Resumo
Neste livro baseado nas aulas que Pierre Bourdieu dedicou à “revolução simbólica” encarnada pelo pintor Édouard Manet (1832-1883), o sociólogo francês realiza uma desmistificação sociocientífica inversa àquela comumente apontada em seus trabalhos: em vez de revelar a reprodução de estruturas profundas que subjaz a aparentes mudanças, Bourdieu aponta como radicais transformações estruturais e simbólicas desembocaram em práticas artísticas que um olhar contemporâneo, na medida em que foi moldado pelo sucesso mesmo de tais transformações, percebe como naturais e autoevidentes. Tal desmistificação envolve uma reconstrução detalhada do status quo ante, a arte acadêmica “pompier” no seio da qual Manet se formou, mas contra a qual ele se insurgiu em obras subversivas que contribuíram decisivamente para que o microcosmo social da pintura passasse historicamente de um corpo monopolizado pelo estado a um campo autônomo. No contraste entre “antes” e “depois” da revolução manetiana, Bourdieu elucida os vínculos entre estruturas institucionais externas, de um lado, e as propriedades de conteúdo e forma internas às próprias obras, de outro. Finalmente, contra quaisquer recaídas no mito do “criador incriado”, o autor não apenas aponta a convergência de fatores objetivos (morfológicos, técnicos, mercadológicos etc.) que concorreram para o sucesso das iniciativas de Manet, mas também as disposições socialmente adquiridas que o pintor mobilizou em sua empreitada revolucionária.
Palavras-chave:
Pierre Bourdieu; Édouard Manet; mudança social; revolução simbólica; arte
Abstract
In this book based upon Pierre Bourdieu’s classes on the “symbolic revolution” incarnated by the painter Édouard Manet, the French sociologist performs a sociological unmasking that inverts the one most commonly identified in his works: rather than revealing the reproduction of deep structures that undergirds apparent changes, Bourdieu points out how radical structural and symbolic transformations have resulted in artistic practices that a contemporary gaze, shaped by the success of these very transformations, perceives as natural and self-evident. This sociological operation involves a detailed reconstruction of the status quo ante, the academic, “pompier” art within which Manet was trained, but against which he invested in subversive works that have contributed decisively so that the social microcosm of painting transformed historically from a state-controlled body into an autonomous field. In the contrast between “before” and “after” Manet’s revolution, Bourdieu discloses the ties between external institutional structures, on the one hand, and the internal properties of content and form of the works themselves, on the other. Finally, against any slide into the myth of the “uncreated creator”, the sociologist points out not only the convergence of objective factors (morphological, technical, market-related, etc.) that contributed to the success of Manet’s initiatives, but also the socially acquired dispositions that the painter has harnessed in his revolutionary enterprise.
Keywords:
Pierre Bourdieu; Édouard Manet; social change; symbolic revolution; art
1. Introdução: esboço de uma teoria da mudança
Manet: uma revolução simbólica reúne os cursos ministrados por Pierre Bourdieu no Collège de France entre 1998 e 2000, com transcrição cuidadosamente editada por Pascale Casanova, Patrick Champagne, Christophe Charle, Franck Poupeau e Marie-Christine Rivière. Além dos cursos (p. 29-427), o livro contém um extenso ensaio inacabado sobre a revolução manetiana que Pierre escreveu com sua esposa Marie-Claire Bourdieu (p. 443-589), bem como comentários esclarecedores de Charle (p. 429-440), Casanova (p. 591-595) e, nesta edição brasileira, Sergio Miceli (p. 17-26).
