Open-access Genealogia do espanto: Heloisa Buarque de Hollanda e a virada periférica

Genealogy of astonishment: Heloisa Buarque de Hollanda and the peripheral turn

Resumo

O ensaio aborda a “virada periférica” na crítica da cultura brasileira a partir de e em Heloisa Buarque de Hollanda. Para tanto, discute iniciativas capitais da crítica que hoje assina Heloisa Teixeira, como curadorias de exposições sobre as periferias urbanas, publicação de coleções de livros e a Universidade das Quebradas. No lugar de uma interpretação dos conteúdos, o ensaio dá mais atenção à “forma” dessas iniciativas, seguindo sugestão de Susan Sontag. E para compreendê-las como um repertório de formas que faz sentido na sociedade e na cultura brasileiras, situa a virada periférica da autora numa série genealógica, a que chamamos do “espanto” do intelectual brasileiro diante da capacidade de agência do “povo”. Com isso, queremos destacar as contribuições de Heloisa Buarque de Hollanda no processo de democratização da cultura no Brasil.

Palavras-chave:
pensamento social no Brasil; intelectuais; cultura; periferia; Heloisa Buarque de Hollanda

Abstract

The essay explores the “peripheral turn” in Brazilian cultural criticism through the work of Heloisa Buarque de Hollanda, now known as Heloisa Teixeira. It highlights her key initiatives, such as curating exhibitions focused on the peripheries, publishing book collections, and founding the “Universidade das Quebradas.” Rather than interpreting the content of these initiatives, the essay places greater emphasis on their “form”, in line with Susan Sontag’s approach. To understand them as a repertoire of forms that hold significance within Brazilian society and culture, the essay situates the author’s peripheral turn within a genealogical series, which we term the “astonishment” of the Brazilian intellectual at the “people’s” capacity for agency. In doing so, the essay seeks to highlight Heloisa Buarque de Hollanda’s contributions to the democratization of culture in Brazil.

Keywords:
brazilian social thought; intellectuals; culture; periphery; Heloisa Buarque de Hollanda

1. Introdução1

Viemos ao mundo com um grito. E muitas vezes também morremos com um grito. Talvez o grito seja o símbolo mais direto da condição humana.

Francis Bacon, 1992 (The Art Newspaper, 2003, p. 28, tradução nossa).

Está por ser feita uma genealogia do intelectual brasileiro que, no lugar da idealização do povo, como já se discutiu à exaustão, toma um susto com ele. Heloisa Buarque de Hollanda, antes de ser Heloisa Teixeira, passou pelos dois momentos. E de modo singular. Idealizou o povo no início dos anos 1960 nos Centros Populares de Cultura2, decepcionou-se com a revolução popular que não veio, mas não se tornou cínica. Seu fracasso pessoal e geracional foi tema de sua tese de doutorado em literatura brasileira, defendida em 1979 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e publicada em livro no ano seguinte, com o título Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde (1960/70). A tese registra um momento de espanto diante do reconhecimento da autonomia do outro (Hollanda, 2004). Um momento de descentramento, portanto, que ela continuou exercitando ao longo de sua trajetória intelectual. Primeiro, com os estudos culturais, de que foi uma das introdutoras no Brasil nos anos 1980, e, simultaneamente, com sua conversão ao feminismo, que a tem levado a uma das atuações mais destacadas na universidade e na vida pública brasileiras. Depois, a partir de meados dos anos 1990, com sua virada periférica.

Essa virada epistemológica é um aprendizado individual e social. Heloisa aprendeu a ver e, sobretudo, a escutar, quando as periferias urbanas vinham irrompendo a esfera pública e o debate cultural ainda meio timidamente. Ela se fez parceira deles, não eles. Aliada. Embora adore escutá-los, faz-se microfone também, quando necessário. Virou Heloisa Teixeira ao entrar na Academia Brasileira de Letras em 2023, abandonando o sobrenome do primeiro marido, que usou profissionalmente por quase 60 anos, e adotando o sobrenome materno, para afirmar que chegava lá com as “Quebradas”, onde a figura da mãe, da ancestralidade, é central.

Neste ensaio, discutiremos algumas iniciativas fundamentais de Heloisa, como a curadoria de exposições sobre as periferias, a publicação da coleção Tramas Urbanas pela editora Aeroplano e a Universidade das Quebradas, laboratório de tecnologia social que redefiniu o sentido da extensão universitária. No lugar de uma interpretação dos conteúdos, daremos mais atenção à “forma” dessas iniciativas, seguindo a sugestão de Susan Sontag (1987) em Contra a interpretação. E para compreendê-las como um repertório de formas que faz sentido na sociedade e na cultura brasileiras, situamos a “virada periférica” da autora numa série genealógica, a que chamamos do “espanto” do intelectual brasileiro diante da capacidade de agência do “povo”.

O ensaio compreende, com Michel Foucault (2000) e Silviano Santiago (2018), a genealogia como uma atividade de investigação que visa fornecer indícios para fatos marginalizados, desvalorizados ou esquecidos pelos procedimentos da história tradicional. O exercício genealógico requer, em poucas palavras, a busca da singularidade dos acontecimentos, sobretudo naquilo que não participa da história, como “os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos” (Foucault, 2000, p. 260).

Em nossa genealogia do espanto, lembraremos momentos na vida de alguns intelectuais brasileiro decisivos, em que deixam de lado a idealização do povo – positiva ou negativa – e reconhecem nele a capacidade de fazer a sua história: Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Darcy Ribeiro e, de certa forma, Florestan Fernandes. É uma forma de colocar a experiência e a contribuição próprias de Heloisa Buarque de Hollanda em perspectiva, desafiando e conformando o cânone intelectual em tensão e em transformação.

É essa história que percorre como um fio fino e resistente a sociedade brasileira e que emerge particularmente em momentos de crises agudas que queremos reconstituir. Ou seja, não se trata de discutir a história institucional de um grupo muito particular, embora extremamente diverso, os intelectuais, em seu encontro com o povo brasileiro, uma categoria genérica e polissêmica. E sim certos elementos menos tangíveis – “os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos” – que em algum momento de suas trajetórias eles e elas vivem. Não serão eles também importantes para a democratização da cultura?

2. Os intelectuais aprendem?

A história brasileira dos intelectuais com o povo é cheia de equívocos. Sobretudo quando os intelectuais, por razões diversas, sentem-se imbuídos de uma missão civilizatória ou querem ser os representantes do povo. Esses equívocos, porém, não são evitáveis; são exigências próprias da sociedade desigual e hierárquica em que vivemos. Mas é possível aprender com eles.

Joaquim Nabuco, por exemplo, diz em O Abolicionismo (1881) que tinha um “mandato da raça negra”:

O mandato abolicionista é uma dupla delegação, inconsciente da parte dos que a fazem, mas, em ambos os casos, interpretada pelos que a aceitam como um mandato a que não se pode renunciar. (...) Os motivos pelos quais essa procuração tácita impõem-nos uma obrigação irrenunciável não são puramente – para muitos não são mesmo principalmente – motivos de humanidade, compaixão e defesa generosa do fraco e do oprimido (Nabuco, 2010, p. 46-47).

Muito se sabe desde então sobre a dinâmica dos movimentos abolicionistas, nosso primeiro movimento social, como mostra Angela Alonso (2014), que combinaram não apenas táticas, mas também protagonistas e alianças diferentes. Inclusive com lideranças negras, como Luiz Gama ou José do Patrocínio.

Na retórica de Joaquim Nabuco, que, de fato, dedicou sua vida profissional como parlamentar inteiramente à causa abolicionista, seu compromisso nasceu cedo. Como conta no capítulo “Massangana” de Minha formação (1900), quando ainda era menino, sentado no alpendre da casa da madrinha no engenho, cujo nome dá título ao capítulo, foi abordado por um escravizado fugido da vizinhança. Esse homem implorou que Nabuco pedisse à madrinha que o comprasse, pois ela era conhecida por ser uma senhora moderada e piedosa com seus escravizados (Nabuco, 1949). Pode ser que essa justificativa para sua dedicação ao Abolicionismo tenha sido apenas uma tentativa de recomposição da subjetividade do Nabuco idoso em suas memórias, tentando ligar passado e presente.

