Open-access As novas leituras de Marx e um velho problema da economia política

The new readings of Marx and an old problem of political economy

Resumo

As novas leituras de Marx, aqui representadas pelos pensamentos de Backhaus e de Postone, têm o mérito de propor uma leitura da obra madura de Marx que não se fixa apenas sobre o aspecto de classe e de exploração, sublinhando o caráter amplo da teoria marxiana do valor no que diz respeito à sua caracterização da sociedade moderna. Como mostraremos, contudo, ambas as leituras terminam por se concentrar, de forma unilateral e com prejuízos para a teoria do valor, sobre a esfera da circulação simples de mercadorias; razão pela qual retomam as análises dos Grundrisse que foram superadas posteriormente por Marx.

Palavras-chave: Postone; Backhaus; Marx; Valor; Trabalho abstrato

Abstract

The new readings of Marx, here represented by Backhaus and Postone´s thoughts, have the merit of proposing a reading of Marx’s mature work focused not only on the aspects of class and exploitation, but which stresses the broad character of the Marxian value theory as a way of characterizing modern society. Nevertheless, as we shall show, both readings end up focusing unilaterally on the sphere of commodities circulation, to the detriment of the value theory; accordingly, Backhaus and Postone revisit the analysis of the Grundrisse that Marx had subsequently surpassed.

Keywords: Postone; Backhaus; Marx; Value; Abstract labour

Introdução

Como o marxismo ocidental, as novas leituras de Marx1 inserem-se num quadro distinto e contraposto ao do chamado marxismo tradicional, entendido como uma certa unidade de pensamento entre Marx e Engels e caracterizado, entre outras coisas, por uma tendência ontológico-determinista. O marxismo tradicional teria sido sistematizado e elevado a doutrina, sobretudo por Engels e Kautsky, e culminado, com suas mistificações sobre o modo de produção capitalista, na ciência apologética do marxismo-leninismo. Tal compreensão do marxismo é o que alguns autores chamam de marxismo “exotérico”, cujas características centrais são descritas a seguir:

Em termos de conteúdo, um triplo abandono de tópicos centrais do marxismo tradicional foi realizado nos principais condutores do debate [...]: um distanciamento de uma teoria do valor substancialista ; o abandono de concepções instrumental-manipulatórias do Estado e o distanciamento em relação a interpretações da crítica da economia política centradas sobre o movimento do trabalho ou baseadas sobre uma teoria revolucionária com base numa ontologia do trabalho (ou mesmo sobre a teoria revolucionária enquanto tal). Estas novas leituras articulam seus esforços teóricos na forma de uma reconstrução da teoria de Marx. (Elbe, 2013)

As novas leituras de Marx distinguem-se, contudo, também, como veremos, do marxismo ocidental (Lukács, Korsch, Gramsci etc.), na medida em que não comungam da atribuição de sujeito revolucionário que estes continuaram conferindo à classe trabalhadora.

O texto que segue apresenta algumas das principais características da leitura do valor empreendida por Backhaus e Postone. Buscaremos mostrar que, a despeito de seus méritos, estas leituras possuem em comum um deslocamento da ênfase nas relações de produção para as relações de troca. Tal problemática tem sido raramente percebida pelos autores, razão pela qual se pretende analisá-la com profundidade.

Backhaus: uma leitura do valor a partir dos Grundrisse

Um dos intelectuais marxistas mais importantes da segunda metade do século XX, aluno e colaborador de Adorno, Hans-Georg Backhaus, juntamente com Helmut Reichelt, influenciou, com sua obra, grande parte das novas leituras de Marx: da Wertkritik, na Alemanha; passando pelo pensamento de Moishe Postone, nos Estados Unidos; à obra de Jean-Marie Vincent, na França. Backhaus coloca em evidência o caráter crítico da teoria do valor de Marx, questionando, com isto, a leitura positivista e a interpretação economicista da mesma. Em seu ensaio mais conhecido, Dialética da forma valor [Dialektik der Wertform], o autor sublinha a centralidade da análise da forma valor, propondo-se a tarefa de investigar as implicações desta análise sobre o problema da reificação, bem como a relação intrínseca entre a teoria marxiana do valor e a análise do dinheiro.

Backhaus ressalta a originalidade da teoria marxiana do dinheiro e a necessidade de se entender bem esta problemática para um completo deciframento da própria teoria do valor trabalho. Dissociar a análise do dinheiro da teoria do valor de Marx - o que resulta da interpretação da escola austro-marxista, por exemplo - seria exprimir, segundo ele, “a incapacidade de compreender a teoria do valor” como análise da forma valor (Backhaus, 2011, 46).

Para Backhaus, existiria, n’O Capital, um movimento dialético na dedução do valor, no interior do qual haveria uma mediação cuja necessidade não teria sido explicada por Marx, qual seja a passagem da substância à forma do valor. Em outros termos, a exposição de Marx configurar-se-ia num movimento dialético que descreveria o percurso do valor de troca (o ser imediato) ao valor (a essência) e, deste último, ao valor de troca (a existência mediatizada), mas não forneceria uma explicação suficiente do segundo trajeto ou da passagem do valor ao valor de troca2. Para explicar este trajeto, Backhaus tomará como parâmetro, porém, análises dos Grundrisse que foram superadas posteriormente por Marx.

Como se sabe, nesses manuscritos, a teoria marxiana do valor não se encontra finalizada, o que se deve principalmente ao fato de que Marx confunde a determinação do valor de troca com o preço3; não distinguindo, na verdade, ainda, a substância da forma do valor. O aspecto que acabamos de mencionar e que decorre de um inacabamento da elaboração marxiana nos Grundrisse, aparece no texto de Backhaus como sendo um traço da dialética da forma valor em sua forma final, ou seja, tal como ela deveria aparecer n’O Capital. Em sua tentativa de elucidar a problemática segundo a qual faltaria na exposição d’O Capital uma explicação da transformação do valor em valor de troca, Backhaus confunde as determinações do valor com as características do dinheiro ou forma equivalente geral. Segundo ele, o “valor de um produto é distinto do produto enquanto tal como um pensamento […] e aparece, assim, como ‘forma ideal’ de algo material” (Backhaus, 2011, p. 47). Para Marx, n’O Capital, o valor não é, porém, uma realidade ou forma ideal. Este é um traço exclusivo do dinheiro enquanto medida dos valores. Traço este que Marx entendia, com efeito, nos Grundrisse, como caracterizando o valor ou valor de troca. As definições que Backhaus estende ao valor correspondem, na realidade, apenas às características do preço, ou ainda, da moeda em sua função de medida dos valores:

O preço ou a forma-dinheiro das mercadorias é, como sua forma valor em geral, distinto de sua forma corpórea real e palpável, portanto, é uma forma apenas ideal ou representada. O valor do ferro, do linho, do trigo, etc., apesar de invisível, existe nessas coisas mesmas; ele é representado por sua igualdade com o ouro, numa relação que só assombra no interior de suas cabeças [...] A expressão dos valores das mercadorias em ouro é ideal (Marx, 2014, p. 170-1).

Esse problema aparece também na explicação seguinte de Backhaus: “Ricardo parte do fato da autoalienação econômica, do desdobramento do produto em outra coisa que ele mesmo, que é valor, coisa representada e coisa real” (Backhaus, 2011, p. 52). Como explica Marx, porém, na passagem acima, tudo isso são características do preço, da expressão do valor das mercadorias em dinheiro - e não do valor. O valor não corresponde a um desdobramento do produto, como o pensava Marx nos Grundrisse. Ao contrário, ele é intrínseco ao produto a partir do momento em que este toma a forma de mercadoria. Voltaremos a este ponto.