A obra investiga a “revolução simbólica” avançada pelo pintor Édouard Manet (1832-1883) ao longo de cerca de quatro décadas e levada a efeito, afinal, graças a uma confluência indispensável de fatores socio-históricos diversos: do aumento do número de egressos do sistema educacional com interesse por pintura até inovações técnicas como a litografia e os tubos de tinta em metal; da invenção da boemia como estilo de vida de artistas “supranumerários” e marginalizados até a trajetória singular de experiências socializadoras que “criaram o criador” Manet, i.e., que se sedimentaram no seu habitus. Para além daqueles de nós com interesse especializado pela sociologia da arte, um dos significados mais gerais dessa empresa bourdieusiana é a possibilidade de encontrar, na obra do sociólogo francês, não a comumente esperada “teoria da reprodução”, mas uma teoria da revolução. Baseada em uma explicação “multifatorial” (p. 317) na qual condicionantes materiais e simbólicos só se tornam eficazes em uma configuração relacional de influências mútuas, tal teoria da mudança simbólica não anula a decisiva importância histórica do indivíduo “Manet”, mas se esforça por explicar as próprias condições socio-históricas sem as quais ele não teria adquirido aquela importância. O “efeito Manet” é, portanto, também uma “causa Manet” – porém, decerto não a “causa incausada” pressuposta pelas mitologias anticientíficas do criador artístico.
Diferentemente dos escritos nos quais Bourdieu rompia com o senso comum ao mostrar a reprodução de estruturas profundas, tais como assimetrias de classe, “por baixo” de mudanças aparentes (Bourdieu; Passeron, 2014), a “ruptura epistemológica” (Bourdieu; Chamboredon; Passeron, 2022) almejada pelo autor nesse livro é inversa. Trata-se de recuperar a radicalidade de mudanças estruturais e simbólicas que nosso olhar contemporâneo, socialmente moldado pelo próprio sucesso daquelas mudanças, não percebe como transformações radicais, mas como realidades naturais e autoevidentes. Essa modalidade diferente de cesura epistêmica com o senso comum não sinaliza, entretanto, uma alteração fundamental nas ferramentas analíticas com as quais Bourdieu enfrenta o seu tema. Ao contrário: da dialética histórica entre condições objetivas e disposições subjetivas no mundo social (Bourdieu, 2009) até a discussão reflexiva sobre o que há de sacrílego e indutor de resistências ferozes em um exame sociocientífico da arte (Bourdieu, 1996), as orientações-chave da sociologia de Bourdieu comparecem en masse neste estudo. De modo coerente com sua teoria disposicionalista da ação, por exemplo, Bourdieu não toma a revolução simbólica representada por Manet como resultante de um plano conduzido com plena consciência, muito menos de um fiat lux inexplicável à luz do contexto social do pintor. Ao contrário, o sociólogo explica práticas que transformam o mundo social, como as de Manet, segundo o mesmo mecanismo explicativo das práticas que o reproduzem, i.e., como produtos históricos da relação entre as disposições subjetivas que o agente adquiriu em uma trajetória de socialização, de um lado, e as condições objetivas nas quais ele age, de outro.
2. A pintura de estado
Tornar perceptível a descontinuidade radical representada pela revolução manetiana depende de uma reconstrução histórica do próprio regime artístico derrotado por aquela revolução: a arte acadêmica de estado ou “pintura pompier” (p. 151) no seio da qual o próprio Manet se educou, mas contra a qual ele investiu em obras subversivas que contribuíram decisivamente para a constituição da arte como um campo autônomo, em vez de uma corporação ou corpo monopolizado pelo estado. Na condição prévia de corpo estatal, a Academia de Belas Artes funcionava simultaneamente como instância de treinamento pedagógico dos aspirantes à pintura, de seleção dos pintores tidos como qualificados para bolsas de estudo e exposição de suas obras no Salão de Belas Artes e, finalmente, mediante tal exposição, de comercialização de tais obras nos mercados de arte – comercialização que também abria espaço para a conquista de encomendas estatais de novas obras por um número seleto de pintores. Os mestres responsáveis pelo ensino na Escola de Belas Artes forneciam o próprio quadro de juízes para os mencionados processos seletivos e, por conseguinte, um filtro sine qua non para a conquista do estatuto material e simbólico de pintor, possível apenas pela travessia de etapas pré-determinadas e firmemente controladas pelo sistema acadêmico. Combinando o treinamento com professores a premiações competitivas, como a que granjeava uma temporada na Villa Medici em Roma, tal sistema funcionava, nos termos goffmanianos recuperados por Bourdieu, como uma “instituição total” cuja rígida hierarquia engendrava “homens normalizados [...] produzindo produtos-padrão e padronizados” (p. 156). A academia monopolizava o nomos artístico: o poder socialmente legitimado de dizer o que é pintura e o que não é. Eis a condição histórica que será demolida ao termo da revolução manetiana, desembocando no esfacelamento daquele monopólio e em sua substituição por um campo artístico cuja autonomização institucionaliza a anomia ou “plurinomia”: a prerrogativa de dizer “quem é pintor e quem não é” (p. 183) passa a ser conferida e disputada pelos próprios agentes nele embebidos, tornados árbitros uns dos outros.
