Resumo
Neste artigo, problematizamos em que medida a coincidência de visões, entre juízes, promotores e defensores, sobre o que fazer com a pessoa presa em flagrante é decorrente da maneira como funciona a “família judicial”. Por família judicial entendemos os laços de amizade formados pelos operadores do direito, inicialmente, em razão da homogeneidade de suas origens sociais, que se fortalece pelas interações pessoais e de trabalho, nas quais as trocas ocorrem por um longo período de tempo, criando visões de mundo semelhantes. Para testar essa hipótese, usamos os dados coletados em 651 audiências de custódia, realizadas em Belo Horizonte entre setembro de 2015 e março de 2016, com informações sobre o crime e o suspeito, e características dos operadores (juízes, promotores e defensores públicos e privados). Os resultados indicam que a família judicial mineira é formada por promotores e juízes, os quais concordam sobre os perfis dos suspeitos e dos delitos que devem ter como resposta a prisão preventiva. A família judicial também incorpora a defensoria pública, mas somente quando se tornam fixos na custódia. Nesta situação, os defensores públicos têm maiores chances de impedir que a decisão do juiz reflita o pedido do promotor, mostrando como a interação contínua cria a possibilidade de reciprocidade entre os operadores.
Palavras-chave justiça criminal; audiência de custódia; família judicial; sociologia jurídica
Abstract
In this article, we discuss to what extent the coincidence of views, between judges, prosecutors and solicitors, on what to do with the person arrested in the act is a result of the way the ‘judicial family’ works. By judicial family we understand the bonds of friendship formed by legal practitioners, initially, due to the homogeneity of their social origins, which is strengthened by personal and work interactions, in which exchanges occur over a long period of time, creating similar worldviews. To test this hypothesis, we used data collected in 651 initial hearings, held in Belo Horizonte between September 2015 and March 2016, with information about the defendant and the crime, and characteristics of the law practitioners (judges, prosecutors and public and private solicitors). Findings indicate that the Minas Gerais judicial family is made up of prosecutors and judges, who agree on the profiles of defendants and crimes that should be subject to preventive detention. The judicial family also incorporates the public defender’s office, but only when solicitors are permanently assigned to custody hearings. In this situation, public defenders have a greater chance of preventing the judge's decision from reflecting the prosecutor's request, showing how continuous interaction creates the possibility of reciprocity between operators.
Keywords criminal justice; initial hearing; custody hearing; judicial family; legal sociology
Resumen
En este artículo discutimos en qué medida la coincidencia de opiniones, entre jueces, fiscales y defensores, sobre qué hacer con la persona detenida en el acto es resultado del funcionamiento de la “familia judicial”. Por familia judicial entendemos los vínculos de amistad que forman los profesionales del derecho, inicialmente, debido a la homogeneidad de su origen social, que se fortalece con interacciones personales y laborales, en las que los intercambios se dan durante un largo período de tiempo, creando visiones de mundo similares. Para probar esta hipótesis, utilizamos datos recopilados en 651 audiencias iniciales, realizadas en Belo Horizonte entre septiembre de 2015 y marzo de 2016, con informaciones sobre el delito y el imputado, y características de los operadores (jueces, fiscales y defensores públicos y privados). Los resultados indican que la familia judicial de Minas Gerais está compuesta por fiscales y jueces, que coinciden sobre los perfiles de los imputados y los delitos que deben ser sujetos a prisión preventiva. A la familia judicial también se incorpora la defensoría pública, pero sólo cuando los defensores quedan asignados regularmente a las audiencias iniciales. En esta situación, los defensores públicos tienen mayores posibilidades de evitar que la decisión del juez refleje la solicitud del Ministerio Público, lo que muestra cómo la interacción continua crea la posibilidad de reciprocidad entre los operadores.
Palabras clave justicia penal; audiencia inicia; familia judicial; sociología jurídica
1. Introdução
Em um texto publicado em 2018, Pozas-Loyo e Ríos-Figueroa procuraram compreender como as mudanças nos critérios de seleção de juízes no México contribuem para o enfraquecimento do clientelismo e aumento do profissionalismo naquele país. A proposta da reforma implementada anos antes em terras mexicanas era reduzir o clientelismo e aumentar a meritocracia, garantindo que as pessoas ingressassem e avançassem dentro do judiciário não por causa de suas conexões familiares ou políticas, mas principalmente devido às suas capacidades cognitivas, habilidades sociais, qualidades morais e desempenho no trabalho. De certa maneira, essa história é bastante similar ao que foi consagrado pela Constituição Federal de 1988 no Brasil, para as três carreiras que promovem o acesso à justiça: Defensoria Pública, Ministério Público e Judiciário.