Contrariamente ao que propõe Backhaus, a análise marxiana do dinheiro - segundo a qual o processo de troca “gera uma duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro, uma antítese externa, na qual elas expressam sua antítese imanente entre valor de uso e valor” (Marx, 2014, p. 179) - não pode ser estendida à análise da mercadoria enquanto tal. O valor de uso da mercadoria não é tão cindido de seu valor de troca a ponto de poder-se estender esta duplicação [Verdopplung] ou oposição exterior [äußeren Gegensatz] que dá origem ao dinheiro à relação do valor de uso com o valor de troca da própria mercadoria. Diferentemente dos Grundrisse, n’O Capital, o valor não tem apenas “uma existência simbólica” (Marx, 2011, p. 115), mas existe realmente nos produtos dos trabalhos concretos e determina a produção de cada produto particular, na medida em que tal produção deve observar a “lei natural reguladora” (Marx, 2014, p.150) do tempo de trabalho socialmente necessário para a produção deste tipo específico de mercadoria. Trata-se de uma abstração real, de “trabalho humano objetivado” (Marx, 2014, p. 169), e não de uma “forma ideal de algo material ou de uma forma de pensamento” que, enquanto tal, “é ‘imanente’ à consciência” (Backhaus, 2011, p. 47).

Backhaus parte de citações dos Grundrisse como: “Faço cada uma das mercadorias = a um terceiro termo, i.e., desiguais a si mesmas” (Marx, 2011, p. 92 apud Backhaus, 2011, p. 56). Esta exterioridade do valor com relação ao valor de uso da mercadoria, que decorre da compreensão que Marx tinha do problema nos Grundrisse, será completamente modificada n´O Capital. Ao contrário do que dizia antes, Marx explica, aqui, que a mercadoria é valor apenas porque ela é, ao mesmo tempo, valor de uso: “Elas só são mercadorias porque são duas coisas ao mesmo tempo: objetos úteis e suportes de valor” (Marx, 2014, p. 124). A determinação de valor da mercadoria contradiz sua determinação de valor de uso, o que faz, aliás, com que a primeira tome a forma de dinheiro ou de equivalente geral. Mas, a generalidade que caracteriza o dinheiro não pode ser estendida ao valor enquanto tal. O dinheiro é uma forma valor particular ou, ainda, precisamente uma forma do valor.

No primeiro capítulo dos Grundrisse, Marx pretende explicar a origem do dinheiro como algo que deriva da relação entre as próprias mercadorias. Ele o faz partindo, neste momento, porém, apenas da circulação e sem ter alcançado ainda a determinação que reconcilia as contradições da troca com a produção ou do preço com o valor. O caráter de equivalência entre as mercadorias aparece, pois, como consequência de um desenvolvimento das trocas que termina por colocar os “produtos”, os valores de uso, como coisas iguais ou equivalentes. Tal problema aparece de forma completamente modificada n’O Capital: este caráter comum das mercadorias é sublinhado, aqui, como algo que tem origem na produção. Na obra publicada, esta característica é explicada a partir do fato de que as mercadorias são trabalho materializado, ou seja, a partir do caráter de valor que as mercadorias têm em comum. Nesse sentido, não é a troca que as determina como iguais ou que torna iguais coisas diferentes, mas é a produção que põe, ela mesma, este caráter de igualdade:

As mercadorias não se tornam comensuráveis por meio do dinheiro. Ao contrário, é pelo fato de todas as mercadorias, como valores, serem trabalho humano objetivado e, assim, serem, por si mesmas, comensuráveis entre si, que elas podem medir conjuntamente seus valores na mesma mercadoria específica e, desse modo, convertê-la em sua medida comum de valor, isto é, em dinheiro (Marx, 2014, p. 169).

A ênfase desloca-se, assim, para o fato de que o valor é necessariamente trabalho humano objetivado ou materializado, mesmo sendo também trabalho humano abstrato4, ou, em outros termos, para o fato de que ele é valor posto sob a forma de objeto. Esta ênfase é, na verdade, o sinal de uma mudança importante que decorre das descobertas realizadas por Marx, a partir do fato de que é a produção que põe o conjunto das determinações do modo de produção do capital. Assim, enquanto no primeiro capítulo dos Grundrisse, a respeito do valor de troca, lê-se que:

A mercadoria só é valor de troca na medida em que é expressa em outra coisa, portanto, enquanto relação. Um alqueire de trigo vale tantos alqueires de centeio; nesse caso, o trigo é valor de troca apenas na medida em que é expresso em centeio, e o centeio, valor de troca, na medida em que é expresso em trigo. Na medida em que cada um dos dois esteja em relação somente consigo mesmo, não é valor de troca (Marx, 2011, p. 152).

N’O Capital, Marx explica, ao contrário, que:

O valor de troca aparece, inicialmente, como a relação quantitativa, a proporção na qual valores de uso de espécie diferente trocam-se um contra o outro, relação que muda constantemente no tempo e no espaço. O valor de troca parece ser, portanto, algo arbitrário e puramente relativo; um valor de troca intrínseco, imanente à mercadoria, parece ser, como diz a escola, uma contradictio in adjecto [...] Uma mercadoria particular, um quarter de trigo, por exemplo, troca-se nas proporções mais diversas com outros artigos. Contudo, seu valor de troca permanece imutável, qualquer que seja a maneira que o exprimamos, em x de graxa, y de seda, z de ouro, etc. (Marx, 1971, 52-3)5.

O caráter comum das mercadorias, o tempo de trabalho socialmente necessário, diz respeito à substância do valor e ao caráter do próprio trabalho. Trata-se de uma característica intrínseca à mercadoria enquanto valor de uso ou produto. Com a descoberta do par categorial trabalho concreto/trabalho abstrato, o tempo de trabalho socialmente necessário passa a ser entendido, por Marx, como sendo não mais uma determinação da troca, mas do trabalho. Ele determina, antes de tudo, a produção enquanto tal, o trabalho do indivíduo singular sendo trabalho concreto e abstrato ao mesmo tempo. N’O Capital, o trabalho abstrato, esta característica universal do trabalho, não se configura, portanto, na troca. Não é apenas no processo de troca das mercadorias que os diferentes trabalhos se tornam homogêneos, abstratos, mensuráveis. No modo de produção capitalista, os diferentes trabalhos singulares são, eles próprios, concretos (diferentes, específicos) e abstratos (homogêneos, mensuráveis) ao mesmo tempo: “Alfaiataria e tecelagem, embora atividades produtivas qualitativamente distintas, são ambas dispêndio produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos etc. humanos e, nesse sentido, são ambas trabalho humano. Elas não são mais do que duas formas diferentes de despender força humana de trabalho” (Marx, 2014, p. 121). Ou ainda:

Todo trabalho é, por um lado, dispêndio de força humana de trabalho em sentido fisiológico, e graças a essa sua propriedade de trabalho humano igual ou abstrato ele gera o valor das mercadorias. Por outro lado, todo trabalho é dispêndio de força humana de trabalho numa forma específica, determinada à realização de um fim e, nessa qualidade de trabalho concreto e útil, ele produz valores de uso (Marx, 2014, p. 124).

Na obra que publicou, Marx sublinha, portanto, que, a partir do momento em que as mercadorias - enquanto valores - são trabalho materializado, elas possuem, nelas próprias, como medida de seu valor, o tempo de trabalho social. Assim, se por um lado, nos Grundrisse, ele assegurava que: “Como valor, [ela] é dinheiro. No entanto, dado que a mercadoria, ou melhor dizendo, o produto ou o instrumento de produção é diferente de si como valor, como valor, [ela] é diferente de si como produto” (Marx, 2011, p. 91). “O valor da mercadoria é diferente da própria mercadoria. O valor (valor de troca) é a mercadoria somente na troca (efetiva ou imaginada)” (Marx, 2011, p. 90). N’O Capital, por outro lado, ele explica que a mercadoria, enquanto mercadoria particular, não é diferente de seu valor, ou, dito de outro modo, que, como valor, ela não difere dela própria enquanto valor de uso. Mesmo sendo um valor de uso específico, ou melhor, precisamente por esta razão, a mercadoria é trabalho materializado e, portanto, imediatamente também, valor.