Verdadeiras ou não, essas justificativas são indícios de um problema muito mais complexo e recorrente na sociedade brasileira, quando lemos os nossos intelectuais também como narradores de si, isto é, como sujeitos que buscam recompor sua subjetividade, em meio aos relatos que se querem objetivos sobre a sociedade brasileira, de acordo com as regras de “objetividade” ou “cientificidade” vigentes em cada época. São esses momentos de descobertas, quase sempre surgidos de um trauma, que gostaríamos de retomar neste momento. Uma espécie de descoberta dos intelectuais do povo ou dos grupos sociais subalternizados na hierarquia social como sujeitos de sua história. Essa descoberta obriga aos intelectuais reverem suas concepções de povo, de sociedade e de si mesmos, além da própria justificativa moral e política, e reavaliarem a tendência a vocalizar os interesses do povo, de guiá-lo, de representá-lo ou mesmo de substituí-lo. Uma crise aguda se instaura.

Como argumentam Elide Rugai Bastos e André Botelho em “Para uma sociologia dos intelectuais”, não basta fazer a crítica da ideia de “missão” a que intelectuais brasileiros de diferentes gerações, ao longo da nossa história, sentiram-se investidos. A crítica, mesmo se não proceder, não faz desaparecer o sentimento de missão ou, para colocar em termos mais gerais, de responsabilidade pelos segmentos que em geral têm menos voz na sociedade e são mais desprivilegiados (Bastos; Botelho, 2010). A recorrência desse sentimento em diferentes gerações e por meio de diferentes formas é ela mesma o indício de que estamos lidando com problemas históricos e estruturais mais amplos e profundos. Em relação aos quais a vontade, seja a dos intelectuais ou a dos seus críticos, não é suficiente para desmontar o problema e sequer explicá-lo de uma vez por todas numa teoria única.

Outro aspecto interessante é que a relação dos intelectuais com o povo, seja ela autoritária ou democrática, não é exatamente um fenômeno universal. A história desse encontro – talvez seja mais pertinente falar em desencontro –, tem sido observada particularmente em sociedades que diríamos periféricas até o passado recente, sociedades que não se formaram como Estados-nações modernos por meio de revoluções burguesas típicas. Tal como ocorrido na Inglaterra, por exemplo, onde a formação das classes sociais e a distinção entre elas torna mais fácil compreender seus interesses e valores, que às vezes são antagônicos, outras vezes convergentes e outras vezes comuns. Quando dirigia a revista Ocidente, o filósofo político Norberto Bobbio surpreendeu-se quando, justamente, o correspondente inglês do periódico devolveu em branco o questionário que Bobbio havia mandado para vários países sobre o papel dos intelectuais. Na Inglaterra não havia intelectuais. Havia especialistas.

Esse raciocínio prevaleceu em análises do fenômeno no Brasil, ao menos como uma expectativa durante os anos de consolidação da institucionalização da universidade e, em especial, da pós-graduação, reconhecidamente uma ilha de excelência em meio a um sistema de ensino em geral deficitário para os mais pobres e marginalizados. Mas é difícil dizer que o chamado scholar, o professor universitário rigorosamente especialista em um assunto, tenha suplantado o intelectual, voltado a causas públicas implicadas também no seu trabalho e assunto. Ao contrário, assistimos cada vez mais a situações que acabam recolocando o papel do intelectual público: seja o intelectual que emerge dos movimentos sociais com relações indiretas com a academia; seja dos próprios acadêmicos, que não deixam de reafirmar um papel social e mesmo político para si mesmos, ao lado das suas tarefas de especialistas rigorosos. No momento, vemos isso acontecer nas redes sociais, com acadêmicos respeitados que se tornam também influencers sobre questões de gênero, raça, desigualdades sociais, defesa da democracia etc.

No alvorecer da República, nenhum outro intelectual encarnou mais e melhor esse papel do que Euclides da Cunha. Seu espanto com o povo foi enorme e muito produtivo. Engenheiro militar de formação, Euclides tentou a sorte também como jornalista, e, em 1897, foi designado pelo jornal O Estado de São Paulo para cobrir a 4ª Expedição contra Canudos. O jornalismo de guerra, no qual o jornalista assume a posição de testemunha ocular, era atividade nova, assim como a oportunidade de presenciar um evento desse porte e que mexia com a imaginação da população brasileira. Mexeu com a República, que logo transformou um pequeno foco rebelde isolado no sertão nordestino num imenso bode expiatório.

A comunidade de Canudos havia se instalado no interior do estado da Bahia, num local pouco conhecido pelos ilustrados da capital federal carioca. A região, caracterizada por latifúndios improdutivos, secas cíclicas e desemprego crônico, passava por uma grave crise econômica e social. Desenganados, abandonados pelo poder público e pelos grandes proprietários, milhares de sertanejos dirigiam-se para Canudos, uma cidadela liderada pelo peregrino Antônio Conselheiro. O que unia aquelas pessoas era a forte crença na salvação milagrosa que pouparia os humildes habitantes do sertão dos flagelos do clima, assim como da exclusão econômica e social secular. O sertão ia virar mar. E, assim, o arraial cresceu significativamente.

Canudos foi virando uma grande desculpa pronta, suficiente para expiar as culpas da República. Criou-se uma série de rumores, e o mais estridente deles afirmava que Canudos estava se armando para atacar cidades vizinhas e partir em direção à capital. E mais: que pretendiam depor o governo republicano e reinstalar a Monarquia, há pouco derrubada. A notícia não tinha pé nem cabeça, e não havia chance de um grupo de pessoas esquecidas pela República resolver atacá-la. Mas a grita virou geral e o próprio Euclides da Cunha, assinando como Proudhon, um filósofo anarquista francês, atacou a “barbárie” deste movimento, oposto ao regime recém-instituído que representaria a “civilização”.

Mas se Euclides viajou cheio de certezas, voltou cheio de dúvidas. Ele presenciou os terríveis massacres empreendidos pela República, que enviou quatro expedições militares contra Canudos, mobilizando cerca de doze mil soldados. As três primeiras expedições foram derrotadas, a última conseguiu destruir o arraial, vitimando cerca de vinte mil sertanejos, além dos cinco mil militares que pereceram nos combates. A guerra terminou com a destruição total de Canudos, a degola de muitos prisioneiros de guerra e o incêndio de todas as casas do arraial (Cunha, 1902). Já Euclides da Cunha perdeu a convicção que carregava consigo quando lá chegou.

Além dos artigos para O Estado de São Paulo, ele publicou Os Sertões em 1902, livro essencial resultante de sua experiência em Canudos e que teve imensa repercussão por denunciar o verdadeiro massacre empreendido pela República contra parte da população. A Guerra de Canudos é um evento traumático que alterou as perspectivas de Euclides da Cunha e lhe exigiu um uso inovador e alegórico das categorias de análise que estavam disponíveis. A mera “tradução” da realidade testemunhada pelo autor era uma tarefa difícil; para expressar um evento tão trágico, exigia-se senão um novo repertório, ao menos novos sentidos, para as categorias usuais. Não faltou a Euclides, assim, a coragem de rever o que já sabia a partir do que descobriu em contato com a realidade trágica e terrível da guerra, expondo as fraturas e ambiguidades da nossa realidade social e do projeto republicano. Não por acaso, foi chamado de o “livro vingador” apenas dois anos após sua publicação, em 1904.

Em chave diferente, em que o sentimento de justiça e de verdade são reconfigurados e até potencializados pela empatia e pelo afetivo e homoerótico, temos o encontro de Mário de Andrade com o cantador de cocos Chico (Francisco Antônio Moreira). Um susto enorme.

Como mostram André Botelho e Maurício Hoelz em O modernismo como movimento cultural (2022), Mário de Andrade deixa, talvez, seu maior e mais importante projeto intelectual interrompido e inacabado: Na pancada do ganzá. Foi um projeto que pretendia responder às transformações mundiais nas práticas e sensibilidades estético-musicais com grande alcance teórico, de pesquisa sobre a criação popular e busca de uma solução brasileira para a música. Toda a força do projeto interrompido se deixa entrever nos fragmentos que dele restaram. Eles nos dão a dimensão de onde Mário de Andrade teria chegado se tivesse tido condições de levá-lo a cabo como pretendia.

Um “livro de amor”, assim Mário se referia ao Na pancada, que nasce do seu encontro com o cantador Chico Antônio em sua viagem ao Nordeste, realizada entre meados de dezembro de 1928 e meados de março de 1929. O encantamento arrebatador que o coqueiro potiguar exerceria sobre o poeta modernista foi tal que o moveu inteiramente para repensar em profundidade a cultura brasileira. Mário valoriza, em uma série de artigos sobre a vida de Chico Antônio, o que qualifica como a “poesia surrealista” desse cantador nordestino, o balanceio interno do andamento e o processo inventivo de improvisação pela forma variação, que frequentemente ocorre em diálogos e duelos cantados conhecidos como desafios.