Como argumentado por Bonelli (2013), esse foi um marco importante para a profissionalização das três carreiras, quando se padronizou o ingresso por concurso, para garantir a entrada de profissionais qualificados e comprometidos com os princípios éticos da profissão. Uma vez aprovados, os neófitos são submetidos a treinamentos iniciais, o que inclui não apenas aspectos técnicos, mas também a ênfase em valores como imparcialidade e integridade, fundamentais para a construção de uma carreira jurídica sólida. Por fim, viria o trabalho propriamente dito que, em regra, nas três carreiras, começa em cidades do interior e, depois, a partir do tempo de serviço e do interesse em especialização por parte do profissional, reverbera em transferências para os principais centros urbanos (Lemgruber et al., 2016, Ramos; Castro, 2019; Silva; Flauzina, 2021). O problema é que essas três dimensões são aplicadas a sujeitos muito semelhantes em termos de capital cultural e econômico, o que resultaria em habitus homogêneo (na perspectiva de Bourdieu, 2001).1
Como os requisitos para ingresso nas três carreiras (Defensoria Pública, Ministério Público e Judiciário) tendem a ser hoje de três anos de exercício da profissão, juntamente com a aprovação em um processo seletivo longo e muito rigoroso, essas funções públicas são acessíveis somente à elite brasileira, que pode se dedicar integralmente ao preparo para aprovação nesses exames. Se, inicialmente, esse processo era visível apenas no âmbito do Judiciário (Ramos; Castro, 2019), o mimetismo institucional operado, primeiro pelo Ministério Público (Lemgruber et al., 2016) e, com a Emenda Constitucional nº 80/2014, também implementada pela Defensoria Pública (Silva; Flauzina, 2021), fez com que os operadores do direito desses três poderes se tornassem cada vez mais homogêneos, ainda com uma enorme participação de homens, brancos, com pais com curso superior.2 A vocação foi substituída pelas “vantagens do serviço público”, combinadas com privilégios que apenas as três carreiras garantem a começar pela elevadíssima remuneração. Para Silva e Flauzina (2021), essas mudanças, além de arrebatarem a Defensoria Pública, fizeram com que ela deixasse de olhar para o seu assistido, posicionando-se mais ao lado do Ministério Público e do Judiciário em termos de pedidos e demandas.
Para Ribeiro et al. (2022), o problema não é apenas o concurso, que homogeneíza os profissionais na entrada. A ele soma-se a remuneração e a estabilidade, que fazem com que esses sujeitos sejam fechados em termos de círculos de sociabilidade, sedimentando as visões prévias de mundo em detrimento de garantir sua própria suposta imparcialidade. A combinação desses critérios antes e após o ingresso em um cargo público repleto de privilégios se reflete na ausência de disputas cognitivas entre juízes, promotores e defensores públicos sobre como os casos devem ser decididos. Por isso, o resultado final das reformas judiciais implementadas para a garantia do profissionalismo das carreiras jurídicas seria a reprodução de “perspectivas aristocráticas e de certas ideologias ou visões de mundo formatadas pelas circunstâncias de privilégio dos indivíduos que o compõem” (Ramos; Castro, 2019, p. 26).
Longe de garantir a imparcialidade que a meritocracia almeja, o que os critérios de seleção e funcionamento das carreiras jurídicas mencionadas viabiliza é uma combinação do que Pozas-Loyo e Ríos-Figueroa (2018) denominam, por um lado, de clientelismo,3 juntamente com a patronagem.4 A pesquisa de Izabel Nuñez (2018), de certa maneira, demonstra como a combinação entre clientelismo e patronagem compromete a suposta imparcialidade da administração da justiça criminal. Investigando os acontecimentos que ocorriam imediatamente antes da sessão do Tribunal do Júri, a autora revela que juízes, promotores e defensores públicos discutiam o caso, negociavam quem argumentaria o quê e, dessa maneira, garantiam o resultado “justo”: absolvição ou condenação. Nas suas palavras, “a maneira como se produzem os ‘acordos’ reforça quem pertence e quem não pertence à família judicial” (Nuñez, 2018, p. 35).
Neste artigo, procuramos nos aprofundar nesta argumentação por meio do uso do conceito de “família judicial”, que supõe a existência de fortes laços de amizade formados entre operadores do direito, inicialmente em razão da homogeneidade de suas origens sociais, e fortalecidos pelas interações pessoais. No âmbito do trabalho, suas trocas ocorrem por um longo período de tempo, criando visões de mundo semelhantes, que reverberam em padrões de atuação homogêneos. O maior efeito da família judicial é extinguir as disputas dentro das arenas responsáveis pela administração da justiça criminal, posto que o habitus dos operadores é essencialmente o mesmo.
Para testar esse argumento, utilizamos os dados coletados em 651 Audiências de Custódia, realizadas em Belo Horizonte entre setembro de 2015 e março de 2016, com informações sobre o crime e o suspeito, e sobre as características dos operadores (juízes, promotores e defensores públicos e privados). Trabalhos anteriores com a mesma fonte de informação apontaram para a influência de variáveis como sexo e cor da pele como determinantes das decisões ocorridas na custódia (Lages; Ribeiro, 2019a, 2021), bem como constataram o reforço da inquisitorialidade judicial, mesmo no contexto de reformas dos sistemas penais (Lages; Ribeiro, 2019b; Lages, 2020) e começaram a problematizar a igualdade de pedidos de promotores e decisões dos juízes (Ribeiro et al., 2022). Neste artigo, nos aprofundamos no tema da família judicial, procurando entender quem é parte dela e quem está do lado de fora e, para tanto, incorporamos as variáveis específicas dos atores judiciais, como o sexo e o tempo de trabalho, para além de sua posição no ritual da audiência de custódia.
2. Metodologia
Os dados analisados neste trabalho foram produzidos quando a Audiência de Custódia começava a se estruturar na cidade de Belo Horizonte. Para entender as dinâmicas dessas audiências e identificar os determinantes de seu desfecho, as pesquisadoras do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), acompanharam 14% de todas as prisões em flagrante apresentadas a essa instância, o que resultou numa base de dados com informações referentes a 825 audiências de custódia realizadas entre setembro de 2015 e março de 2016.