O pensamento de Postone

Diferentemente do destino que coube à obra de Backhaus − cuja influência, na história do marxismo contemporâneo, embora importante e mais consistente que aquela de Postone, se restringira a um círculo específico de autores -, o pensamento de Postone ganhou notoriedade e foi amplamente divulgado no curso dos últimos anos. Contemporânea e muito próxima das teses da corrente alemã conhecida como Wertkritik (crítica do valor), que surge ao final dos anos 80, a crítica de Postone desenvolve-se, contudo, de forma independente nos Estados Unidos.

Algumas das concepções que a fundamentam − como a noção de forma social; a recusa de uma definição do capitalismo a partir da propriedade privada dos meios de produção e sua explicação dos “processos históricos de racionalização em função da forma-mercadoria” (Postone, 2009, p. 116)6 − estão presentes, na obra de Postone, desde o início dos anos 70, quando da crítica que dirige, juntamente com Reinicke, ao texto de Martin Nicolaus7.

Distinguindo-se de leituras como a de Althusser, por exemplo - para quem as categorias de Marx são constructos ou produtos do pensamento, na definição dos quais o que importa não é o real, mas o pensamento-do-real (Althusser, 1996, p. 267) - a leitura de Postone alinha-se mais ao pensamento de Lukács, de Rubin e às novas leituras de Marx, como a de Backhaus. As categorias da obra madura de Marx são formas objetivas que revelam o trabalho ou a realidade social vigente sob o capitalismo. Na Introdução de 1857, Marx define, com efeito, as categorias como sendo formas ou determinações da existência. O valor, por exemplo, mesmo apresentando uma realidade ou objetividade puramente social (Marx, 2014, p. 125) e não apresentando, enquanto tal, realidade física, material, possui, segundo Marx, uma existência real e objetiva, que só aparece nas transações ou relações sociais.

A abordagem de Postone procura sublinhar o caráter amplo da teoria do valor de Marx. A obra madura deste pensador não apresentaria simplesmente a problemática de uma determinação estrutural sobre relações sociais superestruturais. As relações estruturais são, elas mesmas, as relações sociais da sociedade capitalista. Categorias como mercado e capital são as relações sociais: “essas formas sociais impessoais e abstratas [...] são as relações reais da sociedade capitalista, estruturam sua trajetória dinâmica e sua forma de produção” (Postone, 2014, p. 20).

A partir de uma releitura de Marx, o autor propõe um novo tipo de teoria crítica, na qual busca ressaltar a centralidade do trabalho não enquanto ponto de vista, mas enquanto modo de produção que funciona como um autômato. A tese de Postone é de que, “para Marx, o trabalho não constitui o ponto de vista a partir do qual criticar o capitalismo, mas é, ele próprio, o objeto da crítica” (Jappe, 2009). Postone opõe-se, assim, ao que chama de marxismo tradicional: uma leitura de Marx do ponto de vista do trabalho e que estaria presente em inúmeros autores, inclusive em Lukács, na Escola de Frankfurt e em Helmut Reichelt, que funda, com Backhaus, as Neue Marx-Lekture (Homs, 2014). Sua crítica dirige-se, entre outras, à concepção do proletariado como sujeito histórico, que constitui o cerne do pensamento de Lukács em História e consciência de classe, e pretende mostrar o capital como sendo, ele próprio, o Sujeito histórico. Coloca-se, em outros termos, em evidência a substância genérica desta formação social, a “‘substância’ social qualitativamente homogênea” (Postone, 2014, p. 100).

Em oposição à ideia de racionalidade instrumental e à tese segundo a qual a dominação abstrata funda-se sobre o mercado por oposição ao Estado, Postone quer mostrar o caráter social das relações objetivas [sachlicher] de dependência de que fala Marx:

O trabalho é central na análise de Marx não porque ele pressupõe ser a produção material como tal o aspecto mais importante da vida social ou a essência da sociedade humana, mas porque ele considera ser o caráter peculiarmente abstrato e direcionalmente dinâmico da sociedade capitalista sua marca central e afirma que estas características básicas podem ser apreendidas e elucidadas em termos da natureza historicamente específica do trabalho naquela sociedade (Postone, 2014, p. 127-8).

Trata-se de mostrar a centralidade da categoria trabalho abstrato na obra de Marx ou a natureza essencialmente social e dominante do trabalho nesta formação social. O caráter social é um aspecto inerente ao trabalho e não apenas às relações de distribuição e de propriedade. Com efeito, a partir da Contribuição à crítica da economia política, a contradição entre o domínio social e o domínio privado é algo inerente à forma que assume o trabalho sob o capitalismo. É o “trabalho do indivíduo isolado que assume a forma de generalidade abstrata”, escreve Postone, citando Marx. “É precisamente o trabalho no capitalismo que tem uma dimensão diretamente social” (Postone, 2014, p. 66).

Essa leitura possui, portanto, o mérito de fundar-se, para a compreensão da sociedade moderna, sobre um aspecto fundamental. O par categorial trabalho concreto/trabalho abstrato, que constitui uma das principais descobertas de Marx (Marx, 1977, p. 231), permite refutar uma série de elaborações teóricas que concebem o caráter social como sendo um aspecto diferente e separado das determinações do trabalho. A partir desta compreensão, Postone critica não apenas Habermas, mas também intérpretes de Marx que − como Sweezy, Mandel e Vygodski − conceberiam o trabalho, em sua forma capitalista, como apresentando um caráter social exclusivamente através da troca e como não sendo, portanto, verdadeiramente trabalho social. Mostraremos, mais adiante, que a posição criticada por Postone nesses últimos autores corresponde, na verdade, à posição do próprio Marx nos Grundrisse.

A despeito do mérito de partir de uma concepção do trabalho como atividade que encerra, em si, o caráter de sociabilidade nesse modo de produção, Postone elimina os pressupostos desta temática, o que faz com que ele mesmo recaia numa definição do trabalho abstrato a partir da circulação. O autor relega a descoberta principal da crítica da economia política, sem a qual esta última não teria sido possível: a explicação da mais-valia. E ao separar a problemática do trabalho e do valor, em Marx, da questão da propriedade, ele se afasta precisamente da essência do trabalho abstrato e do valor. Como mostramos em outra oportunidade, a descoberta da mercadoria força de trabalho - em torno da qual gira a definição de mais-valia − é precisamente o que torna possível e concreto, na crítica da economia política, o aparecimento da categoria trabalho abstrato (Vieira, 2012, p. 112). A primeira constitui um ponto de passagem decisivo rumo a esta última e representa um ponto de inflexão da investigação marxiana em direção às determinações do valor provindas do interior da produção.

Para Postone, como para Backhaus, O Capital apresenta um desenvolvimento lógico do funcionamento do modo de produção capitalista e a análise das categorias de base do capital, presente no início da obra, pressupõe a existência já desenvolvida das relações entre estas categorias no mundo capitalista. Backhaus critica, a este respeito, a leitura dos primeiros capítulos d’O Capital empreendida por Engels. A análise da circulação de mercadorias exposta por Marx aí não pertence a um momento histórico que preceda ao capitalismo. A esfera analisada é uma componente específica do modo de produção capitalista. Entretanto, assim como Backhaus - que confunde determinações próprias ao dinheiro com determinações do valor −, Postone cai no outro extremo, que consiste em confundir determinações da circulação simples com determinações específicas à produção.