Ao esquadrinhar os elos causais entre as propriedades internas às obras de arte e os seus contextos sociais externos, o contraste histórico-sociológico entre o “antes” e o “depois” da revolução manetiana se ancora em um dos princípios gerais da sociologia bourdieusiana da cultura: a tentativa de superação da dicotomia externalismo/internalismo. Em compasso com sua organização institucional, a arte acadêmica valorizava a execução virtuosa de obras nas quais o pintor obedecia às instruções de um programa previamente encomendado com precisão. Estas encomendas funcionavam com base em uma hierarquia de temas que privilegiava eventos históricos e cenas bíblicas, com seus respectivos personagens famosos. O “virtuosismo” exigido dos pintores envolvia, por seu turno, tanto a competência técnica na composição do quadro quanto a preparação intelectual que subsidiava uma representação maximamente precisa do tema pintado (e.g., na forma da pesquisa histórica em que se basearia sua fidedignidade). Tal precisão representacional se conectava, enfim, ao valor dado à legibilidade da pintura, o qual implicava não somente o expurgo de ambiguidades como uma exigência intrínseca de acabamento que lançava sobre o “esboço” uma espécie de mácula concomitantemente estética e moral. Os critérios por trás dessa exigência do acabado eram, portanto, ao mesmo tempo da ordem da expressão artística e dos “bons costumes” – por exemplo, na associação da linha à “limpeza” e do colorido à “sujeira” (p. 170), atributos de execução que se misturavam à (i)moralidade dos temas pintados.
3. As novas regras da arte
Em contraste com tais características, a pintura manetiana não respeitava a hierarquia dos assuntos ou temas, mas privilegiava as características formais da obra. Ao conferir primazia à forma de tratamento dos assuntos em relação aos assuntos propriamente ditos, o estilo de Manet, radicalizando uma tendência subversiva já iniciada pelo seu ex-professor Gustave Courbet, se permitia a pintura de temas “vulgares” e banais, colocados no mesmo plano de importância de eventos e entidades “grandiosos”. Tal acentuação da forma por Manet também se ligava a uma autonomização da pintura em relação a artes como a arquitetura e a escultura, através de estratagemas que salientavam a especificidade formal da tela pintada mediante o desmonte de artifícios “arquitetônicos” e “esculturais”, como a assunção da sua bidimensionalidade pelo relativo abandono do relevo e da perspectiva. Ainda em compasso com o privilégio dado à dimensão formal, os quadros de Manet emprestavam bem mais importância à estrutura visual interna à pintura – i.e., às suas intrínsecas “relações de cor e valor” (p. 179) – do que à sua “legibilidade” referencial – i.e., às relações de significado (e.g., narrativo) entre as entidades pintadas (e.g., personagens históricos). Finalmente, ao se desvencilhar das alusões convencionais que a pintura pompier fazia à história, como na representação de eventos políticos e militares, as pinturas de Manet não apagavam qualquer componente histórico das suas obras, mas substituíam a referência à história tout court por alusões mais ou menos oblíquas à história da arte, exigindo dos seus espectadores um “capital ocular” de referências artísticas, por assim dizer, que se tornará um dos critérios futuros de participação em um campo artístico autonomizado.