Para garantir que toda a diversidade (de prisões e de decisões) fosse coberta, as equipes se revezaram em dias e horários alternados, inclusive nos finais de semana e em feriados. A padronização demandada pela análise quantitativa foi garantida por meio do uso de dois formulários. Um, preenchido durante a audiência, reuniu informações sobre a postura do magistrado e os pedidos realizados pelas partes, personificadas por promotores e defensores (públicos ou privados). O outro, preenchido a partir da documentação que reúne o Auto de Prisão em Flagrante Delito (APFD), o Registro de Ocorrência Policial (RO), a Certidão de Antecedentes Criminais (CAC) e a ata da audiência com a decisão do juiz, produziu dados sobre o perfil do réu e as características do crime.
Especificamente para este artigo, a proposta foi a de incorporar informações sobre quem eram os agentes públicos que atuavam nas Audiências de Custódia (promotores, defensores e juízes) durante a pesquisa. Para tanto, foram consultados os portais de transparência das três instituições para coleta de duas informações: sexo e data de ingresso na carreira. Para a determinação da posição desses operadores no cenário observado (se fixos ou esporádicos) foram utilizados os carimbos nas atas, que informam qual era o lugar do sujeito naquela instância. Tal análise não foi possível no caso dos advogados privados, dada a inexistência de bancos de dados públicos sobre esses casos. Assim, para a análise, foram consideradas apenas as Audiências de Custódia que contaram com a atuação de defensores públicos. Com isso, as análises subsequentes se baseiam em 651 casos, que foram assistidos por defensores públicos, para os quais foi possível obter informações como o sexo, tempo de exercício na profissão e se se tratava de operador fixo no espaço da Audiência de Custódia.
Para entendimento de como a família judicial opera nas decisões tomadas nas audiências de custódia, foram utilizadas duas variáveis dependentes: (i) o pedido de prisão preventiva pelo promotor de justiça; e (ii) a decisão de prisão preventiva dada pelo juiz. A Defensoria Pública sempre solicitou a liberdade provisória, com ou sem medida cautelar, tendo o seu pedido acatado pelo juiz somente quando avalizado pela promotoria. Por isso, seu pedido não entrou como uma das variáveis dependentes.
Os determinantes das decisões judiciais foram elencados a partir da literatura sobre funcionamento do sistema de justiça criminal. Na direção apontada por Nuñez (2018), buscou-se apurar se os juízes, promotores e defensores eram “atores fixos” na Audiência de Custódia. No processo de institucionalização dessa instância, a Defensoria Pública, a Promotoria e a Magistratura passaram a designar operadores que ficariam responsáveis por atuar nesses espaços de segunda a sexta-feira, sendo os responsáveis por atuar na Audiência de Custódia em seus turnos de trabalho. Nos finais de semana e feriados, atuavam nessas audiências operadores plantonistas, que não necessariamente se conheciam.
Partimos do pressuposto de que ser um ator fixo forja a colaboração e, até mesmo, uma certa amizade, posto que, entre uma audiência e outra, seriam frequentes os cafés, as conversas e as trocas de informações sobre os casos subsequentes. Isso aumentaria as chances de promotores e juízes pedirem a prisão preventiva para suspeitos e crimes específicos. Contudo, nessa instância não atuam somente aqueles que foram designados para esse espaço. Colaboram ainda os plantonistas, que geralmente realizam essas audiências aos finais de semana, ou nas férias de um dos “fixos”.5 Por isso, é mais provável que haja menor oposição tanto ao pedido do promotor quanto à decisão do juiz por parte da defensoria pública quanto estão presentes apenas os atores fixos. Para testar essa hipótese, foram criadas três variáveis binárias, sendo que os operadores fixos (defensores públicos, juízes e promotores) receberam valor um e os que não eram fixos receberam valor zero.
A variável utilizada para entender a formação desse habitus profissional comum por parte dos três operadores foi o tempo de trabalho no cargo (calculado em anos entre a data da posse na função e data da audiência de custódia). A hipótese é a de que, após anos compartilhando o mesmo espaço do campo jurídico, promotores, juízes e defensores públicos alinhariam suas formas de ver o mundo, podendo, por exemplo, ver o tráfico de drogas como um delito “grave” e que, por isso, independentemente de qualquer outro fator, deve ser objeto de detenção provisória – mesmo para os defensores públicos. O tribunal se torna uma instituição habitada (Ulmer, 2019), porque as visões particulares começam a pesar nas rotinas cotidianas: o juiz passa a decidir de acordo com o que o promotor pediu, não apenas porque este é um ator fixo, mas porque concorda com a maneira como ele percebe o caso. O defensor público não se indigna, nem dentro e nem fora da audiência, porque compartilha a mesma visão de mundo.
Elementos relativos a quem são os suspeitos e os delitos ajudam a formar a visão compartilhada sobre quem precisa ser incapacitado, de acordo com “quem” e “do que” está sendo acusado. Indicam, então, como pensa a família judicial e de que maneira essa se movimenta. Para testar a influência dessas dimensões, foram inseridas variáveis relacionadas às características do ofensor, quais sejam: sexo (homem = 1, não homem = 0), raça (negro = 1 e não negro= 0), idade (variável contínua entre 18 e 73 anos); escolaridade (tem fundamental completo = 1 e tem ensino médio incompleto ou mais = 0), antecedentes criminais (ter antecedentes criminais = 1 e não ter = 0). Para mensurar de alguma maneira a gravidade do delito, foram utilizadas as variáveis relativas ao uso de arma de fogo para a prática do delito (porte da arma = 1 e sem arma = 0), bem como a natureza criminal que, nesse caso, identificou dois dos delitos que causam maior comoção, quais sejam: tráfico de drogas (preso por tráfico = 1 e por outros crimes = 0) e roubo (preso por roubo = 1 e por outros crimes = 0).