Essas novas leituras de Marx têm o mérito de propor uma interpretação que não se fixa apenas sobre o aspecto de classe e de exploração, sublinhando o caráter amplo da teoria marxiana do valor no que diz respeito a sua caracterização da sociedade moderna. Com o objetivo de deslocar o eixo de compreensão da obra de Marx rumo a um entendimento mais abrangente da teoria do valor, elas terminam por se concentrar, porém, de forma unilateral e com prejuízos para a teoria do valor, sobre a esfera da circulação. Por trás dessa problemática, encontra-se, além da formulação original de Adorno − cuja ênfase recai sobre a abstração das relações de troca −, o fato de que, em ambos os autores, verifica-se uma leitura das categorias d’O Capital que se apoia sobre os Grundrisse.

Redigidos entre 1857 e 1858, os Grundrisse apresentam, como iniciamos a mostrar acima, análises que serão progressivamente aperfeiçoadas, à medida que Marx avança em sua pesquisa, realizando descobertas que serão fundamentais à elaboração definitiva de sua teoria do valor. Dentre tais descobertas fundamentais, estão a da categoria força de trabalho, realizada no segundo capítulo destes mesmos manuscritos, e a do par conceitual trabalho concreto/trabalho abstrato, que aparece de forma definitiva apenas na Contribuição à crítica da economia política. Até a descoberta da primeira categoria, Marx confunde, ainda, valor de troca e preço (Vieira, 2012, p. 41-70). Nos Grundrisse, o valor de troca é explicado a partir das relações de troca entre as mercadorias. Ele aparece como derivando do fato de que é a troca que põe os produtos como coisas iguais. Marx reconhece, neste momento, que há por detrás dessas formas uma divisão do trabalho e, portanto, uma produção que é produção de valores de troca. Mas é, de todo modo, a troca que põe as mercadorias como mercadorias ou os produtos como coisas equivalentes. Por esta razão, as determinações do valor de troca são consideradas por ele como advindas da troca, e não exatamente da esfera da produção. As determinações que Marx apresentará n’O Capital como sendo determinações do valor que decorrem das características da forma social do trabalho no modo de produção capitalista são entendidas, aqui, como derivando da troca. O tempo de trabalho socialmente necessário, explicado, na obra publicada, como sendo a substância do valor e como característica do próprio trabalho, aparece, nos Grundrisse, enquanto determinação da troca. À medida que o autor avança na elaboração de sua teoria do valor, ele se concentrará mais e mais sobre o fato de que seus conceitos se determinam a partir da produção. De maneira mais específica, à medida que sua descoberta da categoria força de trabalho toma forma no segundo capítulo dos Grundrisse, o sentido de determinações da mercadoria como o valor de troca e o valor de uso vem a ser paulatinamente enriquecido, sobretudo no que concerne ao primeiro.

Antes de atingir esses pontos nevrálgicos de suas descobertas no campo da teoria do valor8, Marx encontra-se, em outros termos, ainda sob a influência da teoria da oferta e da procura. No primeiro capítulo dos Grundrisse, ele procura desvelar as determinações do valor partindo diretamente das relações de troca entre as mercadorias. E é da troca, e não do trabalho, que decorrem, aqui, as determinações universais desse modo de produção. Sobre a importância da troca no ponto de partida da crítica da economia política, explica Dobb:

Com efeito, Marx partiu de conceitos tais como a oferta e a procura, a competição e o mercado. Isto aparece de forma evidente nos Manuscritos de 1844 [...]. Mas, o vemos também na presente obra, a Contribuição [à crítica da economia política], escrita quinze anos mais tarde. (Ao contrário, O Capital ocupa-se do ‘nível’ do mercado na parte conclusiva, próxima do final do terceiro livro). No curso da exposição crítica destes conceitos, [...] Marx empenha-se, sempre mais a fundo, na análise da produção e das relações de produção [...] e das raízes sociais e de classe de uma sociedade dominada pela exploração e pela procura do lucro mais elevado (Dobb, 1984, p. viii).

As leituras contemporâneas aqui analisadas, no que diz respeito a categorias centrais da crítica da economia política − como a de trabalho abstrato, em Postone, e a de dinheiro, em Backhaus −, fundam suas análises sobre a esfera da circulação, razão pela qual retornam aos Grundrisse. Tais leituras relegam, por consequência, a segundo plano a problemática principal da crítica marxiana, cuja ênfase recai, nas redações finais d’O Capital, sobre a esfera da produção e sobre a separação entre propriedade e trabalho.

A abordagem de Postone afasta-se da concepção de trabalho abstrato de Marx, que diz respeito ao “dispêndio de força humana de trabalho em sentido fisiológico” (Marx, 2014, p. 124). Esta base natural não seria central na definição do trabalho abstrato: “Se a categoria de trabalho humano abstrato é uma determinação social, ela não pode ser uma categoria fisiológica” (Postone, 2014, p. 171). O dispêndio fisiológico como caracterização do trabalho abstrato é, para Postone, apenas uma aparência: “A aparência do caráter de mediação do trabalho no capitalismo como trabalho fisiológico é o núcleo fundamental do fetiche do capitalismo” (Postone, 2014, p. 198). O “valor parece ser criado pelo trabalho como atividade produtiva - o trabalho enquanto produtor de bens e riqueza material - e não pelo trabalho como atividade de mediação social [...] [O] valor parece, então, ser constituído pelo dispêndio de trabalho per se” (Postone, 2014, p. 197).

Em Marx, porém, o valor não parece constituído pelo dispêndio de trabalho, ele é dispêndio de força de trabalho: “o trabalho que constitui a substância dos valores é trabalho humano igual, dispêndio da mesma força de trabalho humana” (Marx, 2014, p. 117). O trabalho abstrato é definido como sendo “dispêndio produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos, etc. humanos” (Marx, 2014, p. 121).

Para Postone, o trabalho abstrato é uma categoria puramente social − e não dispêndio de músculos, nervos etc. Ela tem sua origem na circulação e sua explicação prescinde, segundo ele, da esfera da produção. A dualidade do trabalho é explicada a partir das determinações da mercadoria. A expressão trabalho determinado pela mercadoria aparece várias vezes em seu livro (Postone, 2014, p. 66, 331 etc.) e não é tão inócua quanto parece. No que concerne a O Capital, se se pode dizer que o trabalho é determinado pela forma mercadoria ou encontra-se subsumido a ela, é preciso esclarecer, no entanto, que ele está subsumido, antes de mais nada, à sua determinação de valor, da qual a mercadoria é apenas uma das expressões. Segundo Marx, o valor apresenta-se como mercadoria, dinheiro e capital (Marx, 2011, p. 206). E não é da forma mercadoria dos produtos do trabalho que deriva a dualidade que caracteriza o trabalho no capitalismo. Ao contrário, os produtos são mercadorias precisamente porque o trabalho reveste uma forma dupla, porque ele é trabalho concreto e abstrato ao mesmo tempo.

Postone cai, portanto, na armadilha da redução da troca entre o capital e o trabalho a uma troca simples de mercadorias. Como Proudhon, ele emprega alternativamente os termos mercadoria e valor, e entende a mercadoria como sendo “o princípio estruturante fundamental do capitalismo” (Postone, 2014, p. 181). Em Marx Reloaded, ele chega a dizer que esta categoria ocupa, em alguns aspectos, “um lugar similar, na análise de Marx da sociedade moderna, ao que poderia ocupar o parentesco nas análises antropológicas de outros tipos de sociedade” (Postone, 2005, p. 37). A forma-mercadoria de mediação social é uma forma totalizadora e estruturante, é ela que constitui a totalidade social do modo de produção capitalista:

Objeto da análise marxiana é a sociedade burguesa, estruturada pelo trabalho assalariado e pelo capital e dominada por uma determinação de existência cujo desenvolver-se dialético [...] representa a sua história na forma mais pura e mais clássica [...] Esta determinação da existência é a mercadoria (Postone; Reinicke, 1978, p. 74-5).