Foi no engenho da família do amigo Antônio Bento de Araújo Lima, em Bom Jardim, em 9 de fevereiro de 1929, que Mário conheceu Chico Antônio, numa “noite inesquecível”. O encantamento ganha tons quase epifânicos pelo lápis do cronista, que utilizaria um piano trazido da fazenda vizinha num carro de boi (compondo uma imagem bem brasileira) para tentar grafar suas melodias praticamente insubmissas ao temperamento do teclado:

Pra tirar o ‘Boi Tungão’, Chico Antônio geralmente se ajoelha. Parece que ele adivinhou o valor artístico e social sublimes dessa melodia que ele mesmo inventou e já está espalhada por toda esta zona de engenhos. Então se ajoelha pra cantá-la [...]. Estou divinizado por uma das comoções mais formidáveis da minha vida [...]. Não sabe que vale uma dúzia de Carusos. Vem da terra, canta por cantar, por uma cachaça, por coisa nenhuma e passa uma noite cantando sem parada. [...] O que faz com o ritmo não se diz! Enquanto três ganzás, único acompanhamento instrumental que aprecia, se movem interminavelmente no compasso unário, na “pancada do ganzá”, Chico Antônio vai fraseando com uma força inventiva incomparável, tais sutilezas certas feitas que a notação erudita nem pense em grafar, se estrepa. [...] Sem parar. Olhos lindos, relumeando numa luz que não era do mundo mais. Não era desse mundo mais (Andrade, 2015, p. 315, grifos nossos).

Ainda que descontado seu superlativismo retórico tão característico, não deixa de nos sarapantar, como gostava de dizer, que um crítico musical habitué das temporadas de espetáculos da capital paulista confesse que ouvir Chico Antônio cantar foi “umas das sensações musicais mais fortes” de sua vida. Segundo Mário, Chico Antônio se singularizava em relação a outros coqueiros da região até mais afamados que ele, não tanto por sua capacidade de improvisação e de sustentar o desafio na embolada, mas por ser “essencialmente musical” (e não poético, como os demais) e, sobretudo, por seu timbre “firme, sensual, acalorado por esse jeito nasal de cantar que é uma constância de todo o povo brasileiro” (Andrade, 1984, p. 378).

O amor do intelectual modernista pelo cantador nordestino é parte de uma luta mais ampla para mudar o Brasil. É o desafio de democratização da cultura, de reconhecimento dos sujeitos das culturas populares, de uma sociedade mais plural e de convivências democráticas com as diferenças e de enfrentamento das desigualdades sociais. Nesse sentido, a valorização das culturas populares por Mário de Andrade pode ser revista menos nas chaves usuais de um colecionismo romântico ou diluída no movimento folclórico dos anos 1930 até a década de 1960, e mais como política de reconhecimento (Botelho; Hoelz, 2022).

Afinal, se Mário valorizou a cultura popular, seu interesse não se extingue nas manifestações que colheu, mas antes no reconhecimento social e político que provocou delas e na dignidade e visibilidade que procurou conferir a seus portadores sociais. E, sobretudo, diferente de outras correntes do modernismo, o fato de ter buscado problematizar as fronteiras entre erudito e popular indica que Mário não pensou apenas as diversidades culturais ou a diversidade em si mesma, mas que também se mostrou atento às suas relações com os processos duradouros de desigualdades sociais na sociedade brasileira.

Embora muitos outros autores e autoras pudessem figurar nesta breve genealogia do espanto com o povo e decorrentes mudanças de perspectivas dos intelectuais brasileiros, nela não poderia faltar Darcy Ribeiro. Como mostra Helena Bomeny (2001), Darcy ampliou em dupla dimensão o esforço de compreensão do Brasil: incorporou definitivamente os povos originários como parte integrante da formação da sociedade, estendendo seu quadro de referência com a vinda dos africanos aqui aportados pela violência da colonização.

O etnólogo de sua geração que talvez mais tenha valorizado e popularizado o papel e os muitos valores das populações ameríndias, Darcy refinou sua teoria do Brasil também com a inserção do país no conjunto dos países da América Latina. Para Darcy, indígenas, pretos e latino-americanos são chaves para compreender a formação do país. Sua interpretação compreende igualmente um sentimento e um compromisso público com o povo brasileiro, de quem fez a defesa e o elogio em inúmeras oportunidades.

Esse sentimento se consolidou definitivamente com seu exílio em países latino-americanos (Uruguai, Venezuela, Chile e Peru). Com o golpe militar em 1964, Darcy interrompeu por anos a sua vida política nacional. Deixava então Brasília, a nova capital do Brasil, imbuído do protagonismo na construção da Universidade de Brasília (UnB), experimento inovador e cheio de utopia. Utopia pela crença de que a universidade seria a porta à civilização que aquele projeto ousado de Juscelino Kubitschek pretendia – autônoma, inventiva, livre e amante do conhecimento mais avançado. Voltou ao Brasil apenas em 1976 e, com a Lei de Anistia, de 1979, foi reintegrado ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. No ano seguinte, uniu-se a Leonel Brizola na organização do Partido Democrático Trabalhista (PDT).

O “povo brasileiro”, como insistiu em nomear-nos, para realçar traços de comunhão que resistiram à diferenciação crescente na sociedade brasileira, não cansou de surpreender Darcy Ribeiro, desde as populações ameríndias e seus muitos saberes ancestrais até os jovens e crianças excluídos da educação formal, lançados à própria (falta de) sorte nas periferias urbanas e rurais. E entre as grandes realizações de Darcy para o “povo brasileiro” estão, sem dúvida, os Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), criados por ele no Rio de Janeiro durante o primeiro governo de Leonel Brizola (1983-1987), de quem foi secretário de Ciência e Cultura e vice-governador. A proposta curricular dos Cieps visava à educação integral, uma formação que considerava o indivíduo na sua integralidade, de sentimentos, afetos e cognição. Procurava-se também a integração dos conhecimentos, inclusive artes e esportes. Nos amplos edifícios de concreto com grandes janelas retangulares, mas com bordas arredondadas, projetados pelo arquiteto Oscar Niemeyer, crianças passavam o dia das oito da manhã às cinco da tarde, e ainda contavam com consultórios médicos e odontológicos, além de três refeições diárias.

A urgência em relação ao trabalho intelectual e aos projetos públicos, tão característica da trajetória de Darcy, talvez venha do trauma do exílio forçado, que interrompeu uma série de realizações capitais na reforma e democratização da educação, mas também pela convivência por cerca de vinte anos com a possibilidade da morte. Ainda durante o exílio, foi diagnosticado com câncer e foi autorizado a voltar ao Brasil para se tratar em 1974. Morreria da mesma doença em 17 de fevereiro de 1997, em Brasília. Antes disso, porém, conseguiu deixar com muito custo o hospital no Rio de Janeiro em que estava internado, e “fugiu” para sua casa de praia em Maricá, na região metropolitana do Rio, a fim de terminar seu livro, um best-seller dos anos 1990, O povo brasileiro, lançado em 1995 (Ribeiro, 1995).

O caso de Florestan Fernandes, sociólogo e teórico da sociologia, impôs-se desde o início quando começamos a pensar na genealogia do espanto. Seu trabalho é de suma relevância, inclusive por conferir mais matizes e mais complexidade a essa genealogia. De origem humilde, Florestan contou com certa “proteção” da madrinha (e patroa de sua mãe) na infância para se alfabetizar e teve que compensar uma educação precária no que hoje chamamos de ensinos fundamental e médio com muita autodisciplina e dedicação, tendo frequentado cursos especiais noturnos voltados para jovens e adultos trabalhadores. Antes de se tornar professor assistente na Universidade de São Paulo (USP), Florestan trabalhou como engraxate, garçom e representante de laboratório farmacêutico. De certa forma, seriam pessoas com trajetórias parecidas com a sua que se tornariam seu foco de estudo posteriormente.