Para entender se a família judicial está presente na Audiência de Custódia, foram estimados modelos de regressão logística binomial, os quais consistem numa operação matemática que nos informa o quanto a alteração de uma variável independente implica uma alteração na variável dependente. Informa, assim, se existe alguma associação entre as variáveis, bem como a direção e a força dessa associação. Para cada variável dependente, foram estimados três modelos de regressão logística binomial: um que procura ver os efeitos dos operadores fixos, outro que diz sobre as características do crime e do suspeito, e o final que leva em consideração os dois grupos de variáveis. Com isso, procuramos compreender em que medida a família judicial se alimenta das visões de mundo semelhantes e/ou da presença de atores fixos, que compartilham determinadas características de sexo e tempo de trabalho.
2.1 Perfis semelhantes para decisões iguais?
Nas audiências de custódia acompanhadas, o Ministério Público solicitou a manutenção do encarceramento em 57% dos casos. Os juízes, por sua vez, decretaram a prisão preventiva em 53% das audiências. Se, em geral, a homologia entre o pedido do promotor e a decisão do juiz ocorre em 84% das situações, nos casos de prisão preventiva essa igualdade chega a 98% dos casos. Há, portanto, uma enorme coincidência sobre situações que devem ser objeto de detenção cautelar na opinião de juízes e promotores. Prado e Rosário (2020) constataram algo semelhante nas Audiências de Custódia em Salvador, nomeando essa supervalorização da manifestação do Ministério Público de “in dubio pro promotor”.
Para compreender esse alinhamento, investigamos, inicialmente, qual era a composição das Audiências de Custódia em termos de seus atores, o que remete à representação desses em termos de sexo, tempo de experiência no exercício da função e tipo de atuação, isto é, se aquele operador atua cotidianamente (fixo) ou esporadicamente (não fixo) naquele espaço. De acordo com a Tabela 1, observamos que as decisões das Audiências de Custódia foram proferidas, em sua maioria, por operadores “fixos”, que cotidianamente atuavam nesta instância decisória, diversamente dos plantonistas, que participavam somente nos finais de semana, feriados e nas férias de algum membro. Dos casos analisados, 72% foram julgados por um juiz fixo, 68% contaram com um promotor fixo e, em 64% dos casos, os defensores públicos eram fixos.
A maioria das decisões foi proferida por juízas do sexo feminino (80%), o que de certa forma foi algo contraintuitivo, já que a maioria dos magistrados é do sexo masculino (Ramos; Castro, 2019). Este resultado pode ser explicado pelo fato de que as juízas fixas eram do sexo feminino, o que contribuiu para essa preponderância. Dos 15 juízes que atuaram na Audiência de Custódia, duas foram fixas e responsáveis por 73% das decisões proferidas. Em consonância com os levamentos sobre a composição do Ministério Público (Lemgruber et al., 2016), a grande maioria das Audiências de Custódia acompanhadas contou com a atuação de promotores do sexo masculino (88% dos casos). Entre os promotores, foram 16 os que atuaram nesse espaço, mas somente um era fixo, sendo responsável por 68% das audiências acompanhadas. De forma semelhante, 64% dos casos foram atendidos por defensores públicos homens, o que se explica pela prevalência de atores fixos deste sexo, ao contrário do que acontece com o perfil de sexo na instituição como um todo (Silva; Flauzina, 2021).
Quanto ao tempo de atuação dos operadores do direito, observamos enorme variabilidade. Enquanto os magistrados atuavam há, em média, 8,75 anos, os promotores exerciam a função, em média, há 17,76 anos e os defensores públicos tinham, em média, 9,80 anos. Ou seja, os juízes são os menos experientes nos cargos, seguidos pelos defensores públicos e, por fim, pelos promotores de justiça, que estão nessa função há quase duas décadas.
As estatísticas descritivas referentes ao perfil das pessoas presas e dos crimes supostamente cometidos, por sua vez, confirmam as outras pesquisas realizadas sobre o tema (Azevedo; Sinhoretto, 2018). São, majoritariamente, do sexo masculino (89%), podem ser consideradas adultos jovens (média de 27 anos), de cor da pele negra (77%), com baixa escolaridade (54% possuem ensino fundamental incompleto) e sem antecedentes criminais (29% da amostra apresentam algum registro policial ou judicial em sua ficha). Quanto aos crimes que suscitaram a prisão em flagrante, em 27% dos casos houve o uso de arma de fogo, 36% foram presos por roubo e, ainda, 17% por tráfico de drogas. Ou seja, roubo e tráfico de drogas perfazem 53% dos delitos que compõem as Audiências de Custódia assistidas pela Defensoria Pública, que são as aqui analisadas.
Este último achado, em especial, poderia suscitar questionamentos acerca do crime de homicídio, um delito que coloca o Brasil no topo do ranking mundial entre os países que mais matam no mundo. Ocorre que as audiências de custódia se referem a delitos decorrentes de prisões em flagrante e os diversos estudos já produzidos no contexto nacional apontam que a maior parte dos esclarecimentos de homicídios no país inicia-se por meio de portarias, instauradas nos inquéritos policiais (Azevedo; Sinhoretto, 2018). Não são frutos, portanto, de abordagens policiais que culminaram em prisões em flagrante. O percentual de homicídios derivados de prisões em flagrante na base de dados não alcançou 1% dos casos.
