectual das disciplinas (Messerschmidt et al., 2018; Alatas; Sinha, 2017; Collins, 2022). Tendo em conta a centralidade da Teoria para a constituição disciplinar de nossas disciplinas, a publicação com o título de Homo Modernus deve ser recebida no contexto brasileiro e internacional como uma intervenção crítica sobre os limites epistemológicos das próprias ciências sociais que se vivencia atualmente.
Ao adentrar as primeiras páginas do livro, somos apresentados a um glossário de conceitos (teóricos) forjados pela autora para compreender e analisar os sentidos da teoria social hegemônica que constituem as ciências sociais modernas. Os conceitos, alguns dos quais serão mencionados a seguir, são apresentados como ferramentas analíticas para delinear uma hipótese original sobre o sujeito (e também o objeto) privilegiado para a construção narrativa (o texto moderno) de toda as ciências sociais, especialmente, da sociologia e da antropologia.
O Homo Modernus é o sujeito contemporâneo produzido como dominante na filosofia (encarnado em personagens masculinos, brancos e ocidentais) por ser historicamente dotado de duas características: razão e autoconsciência. Ele é o ponto de partida e de chegada para a organização e hierarquização teórico-metodológica (portanto empírica) de todas as formas de existência coletiva possíveis na ciência social. Nos termos da autora, o texto sociológico sobre a vida moderna se divide entre a construção e busca ideal do Eu-transparente (o sujeito ocidental dotado de autoconsciência histórica para adaptar e transformar o mundo) e a produção empírica do Eu-afetável (sujeito historicamente alijado das propriedades da razão e da autoconsciência), cujo devir é condicionado pela dependência. O Eu-Transparente é o ser historicamente dotado de interioridade (razão) que lhe permite controlar a si, a natureza e a história; o Eu-afetável, por sua vez, existe primordialmente como determinação exterior da história e da natureza.
A estrutura do livro está dividida em três partes cronológicas, que analisam as condições históricas e intelectuais por meio das quais se estruturou o sujeito singular do modo contemporâneo de conhecimento das ciências sociais.
Na parte I, chamada de “Homo Historicus”, a autora constrói uma arqueologia da produção filosófica moderna do conceito de sujeito universal, partindo de Kant e Herder. É nas obras destes filósofos que Ferreira da Silva identifica a produção da universalidade da razão como propriedade interior (subjetiva) do indivíduo. O sujeito, transcendentalmente dotado destas propriedades, impõe-se à natureza, desconectando-se dela como ambiente e como corpo (apagando efeitos de raça e gênero, por exemplo). Este projeto de sujeito, sem corpo ou gênero, completar-se-ia por meio das posteriores teses hegelianas que afirmam ser a autoconsciência uma ferramenta histórica. Para a autora, o desenvolvimento do Espírito hegeliano seria “um processo (autoprodutivo) temporal através do qual a autoconsciência aprende a ter uma profunda intimidade entre si mesma e as coisas” (p. 219). É neste processo que a ciência emerge como ferramenta do que Ferreira da Silva chama de engolfamento, ou seja, como o processo pelo qual a razão transcendental histórica apreende tudo que lhe é exterior, inclusive outros humanos. Como já conhecemos de debates contemporâneos sobre as percepções de Hegel sobre a escravidão africana, somente na figuração da Europa pós-iluminista o Espírito (com os atributos da interioridade racional kantiana) teria completado esta trajetória de universalidade e autodeterminação. Este seria o palco ontológico no qual emerge historicamente a noção da ciência como controle da exterioridade pelo Homem moderno, nas palavras da autora o Eu-Transparente autodeterminado.