O susto dos intelectuais emerge das distâncias abissais que a sociedade brasileira ergue entre aqueles que tiveram determinada socialização e acesso a recursos que lhes permitiram atuar justamente como “intelectuais” e aqueles que foram privados dessas oportunidades. Nesse sentido, como pondera Antonio Brasil Junior, o susto de Florestan é muito diferente, porque, ao contrário dos demais casos selecionados,

ele teve que atravessar a duras penas o “abismo”, tornando-se um ser “transclasse” (para dizer ao modo da Annie Ernaux). Nos relatos autobiográficos, ele vai mostrando como foi dolorosa esta passagem, já que acabou deixando no caminho amigos (que não compreendiam o novo mundo a que ele teve acesso) e redefiniu a relação com a própria mãe, que temia profundamente que o filho se afastasse dela. O mais notável é que Florestan lutou muito, no sentido ético mesmo, para não reproduzir o que seria mais óbvio: sua reconversão para os valores e modos de agir típicos do mundo dos privilégios. Mas esta luta, que por vezes se tornou inglória, não fez desaparecer o que era igualmente óbvio: sua mobilidade social ascendente (meteórica, diria) abria um abismo (não só material, mas mental também) entre ele e os “de baixo” (Brasil Junior, comunicação pessoal, 2024).

Ou seja, o espanto de Florestan é fruto do estranhamento dele em relação às duas pontas do processo social (os de cima e os de baixo). “Daí que seja um ‘susto’ (ou um ‘espanto’) desencantado até a medula”, como completa Brasil Junior.

3. Fracassos

São muito diferentes os nexos de sentido que reconectam os intelectuais e os grupos subalternizados na hierarquia social brasileira em diferentes momentos. Da revolta diante de um massacre ao amor homoerótico. Passando por outras formas de conexão: o espanto diante de saberes ancestrais, da exclusão social, das desigualdades sociais aberrantes.

Na genealogia que aqui construímos, a ênfase no susto, em lugar da surpresa, permite qualificar a mudança radical do olhar do intelectual. Mais ainda, faz parte de um processo em que fatores de naturezas distintas, mas interligados, permitem a descoberta de ângulos desconhecidos. A importância do itinerário do intelectual público está aí: sintonizado com seu tempo e com o espaço possível de ação. E a coragem de assumir os equívocos de sua visão diretiva, vanguardista.

Não é uma tipologia de intelectuais o que propomos, porém. Como já mencionamos, trata-se mais de um “momento” na vida desses (e outros) intelectuais públicos. Muito livremente inspirados pelo clássico de John Pocock sobre Nicolau Maquiavel, The Machiavellian Moment, de 1975, queremos ressaltar, sobretudo, a ideia de “tempo da ação política em si mesmo”. Trata-se de uma espécie de fundamento para o primeiro sentido de “momento”, segundo Pocock (1975), que diz respeito à combinação entre tempo e espaço em que o historiador trata em seu livro: o espaço e o tempo do republicanismo da Florença do Renascimento e suas reverberações nos três séculos seguintes, quando desempenha papel estrutural na constituição do republicanismo inglês e norte-americano.

Na nossa livre inspiração, o “momento do espanto” dos intelectuais públicos brasileiros pode acontecer em diferentes contextos históricos da sociedade, dados os processos sociais que a atravessam, repondo problemas de desigualdades sociais duráveis. Mas tem também uma espécie de fundamento teórico e ético representado, com conteúdos históricos e sentidos políticos diferentes, na percepção de alguns intelectuais da autonomia do povo e das classes subalternizadas diante de suas vontades de aproximação e/ou direção moral e intelectual.

Curioso notar como, talvez não por acaso, cada um dos intelectuais aqui relembrados – embora desfrutem de grande reputação, suas obras sejam muito conhecidas e visitadas há mais de cem anos no Brasil e integrem o cânone dos intelectuais públicos – foram marcados pela ideia de fracasso em seus projetos mais importantes.

Nenhuma das reformas sociais previstas no panfleto O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco, como a reforma agrária e a educacional, chegou sequer a ser implementada. A Abolição não foi acompanhada por políticas públicas de inclusão e de reparação histórica, e os dados demográfico-raciais ainda hoje são revoltantes, revelando como os grupos de origem escravizada compõem a imensa maioria de desfavorecidos no país.

Euclides da Cunha morreu antes de ver seu projeto intelectual sobre a Amazônia, pelo qual tinha grande expectativa, acabado. Isso para não falar das desigualdades regionais que permanecem no Nordeste, afetando suas populações sertanejas em especial. Recentemente, aliás, preconceitos históricos contra os nordestinos foram abertamente manifestos em pronunciamentos e políticas públicas do Governo Bolsonaro (2019-2022), como tivemos a tristeza de testemunhar.

O que dizer de Mário de Andrade, cuja luta pela democratização da cultura foi interrompida pela ditadura do Estado Novo (1937-1945), que, a seu modo autoritário, centralizador e populista, trouxe para a esfera pública a questão da cultura brasileira pela qual os modernistas vinham batalhando? No contexto de exceção, de restrição às liberdades civis e políticas, de repressão policial da ditadura Vargas, foram muitos os limites impostos tanto à democratização dos bens culturais quanto à afirmação da cultura como parte de um processo de democratização mais amplo, da sociedade e do Estado. Ao mesmo tempo, criações e conquistas modernistas iam sendo, pari passu, apropriadas, transformadas e ressignificadas em clichês e produtos de brasilidade na então nascente indústria cultural.

Uma nova ditadura, a civil-militar de 1964-1985, causaria o fracasso de um dos mais vibrantes e apaixonados intelectuais públicos de todos os tempos, Darcy Ribeiro, deixando em suspenso suas utopias e seus projetos.

E também Florestan Fernandes, que mostrou como ninguém que a sociedade brasileira não tolera muito bem formas democráticas de interação. Como discutiram André Botelho e Brasil Junior (2020) no prefácio à edição de 2020 de A Revolução Burguesa no Brasil, este livro, que já nasceu um clássico, não foi exatamente fácil para os leitores dos anos de 1970. O conceito de “autocracia burguesa” não deixava de ser algo desolador para aqueles seus contemporâneos que buscavam diretamente no livro um meio, digamos, operacional, de combate direto à ditadura civil-militar.

Afinal, Florestan faz neste livro uma distinção heurística crucial que torna a compreensão da realidade social e da transição democrática muito mais complexa e matizada do que, talvez, seus leitores estivessem prontos para assimilar. Mostra Florestan Fernandes (2020) que a “democracia” não só constituía uma forma de “exercício” do poder político, em contraposição à ditadura então vigente; mas também dizia respeito às formas sociais de “organização” do poder político. Por isso, forja a ideia de “autocracia” para interpretar o fenômeno da persistência de um princípio ordenador radicalmente antidemocrático mais geral do Estado, da sociedade e do mercado até em momentos formal ou abertamente democráticos.

O fracasso desses intelectuais e de seus projetos exige o redimensionamento de seus legados e, sobretudo, do sentido deles na história brasileira. Os fracassos pessoais são também fracassos do Brasil, de vários Brasis que não foram e poderiam ter sido, mas que ainda pulsam em suas obras e nos trazem possibilidades de um aprendizado social.

Alguns poucos desses intelectuais perceberam e encontram modos de interação mais permanentes com o “outro”. É certamente o caso de Mário de Andrade e, como veremos agora, de Heloisa Buarque de Hollanda. São gestos políticos ligados a um projeto de democratização da cultura na sociedade brasileira a que se entregaram por inteiro e que têm muito a nos ensinar sobre cultura, reconhecimento e democracia. Ambos são personalidades que se multiplicam em muitas frentes de atuação intelectual. E, entre os “trezentos e trezentos e cinquenta” de um e de outro, há espaço para cada um deles, Mário em Heloisa; Heloisa em Mário.

Mário de Andrade e Heloisa Buarque de Hollanda são aqueles que, em nossa genealogia, definem com maior clareza a importância dos setores subalternos como portadores sociais da visão de mundo sobre sua situação/existência/vida e a visibilidade que lhes confere via cultura. Esse é precisamente o salto alcançado por Heloisa, que abre espaço para ação nessa direção, algo que o contexto social e político de décadas anteriores não permitiu a Mário. De certo modo, estamos diante de um “movimento cultural” pela democratização da cultura brasileira que entrelaça gerações, agendas políticas e diferentes atores sociais (Botelho; Hoelz, 2022).