4. A transformação: elementos para uma teoria da demolição de um sistema de ensino
Como surge uma coletividade de pintores, críticos de arte e públicos de apreciadores e consumidores dispostos, afinal, a apoiar Manet em sua consumação de uma ruptura simbólica com a arte acadêmica? Tal qual acontece em qualquer explicação histórico-sociológica digna desse nome, os fatores são múltiplos. Bourdieu sustenta que um condicionante crucial, quase sempre ignorado nas histórias da arte convencionais, foi de ordem morfológica: a significativa expansão do sistema educacional, a qual gerou um aumento no número de diplomados e, por conseguinte, de estudantes de arte e pintura. Mantendo-se fechado contra a entrada de um número ampliado de aspirantes à profissão de pintor, o sistema acadêmico terminou gerando uma população de “produtores excedentes” (p. 188), i.e., de pintores marginalizados e predispostos a apoiar ataques subversivos contra a instituição que os excluiu. É no seio dessa “intelligentsia subproletaroide” (como diz Bourdieu torcendo uma expressão de Weber [p. 200]), um grupo social cujo volume de capital cultural é bem mais alto do que seu capital econômico, que a boemia emerge como um estilo de vida em tudo oposto à “respeitabilidade” dos mestres da arte acadêmica. Tais artistas boêmios em condição material precária buscarão, para sobreviver economicamente, construir um mercado de arte paralelo àquele garantido pelo Salão – por exemplo, vendendo pinturas de paisagens ou naturezas-mortas a um crescente público burguês interessado em decorar suas residências com obras de pequeno porte. O crescimento do número de pintores não acadêmicos levou também à sua organização em cooperativas voltadas à defesa dos seus interesses, tais como a ampliação e a diversificação de locais de exposição e venda. Inicialmente inspiradas em coletivos de assistência mútua formados por outros trabalhadores, tais cooperativas também ganhariam ares de “movimento social” ao se engajarem na defesa da sua própria existência e valor enquanto pinturas não acadêmicas.
A precariedade econômica dos pintores excluídos do Salão, pressionados a vender quadros ao consumo privado e a se organizar em cooperativas de assistência mútua, dependia também, portanto, de um trabalho simbólico que instilasse nos consumidores potenciais a crença na necessidade dos produtos por eles oferecidos. Uma parte significativa das aulas de Bourdieu é voltada a mostrar que os próprios pintores não estavam sozinhos nessa tarefa “publicitária” (diríamos hoje) de cultivo da crença no valor de suas obras, assim como no questionamento da hegemonia simbólica da Academia e do Salão, mas receberam o apoio decisivo de uma parcela de escritores que atuaram como críticos de arte, os quais incluíram Baudelaire, Mallarmé, Zola e um rol de personagens menos conhecidos (Astruc, Castagnary, Thoré-Bürger, Monselet, Desnoyers, Privat)1.
Por fim, essa corrente de transformações sociossimbólicas também foi facilitada por outra ordem de fatores materiais, a saber, um conjunto de inovações tecnológicas no domínio da pintura (p. 312-313). A litografia expandiu enormemente o grau de “reprodutibilidade técnica” (diria Walter Benjamin) de todo o estoque passado e presente de pinturas, favorecendo o desenvolvimento de um repertório mnemônico de referências pictóricas dentre os membros de um público potencial, para além dos frequentadores assíduos de museus. Com a voga dos livros de viagem que faziam uso da técnica litográfica, o gosto e a demanda por pinturas paisagísticas, ao estilo daquelas que alimentavam os mercados paralelos de arte, também se intensificaram. Finalmente, a invenção dos tubos de tinta em metal e das telas pré-preparadas favoreceu imensamente tais mercados, já que possibilitou que os pintores trabalhassem fora do ateliê (e.g., pintando paisagens ao ar livre), libertando-os tanto “do trabalho prévio para preparar as cores” quanto “da aquisição de competências técnicas necessárias para saber esticar uma tela etc.” (p. 313).