A parte II, “Homo Scientificus”, é dedicada à arqueologia das condições intelectuais que construíram no ocidente a emergência das ciências e, mais especificamente, das ciências sociais como ferramenta analítica racializada. Nas palavras da autora a “peça da razão que transforma a mente num objeto da razão Científica” (p. 260). A ontologia do Eu-transparente como sujeito da ciência – que no texto da sociologia do século XX foi descrita como capacidade de vigilância epistemológica – contribui para que as ciências sociais se estruturem a partir da produção deliberada de uma exterioridade analítica (da natureza, dos corpos, de pessoas e do espaço) que passamos a denominar de nossos “objetos”. Para isto, a autora cunha o termo Homo Scientificus, que será o palco privilegiado de desenvolvimento, primeiro das ciências da vida e, posteriormente, das ciências sociais nas disciplinas da Antropologia e da Sociologia, ancoradas na produção da raça e da cultura como exterioridades e inevitáveis traços diacríticos. Para autora, o arsenal teórico destas ciências do homem reelabora as teses kantianas e hegelianas como estratégias de engolfamento. Ali não apenas a natureza, mas certas existências humanas e seus corpos passam a ser produzidas por efeitos exteriores e, portanto, passíveis de serem governadas pela razão não mais transcendental ou interior, mas agora científica. Esta parte da narrativa se encerra com auge histórico da ação política colonial. No colonialismo moderno, foi delineada a noção da globalidade como contexto ontológico, no qual as configurações históricas mentais e sociais da Europa pós-iluminista foram produzidas como universais na comparação com existências coletivas em outras regiões do globo. Assim, o exterior e o afetável, traduzidos por raça e cultura, são estrategicamente transferidas empiricamente para os espaços coloniais elaborados como particulares.
Chegando no século XX, ao adentrarmos a Parte III do livro, encontramos finalmente o “Homo Modernus” operando no auge de sua potência política. O cenário é a nação pós-colonial. É neste contexto histórico, no qual as ciências sociais se encontram com os projetos de estados nacionais emergentes, que a raça e a cultura atingem seu ápice formal como ferramentas de exclusão e afetabilidade. Os dois palcos nacionais escolhidos para narrar este encontro são o Brasil e os Estado Unidos (segundo a autora, o projeto inicial envolvia também a África do Sul). Por caminhos e circunstâncias específicas (segregação nos Estados Unidos e miscigenação no Brasil), as ciências sociais globais de cada lugar produziram seus desejados sujeitos históricos modernos nacionais a partir da matriz Eu-transparente/Eu-afetável, encarnados na dualidade brancos/negras e indígenas.
Na mesma toada daquilo que Gonzalez-Casanova (1962) denominou de colonialismo interno, o Estado-Nação e seus intelectuais modernos não mediram esforços para delinear onto-epistemologicamente quem seriam os sujeitos nacionais portadores da razão, da história e da ciência. Examinando a construção de ambos os contextos nacionais, não foi difícil para a autora notar que, nos dois casos, raça e cultura foram ferramentas mobilizadas para caracterizar justamente os excluídos ou afetáveis. Em ambos os países, as sujeitas racializadas (afetáveis) se tornam incorporáveis nas narrativas nacionais em sua existência subalterna, frágil e dependente da força exterior da razão e do desejo nacional branco e masculino. Assim como no período colonial, as sujeitas não completamente modernas, não realizadas na razão e pela história, são tratadas nacionalmente como meras particularidades.
A construção de Denise Ferreira da Silva nos conduz a uma crítica à normatividade teleológica da teoria social e política centrada em noções de autonomia ou autodeterminação como predicados do sujeito desejado. Caminhar para autodeterminação (interior e temporal) denota controle racional (transparente) capaz de deliberar as condições, o palco e o cenário de uma relação exterior e hierárquica com corpo e natureza. Sujeitas afetadas, por sua vez, são tratadas como um necessário par inferior, pois sua existência coletiva estaria, ainda, demasiadamente submetida a determinações exteriores, portanto não racionais.
Por tratar especificamente de dilemas sociais mais contemporâneos e próprios das ciências sociais que produzimos, a seção sobre o Homo Modernus fornece ainda um denso mergulho crítico em alguns dos projetos intelectuais tidos como possíveis alternativas à jaula moderna. Nas palavras de Denise Ferreira da Silva, a literatura pós-moderna que declarou a morte do sujeito singular iluminista, transformando o multiculturalismo e a diversidade em parâmetros para a justiça social, ignorou o fato de que a multiplicidade tem como descritor ontológico comum traços de diferenças raciais e culturais em contextos nacionais. Seguindo a mesma linha, o texto critica profundamente aqueles que apostam que a emancipação racial ocorrerá pela inclusão jurídica e econômica da diversidade na agenda moderna. No mesmo conjunto são agrupadas as narrativas pós-modernas, pós-coloniais, pós-marxistas e pós-estruturalistas, que criticam a modernidade, sem abrirem mão da historicidade como único caminho possível para emancipação. Em sua narrativa, a crítica a estes vários movimentos se volta especificamente à obra de Dipesh Chakrabarty (2008), Provincializing Europe (“Provincializando a Europa”). O mesmo diagnóstico cético é reservado à parte da literatura dos estudos feministas e interseccionais. Ao produzirem a existência das mulheres negras contemporâneas a partir dos descritores exteriores de raça, classe e gênero, elas se manteriam, ainda, dependentes da estratégia onto-epistemológica que as constrói como sujeitas particulares, a partir da exclusão socio-histórica operada pelo moderno universal.