4. No centro, a periferia

Em meados dos anos de 1990, começaram a surgir fortes sinais de que as culturas das periferias urbanas viriam a expandir nos anos seguintes. E continuamos assistindo essa expansão. Embora o seu salto não tenha sido num vazio, ou seja, que a vitalidade cultural da periferia não possa ser considerada exatamente uma novidade da década de 1990, ela aparece com tal força afirmativa que atinge uma visibilidade até então desconhecida. Sobre esse fenômeno, Heloisa Buarque de Hollanda pontua:

O hip-hop, uma das mais fortes tendências do que podemos chamar de cultura de elite da periferia, traz uma nova interface para as práticas culturais, como a politização da arte, a construção de um novo artista cidadão, e, principalmente, o entendimento da cultura como recurso. Ou seja, um novo perfil para a noção de função social da arte e da literatura (Hollanda, 2009, p. 153, grifos no original).

Por trás do reconhecimento do hip-hop como uma das grandes tendências da cultura da periferia, há uma questão que tem percorrido a trajetória e a obra de Heloisa desde os anos 1970: o que é, afinal, literatura? A reposição da pergunta ao longo de sua obra não é retórica. Ela marca tanto o caráter instável da literatura quanto o seu reposicionamento no campo da cultura quando novos a(u)tores chegam, desafiam as certezas e multiplicam as respostas possíveis.

Assinalemos desde já o espanto de Heloisa com esse universo e seu lugar na genealogia do espanto que estamos traçando em linhas muito gerais. Em inúmeras narrativas de si produzidas, ela tem assinalado o deslocamento radical que a experiência com as culturas periféricas provocou nela e no modo como ela própria pensava seu papel social e suas práticas como intelectual pública.3 Em Escolhas, a autora é direta: “o que está agora em jogo é a construção da legitimidade e da visibilidade do intelectual e do artista da periferia. O papel tradicional de mediadores com o qual os intelectuais se investiram, desde o século XIX, perde sua suposta eficácia e valor políticos” (Hollanda, 2009, p. 154).

Ela fala em “operações-tentativas” a que se lançou para encontrar seu lugar como “sujeito desse trabalho” junto com as periferias negras. Observou muito, ouviu muito e se fez presente nos eventos e debates nos mais diferentes lugares, nos morros cariocas, na Baixada Fluminense, nas Quebradas, enfim. Foram, sobretudo, muitas leituras sobre favelas, questão racial, geopolítica da violência, raízes e as lógicas do processo de construção da noção de cidadania, de democracia etc. (Hollanda, 2009). E assim foi descobrindo que o seu papel como “mediadora” e “articuladora” de saberes e demandas sociais e políticas também estava ficando defasado.

Até mesmo seu instrumento de intervenção cultural mais recorrente e “querido”, a organização de antologias, também perdera lugar. Diz ela: “para meu desespero, descobri ainda várias antologias de literatura da periferia feita na e para as comunidades de origem de seus autores” (Hollanda, 2009, p. 155). Essa descoberta foi registrada já no início dos anos 1980, quando Heloisa comenta em pelo menos dois artigos no Jornal do Brasil a existência das antologias de jovens poetas da periferia carioca que produziam uma poesia popular “para ser lida e ouvida” (Teixeira, 2024, p. 12). Certamente um grande susto. O primeiro de muitos que ainda viriam nos anos posteriores.

O começo da “virada periférica” de Heloisa parece ter sido o seminário internacional “Sinais de Turbulência”, realizado em dezembro de 1994 em parceria com a Rede Interamericana de Estudos Culturais. O objetivo deste seminário era discutir as transformações culturais, sociais e políticas que estavam ocorrendo no Brasil e no mundo no início da década de 1990. O evento reuniu no Rio de Janeiro acadêmicos, artistas, ativistas e profissionais de diversas áreas para debater temas como a globalização, as transformações culturais e o impacto das novas mídias na sociedade. A periferia já estava presente aí. Conta Heloisa numa entrevista:

Para esse seminário, montei mesas improváveis. Tinha uma mesa, por exemplo, com o DJ Marlboro falando com a famosa professora da Universidade de Nova York, Tricia Rose, especialista em performance. Veio o José Júnior, que ainda não tinha o Afroreggae. Foi logo depois do massacre da Candelária e o de Vigário Geral, que foi quando os intelectuais começaram a subir o morro: Zuenir Ventura, Regina Casé, Caetano Veloso, Waly Salomão. Começou a se reviver esse contato, que era raro, mas que tinha sido um carro chefe nos CPCs nos anos 1960. Essa relação voltou com formatos bem diversos em função da progressiva autonomia que os artistas da periferia iam ganhando. Artistas que começaram uma proatividade interessante criando soluções culturais. Foi bem bacana esse momento (Hollanda, 2019, p. 28).

Mas apenas na aparência os anos 1960 poderiam ser revividos trinta anos depois. Aproximando-se das periferias urbanas, Heloisa logo descobriu que era outra a postura exigida perante elas e por elas. Não era mais possível “ensinar” coisas e causas como nos anos 1960, quando a aproximação com a favela era feita de forma pedagógica:

Hoje, você vai para lá e eles sabem exatamente o que querem. São poliglotas, falam a língua da mídia, a língua do mercado, a língua do Estado e a língua local, o seu CEP, como eles dizem. O CEP é o miniterritório, é menos que um bairro. Pensei tanto nisso, estudei tanto isso. Descobri que a melhor forma para esse encontro não era mais pedagógica, mas em termos de parceria (Hollanda, 2019, p. 28-29, grifos nossos).

Além do seminário mencionado, outro passo importante na “virada periférica” da autora foram seus estudos sobre a cultura digital. Seria necessário escrever um artigo apenas sobre o impacto do digital em sua percepção sobre literatura, cultura e autoria, problemas a que, como crítica da cultura, sempre esteve ligada. E, especialmente, como o digital e a periferia passam a caminhar em alguma medida juntos. Não sendo possível avançar nesse ponto, queremos lembrar dois textos que registram, ainda que de passagem, as primeiras impressões da autora com o mundo digital e as possibilidades que ele traria para novas autorias.

Um deles é a introdução de Esses Poetas, antologia publicada em 1998 ao lado da reedição de 26 poetas hoje, a primeira e polêmica antologia de Heloisa Buarque de Hollanda, lançada em 1976. Esses poetas reúne diferentes autorias que começaram a escrever nos anos 1990. Não é uma amostra de tudo o que estava sendo produzido naqueles anos, mas é plural o suficiente para apresentar uma variedade de linguagens, um emaranhado de formas, estilos e temáticas em jogo e em disputa naquela década.

Em sua seleção, Heloisa não ignora nem a presença feminina na cena literária, nem a poesia negra que emergia de modo vibrante nas periferias. E aproveita a introdução para afirmar que o ambiente da internet, que já abrigava boa parte da poesia negra, da poesia de mulheres negras, de grupos jovens como o Mangue Bit, de poetas ligados ao MST etc., ampliaria ainda mais a circulação da produção das minorias. Diz ela: “essas vozes, liberadas do compromisso com os critérios tradicionais de qualidade literária, interagem confortavelmente no ambiente virtual e democratizado da internet, colocando-se muitas vezes lado a lado com os movimentos sociais” (Hollanda, 1998, p. 12).

Em outro texto, publicado em 1999 no Jornal do Brasil, Heloisa discute mais diretamente a vida literária no ambiente digital. Enquanto muitos especialistas afirmavam a possível substituição do livro com a chegada da internet, ela se interessa pelas múltiplas práticas literárias que estariam proliferando nesse novo espaço. No caso da poesia, observa que não era a poesia canônica que predominava nas páginas da internet, apesar de haver uma ou outra dedicada a Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Ferreira Gullar etc., mas sim uma poesia independente, de autorias até então desconhecidas, que utilizavam esse espaço na web como “canal de divulgação” – ela cita, por exemplo, um grupo da periferia carioca, o Caox, que procurava “um lugar ao sol”. Com algumas esperanças para o novo milênio, observa:

A Web parece se oferecer como o espaço ideal para a amplificação das denúncias de desigualdades e afirmação de identidades contra-hegemônicas como no caso da poesia negra, da contestação ruidosa dos funkeiros e rappers, dos erótico-engajados, ou do notável número de sites de poesia lésbica, um vigor que não encontra, nem de longe, a correspondência da cena poética brasileira off-line (Teixeira, 2024, p. 162).