Dos dados apresentados até aqui, dois panoramas são interessantes. De um lado, está a família judicial, composta atualmente por mulheres6 (magistradas e defensoras) que atuam, majoritariamente, de maneira fixa nas Audiências de Custódia e possuem larga trajetória enquanto operadoras do direito, o que lhes concede não apenas expertise sobre como manejar as audiências, mas também que argumentos mobilizar para garantir o resultado pretendido. Do outro lado, os suspeitos são muito distintos dos operadores: em sua maioria, homens, negros, com idade muitas vezes inferior ao tempo de carreira de alguns dos atores que irão julgar seus casos. Contam com baixíssima escolaridade, a qual não chega a 1/4 da quantidade de anos de estudo dos operadores. Por fim, são pessoas que foram presas, especialmente, pelos delitos que causam “clamor público”, como o tráfico de drogas e o roubo. Para Silva e Flauzina (2021), não há dúvidas acerca da desigualdade de forças que esses dois perfis significam. Com profissionais tão distantes daquele que se coloca diante deles, a ausência de empatia se torna a regra, o que é potencializado pela transformação do in dubio pro reo em in dubio pro promotor (Prado; Almeida, 2020).
Na próxima seção, procuramos compreender quais são os elementos que determinam o pedido de prisão preventiva por parte do promotor. Se o magistrado concede aquilo que o promotor demanda, interessa saber em que medida certas características da família judicial fazem com que esse ator seja menos suscetível a apresentar o pedido de encarceramento como medida cautelar.
2.2 O pedido de prisão preventiva
Os resultados do modelo 1 (Coluna 1, Tabela 2) indicam que apenas o tempo de carreira do juiz apresentou significância estatística. Para cada ano de trabalho do magistrado, a chance de o promotor solicitar a prisão preventiva é diminuída em 6%. O sexo dos operadores, sua atuação fixa nas audiências de custódia, o tempo de carreira do promotor ou do defensor público não são variáveis diretamente correlacionadas ao pedido de prisão, ainda que possam atuar como importantes controles desse raciocínio.
Resultados dos modelos de regressão logística binomial que estimam as chances de o promotor pedir a prisão preventiva
No modelo 2 (Coluna 2, Tabela 2), verificamos que tanto a natureza do delito como o perfil do suspeito influenciam nas chances de o promotor requerer a prisão preventiva. Homens, jovens, negros, com antecedentes criminais possuem maiores chances de contar com a manifestação da promotoria favorável ao encarceramento. O delito também importa, sendo que roubo e tráfico de drogas, especialmente quando cometidos com arma de fogo, tendem a acionar posicionamentos mais punitivistas por parte dos promotores, que clamam pela prisão preventiva nessas situações. Nesse momento, somente o grau de escolaridade do suspeito não apresentou significância estatística, indicando que essa é a única dimensão não mobilizada pelo promotor quando da formulação de seu raciocínio sobre que medida cautelar solicitar na Audiência de Custódia.
No modelo 3 (Coluna 3, Tabela 2), tanto as variáveis relacionadas à família judicial como as que dizem respeito às características do suspeito e do delito foram inseridas, sendo que os resultados encontrados nos modelos anteriores se mantiveram. Com isso, é possível afirmar que tanto a família judicial como as nuances legais e extralegais do caso contribuem para o entendimento de qual é o posicionamento do promotor nas Audiências de Custódia. Se as características do custodiado se enquadram dentro do perfil do bandido (Misse, 2010), há mais chances de solicitação da prisão preventiva. O mesmo ocorre com os delitos que são percebidos pela opinião pública como vetores da violência, como é o caso do roubo, tráfico de drogas ou qualquer outro crime que conte com uso de arma de fogo (Machado; Porto, 2015). Interessante notar que a única dimensão que parece frear a sede de encarceramento do promotor é o tempo de exercício da profissão do magistrado, sendo esse o elemento que diminui as chances de pedido de prisão preventiva.
Uma vez examinados os determinantes dos pedidos de prisão preventiva por parte do promotor de justiça, passamos à análise dos elementos que influenciam a decisão do juiz, para identificar quais são os elementos que influenciam o desfecho do encarceramento cautelar. Também procuramos vislumbrar se as variáveis que apresentaram significância estatística nos modelos anteriores são as mesmas nos subsequentes, o que apontaria para o compartilhamento de visões de mundo entre juízes e promotores.
2.3 Há disputa entre promotoria e defensoria pública para a decisão do juiz?
No modelo 1 (Coluna 1, Tabela 3) foram consideradas as variáveis elencadas como dimensões salientes da maneira como opera a família judicial. Nesse caso, o tempo de atuação do magistrado conta a favor de medidas de desencarceramento, diminuindo em quase 6% a chance de decretação da prisão preventiva para cada ano de profissão. Contudo, nesse caso, quem é o defensor também importa, haja vista que, quando esse operador é fixo, as chances de decretação da prisão preventiva são reduzidas em 46%.
Resultados dos modelos de regressão logística binomial que estimam as chances de o juiz decretar a prisão preventiva
No modelo 2 (Coluna 2, Tabela 3), foram consideradas as características dos supostos ofensores e das ofensas que eles teriam praticado. Novamente, somente a variável anos de escolaridade não apresentou significância estatística, confirmando que essa dimensão não é levada em consideração nos processos de tomada de decisão que têm lugar na Audiência de Custódia. Por outro lado, o enquadramento do sujeito apresentado diante do juiz como homem, negro, jovem e com antecedentes criminais aumenta substantivamente a chance de recebimento da prisão preventiva, assim como se o delito por ele cometido for de roubo, tráfico de drogas e/ou com uso de arma de fogo.