5. O senso artístico
Do ponto de vista sociológico, escreve Bourdieu, as obras de Manet constituem o produto histórico do encontro entre o habitus encarnado nesse indivíduo biológico, de um lado, e o espaço social de possibilidades com o qual e contra o qual suas obras foram criadas, de outro (p. 97-98). Assim como a teoria geral do habitus se opõe a concepções intelectualistas da ação (Bourdieu, 1990, p. 21), a sociologia disposicionalista da arte é apresentada no livro em contraste sistemático com modelos escolásticos da pintura, como os que esquecem o caráter prático do ofício manetiano ou, ainda, os que substituem a reconstrução sociogenética das disposições que animavam aquele ofício por uma “leitura” das obras voltada ao mapeamento de “fontes”, tomadas como referências explícitas e conscientes do pintor.
Sem obviamente querer reduzir Manet a um autômato, Bourdieu mostra que algumas das fontes mais essenciais de suas pinturas, como de resto as fontes essenciais de quaisquer produções simbólicas complexas em outros domínios (e.g., livros de sociologia), não aparecem somente ou mesmo primordialmente como “citações” explícitas em suas obras, mas no estado incorporado de esquemas longamente aprendidos2. O papel central que a ação de copiar obras de outros pintores teve na formação de Manet, por exemplo, traz a lume contundentemente a dimensão prática e corpórea de tal formação: “repraticar” a prática de outros pintores é bem diferente de tecer um “comentário letrado” sobre essa prática (p. 105). De modo a recuperar o senso prático do artista por trás das obras, Bourdieu busca se “colocar no lugar” de Manet em momentos como “o dia em que ele começou a pintar Le déjeneur sur l’herbe3” (p. 107) ou “Almoço sobre a relva”, quadro herético que funcionou como verdadeira “bomba simbólica” ao ser exposto, depois de sua rejeição pelo Salão da Academia de Belas Artes, no “Salão dos Recusados” em 1863. O exercício bourdieusiano não transcorre, entretanto, mediante algum esforço não controlado de identificação empática, mas justamente a partir de um conhecimento robusto dos contextos de formação e ação de Manet. Tentando reconstruir sua produção artística como um processo de horizonte aberto, como era obviamente o caso para o próprio Manet qua agente histórico, Bourdieu retrata as diferentes etapas da sua pintura como “resoluções de problemas”. Embora guiadas por orientações mais ou menos conscientes, como a de inserir um tema canônico e clássico em um cenário contemporâneo (e.g., “a modelo [...] reproduz a pose clássica”, mas ganha “conotações modernas [...] pela vestimenta e pelo tratamento pictórico” [p. 107-108]), aqueles enfrentamentos de problemas possuíam um aspecto improvisativo, no sentido de que Manet encontrava, pelo caminho, “soluções” que ele não tinha como antever no início da obra.