Nos anos 2000, o susto de Heloisa Buarque de Hollanda com a periferia começa a se traduzir em parcerias. Em 2005, por exemplo, cada vez mais apaixonada e com relacionamentos mais consistentes com ativistas das periferias, ela montou, no Rio de Janeiro, a exposição “Estética da periferia” no Espaço Cultural dos Correios. Com seu parceiro de longa data, Gringo Cardia, a exposição foi, da concepção à concretização, uma espécie de exercício compartilhado de aprendizado social. A metodologia da pesquisa consistiu em convidar estudantes e jovens da periferia, após um breve treinamento com Gringo, para fazerem a coleta do que eles próprios julgavam ser representativos de uma estética da periferia. Essa prática conheceu desdobramentos e hoje tem bastante visibilidade no mundo das artes, mas estava longe de ser uma rotina no início deste século.

As sugestões foram muitas e as escolhas foram feitas numa curadoria coletiva. O catálogo da exposição também teve seu diferencial, contendo depoimentos de intelectuais, artistas, artesãos. Sobre essa experiência, a autora comenta: “era de uma beleza absurda. A abertura contou com uma grande afluência de público, com a presença substantiva das favelas e comunidades, acompanhada de shows e apresentações de dança. Parecia que o Rio de Janeiro havia se unido num grande e utópico ritual estético” (Hollanda, 2009, p. 157).

Mais uma vez, lá está Heloisa promovendo um “grande e utópico ritual”. Ainda assim, confessa ela, muito mais tempo e trabalho foram necessários para que se sentisse mais à vontade para aperfeiçoar metodologias e aprender com os resultados que, a princípio, traziam algum desconforto:

No fundo, eu esperava a visão cepecista das favelas: uma arte popular, um panorama de miséria cinzenta ao fundo. E o que via ali eram sons, cores e formas explodindo, eram manequins sensuais com calças Gang, grafites prontos para serem comprados por marchands e o design sofisticado de móveis e brinquedos. Eu não conseguia identificar minhas mais sólidas referências naquele quadro (Hollanda, 2009, p. 157).

Mais do que algum conforto, ao consultar os livros de visita da exposição, encontrou muitos comentários entusiastas porque a exposição “não havia ‘assumido visões estereotipadas da periferia e por ter captado sua imagem com precisão’” (Hollanda, 2009, p. 157). Heloisa seguiu em frente. Dois anos depois, repetiram a ideia em Recife, numa nova exposição chamada “Estética da periferia: diálogos urgentes”, realizada no Museu de Arte Moderna Aluízio Magalhães, o mais nobre espaço cultural da cidade. Muitas exposições se seguiram: em 2008, “Blooks: tribos e letras na rede”, no Oi Futuro, Rio de Janeiro e, em 2009, no SESC Pinheiros, em São Paulo; em 2011, a exposição “periferia.com”, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e na Biblioteca de Manguinhos, no Rio de Janeiro. Foram muitas as curadorias e parcerias.

Era também a própria Heloisa que precisava aceitar os resultados do seu trabalho e aprender a aprender mais com eles. Em 2012, cria com Écio Salles, Julio Ludemir e Luiz Eduardo Soares a Festa Literária das Periferias (Flup). Uma festa literária internacional que acontece em territórios tradicionalmente excluídos dos programas literários na cidade do Rio de Janeiro. Já passaram pelo Morro dos Prazeres, Vigário Geral, Mangueira, Babilônia, Vidigal, até chegarem ao centro da cidade, abraçando a região que o sambista Heitor dos Prazeres batizou de “Pequena África”. Também houve edições na Biblioteca Parque Estadual e no Museu de Arte do Rio de Janeiro. Em 13 edições realizadas até o momento, a Flup ganhou alguns prêmios importantes, como o Faz Diferença, de 2012, o Awards Excellence, de 2016, o Retratos da Leitura, de 2016, e o Prêmio Jabuti na categoria Fomento à Leitura.

A Flup se diferencia ainda por ser um espaço de formação. E por premiar talentos emergentes da literatura marginal, incentivando a produção literária nas periferias e contribuindo para o fortalecimento da identidade cultural e da expressão artística das comunidades. Para Heloisa, “Ler é poder”, como sintetiza em Escolhas, ao destacar o poder simbólico nas culturas periféricas, de natureza diversa daquele da cultura de classe média. Diz ela:

Se nos anos 1970 os poetas procuravam uma aproximação entre arte e vida e nos 1980, a literatura, de alguma forma, se culturalizou, para os novos escritores-cidadãos, o livro se articula de forma direta com as demandas de voz, representação e poder. Ler é Poder, é a bandeira dos movimentos de formação de leitores, compromisso maior dos poetas e ficcionistas periféricos (Hollanda, 2009, p. 153-154, grifos no original).

5. Tramas (sub)urbanas

Assumindo também essa bandeira, Heloisa Buarque de Hollanda usou sua editora, a Aeroplano, para publicar autorias e temas emergentes, mas ainda sem canais de visibilidade e prestígio institucional à altura do que estavam fazendo. A Aeroplano, criada em 1998 por Heloisa, seu filho Lula Buarque, Ruy Campos e Lúcia Lambert, na verdade, desempenhou papéis importantes na ampliação do debate sobre minorias no Brasil como um todo; lembremos, apenas para mencionar um exemplo emblemático, de O homem que amava rapazes e outros ensaios, publicado em 2002, de Denilson Lopes, pioneiro nos estudos gays entre nós.

Das muitas publicações feitas pela Aeroplano, queremos destacar em especial a coleção Tramas Urbanas. Foi um espaço fundamental de afirmação das chamadas literaturas periféricas, na divulgação das novas escritas, de novas autorias, novas literaturas e outras linguagens estéticas e políticas. Mais do que isso, a coleção foi um modo de capturar num relance o contemporâneo, que, como mostra Giorgio Agamben (2009), é o traduzido e assimilado à distância, no futuro. A coleção foi, assim, um modo de abrir e treinar “ouvidos” para vozes que gritam hoje, especialmente, de emissores e protagonistas que não habitavam o centro – geográfico, político, cultural.

Curadora da coleção, Heloisa atuou muitas vezes também como coorganizadora de alguns de seus títulos, além do intenso trabalho de prospecção de autoras, autores e temas pelas periferias por onde passou a ser presença assídua. A coleção começou em 2007 e foi até 2013, tendo início com um livro de Écio Salles, da Flup. Poesia revoltada (2007) nasce como referência para o rap. Inicialmente uma pesquisa de mestrado baseada no rap de artistas de três cidades – MV Bill, do Rio de Janeiro, Racionais MCs, de São Paulo, e Gog, de Brasília –, o livro propõe uma nova visão sobre essa forma de expressão poética que emerge das periferias brasileiras: o rap é pensado como quebra do discurso hegemônico e como fundador de um novo capítulo para a cultura brasileira.

Daí em diante, a coleção publicou pouco mais de trinta títulos. Hip-Hop, Tecnobrega, Rap, Funk entre outras expressões musicais são destaque. Uma das obras é Hip-hop: dentro do movimento, organizada por Alessandro Buzo e lançada em 2010, a qual reúne visões do próprio organizador sobre o movimento do hip-hop, além de entrevistas conduzidas por ele de Dexter, Celso Athayde, Jéssica Balbino, Dudu de Morro Agudo, Re.Fem, Alexandre de Maio, Nelson Triunfo, Dário, entre outros, e depoimentos de Gerson King Combo, Negra Li, Fernando Bonassi e Paula Lima.

Ou ainda, por exemplo, 101 funks que você tem que ouvir antes de morrer (2013), de Julio Ludemir, que conta a história do baile funk, história resgatada por 101 músicas que marcaram a trajetória da principal manifestação cultural do Rio de Janeiro. A narrativa começa pelos sucessos do primeiro LP; passa pelo Miami bass até chegar ao passinho; discorre sobre as letras e chega, finalmente, nas tão comentadas e repetidas coreografias.

Coletivos, memórias e histórias de vida de lideranças comunitárias renderam ótimos títulos na Aeroplano. Como O cerol fininho da Baixada: Histórias do cineclube Mate com Angu (2013), de Heraldo Bezerra, Heraldo HB (autor), que conta a história do cineclube Mate Com Angu e de seus desdobramentos na reconstrução da autoestima da cidade de Duque de Caxias e da Baixada Fluminense através da cultura audiovisual com suas sessões populares e suas reflexões pulsantes.

Ou ainda o Testemunhos da Maré (2012), de Eliana Sousa Silva, originalmente sua tese de doutorado em serviço social que combina análise sociológica com o testemunho pessoal de alguém atingido pela violência. Eliana, que se mudou para a Maré aos sete anos, foi presidente da associação de moradores de Nova Holanda, fundou algumas organizações e hoje coordena a Redes Maré. É ainda um trabalho revelador sobre a história das políticas de segurança nas favelas desses últimos tempos, que traz dados atualizados e a sua experiência cotidiana de moradora e ativista da comunidade.