No modelo 3 (Coluna 3, Tabela 3), que considera tanto os elementos que enquadram a família judicial, como as variáveis legais e extralegais tradicionalmente mobilizadas para entendimento das decisões de prisão preventiva, os resultados anteriores se mantiveram em termos de significância estatística, mas o valor dos coeficientes foi levemente alterado. Se o defensor público é um ator fixo passou a ter maior importância, quando se considera quem é o suspeito e qual foi o crime que suscitou sua prisão em flagrante, haja vista que a sua presença reduz em 57% as chances de decretação do encarceramento como medida cautelar. Da mesma forma, para cada ano de atividade do juiz, as chances de prisão preventiva diminuem em 6%, o que significa que os magistrados mais experientes tendem a ver a detenção provisória com mais ressalva do que os mais jovens de profissão. Já as variáveis de perfil do suspeito, bem como o delito por ele cometido, continuaram a aumentar as chances de prisão preventiva.
Por fim, cumpre destacar o que os modelos de regressão logística binomial dizem sobre a homologia entre juízes e promotores. Os resultados dispostos nos Modelos 2 das Tabelas 2 e 3 não poderiam ser mais similares, indicando que magistrados e membros do MP usam das mesmas informações para construírem sua opinião sobre o que deve ser feito em cada caso. O in dubio pro promotor (Prado; Rosário, 2020) não diz respeito à amizade entre esses operadores. Fala muito mais sobre a origem desses operadores e o compartilhamento de visões de mundo que compõem o habitus (Bourdieu, 2001) que irá orientar o processo decisório nas Audiências de Custódia. Assim, é porque ambos veem homens, negros, jovens, com antecedentes criminais, suspeitos de tráfico, roubo ou outro delito com arma de fogo de forma similar, que prevalece tamanha igualdade entre a solicitação da prisão preventiva e a decisão nesse sentido.
3. Discussão sobre os resultados
Nossa proposta neste texto foi a de entender em que medida a família judicial, entendida como uma combinação entre elementos de clientelismo e patronagem, em áreas que foram estruturadas para operarem segundo requisitos de meritocracia e profissionalismo (Pozas-Loyo; Ríos-Figueroa, 2018) ajudam a compreender a decisão de prisão preventiva nas Audiências de Custódia realizadas em Belo Horizonte entre setembro de 2015 e março de 2016. Para tanto, usamos como elementos para entender a maior aproximação entre os profissionais o tempo de exercício da profissão e o fato de ser operador fixo nas Audiências de Custódia.
Considerando esse espaço como instituições habitadas (Ulmer, 2019), presumimos que a proximidade tende a ser tanto maior entre juízes, promotores e defensores quanto maior o tempo de exercício da profissão. Partimos do pressuposto de que o fato de os três operadores atuarem de maneira fixa fortaleceria os laços sociais, permitindo uma maior coincidência entre as visões de mundo, o que reverberaria num habitus altamente padronizado sem maiores atritos ao longo do processo decisório. No entanto, as hipóteses se confirmaram apenas parcialmente.
Por um lado, constatamos que efetivamente há enorme alinhamento entre o pedido do promotor e a decisão do juiz, seja no sentido da prisão preventiva ou no caso da liberdade, com ou sem medida cautelar. Contudo o tempo de exercício da magistratura, por parte do juiz, apareceu nos dois modelos como variável que atua como dissuasão tanto do pedido do promotor de justiça como da decisão judicial de prisão provisória. Tal resultado parece refletir não somente a bagagem decisória dos atores em função do tipo e do período de socialização na profissão, como também sua disposição para acolher opiniões de outros operadores com mais ou menos experiência prática no ofício. Além disso, as especificidades e mudanças ocorridas nas carreiras de magistrados podem ser a chave explicativa para esse resultado.
A partir da reforma do judiciário, iniciada em 1994, os tribunais estaduais de todo o país introduziram os chamados sistemas de metas, muitas das quais estipuladas pelo Conselho Nacional de Justiça, e procuram, de alguma forma, controlar a produtividade dos magistrados. Conforme apontado por Gomes et al. (2017), juízes mais experientes, no sentido de tempo de exercício na função, são também os mais avançados na carreira e, por conseguinte, os que dependem mais de fatores políticos do que técnicos para progredirem. O contrário ocorre com os juízes com menos tempo de carreira, para os quais a produção quantitativa é um dos principais critérios para promoção. Logo, quanto mais decisões consideradas “adequadas” os juízes jovens tomam, mais chances eles teriam de avançar nas carreiras, ao contrário dos magistrados mais velhos que, normalmente, encontram-se no ápice de suas carreiras.
Essa seria uma das razões que, segundo Semer (2015), contribuiria para que juízes mais jovens se apresentem como mais punitivistas. Embora se espere que eles sejam mais maleáveis, em função de terem sido mais expostos às experiências doutrinárias recentes, e que relativizariam o normativismo, esses profissionais continuam convivendo com a “falta de democracia interna do judiciário”. Assim, embora os juízes mais novos possuam um tempo de carreira similar ao tempo de vida da constituição cidadã de 1988, as bases profissionais e socializantes são fornecidas pelos pares mais conservadores, os quais “encarnam ao mesmo tempo a jurisprudência dos tribunais e a sua gerência política, criando um horizonte nada propício para as transformações” (Semer, 2015, p. 245). Com isso, continua a viger o punitivismo que leva para a prisão os “elementos suspeitos de cor padrão” (Ramos; Musumeci, 2005), que foram presos em razão dos delitos por eles praticados serem os de mais fácil identificação e aprisionamento (Lages; Ribeiro, 2019b). Resta, portanto, ao defensor fixo na Audiência de Custódia frear o in dubio pro promotor (Prado; Rosário, 2020), que parece encontrar ampla acolhida entre os magistrados, especialmente os mais jovens.