Segundo Adorno, “a sociedade é constituída [...] pela forma dominante da troca entre contratantes individuais” (Adorno, 2007, p. 267). Em seus escritos sociológicos, Adorno explica que a totalidade é a categoria a partir da qual se deve explicar a sociedade moderna, e tal categoria é entendida como sendo uma categoria objetiva que dá forma ao objeto estudado empiricamente:

Trata-se de mostrar que, na sociedade, existe um princípio sintético que determina, de forma imanente, a conexão de todo fato social. A troca, para Adorno, cumpre objetivamente esta tarefa: “o que faz da sociedade uma entidade social e a constitui, tanto conceitualmente, quanto realmente, é a relação de troca, que conecta virtualmente todas as pessoas” (Adorno, 1968, 57). A troca é o princípio de mediação que assegura a reprodução da sociedade. [...] Ela garante a socialização por meio de um processo de abstração que “implica a redução dos bens que devem ser trocados entre si a algo de equivalente a eles, a algo de abstrato” (Adorno, 1972, 96). Adorno reconhece na análise do processo de troca a possibilidade de conceber aquele processo de autonomização que constitui o traço característico da sociedade capitalista (Riva, 2013).

Tal herança é claramente identificada na obra mais recente de Postone. A equivalência conceitual entre mercadoria e valor e a redução de determinações do capital a determinações da troca simples de mercadorias aparece também em sua descrição do que seria a mediação social nesta sociedade:

Cada produtor produz mercadorias que são valores de uso particulares e que funcionam, ao mesmo tempo, como mediações sociais. A função de uma mercadoria como mediação social é independente de sua forma material particular e vale para todas as mercadorias. Neste sentido, um par de sapatos é idêntico a um saco de batatas (Postone, 2014, p. 177).

Segundo Marx, há apenas uma mercadoria que apresenta, em si, a função de mediação social. Na formação social capitalista, esta determinação ou “função” das mercadorias singulares é assumida pelo dinheiro. Se, por uma razão qualquer, uma mercadoria não toma, no mercado, a forma de dinheiro; se ela não alcança seu objetivo como mercadoria - o de sua venda ou transformação em dinheiro - ela, por definição, sai do mercado. Isto quer dizer que sua existência e sua realização enquanto mercadoria é assegurada apenas pelo dinheiro e que, enquanto mercadoria singular (um par de sapatos), ela não tem, em si, esta “função” de mediação social.

Diferentemente do que entendem Adorno, Postone e uma série de autores do século XX, não é apenas a troca que implica um comportamento ou funcionamento independente do sistema com relação aos agentes do mercado. A produção é ela mesma determinada como um autômato, na medida em que o tempo de trabalho socialmente necessário, ou o valor, vem a ser seu determinante incondicional, acima de qualquer outra consideração. A circulação - como o explica Marx − é a mediação de dois extremos pressupostos, mas não é ela que põe estes extremos (Marx, 2011, p. 196).

Conforme Homs (2014), em seu artigo A substância do capital, Robert Kurz acusa Postone de uma certa incoerência, quando afirma que é na esfera da produção que a objetividade do valor é dada imediatamente à mercadoria, e faz, ao mesmo tempo, do ‘trabalho abstrato’ uma simples categoria social que não teria nenhuma ‘base natural’.

Postone quer mostrar que a análise de Marx contém algo mais que relações antagônicas de classe. Como Kurz, ele entende a dominação social, no capitalismo, como sendo uma dominação precipuamente abstrata: “a dominação social no capitalismo, no seu nível mais fundamental, não consiste na dominação das pessoas por outras pessoas, mas na dominação das pessoas por estruturas sociais abstratas constituídas pelas próprias pessoas” (Postone, 2014, p. 46). Mas, Postone vai além de Kurz, na medida em que pretende dissociar a sociabilidade da base concreta sobre a qual se assentam as relações sociais de dominação no capitalismo9. Partindo das exposições mais abstratas d’O Capital e abstraindo-as, porém, das determinações concretas presentes a todo momento no texto de Marx, Postone sublinha que a teoria marxiana da produção não é uma teoria do trabalho enquanto criação de riqueza concreta ou de excedente. A transformação da matéria pelo trabalho seria apenas um meio para a criação do valor. E a análise do processo de valorização (criação de mais-valor) seria feita, em Marx, “essencialmente em termos da criação do valor” (Postone, 2014, p. 323) ou apresentando uma diferença apenas quantitativa em relação a esta última. Postone reafirma, assim, que o que está em jogo, aí, é apenas a forma social da riqueza (Postone, 2014, p. 321).

Ora, se Marx parte, na referida obra, das determinações mais abstratas do modo de produção capitalista, ele não se esquece, porém, de concretizar suas análises. O processo de valorização não é jamais entendido por ele como sendo apenas quantitativamente diferente do processo de criação do valor:

O processo de produção, como unidade dos processos de trabalho e de formação de valor, é processo de produção de mercadorias; como unidade dos processos de trabalho e de valorização, ele é processo de produção capitalista, forma capitalista da produção de mercadorias (Marx, 2014, p. 273).

A formação de valor é, portanto, diferente da valorização e é esta última que oferece traço específico ao capitalismo. Que o valor e o capital possam ser entendidos, em Marx, como sujeitos automáticos, disso não há dúvida. Mas, com a eliminação da categoria de mais-valia, Postone confunde, em suas definições, capital e valor, substituindo o primeiro pelo segundo. De acordo com ele, o capital “não pode ser entendido adequadamente em termos físicos e materiais, ou seja, em termos de estoque de edifícios, materiais, máquinas e dinheiro possuídos pelos capitalistas”, mas se refere apenas a “uma forma de relações sociais” (Postone, 2014, p. 97). Por sua vez, Marx define o valor como objetividade social e diz, n’O Capital, que nesta objetividade não há nenhum átomo envolvido. No entanto, mesmo o valor só existe em simbiose com o seu lado material − o valor de uso da mercadoria - ou, ainda, enquanto dinheiro ou capital. O capital, por sua vez, existe sob a forma de todos os valores de uso:

Em conformidade com seu conceito, o capital é dinheiro, mas dinheiro que não existe mais na forma simples de ouro e prata, nem tampouco como dinheiro em oposição à circulação, mas dinheiro na forma de todas as substâncias - de todas as mercadorias. Nesse particular, portanto, como capital não está em oposição ao valor de uso, mas existe, além do dinheiro, justamente nos valores de uso (Marx, 2011, p. 211).

O valor não tem, certo, uma objetividade material, apenas uma objetividade social. Mas ele só existe ou aparece sob a forma de mercadoria, dinheiro ou capital. Para Marx, a substância - que define o valor enquanto tal, ou seja, o tempo de trabalho socialmente necessário - só existe sob uma forma determinada. Portanto, se a definição de capital dada por Postone pode até se aplicar ao valor (e mesmo assim, apenas com a ressalva que se acaba de fazer), ela não se aplica, de forma alguma, ao capital. Observe-se que, na citação a que se refere Postone (2014, p. 96), Marx está falando justamente do valor − tal como ele aparece sob a forma de capital − e não do capital, como pretende Postone, eliminando, aliás, o pequeno trecho que se refere ao valor como mais-valia.