6. Habitus clivado como privilégio?
Na medida em que o Salão manteve sua resistência ao longo de décadas de investidas crescentes contra a sua legitimidade, Bourdieu também se pergunta sobre as condições psicológicas – portanto, de origem social – de possibilidade da persistência de Manet: “como ele fez para não enlouquecer, como conseguiu resistir sob uma avalanche de violência, insultos, questionamentos radicais” (p. 207). A resposta passa por um tema que atravessa diferentes escritos na carreira de Bourdieu: o “habitus clivado” (Bourdieu, 2001a, p. 79). A depender dos textos, o sociólogo francês pôde se concentrar tanto sobre as dimensões restritivas quanto sobre os efeitos vantajosos de uma socialização dividida entre dois mundos sociais governados por princípios discrepantes (Bourdieu, 2021; Peters, 2017a, p. 287-288). Ao localizar a clivagem no habitus de Manet como uma fonte crucial de seu protagonismo, Bourdieu mostra que uma discussão sobre as “vantagens” e “desvantagens” do habitus clivado não se desenrola em um vácuo social. O habitus clivado só pode verdadeiramente funcionar como um capital – ou, melhor dizendo, como um estoque de múltiplos capitais – em trajetórias socializadoras marcadas, como a de Manet, por uma espécie de clivagem de privilégios. Manet era um “revolucionário dândi”, cuja origem burguesa e experiência escolar foram frequentemente sublinhadas por seus defensores contra sugestões de que ele seria “um bárbaro inculto e analfabeto” (p. 220), i.e., de que pudesse “ter cometido barbarismos inconscientes” (p. 221). A “elegância” contida em sua hexis corporal, mencionada por diversos dos contemporâneos com os quais o pintor interagia, constituía uma fonte importante de seu apoio em setores do “campo do poder” que estariam mais propensos, em princípio, a uma apreciação mais conservadora de sua pintura subversiva, caso tal subversão não fosse contrabalançada pela descoberta surpreendente de que ele era o contrário de um “bruto” (p. 370).
Como Flaubert (Bourdieu, 1996), Manet se valeu da segurança econômica propiciada pelo patrimônio de sua família, com uma longa linhagem de magistrados que desembocava em seu pai juiz, para correr os riscos materiais implicados em suas obras subversivas, tais quais a ausência inicial de interessados em comprá-las. Sua trajetória privilegiada envolveu também a aquisição de um substancial montante de capital cultural, inclusive do sólido conhecimento incutido por seu longo treinamento no interior do próprio sistema acadêmico que ele viria a desafiar. Finalmente, Manet também tinha um alto capital social de conexões pessoais, circulando tanto nos cenários de sociabilidade da classe dirigente de políticos e empresários quanto nos meios boêmios em que ele, sem se tornar boêmio ele próprio, exerceria um papel de liderança.
Em contraste com a convivência conturbada que pintores como Monet e Cézanne tiveram com suas respectivas famílias, o entorno familiar burguês de Manet lhe serviu como uma constante fonte de apoio: “o pai de Manet toma partido contra os professores, o que do ponto de vista de um magistrado burguês não é banal. A mulher de Manet também o apoia – um apoio inquebrantável” (p. 384). Algumas amizades que ele formara no prestigioso Colégio Rollin vão servir a ele, na vida adulta, como suportes em ambientes sociais variados, do Conselho de Estado à Universidade. O salão de sua esposa Suzanne Manet4 (nascida “Leenhoff”) será um espaço de convivência com representantes da grande burguesia financeira, industrial e comercial, pessoas que serão “brechas” na “resistência burguesa a Manet” e estarão entre “os primeiros compradores de seus quadros” (p. 383). E a circulação em espaços burgueses não impedia Manet, afinal, de frequentar também contextos boêmios, como os cafés onde interagia com outros pintores (e.g., os jovens impressionistas) e críticos (e.g., Zacharie Astruc), cenários sociais de cultivo de uma “contra-legitimidade” frente aos juízos acadêmicos. Em suma: “Manet não é confrontado sozinho pelo mundo das belas-artes, mas estava cercado por uma rede social que lhe proporcionou algo insubstituível para um artista maldito, [...] o fato de que ele não era maldito para todo mundo” (p. 393).