Ou seja, enquanto a presença de juízes mais jovens atua como fomentador da atuação da família judicial nas audiências de custódia, a existência de defensores (quer públicos ou privados) se apresenta como um real incômodo ao trabalho sociocolaborativo de juízes e promotores, aparentando ser um elemento de peso numa balança que insiste em atuar inquisitorialmente.
Relativamente aos defensores, Rengifo e Marmolejo (2020), pesquisando a atuação das defesas em audiências criminais preliminares (correspondentes às audiências de custódia) nas cidades de Cali e Bogotá (Colômbia), descobriram que, embora a cooperação nas audiências preliminares esteja voltada aos juízes e promotores, a rotina dessas audiências faz com que os defensores sejam capazes de interferir nas decisões judiciais. Uma maior visibilidade dos defensores públicos e a formulação de pedidos mais amplos são dois critérios/fatores levados em conta para que seus pedidos sejam aprovados por juízes e coincidam, pelo mesmo em parte, com a decisão final do magistrado de não decretar a prisão preventiva em tais audiências. Solicitações da defesa que não sejam tão específicas (pedidos por prisões domiciliares e medidas de restrição de liberdade), associadas a intervenções que não gerem “polêmicas gratuitas”, permitem uma maior flexibilidade do juiz, fazendo com que o magistrado tenda para o lado da defensoria pública. Por outro lado, um comportamento mais combativo e beligerante, comum principalmente a advogados privados, conduz a uma menor eficácia quanto a uma decisão judicial mais favorável ao réu, posto que juízes entendem tal comportamento como uma tentativa de obstrução judicial. Rengifo e Marmolejo (2020) apuraram ainda que somente para crimes mais gravosos os critérios de especificidade e visibilidade não apresentaram significância estatística.
De certa maneira, os resultados encontrados neste trabalho confirmam aqueles obtidos pelos pesquisadores colombianos, afastando-se das análises realizadas no Brasil, que tendem a ressaltar o alinhamento da defensoria pública com a promotoria e a magistratura, o que reverbera em pouca empatia com o assistido (Silva; Flauzina, 2021). Os resultados dos modelos de regressão logística binomial reforçam que os defensores públicos que compartilham cotidianamente do espaço com os juízes e promotores tendem a ser mais considerados pelos pares e, com isso, seu pedido encontra ressonância no posicionamento dos juízes. Além de o defensor público apresentar visões de mundo próximas à dos demais operadores, é possível que magistrados também cedam um pouco de seus posicionamentos, com vistas a manter a harmonia do ambiente de trabalho.
Portanto, entendemos que a família judicial se estrutura e operacionaliza seus arranjos num amálgama formado por juízes, promotores e defensores públicos, que atuam de maneira coordenada nos espaços judiciais. No entanto, há variações na maneira como a família judicial opera. Os juízes com maior tempo de experiência, que representam uma espécie de patriarca neste arranjo, tendem a rechaçar mais a prisão provisória, talvez porque o tempo de carreira já tenha mostrado que essa medida não resolve o problema. Os defensores públicos, por sua vez, compartilham do cenário, mas ainda sem muito reconhecimento pelos pares, talvez porque sua institucionalização como elite do direito seja mais recente. No entanto, quando começam a interagir cotidianamente com os demais protagonistas deste ritual, quais sejam, promotores e juízes, conseguem melhores resultados para os seus assistidos. Nesses casos, como pressupõem Pozas-Loyo e Ríos-Figueroa (2018), há uma combinação de clientelismo e patronagem, porque o defensor público usa de seus recursos para garantir benefícios para uma pessoa de status mais baixo (cliente), mas sem esperar que o assistido o retribua. Nessa situação, o defensor público cria uma espécie de troca contingente, especialmente perante o promotor, na tentativa de se fazer ouvir numa próxima audiência de custódia.
Assim, ainda que juízes, promotores e defensores públicos sejam oriundos do mesmo estrato social, percebem-se como parceiros próximos na atividade profissional e possuem as mesmas crenças sobre o que deve ser considerado certo ou errado, a defesa pública tem uma missão institucional que a leva a atuar como elemento de conexão com a realidade exterior, gerando comportamentos dissonantes na administração da justiça criminal. Exatamente por isso, ela consegue ainda frear, de alguma maneira, a sanha punitivista dos promotores de justiça, contribuindo para que algumas decisões das Audiências de Custódia sejam mais favoráveis aos suspeitos do que aos membros do MP.
4. Considerações finais
O objetivo deste artigo foi compreender como são tomadas as decisões em sede de Audiência de Custódia, destacando duas dimensões principais. Por um lado, quais seriam os elementos que compõem o que denominamos de família judicial e que ajudariam no entendimento tanto dos pedidos como das decisões de prisão preventiva. Por outro, de que maneira a coincidência de visões (compartilhada por juízes e promotores) sobre o que fazer com a pessoa presa em flagrante é decorrente de uma “genealogia socioprofissional” semelhante e do trabalho conjunto entre esses atores.
A importância das Audiências de Custódia para a reflexão pretendida estende-se para além dos objetivos para os quais elas foram criadas e implementadas. Sua relevância aponta para o fato de que, por meio delas, organizações e atores da justiça criminal, principalmente os promotores e os juízes, estabelecem contato imediato entre si e com o preso ainda na chamada fase inquisitorial do processamento penal, iniciando um processo decisório que impacta toda a trajetória deste acusado no processamento e em seu desfecho.7 Ou seja, as decisões derivadas das Audiências de Custódia têm o poder de “depurar” ou “contaminar” trajetórias criminais, na medida em que se constituem em oportunidades reais para a aplicação de uma justiça mais adversarial ou inquisitorial. Afinal, nessas audiências, já estão presentes pressupostos suficientes para a opção de tornar os atores da família judicial mais eficientes na promoção de garantias e direitos dos envolvidos.