O autor assim o faz porque quer mostrar que o valor enquanto mediação social (ou sujeito automático) antecede ao capital e à relação de exploração ou, em outros termos, que a dominação abstrata é superior à dominação de classes:

Postone não nega [...] que a exploração do trabalho, a extração de mais-valia, seja a única forma que o capital tem de aumentar o valor já acumulado, mas ele quer nos fazer admitir que as posições de Marx são as mesmas que as suas: o valor precede o capital e a relação de exploração [...] [Entretanto,] o sujeito autômato introduzido por Marx, nesta passagem d'O Capital, está lá apenas para mostrar o problema que ele vai resolver com a teoria da mais-valia. A automaticidade do aumento do valor é uma aparência, atrás da qual vai-se encontrar a exploração do trabalho. [...] A reprodução da sociedade capitalista não é automática, mas resulta de uma relação contraditória entre as classes (Astarian, 2013).

A partir do momento em que Marx faz a descoberta da categoria força de trabalho e, sobretudo, nas últimas redações d’O Capital, o que passa a estar no centro de sua formulação não é mais a abstração da troca. Contrariamente ao que diz Postone, não é a relação de exploração ou o trabalho efetivo que constituirá, a partir de então, uma aparência em Marx, mas precisamente o sujeito automático que se desenvolve nas relações de troca. Os primeiros capítulos d'O Capital mostram determinações essenciais como o trabalho abstrato e o valor, mas tal como estas aparecem na esfera rumorosa da circulação de mercadorias, na qual o que reina é a liberdade, a igualdade etc. (Marx, 2013, p. 250). Quando Marx, ao final da Seção II, deixa esta esfera para adentrar na da produção propriamente dita, o que ele diz é precisamente que o grande segredo da sociedade moderna, a criação de mais-valia, será, enfim, revelado (Marx, 2013, p. 250).

A crítica do trabalho

Para Postone, os imperativos e coerções impessoais acima mencionados não são apenas aqueles que resultam da forma burguesa do trabalho − como o valor, a mercadoria, o dinheiro e o capital -, mas consistem no próprio trabalho. A dominação abstrata significa uma “dominação das pessoas pelo seu trabalho” (p. 88-9). O trabalho não seria a fonte social de toda a riqueza (Postone, 2014, p. 26, 72, 79) e muito menos o elemento regulador do metabolismo social em todas as sociedades. Trata-se de uma crítica da mediação social pelo trabalho, a qual Postone atribui também a Marx: “a análise de Marx é uma crítica das relações sociais mediadas pelo trabalho sob o ponto de vista da possibilidade historicamente emergente de outras mediações sociais e política” (Postone, 2014, p. 67-8). A mediação social pelo trabalho seria algo específico à sociedade capitalista. E o marxismo tradicional atribuiria uma importância muito maior ao trabalho do que a que ele teria na análise de Marx. Nos Grundrisse, teria sido questionada “a ligação ‘necessária’ entre o trabalho imediato e a riqueza social” (Postone, 2014, p. 80).

Em consonância com posições mais recentes da crítica do valor, Postone tem todo o direito de pleitear pelo fim do trabalho e de confundir o que, em Marx, seria a superação histórica do “mero operário” com a superação do trabalho imediato enquanto tal (cf. Postone, 2014, p. 91). Mas vale ressaltar que tal perspectiva não aparece em Marx. Nos Grundrisse, ele aponta para a possibilidade de que o trabalho imediato dos indivíduos - e, portanto, o tempo nele despendido - viesse a se tornar algo ínfimo, comparado às forças e potências sociais postas em ato no processo de trabalho, mas, em nenhum momento, Marx indica que o mesmo pudesse vir a ser desnecessário para a criação da riqueza (seja desta sob a forma da ciência e das máquinas, seja da riqueza de modo geral).

Também nas passagens d’O Capital citadas por Postone, Marx não deixa de associar a produtividade do trabalho ao trabalho direto ou imediato. Segundo Postone, na explicação de Marx,

o capital se desdobra historicamente de tal forma que o nível de produtividade se torna cada vez menos dependente do trabalho direto dos trabalhadores. Esse processo implica o desenvolvimento, de maneira alienada, de formas socialmente gerais do conhecimento e da experiência que não são uma função e não podem ser reduzidos a habilidades e conhecimentos dos produtores imediatos (Postone, 2014, p. 341-2).

Além disso, a dimensão de valor de uso do trabalho referir-se-ia apenas à quantidade de riqueza material que produz. O que Marx diz, contudo, nestas passagens, é exatamente o contrário. Para ele, as máquinas são criações “da mão humana e mecanismo[s] criado[s] pelo homem” (Marx, 2014, p. 460). Além disso:

Se, à primeira vista, está claro que a grande indústria tem de incrementar extraordinariamente a força produtiva do trabalho por meio da incorporação de enormes forças naturais e das ciências da natureza ao processo de produção, ainda não está de modo algum claro, por outro lado, que essa força produtiva ampliada não seja obtida mediante um dispêndio aumentado de trabalho. Como qualquer outro componente do capital constante, a maquinaria não cria valor nenhum (Marx, 2014, p. 460).

O valor como determinação temporal

Postone pretende dissociar a categoria valor da noção de riqueza material. O “valor não é essencialmente uma categoria de mercado” (Postone, 2014, p. 147). Esta categoria se refere a uma determinação temporal: o tempo de trabalho imediato. “Uma abordagem diferente reformularia o valor como uma forma historicamente específica de riqueza, diferente da riqueza material” (Postone, 2014, p. 148). “O valor é uma expressão do tempo como o presente. É uma medida e uma norma obrigatória para o dispêndio de tempo de trabalho imediato, independentemente do nível histórico de produtividade” (Postone, 2014, p. 341).

Ao ressaltar unilateralmente a historicidade, o autor descaracteriza o materialismo da obra marxiana, eliminando a base natural do trabalho abstrato, mas ofuscando também outros aspectos concretos sobre os quais se assentam as relações sociais de dominação no capitalismo, como a relação do conceito de capital com a riqueza material (Postone, 2014, p. 97, 318). Hipostasia-se, na verdade, as características do valor enquanto forma social ou os aspectos mais abstratos do modo de produção capitalista, deixando-se de lado aqueles mais concretos como a mais-valia, a força de trabalho e tudo o que diz respeito às características materiais, concretas, do mesmo. Diferentemente de Marx que, nos primeiros capítulos d’O Capital, utiliza-se do procedimento da abstração enquanto recurso metodológico − para mostrar como as determinações da troca (a troca de equivalentes) são compatíveis com as da produção de mais-valia10 - mas sem jamais deixar de lado que as abstrações não existem senão como partes de um todo; Postone, como os economistas clássicos, não realiza a síntese entre o abstrato e o concreto. Para ele, não há primazia ontológica da produção da vida material em Marx (Postone, 2014, p. 18, 318). Ao desconsiderar que tais aspectos concretos sejam tão importantes quanto os abstratos, ele acaba confundindo, porém, essas dimensões e tomando uma pela outra; razão pela qual capital é definido como valor etc.

Vale recordar que uma das razões centrais da crítica de Marx aos economistas é o fato de que eles consideravam a forma econômica específica do modo de produção capitalista como algo puramente formal:

A demonstração insípida, tal como ocorre contra esses socialistas por parte da decadente Economia mais recente (cujo representante clássico, no que se [refere] à insipidez [...] pode ser considerado Frédéric Bastiat [...]), que prova que as relações econômicas expressam, em todo lugar, as mesmas determinações simples e, portanto, expressam, em todo lugar, a igualdade e a liberdade da troca de valores de troca simplesmente determinada, reduz-se a uma abstração inteiramente pueril. A relação entre capital e juro, por exemplo, é reduzida à troca de valores de troca. Assim, depois que é aceito da empiria que o valor de troca não existe apenas nessa determinabilidade simples, mas existe também na determinabilidade essencialmente diferente do capital, o capital é novamente reduzido ao conceito simples do valor de troca, e o juro, que expressa apenas uma relação determinada do capital enquanto tal, também arrancado da determinabilidade, é posto igual ao valor de troca ; há, pois, abstração a partir do conjunto da relação em sua determinabilidade específica e retorno à relação de troca não desenvolvida de mercadoria contra mercadoria. Se abstraio de um concreto aquilo que o distingue de seu abstrato, ele é naturalmente o abstrato e não se distingue em nada dele. De acordo com isso, todas as categorias econômicas são apenas outros e outros nomes para a mesma relação de sempre, e essa tosca incapacidade de capturar as diferenças reais pretende então representar o puro ‘bom senso’ enquanto tal (Marx, 2011, p. 191-2)11.