7. A revolução simbólica como emergência
Um dos motivos pelos quais Bourdieu, quando passava da fala à escrita, exprimia-se com períodos de extensão proustiana, estimulando quem o lia a manter múltiplas frentes simultâneas de memória e raciocínio, derivava de sua crença no caráter relacional das influências causais no mundo social (Bourdieu, 2001b, p. 9). Em certo momento de suas aulas, Bourdieu recorre à noção de emergência, mais frequente no debate socioteórico anglo-saxão (Peters, 2019) do que na sociologia francesa, para comunicar o fato de que, a despeito da apresentação necessariamente serial das condições causais que desembocaram na revolução manetiana, o que seu relato reconstrói é “a emergência de um sistema [...]; a passagem de um sistema de fatores interconectados a um sistema de fatores interconectados de outra forma” (p. 314).
Por exemplo, assim como inovações técnicas tais quais os tubos de tinta em metal só se tornaram condicionantes da revolução devido aos modos particulares pelos quais foram mobilizadas pelos agentes históricos (e.g., na pintura de pequenos quadros paisagísticos voltados a um mercado privado exterior ao Salão), a explosão morfológica de diplomados e, por extensão, de aspirantes a pintores também só desempenhou seu papel subversivo na medida em que se deparou com estruturas sociais baseadas no fechamento do numerus clausus. As influências causais mútuas também operaram nas relações entre o macro e micro: “as estruturas maiores [...] passam pelas historietas, pelo infinitamente pequeno, por coisas que parecem acasos” (p. 380). Para dar apenas uma ilustração: os críticos e pintores que se tornaram aliados do desafio herético que Manet lançava contra a Academia conviviam com o artista em cafés e cervejarias. Ao falar de seus quadros com amigos e convivas, o próprio pintor participou, assim, do trabalho discursivo de crítica ou “meta-arte” necessário à consagração de suas obras: “parece que Manet orientou muito os críticos, em particular os maiores, Baudelaire, Zola, Mallarmé” (p. 363). Da relação entre a boemia qua estilo de vida e os mercados paralelos de pintura até a contribuição paradoxal que o estado deu à dissolução do seu próprio monopólio, ao instaurar o “Salon des Refusés” [1863] como uma concessão condescendente aos rejeitados pela Academia, muitos outros exemplos do caráter “emergente” e “interconectado” dos fatores explicativos em jogo são, enfim, elencados por Bourdieu.
8. Conclusão: esboço de autoanálise?
Poder-se-ia reconhecer no curso de Bourdieu sobre Manet uma crítica à “estética do acabado” na sociologia, uma ênfase sobre o modus operandi em vez do opus operatum. Embora obviamente já imbuído de substancial conhecimento sobre o assunto, Bourdieu ministrava aulas sobre o tema enquanto o pesquisava, e não se furtava a anunciar à sua audiência que havia mudado de ideia sobre tal ou qual ponto agora que havia progredido no estudo dele. O acento sobre o fato de que Manet havia sido longamente treinado no próprio sistema acadêmico de pintura que ele viria a destronar, por exemplo, já estava presente desde as primeiras aulas de Bourdieu, mas o segundo de seus cursos, sobretudo quando escava o que está pressuposto na prática manetiana da paródia, certamente se demora mais sobre “o paradoxo dos revolucionários simbólicos” (p. 309), produtos inconformistas de um sistema que voltam contra o próprio sistema as armas com ele aprendidas.
Tais meditações bourdieusianas são o principal aporte do posfácio em que Pascale Casanova propõe uma tese ousada: a investigação de Manet como instaurador de uma revolução simbólica teria servido a Bourdieu como uma forma de pintar sociologicamente um retrato de si próprio. A identificação com Manet, continua Casanova, funcionou para Bourdieu como um recurso psicológico que permitiu ao mesmo suportar os custos da revolução simbólica que ele buscava instaurar a partir da sociologia, em um cenário francês fraturado entre, de um lado, um pequeno círculo de seguidores fiéis agrupados em torno do carisma do líder (como acontecera com Manet antes de Bourdieu) e, de outro, um público amplo que o “vaiava” e o “detestava” (p. 591), na linguagem fortíssima usada por Casanova.