Estéticas das periferias, literaturas periféricas, entre outras linguagens artísticas estão bem representadas na coleção Tramas Urbanas também. Daspu: a moda sem vergonha (2008), do jornalista Flavio Lenz, trata da moda de rua, “para puta e para perua”. Por meio de relatos bem-humorados, o autor conta a inusitada história da grife criada pela ONG de defesa dos direitos das prostitutas, Davida, com a intenção de, por meio da moda, criticar a visão estereotipada das prostitutas e dar visibilidade ao movimento da categoria.

Ou ainda, Vozes marginais na literatura (2009), de Érica Peçanha do Nascimento, que “ouve e decodifica” o grito periférico por meio da análise das edições especiais da revista Caros Amigos / Literatura Marginal e das carreiras de três escritores: Sérgio Vaz, Ferréz e Sacolinha. Ou, entre outros mais, Meu destino era o Nós do Morro (2010), de Luciana Bezerra, que conta a trajetória do grupo Nós do Morro, pela ótica da autora, sua coordenadora de audiovisual.

Embora o grande salto da coleção Tramas Urbanas seja não apenas promover temas e autores das periferias, mas trazê-los/as como protagonistas do contemporâneo, ela também torna difusas as fronteiras entre expressão e reflexão cultural. Todas as manifestações são tomadas em sua radicalidade de linguagem, envolvendo estética, política e conhecimento. Essa componente híbrida e desafiadora do status quo na cultura e da cultura na sociedade está presente de uma forma ou de outras, senão em todos, na maioria dos títulos e reflete, em parte, os interesses da própria curadora.

Mas as periferias como formas de conhecimento – epistemologias periféricas – ganham também o primeiro plano de alguns de seus melhores títulos. É o caso de Guia afetivo da periferia (2009), de Marcus Vinicius Faustini que, ao evocar seu estado de deslumbramento, evidente no modo como mapeia a cidade do Rio de Janeiro, de Santa Cruz a Ipanema, com pés de office-boy e olhos e imaginação de flâneur, traz à tona experiências e aprendizados sociais de um grupo, de um lugar, de um tempo – mas, eis o segredo do seu livro: cruzando tudo isso!

Na mesma direção, Pedagoginga, autonomia e mocambagem (2013), de Allan da Rosa, discute a implementação do ensino de história e de cultura de matriz afro e o sonho de um movimento de educação popular autônoma na periferia de São Paulo no começo do século XXI. Uma nova proposta pedagógica, que envolve autonomia dos alunos e compromisso com a cultura afro-brasileira, desenha-se a partir de relatos e reflexões sobre uma prática de três anos em Educação Popular, de 2009 a 2012.

A coleção Tramas Urbanas, como se pode ver, é uma política editorial inovadora, que altera de modo decisivo o modo como compreendemos a cultura e o conhecimento produzido na e a partir das periferias.

6. Universidade das Quebradas

O mesmo tipo de preocupação que deu origem a Tramas Urbanas tem orientado as atividades da Universidade das Quebradas (UQ). Trata-se de um marco decisivo na virada periférica de Heloisa Buarque de Hollanda, inclusive com a experimentação de novas metodologias de aprendizagem-aprendizagem, substituindo a abordagem pedagógica tradicional por ela própria experimentada nos anos de CPC (ensino-aprendizagem) de “coisas e causas”. Por certo, esse reposicionamento da postura “pedagógica” do CPC ao trabalho com as periferias, ou melhor, a passagem da “pedagogia” à “parceria”, nos termos da autora, merece ser problematizado (Hollanda, 2009).

Até porque o uso do adjetivo “pedagógico” como sinônimo de “paternalista” pode ocultar a diversidade (e as desigualdades) entre as estratégias pedagógicas que se oferecem ao educador na sua atuação social. A escolha entre essas estratégias é que vai definir diferentes perfis de educadores, alguns mais conservadores, outros menos. Assim, temos que responder questões como: o que é essa “parceria” de que ela fala? Quais são as condições de possibilidade da subversão das formas de produção de valor simbólico – e de emersão de sujeitos históricos e cognitivos – que existem nela? O que cada um ganha e perde ali, ou seja, quais são os termos da partilha?

A Universidade das Quebradas foi fundada em 2009 por Heloisa e a psicanalista Numa Ciro como um projeto de extensão do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC), este, por sua vez, criado em 1994 na UFRJ. O PACC passou anos como uma experiência de pesquisa avançada recebendo doutoras e doutores de diferentes áreas (literatura, comunicação, ciências sociais e artes) e de diferentes estados brasileiros para realizarem seus pós-doutorados em estudos culturais. A partir de 2024, o PACC se reestruturou como um fórum de pesquisa avançada voltado para diferentes segmentos universitários, estudantes universitários, pós-graduandos, e mesmo de pessoas de fora da universidade.

O surgimento da Universidade das Quebradas está imbricado com outros projetos. Especialmente, com o Projeto Colisões, realizado em 2009 em colaboração com a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Nova Iguaçu. O objetivo deste projeto foi o de promover o encontro de artistas deste município da Baixada Fluminense com artistas do mundo, de modo a fomentar a produção artística e cultural local – mormente da música, artes cênicas, artes visuais, literatura, audiovisual e cultura popular. A potencialização do trabalho dos principais grupos e entidades locais permitiu ainda a dinamização do Espaço Cultural Sylvio Monteiro e de outros espaços conveniados ou assistidos pela Prefeitura de Nova Iguaçu.

O nome do projeto não é aleatório. A ideia de colocar em relação envolve até mesmo o enfrentamento, a colisão entre professores, artistas e produtores culturais das periferias. Em seus primeiros anos, a Universidade das Quebradas buscou radicalizar e aperfeiçoar essa dimensão do encontro e da conversa entre círculos sociais distintos. Num primeiro momento, concebida formalmente como extensão universitária, a UQ colocou em diálogo a universidade e a periferia. Mas nunca se tratou de extensão universitária no sentido tradicional – voltada para uma difusão autocentrada da cultura acadêmica para aqueles que estão fora da universidade.

Na verdade, definir “dentro” e “fora” enquanto a UQ esteve na UFRJ parece ter sido sempre uma questão complexa. Afinal, a iniciativa de Heloisa, longamente experimentada nas políticas de extensão universitárias que sempre buscou aliar à inovação do conhecimento, coincide com o incremento até hoje jamais visto nas políticas públicas de educação superior, com a adoção das formas de ingresso via políticas de cotas raciais e do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Somente com o primeiro Governo Lula (2003-2006) e, em especial, com a pasta da educação nas mãos de Fernando Haddad, as coisas começaram a mudar. E a mudar muito. Em um ritmo novo; com um novo sentido, culminado com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), que ampliou o acesso e a permanência na educação superior.

Nesse sentido, os novos ingressantes na universidade, a maioria esmagadora sendo a primeira geração de suas famílias na educação superior e especialmente pública, encontraram – e ainda encontram – muitas dificuldades de identificação com uma estrutura e rotina que não foi pensada, necessariamente, para eles. Era comum as e os ingressantes da própria UFRJ naqueles anos buscarem a UQ, porque nela se sentiam representados, reconhecidos em suas diferenças e desigualdades (Hollanda, 2019). Então, a própria ideia tradicional de extensão já estava, desde o início, comprometida.

Não apenas a conjuntura política contou para isso. Há muitas décadas Heloisa vinha formulando, experimentando e testando novas formas de comunicação entre conhecimentos acadêmicos e outros saberes, antes mesmo de se aproximar das culturas urbanas periféricas. Temas comuns da agenda dos estudos culturais, como gênero, etnicidade e movimentos sociais, especialmente os feministas e negros, ganham, em suas atividades, novos desenhos e, sobretudo, um sentido democratizante da maior relevância.

Por que democratizante? Pois tem implicado na própria ampliação do campo da cultura, no reconhecimento e na autocompreensão dos atores culturais envolvidos. Impõe-se aqui um paralelo com Raymond Williams e Stuart Hall, que sempre pensaram os estudos culturais também como meios de transformação social, como aprendemos com os seus projetos de educação para adultos e de cultura para todos.