O momento de sua construção como livro, entre o final dos anos 1990 e começo dos 2000, também limita que encontremos referências a autoras com as quais ela mesma, nas obras posteriores (Ferreira da Silva, 2024), estabeleceria diálogos densos em torno da questão racial, como Saidiya Hartman e Sylvia Wynter. Em Homo Modernus, as conversas mais fortes são com Foulcault, Fanon e Marx, que, ao mesmo tempo que a ajudam a inscrever este sujeito no capitalismo colonial, são também interpelados, assim como Chakrabarty, por suas apostas político-ontológicas de emancipação comprometidas com a historicidade e interioridade modernas.
A contribuição mais importante do livro é nos fazer pensar e colocar em dúvida as sujeitas desejadas de nossas políticas onto-epistemológicas no espaço da nação e das próprias ciências sociais. Enquanto nossas sujeitas forem tratadas e descritas na Teoria como subalternas, periféricas, excluídas e racializadas, tudo que estaremos fazendo é garantir a manutenção das próprias condições intelectuais espaço-temporais que as produziram como particulares. Em minha leitura, o dualismo onto-epistemológico entre sujeitos autodeterminados (transparentes) e afetáveis, contribuiu para que uma parte significava das ciências sociais buscasse se constituir e se legitimar como o ofício que conduziria aquelas sem condição histórica de interioridade ao caminho da razão, fornecido pela exterioridade intelectual. Ao nos colocarmos no polo transparente e vigilante, dependeremos indefinidamente da produção empírica de sujeitos afetáveis para existirmos com dignidade científica. Homo Modernus é, assim, um convite importuno e original de uma pesquisadora brasileira para repensar e transformar as bases normativas de nossas próprias posições globais de sujeito de conhecimento.
-
Fonte de financiamento:
CNPq e FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, Processo SEI-260003/003959/2023.
-
Aprovação do Comitê de Ética:
material não avaliado por Comitê de Ética.
-
Disponibilidade de Dados:
Os dados de pesquisa estão disponíveis em repositório.
Referências
- ALATAS, Syed Farid; SINHA, Vineeta.Sociological theory beyond the canon USA: Springer, 2017.
- GONZÁLEZ - CASANOVA, Pablo. Sociedad plural y desarrollo: el caso de México. America Latina, n. 4, p. 31-35, 1962.
- CHAKRABARTY, Dipesh.Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference-New edition. Princeton: Princeton University Press, 2008.
- COLLINS, Patricia Hill.Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2022.
- CONNELL, Raewyn.Southern theory: social science and the global dynamics of knowledge. London: Polity, 2007.
- COSTA, Sérgio. Teoria por adição. In MARTINS, Carlos Benedito. (org.). Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: sociologia. São Paulo: Barcarolla, 2010. p. 25-51.
- DAFLON, Verônica Toste; CAMPOS, Luna Ribeiro. Pioneiras da sociologia: mulheres intelectuais nos séculos XVIII e XIX. Niterói: EDUFF, 2022.
- FERREIRA DA SILVA, Denise.A dívida impagável: uma crítica feminista, racial e anticolonial do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2024.
- HAMLIN, Cynthia Lins; WEISS, Raquel Andrade; BRITO, Simone Magalhães. Por uma sociologia polifônica: introduzindo vozes femininas no cânone sociológico. Sociologias, v. 24, n. 61, p. 26-59, 2023.
- MESSERSCHMIDT, James W. et al (org.).Gender reckonings: new social theory and research. New York: NYU Press, 2018.
- REED, Kate. New directions in social theory: race, gender and the canon. Basingstoke: Sage, 2006.
- ROSA, Marcelo C.; RIBEIRO, Matheus A. P. Como se faz teoria social no Brasil? Hagiografia, extroversão intelectual e avanços (2010-2019).BIB-Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, n. 94, p. 1-20, 2021.
- ROSA, Marcelo Carvalho. Sociologias Emergentes: uma agenda não-exemplar. Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, v. 8, n. 1, p. 136-148, 2020.
Editado por
-
Editor:
Jalcione Almeida
Disponibilidade de dados
Os dados de pesquisa estão disponíveis em repositório.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
24 Nov 2023 -
Aceito
03 Maio 2024