Nos modelos estimados, com a inserção das variáveis do perfil da pessoa presa, além daquelas que indicam para a formação da família judicial, procuramos entender qual o “peso” com que cada uma dessas dimensões contribui para a formulação do pedido do Ministério Público e para a decisão judicial proferida. Pretendemos, assim, contribuir para melhor compreensão de como se opera a seletividade do Sistema de Justiça Criminal e quais seriam os determinantes tanto do pedido do Ministério Público como da decisão proferida, apontando para a homologia de saberes dos operadores de ambas as instituições.
Nossos resultados indicam que existe enorme concordância quanto ao perfil do sujeito que deve ser incriminado e exemplarmente detido por meio do pedido de prisão provisória pelo Ministério Público, o que encontra pronta acolhida pelo juiz, especialmente quando defensores públicos fixos não estão presentes nessa instância. Constatamos ainda que existe certa necessidade de se estabelecer prioridades de processamento diante de uma demanda crescente criada pelas prisões em flagrante efetuadas pelas polícias. É por essa razão que os sujeitos com perfil de bandido, ou acusados de cometer os delitos de sempre, têm maiores chances de saírem das Audiências de Custódia com o encarceramento determinado, confirmando como essas dimensões são reveladoras da seletividade da justiça criminal brasileira. Assim, apesar de as Audiências de Custódia serem instâncias relativamente novas, posto que foram criadas em 2015, a forma como a decisão se produz nesse espaço não necessariamente o é, posto que contribuem para o desfecho, as visões de mundo sobre quem são os bandidos.
Por outro lado, a família judicial importa e, assim, é preciso manter os laços de cordialidade com aqueles que compartilham do espaço judicial cotidianamente. Assim, o juiz tende a considerar os pedidos de liberdade (com ou sem medida cautelar) feitos pelos defensores públicos fixos, como forma de mostrar sua consideração. Para manter a harmonia do ambiente de trabalho, o magistrado, desde que o pedido do defensor não seja incompatível com as visões de mundo dos demais operadores, cede a esse profissional, o que não acontece quando defensores não fixos atuam nesse espaço.
Entendemos que este estudo apresenta, para a comunidade acadêmica, evidências robustas acerca da existência e caracterização do que denominamos família judicial, no contexto brasileiro, uma temática inovadora quando aplicada aos estudos de determinantes decisórios no processamento penal. Além disso, mostra como o tempo de exercício da profissão e, ainda, a presença fixa nas instituições garantem a possibilidade de opiniões divergentes serem aceitas dentro da família judicial.
Há, contudo, limitações que nos exigem certa cautela a esse respeito. Inicialmente, a pesquisa realizada refere-se a um momento pré-processual de atuação judicial. São necessários mais estudos, principalmente na fase de julgamento, a fim de apurar se a família judicial segue sendo composta dos mesmos atores e se atua na fase processual da mesma forma que atua nas audiências de custódia. Assim, ainda fica em aberto se defensores públicos fixos são uma espécie de contrapeso aos comportamentos judiciais inquisitoriais (de promotores e juízes), o que nos permitiria tomá-los como o elemento-chave com potencial para tornar, na prática, os processos criminais brasileiros mais adversariais.
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Aqui entendidos como padrões semelhantes ou modos de comportamento, valores e práticas compartilhados por membros de um grupo social específico, no caso, os operadores do direito que trabalham na seara criminal.
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Ainda, porque tem crescido substancialmente o número de mulheres nas três instituições, sendo que na Defensoria Pública as mulheres já constituem 50%. Inclusive, nos últimos anos têm sido implementadas políticas de cotas para garantir igual participação de homens e mulheres, além de negros e brancos.
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3
“Amizade instrumental na qual um indivíduo de status socioeconômico mais alto (patrono) usa sua própria influência e recursos para fornecer proteção ou benefícios, ou ambos, para uma pessoa de status mais baixo (cliente), que, por sua vez, retribui oferecendo apoio geral e assistência, incluindo serviços pessoais, ao patrono” (p. 649).
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4
“Relacionamentos de patronagem são caracterizados por interações pessoais face a face (díades) nas quais trocas (contingentes) entre duas partes desiguais (hierárquicas) ocorrem mais de uma vez durante um período de tempo (iterativo)” (p. 650).
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5
Nas audiências de custódia não há juízes titulares, como nas varas criminais. Então, “fixo” se refere ao ator que participa e decide mais ativamente que os plantonistas, porque participou ativamente de um número muito maior de audiências de custódia e, principalmente, o fez durante a semana. Ou seja, enquanto o fixo trabalha cinco dias na semana, os plantonistas se revezam para trabalhar um ou dois dias na semana.
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6
As audiências de custódia são analisadas pelas autoras desde 2015 na capital mineira, sendo que os dados coletados desde então apresentam predominância de operadores do sexo masculino, quer atuem de maneira fixa ou temporária. A conformação atual representa as decisões analisadas proferidas por duas juízas, do sexo feminino porque, no momento da coleta, tais operadoras estavam atuando conjuntamente, conforme esclarecido no terceiro parágrafo deste tópico.
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7
Neste sentido, ver Ribeiro et al. (2021).
Referências
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» https://doi.org/10.24201/es.2021v39n117.2009 -
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Mar 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
07 Abr 2022 -
Aceito
09 Nov 2023