A Universidade das Quebradas, em suma, tem procurado promover, em mão dupla, uma reorganização e ampliação contundente do campo da cultura, reconhecendo e estimulando irritações mútuas entre a universidade e as quebradas. Como se lê num dos seus documentos:

Este projeto pretende ser de duas vias: assim como as comunidades que estão produzindo cultura, mas não têm acesso à produção intelectual das Universidades, também a comunidade acadêmica denuncia carência similar em relação ao acesso a outros saberes e formações culturais fora da Universidade (Universidade das Quebradas, 2017).

Já que se trata de transformar a relação, e não apenas um dos polos por ela ligados, a UQ está, necessariamente, em permanente mutação. Programas, conteúdo, metodologias, público-alvo, recrutamento, tudo isso tem sido dinâmico ao longo dos anos. Uma novidade trazida em 2011, por exemplo, foi o Território das Quebradas. Um espaço em que os participantes podem vocalizar o que do conteúdo programático proposto faz mais ou menos sentido, colocando em tensão visões e expectativas dos responsáveis, monitores e “quebradeiros”. Assim, outra reorientação sofrida pelo projeto é a própria ampliação do público.

Nessas experiências, certezas triunfalistas da ciência e absolutas da ideologia saem de cena, dando lugar ao compartilhamento de problemas e dúvidas sob pontos de vista múltiplos. Se não se trata mais de uns ensinarem e outros aprenderem, no sentido tradicional de uma difusão do conhecimento universitário, e sim de um experimento pedagógico de produção de conhecimento compartilhado, o sentimento de igualdade avança sobre o de hierarquia.

A Universidade das Quebradas é, assim, um laboratório de inovação na produção de conhecimento cultural, e, sobretudo, de reconhecimentos sociais não apenas de um “outro que aprende” em relação a um “eu que ensina” (e vice-versa), mas também de um “nós” nas diferentes interações em que nos vemos cotidianamente. É justamente esse tipo de ampliação do campo da cultura e de reconhecimentos que permite também o aprendizado do descentramento das identidades. Aprendizado penoso, por certo polêmico, embora muito necessário se quisermos reinventar modos de convivência e de conflitos mais democráticos.

7. O gesto que fica

Não queremos aparar arestas e muito menos fazer toda uma vida escoar com força para um único ponto convergente. Desconfiamos, porém, que perpassando toda a trajetória intelectual e o pensamento de Heloisa Buarque de Hollanda em torno da questão da democratização da cultura, o enfrentamento do problema da alteridade é crucial. Um gesto relacional permanente e o desafio sempre reposicionado, a cada conjuntura diferente, de buscar uma comunicação minimamente exitosa com o “outro”. Mesmo Heloisa sabendo que isso é quase sempre bastante improvável. Mas, como vimos, o fascínio pelo outro leva igualmente a uma reflexão sobre si própria. O que, em seu caso, aparece sempre como um espanto.

Heloisa acrescentou um olhar pessoal intensificado na crítica da cultura brasileira e no estudo das manifestações artísticas e literárias cultas e populares; e também uma forma de problematização teórica que tem muito a ver com a experiência social brasileira. A sociedade brasileira não comporta linhas retas e progressivas apenas. Ela compreende labirintos, recuos e retrocessos. Impasses e ambiguidades se colocam e recolocam. A mudança não opera simplesmente pela ruptura, mas refaz e, muitas vezes, acentua hierarquias, diferenças e desigualdades sociais justamente quando a sociedade muda, ou parecia mudar. Persistem abismos ainda intransponíveis entre ricos e pobres, entre homens e mulheres, entre pretos e brancos, entre detentores de diplomas de curso superior e os excluídos. A tomada de consciência desses abismos não esmoreceu as convicções mais profundas de Heloisa. Pelo contrário, incendiou ainda mais sua imaginação crítica e sociológica. Mas também calibrou certo voluntarismo, às vezes eufórico, com que muitas vezes vemos a vontade de transpô-los acontecer. Como se o ator social movesse sem constrangimentos históricos e estruturais.

“Ponte e porta”: assim André Botelho (2019) qualificou Heloisa, lembrando as metáforas de Georg Simmel, para acentuar o êxito dessa intelectual em pôr em comunicação esferas tão diferentes da sociedade. Não terá sido simples e sem custos essa trajetória, especialmente colocar em relação uma curiosidade aguda e uma carreira acadêmica exitosa, como as de Heloisa. Operação nada trivial e longe de qualquer sentido harmônico. E, se é fácil constatar o êxito de sua carreira, o mesmo não se poderá dizer sobre o disciplinamento da sua curiosidade.

Sendo seu móvel conflituoso, a curiosidade constitui, modela e também transborda a carreira por todos os lados. Diante do fracasso anunciado no controle daquela pulsão de disciplinar sua curiosidade, aquele colocar antolhos para tornar-se apenas um especialista rigoroso, de que falava Max Weber (1970) na famosa conferência “Ciência como vocação” (1919), Heloisa, como outros de sua geração, teria basicamente duas opções: ou fragmentar seus interesses, multiplicando e dispersando suas atividades para fora do ofício, ou domesticá-los para que coubessem todos dentro de um só registro, de um só “quadrado” como se diz por aí. Ela não teve saída: reinventou a si e recriou o seu ofício, substituindo sempre o “ou” pelo “e”. Heloisa não é professora universitária “ou” editora de livros, curadora de exposições “ou” orientadora de teses acadêmicas, autora de numerosos livros e artigos “ou” diretora de documentários cinematográficos, mas tudo isso e muito mais. De alguma forma, todas as suas diferentes atividades profissionais ganham sentido umas em relação às outras.

Se fronteiras são locais de encontro também de culturas e domínios do conhecimento, Heloisa provoca-as. Cruza-as, espera e estimula que elas sejam cruzadas. Experimenta com elas. A inovação, que está na base das suas múltiplas atividades, alimenta-se justamente das comunicações que essas transgressões ensejam, e se mantém sempre em alta tensão, com eventuais irrupções de conflitos.

Sobre a democratização da cultura na sociedade brasileira, é preciso reconhecer que avançamos muito no reconhecimento social de outras modalidades de produção cultural. Já não parece mais tão autoevidente, para a sociedade, que sua cultura “legítima” seja a da elite e no máximo a dos subordinados, domesticada na indústria cultural e nas políticas públicas de Estado numa espécie de cultura para exportação. Como Mário de Andrade nos anos 1920-1940, Heloisa Buarque de Hollanda é protagonista desse processo social nos anos 1960-2020. Como numa corrida de revezamento, ela pega o bastão deixado por Mário, para enfrentar os desafios desse processo social complexo e inacabado, com os recursos intelectuais e os desafios sociais do seu tempo.

Heloisa ajudou a recriar a cultura e a literatura em uma chave aberta, democrática, horizontal, sem medo do conflito e das ambivalências, sempre aí presentes. Mas o abismo que gera o susto continua entre nós. Ele persiste, é renitente: as desigualdades sociais são duráveis. É claro que essa situação não é exclusiva do Brasil, mas as nossas desigualdades inaceitáveis e a velocidade do processo de democratização cultural e educacional dos últimos anos, mesmo com todos os seus problemas (efeitos agregados do Reuni, Sisu, Lei de Cotas, Prouni etc.), acaba deixando tudo mais potencialmente explosivo. Como pensar o susto hoje? Que tipo de solidariedade social ele está por criar? Genealogia do espanto.

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    Este ensaio é uma parte modificada de livro inédito sobre a democratização da cultura em Heloisa Buarque de Hollanda/Heloisa Teixeira.
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    Ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE), o primeiro CPC surge no Rio de Janeiro em 1961.
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    Entre as narrativas de si da autora, trabalhamos aqui com Escolhas (Hollanda, 2009), sua autobiografia intelectual, e com a longa entrevista que abre o livro Onde é que eu estou? (Hollanda, 2019).
  • Fonte de financiamento:
    A pesquisa resultante deste trabalho foi realizada com apoio da FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, na modalidade bolsa de doutorado (Processo nº SEI-260003/004840/2025), e, na modalidade de auxílio à pesquisa, contou com apoio também da FAPERJ e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • Aprovação do Comitê de Ética:
    Não se aplica.
  • Disponibilidade de Dados:
    Os dados de pesquisa estão disponíveis no corpo do artigo texto.

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Editado por

  • Editor:
    Enio Passiani (UFRGS, Brasil).

Disponibilidade de dados

Os dados de pesquisa estão disponíveis no corpo do artigo texto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2024
  • Aceito
    18 Nov 2024
Creative Common - by 4.0
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/), que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.
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