Presente, como vimos, no pensamento de Postone, tal problema limita o alcance de formulações importantes que se encontram em sua obra e que são caras a Marx, como a busca de se apreender o caráter histórico específico da sociabilidade do capital, bem como a superação das dicotomias teóricas entre estrutura e ação.

À guisa de conclusão, Postone entende por marxismo tradicional, na verdade, o marxismo cuja noção de socialismo se pauta pela concepção posta em prática pelo socialismo real, ou seja, como sociedade fundada sobre a propriedade estatal dos meios de produção e a planificação centralizada (cf. Postone, 2007, p. 36). O que se buscou ressaltar é que sua leitura vai, contudo, bem além disso quando rejeita a base natural do trabalho, bem como a relação do valor e do capital com a riqueza material. É preciso, portanto, distinguir estes dois aspectos que não são, por nada, idênticos. Uma coisa é rejeitar que a noção de emancipação esboçada na obra madura de Marx possa limitar-se ao aspecto do planejamento e de uma propriedade centralizada dos meios de produção. Coisa diversa é abandonar o caráter concreto do trabalho e dizer que a noção emancipatória de Marx não se fundamenta sobre o trabalho imediato. Embora, nos Grundrisse, Marx aponte para uma sociedade em que, mais do que o tempo de trabalho, é o tempo livre que serviria de base para a organização do metabolismo social, em nenhum momento, o trabalho deixa de ter importância nesse processo e de fundar-se sobre uma base concreta. Além disso, é pela apropriação concreta da riqueza objetivada pelo trabalho que os indivíduos se tornariam capazes de engendrar um novo tipo de organização social. Apropriação esta que não se pode dar, segundo Marx, senão pela abolição da propriedade privada dos meios de produção. Dito de outra forma, uma coisa é discutir, a partir de uma crítica da experiência do socialismo realmente existente, em que base se poderia dar um metabolismo social que surgiria com o fim do capitalismo. Coisa diversa é abandonar as bases da crítica da economia política, qual seja a centralidade da propriedade privada na definição do metabolismo social a ser superado, com vistas a uma perspectiva emancipatória. Em tal abandono, perde-se a capacidade de definir e de entender os processos centrais do capitalismo que continua a subsistir, pautado sobre a exploração concreta e uma divisão em classes cada vez mais aguda.

Tanto a análise de Adorno, quanto a de Backhaus e a de Postone abstraem das condições de produção, ou seja, do fato fundamental da propriedade privada e da existência do trabalho como mera força de trabalho12. Analisa-se o processo de fetichização apenas a partir das relações de troca e do dinheiro13. Por esta razão, Adorno não apreende o caráter específico da troca no modo de produção capitalista (cf. Riva, 2009, p. 49) − caráter este demonstrado por Marx e que constitui um dos diferenciais de sua teoria do valor. Backhaus, por sua vez, mesmo reconhecendo a insuficiência, no que diz respeito aos conceitos de sociedade e ideologia, do apoio conceitual da Escola de Frankfurt sobre a teoria marxiana do valor-trabalho, volta-se também ele, como vimos, para a análise da circulação simples. A análise marxiana da mais-valia não é, contudo, simplesmente uma análise da forma do excedente no capitalismo. Ela é precisamente o que torna possível a compreensão do caráter abstrato e impessoal da dominação social, na medida em que revela o fundamento sobre o qual repousa a produção de valor.