Se transposta para o ofício do sociólogo, em compasso com as sugestões de Casanova e a insistência de Bourdieu sobre a reflexividade (Peters, 2017b), a pergunta bourdieusiana sobre Manet (p. 207) incide também, afinal, sobre a saúde mental do cientista social: como fazer sociologia sem enlouquecer? A questão não se põe apenas para revolucionários simbólicos, bem entendido, mas se estende a qualquer pessoa que se arrisca em uma disciplina que lhe dá, como diz Bourdieu em algum momento deste curso, a “consciência de pisotear o sagrado a cada um de [...seus] passos e de provocar sensações [...] parecidas com as que Manet provocava” (p. 117). Eis por que a sociologia, ensina esse livro póstumo, é também um esporte de coragem.
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1
Não se trata de sugerir que a crítica de arte fosse um bloco homogêneo, inteiramente ao lado das iniciativas antiacadêmicas. Na verdade, formado como uma extensão tentacular do campo literário sobre o campo artístico em formação, o espaço da crítica se revelou, desde cedo, internamente diversificado, incluindo críticos que tomavam partido da arte acadêmica e críticos de “tabloide”, por assim dizer, cujo “ressentimento populista” oferecia, a par do conservadorismo do Salão, outra fonte de ataques virulentos e frequentes contra Manet (p. 354).
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2
Bourdieu toma a si mesmo como exemplo, sustentando que “não há frase que pronuncie que não possa ser atribuída a Durkheim, a Marx, a Weber e a alguns outros ou a uma mistura dos três” (p. 87), obviamente não no sentido de que ele estivesse sempre citando-os sem atribuição de fonte, mas justamente de que as obras daqueles autores foram incorporadas às disposições intelectuais mais fundamentais pelas quais Bourdieu desempenhava seu ofício.
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Em um bloco especial entre as páginas 215 e 216, o livro traz uma reprodução deste e dos demais quadros que Bourdieu analisa no curso, facultando ao leitor o exercício de olhar as pinturas sob orientação dos comentários bourdieusianos (p. 413-427). Por motivo que me escapa, os títulos das obras de Manet nunca são, nesta edição brasileira, traduzidos do francês.
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4
Infelizmente, Bourdieu nunca a chama pelo nome, alternando entre chamá-la “a mulher de Manet” e “a Sra. Manet”.
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Fonte de financiamento:
A pesquisa se beneficiou de uma bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq.
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Aprovação do Comitê de Ética:
Nada a declarar.
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Disponibilidade de Dados:
Nenhum dado de pesquisa foi utilizado.
Referências
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- BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
- BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2001a.
- BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 2001b.
- BOURDIEU, Pierre. O senso prático Petrópolis: Vozes, 2009.
- BOURDIEU, Pierre. O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais. São Paulo: Editora Perspectiva, 2021.
- BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis: Vozes, 2014.
- BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. O ofício de sociólogo: metodologia da pesquisa na ciência social. Petrópolis: Vozes, 2022.
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PETERS, Gabriel. De volta à Argélia: a encruzilhada etnossociológica de Bourdieu. Tempo Social, v. 29, n. 1, p. 275-303, 2017a. DOI: http://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2017.104448.
» https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2017.104448 - PETERS, Gabriel. A ciência como sublimação: o desafio da objetividade na sociologia reflexiva de Pierre Bourdieu. Sociologias, n. 45, p. 336-369, 2017b.
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PETERS, Gabriel. Domínios de existência: realismo crítico e ontologia estratificada do mundo social. Teoria e Cultura, v. 14, n. 2, p. 82-106, 2019. DOI: http://doi.org/10.34019/2318-101X.2019.v14.27895.
» https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.34019/2318-101X.2019.v14.27895
Editado por
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Editor:
Enio Passiani (UFRGS, Brasil).
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
07 Ago 2024 -
Aceito
24 Abr 2025