Referências

  • 1 ADORNO, Theodor W. Introdução à sociologia. Trad. Wolfgang Leo Maar. São Paulo: UNESP, 2007.
  • 2 ADORNO, Theodor W. Sociologia e ricerca empírica. Dialettica e positivismo in sociologia, Torino: Einaudi, 1972.
  • 3 ALTHUSSER, Louis. Lire le Capital. Paris : Quadrige/PUF, 1996.
  • 4 ARTHUR, Christopher J. A Guide to Marx’s Grundrisse in English. Chris Arthur, 2006. <http://www.chrisarthur.net/grundrisse.doc>. Acesso em: 15 maio 2015.
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  • 5 ASTARIAN, Bruno. Chapitre 6 - Moishe Postone: La valeur et la domination abstraite. Hic Salta Communisation, 2013. <http://www.hicsalta-communisation.com/valeur/chapitre-6-moishe-postone-la-valeur-et-la-domination-abstraite>. Acesso em: 6 maio 2015.
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  • 6 BACKHAUS, Hans-Georg. Dialektik der Wertform: Untersuchungen zur Marxschen Ökonomiekritik. Freiburg: Ça ira, 2011.
  • 7 BACKHAUS, Hans-Georg. Dialectique de la forme de la valeur. Paris, Maspero, Critiques de l'économie politique, n. 18, trad. Serge Niemetz, out/dez., 1974.
  • 8 DOBB, Maurice. Introduzione. Per la critica dell’economia politica. trad. Emma C. Mezzomonti. Roma: Editori Riuniti, 1984.
  • 9 ELBE, Ingo. Between Marx, Marxism, and Marxisms - ways of reading Marx’x theory, Viewpoint Magazine, 21 out. 2013. < https://www.viewpointmag.com/2013/10/21/between-marx-marxism-and-marxisms-ways-of-reading-marxs-theory/>
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  • 10 HOMS, Clément. De quelques divergences entre Moishe Postone et la Wertkritik. Critique de la valeur, 18 mar. 2014. <http://critiquedelavaleur.over-blog.com/2014/03/de-quelques-divergences-entre-moishe-postone-et-la-wertkritik-par-clement-homs.html>. Acesso em: 26 mar. 2015.
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  • 11 JAPPE, Anselm. Avec Marx, contre le travail. Palim-Psao.fr, 25 out. 2009, <http://palim-psao.over-blog.fr/article-avec-marx-contre-le-travail-38186520.html>. Acesso em: 10 abr. 2015.
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  • 12 MANDEL, Ernest. A formação do pensamento econômico de Karl Marx. Trad. Carlos H. Escobar. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
  • 13 MARX, Karl. O Capital, livro I. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2014.
  • 14 MARX, Karl. Grundrisse. Trad. Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.
  • 15 MARX, Karl. Carta a Engels de 24 de agosto de 1867. In: MARX, Karl. Le Capital, livre premier, tome III. Trad. Joseph Roy. Paris: Éditions Sociales, 1977.
  • 16 MARX, Karl. Le Capital, livre premier, tome I. Trad. Joseph Roy. Paris: Éditions Sociales, 1971.
  • 17 MUSSE, Ricardo. Dialética e Teoria crítica: ensaios sobre Lukács, Korsch, Adorno e a historiografia do marxismo. (Tese de livre-docência) São Paulo, USP, 2011.
  • 18 POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social. Trad. Almilton Reis e Paulo C. Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2014.
  • 19 POSTONE, Moishe. Time, labor and social domination. Cambridge: University Press, 1995.
  • 20 POSTONE, Moishe; REINICKE, Helmut. Note all’Introduzione ai Grundrisse di Martin Nicolaus. In: NICOLAUS, Martin; POSTONE, Moishe; REINICKE, Helmut. Dialettica e Proletariato: dibattito sui Grundrisse di Marx. Firenze: La Nuova Italia, 1978.
  • 21 POSTONE, Moishe. Marx Reloaded. Madrid: Traficantes de Sueños/Bifurcaciones 1, 2005.
  • 22 REGATIERI, Ricardo P. Do capitalismo monopolista ao processo civilizatório: a crítica da dominação nos debates no Instituto de Pesquisa Social no início da década de 40 e na elaboração da Dialética do esclarecimento. (Tese de doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015.
  • 23 RIVA, Tommaso R., Teoria critica della società? Critica dell’economia politica. Adorno, Backhaus, Marx. Consecutio Temporum, n. 5, 22 out. 2013. <http://www.consecutio.org/2013/10/teoria-critica-della-societa-critica-delleconomia-politica-in-adorno-backhaus-marx/>. Acesso em: 15 maio 2015.
    » http://www.consecutio.org/2013/10/teoria-critica-della-societa-critica-delleconomia-politica-in-adorno-backhaus-marx
  • 24 RIVA, Tommaso R. Teoria del valore e ricostruzione dialettica. H.G. Backhaus e la critica dell’economia politica. In: Backhaus, H.G. Dialettica della forma di valore, editado por R. Bellofiore e T. Redolfi Riva. Roma: Editori Riuniti, 2009.
  • 25 VIEIRA, Zaira R. Catégories et méthode dans la théorie de la valeur de Marx. Sur la dialectique. Tese de Doutorado em Filosofia. Université Paris-Ouest Nanterre la Défense, PARIS OUEST, França, 2012.
  • 1
    As neue Marx-Lektüre desenvolvem-se a partir da metade da década de 1960, com as obras de Helmut Reichelt e Hans-Georg Backhaus, e possuem como predecessores o pensamento de I. I. Rubin e de E. Paschukanis (cf. Elbe, 2013).
  • 2
    Em nossa tese de doutorado, mostramos as razões pelas quais este argumento não se sustenta (cf. Vieira, 2012, cap. 5).
  • 3
    Segundo Mandel, a teoria que apresenta a solução desse problema começa a aparecer no segundo capítulo dos Grundrisse. Neste capítulo, Marx começaria a empreender o caminho necessário ao esclarecimento definitivo do segredo do valor de troca das mercadorias: “Mas se o valor de troca das mercadorias é determinado pelo trabalho que elas contêm, como conciliar essa definição com o fato empiricamente constatado de que os preços de mercado dessas mesmas mercadorias são determinados pela ‘lei da oferta e da procura’? Essa objeção, diz Marx, vem a ser a seguinte: como os preços de mercado diferentes dos valores de troca das mercadorias podem formar-se, ou, melhor ainda, como a lei do valor não pode realizar-se na prática senão através de sua própria negação? Esse problema é resolvido pela teoria da concorrência dos capitais, que Marx desenvolve a fundo desde a redação dos Grundrisse, elaborando a teoria da distribuição equitativa da taxa de lucro e da formação dos preços de produção, sobre a base da concorrência entre os capitais” (Mandel, 1968, p. 90, itálicos do autor).
  • 4
    “Assim, um valor de uso ou bem só possui valor porque nele está objetivado ou materializado trabalho humano abstrato” (MARX, 2014, p. 116).
  • 5
    Optamos por citar esta passagem a partir da tradução francesa de Roy − que foi “inteiramente revisada pelo autor” (Marx, 1971, p. 9) e que “possui um valor científico independente do original e deve ser consultada mesmo pelos leitores que têm familiaridade com a língua alemã” (Marx, 1971, p. 47) − porque sua última parte aparece redigida, aqui, de forma mais clara (cf. Marx, 2014, p. 114-5).
  • 6
    A tradução francesa desta passagem coaduna-se mais com seu sentido na versão original (Postone, 1995, p. 74).
  • 7
    Martin Nicolaus é o tradutor e prefaciador da primeira edição inglesa dos Grundrisse, que aparece em 1973: Grundrisse - Foundations of the Critique of Political Economy, publicada inicialmente por Penguin Books e New Left Review. Trata-se de uma tradução que, mesmo não sendo isenta de erros (Arthur, 2006), ainda é levada em consideração em vários estudos desta obra, não fosse por seu Prefácio. Traduzido posteriormente em italiano, este Prefácio foi objeto de um debate à época, no qual tomaram parte Postone e Reinicke (Postone; Reinicke, 1978).
  • 8
    “É na sua Contribuição à crítica da economia política que Marx aperfeiçoará sua teoria do valor, e ao mesmo tempo a teoria do valor-trabalho em geral, formulando sua teoria do trabalho abstrato, criador de valor de troca. Ele distingue as duas formas de trabalho, o ‘trabalho concreto’ que cria o valor de uso, e o ‘trabalho abstrato’, isto é, a fração do tempo de trabalho social globalmente disponível numa sociedade de produtores de mercadorias” (Mandel, 1968, p. 85).
  • 9
    “Para Kurz, o trabalho abstrato [...] é, certo, um fato social, mas se constitui sobre a ‘base real’ que é um dispêndio indiferenciado de energia humana” (Homs, 2014).
  • 10
    O ponto de partida da esfera mais abstrata da circulação simples permite a Marx mostrar o que é e o que não é, na verdade, específico a esta esfera. A análise abstrata permite colocar face a face as relações tais como elas se determinam e se põem na circulação simples, e estas mesmas relações tais como elas se encontram escondidas na análise dos economistas, na medida em que estes últimos ora confundem a circulação de mercadorias com a troca imediata dos produtos (o escambo) ora apagam “as contradições do processo capitalista de produção dissolvendo as relações de seus agentes de produção nas relações simples que resultam da circulação de mercadorias” (Marx, 2014, p. 187).
  • 11
    Algumas correções de tradução foram feitas pela autora deste artigo.
  • 12
    O declínio do papel da propriedade privada, com o capitalismo monopolista, já estaria em Horkheimer, mais especificamente em seu artigo Os judeus e a Europa, de 1939. Com o fim do capitalismo liberal, ocorre uma separação entre propriedade e poder de decisão econômico. “Num contexto em que ‘o número de empresas que dominam a totalidade da indústria torna-se cada vez menor’, ao invés do título nominal, o decisivo passa ser a real capacidade de disposição da propriedade por parte das burocracias industriais” (Regatieri, 2015, p. 37). No capitalismo monopolista, o livre contrato e a competição são abolidos. Não haveria também grandes incrementos nos lucros, e “no lugar da troca com o trabalho, entra o ditado [Diktat] sobre ele”, ou seja, a dominação direta. O Estado fascista e nazista representaria a perda do aparato contraditório do Estado. O Estado tornar-se-ia instrumento utilizado para a garantia e aumento do lucro privado; domínio direto do capital, exercido através da política. “A economia não tem mais nenhuma dinâmica própria” (id.). “Se a dominação no período liberal se deu por meios econômicos, ela passa a ser exercida de forma diretamente política com o posterior declínio do papel da propriedade privada” (ib., p. 38).
  • 13
    “O termo ´teoria crítica´ surgiu na década de 1930, época da ascensão do nazi-fascismo e do stalinismo, como codinome para o marxismo. Sob tal disfarce delineou-se uma nova formulação da doutrina, preocupada em preservar essa linhagem sem o amparo de suas âncoras tradicionais, o proletariado e o partido” (Musse, 2011, p. 61). “Nessa acepção, Aufklärung torna-se indissociável da dominação social da natureza. Adorno e Horkheimer procuram então reconstituir a pré-história da reificação na tentativa de explicar por que a mesma lógica, a da ´razão abstrata´, preside simultaneamente a ordem econômica (a troca mercantil), a esfera do conhecimento (a ciência moderna) e as formas de dominação (e de legitimação política)” (ib., p. 62). A crítica da sociedade de Adorno “transfere [dessa forma] sua atenção do processo de produção capitalista para a análise de seus efeitos” (ib., p. 63).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2016
  • Aceito
    29 Abr 2017
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