Resumo
O presente dossiê tem como foco as relações entre populismo e democracia, à luz da Teoria do Discurso (TD) desenvolvida por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Considerando as potencialidades analíticas da TD, o atual contexto de tensionamento democrático em meio às (re)emergências populistas, os artigos reunidos nesta coletânea articulam reflexões teóricas e investigações empíricas que promovem avanços na compreensão da TD, discutem os processos democráticos e analisam o fenômeno populista em suas múltiplas expressões. As contribuições aqui apresentadas giram em torno do objetivo central do dossiê, que consiste em aprofundar o entendimento dos desafios enfrentados pelas democracias contemporâneas, das formas de construção de identidades políticas e das tensões inerentes à lógica populista e suas possíveis implicações para a democracia. A relevância desta proposta reside na necessidade de compreender como os discursos políticos disputam sentidos e moldam o campo democrático atual, em meio à polarização, à crise da representação e à emergência de novas articulações hegemônicas. De uma forma geral, o presente dossiê busca, assim, contribuir para a expansão dos estudos em teoria social e, especialmente, em teoria política, a partir das ferramentas conceituais da TD. Com isso, propõem não apenas chaves interpretativas para os fenômenos populistas, mas também um debate crítico sobre os limites, alcances e controvérsias em torno da aplicação da TD e da própria noção de populismo, frente às experiências e desafios do presente.
Palavras-chave:
democracia; populismo; Ernesto Laclau; Chantal Mouffe
Abstract
This dossier focuses on the relationship between populism and democracy through the lens of Discourse Theory (DT) as developed by Ernesto Laclau and Chantal Mouffe. Considering the analytical potential of DT and the current context of democratic tension amid populist (re)emergences, the articles gathered in this collection articulate theoretical reflections and empirical investigations that contribute to a deeper understanding of DT, explore democratic processes, and analyze the populist phenomenon in its multiple expressions. The contributions presented here revolve around the dossier’s central aim: to deepen the understanding of the challenges faced by contemporary democracies, the construction of political identities, and the tensions inherent in the populist logic and its possible implications for democracy. The relevance of this proposal lies in the need to comprehend how political discourses compete over meaning and shape the current democratic field, amid polarization, a crisis of representation, and the emergence of new hegemonic articulations. Overall, this dossier seeks to contribute to the advancement of studies in social theory and, more specifically, in political theory, through the conceptual tools of DT. In doing so, it offers not only interpretative frameworks for populist phenomena but also a critical debate on the limits, scope, and controversies surrounding the application of DT and the very notion of populism in light of contemporary experiences and challenges.
Keywords:
democracy; populism; Ernesto Laclau; Chantal Mouffe
É com grande entusiasmo e satisfação que apresentamos o dossiê “A Teoria do Discurso em debate: democracia e populismo”, o qual reúne sete importantes artigos, cujos debates se ancoram nas possíveis relações entre populismos e democracias, à luz da Teoria do Discurso (TD) de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Os textos mobilizam conceitos, tais como hegemonia, discurso, antagonismo, agonismo, entre outros presentes no vasto arcabouço teórico da TD. A relevância deste esforço coletivo encontra relação direta com a importância das contribuições dos/as autores/as – pesquisadores(as) que há muito têm trabalhado com o pensamento de Laclau e Mouffe – e o atual contexto de “ondas populistas” e seus os desafios à democracia liberal.
A TD – é importante destacar – figura no seleto rol das chamadas “superteorias”, isto é, modelos teóricos que procuram explicar não este ou aquele segmento da realidade social (como gênero ou raça, por exemplo), mas antes, a própria lógica de funcionamento do social como um todo – tal como fizeram autores como Parsons e Luhmann (Teoria dos Sistemas Sociais), Giddens (Teoria da Estruturação) e Bourdieu (Teoria do Habitus). E justamente por sua amplitude, tais modelos são mobilizados na investigação dos mais variados objetos e fenômenos sociais.
Nessa seara, a TD tem se mostrado uma potente ferramenta teórica e metodológica para a compreensão dos fenômenos sociais e políticos contemporâneos. Sua entrada em diversos campos do conhecimento, como a Sociologia, a Ciência Política, a Educação, a Administração, entre outros, se deve à sua capacidade de oferecer novos caminhos explicativos diante da complexidade da realidade social, desafiando concepções tradicionais da política e propondo perspectivas analíticas inovadoras.
Erigida a partir do debate pós-marxista e da virada pós-fundacionalista e pós-estruturalista, a TD articula conceitos e contribuições de autores como Gramsci, Althusser, Foucault, Lacan, Derrida, Husserl e Heidegger. Tanto no campo teórico-filosófico quanto em estudos empíricos, seu potencial crítico e explicativo tem sido reiteradamente reconhecido, permitindo pensar a política a partir da centralidade do discurso, da contingência e da disputa hegemônica na construção de identidades e significados sociais.
O presente dossiê adquire especial relevância por dois motivos. Em primeiro lugar, insere-se em um momento particularmente significativo para os estudos em TD: em 2025, completam-se 40 anos da publicação de Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics (1985). Longe de constituir apenas um marco editorial, essa obra representa um ponto de inflexão teórica nos debates contemporâneos sobre hegemonia, sujeito e política no campo do pensamento crítico.
Publicada em um contexto de crise das grandes narrativas emancipatórias e de reconfiguração dos movimentos sociais, a referida obra propôs uma reinterpretação radical das categorias centrais do marxismo – e da própria trajetória intelectual dos autores, vinculados ao marxismo. De modo mais preciso, Hegemonia e Estratégia Socialista propõe uma nova abordagem teórica e epistemológica, cujo objetivo é superar os obstáculos sobre os quais a teoria marxista estagnou em meados do século passado. Isso porque, conforme Laclau e Mouffe sustentam na introdução da obra, o marxismo, após ter vivenciado um período de riqueza e criatividade intelectual até a década de 1960, herdando elementos dos estudos frankfurtianos, de Gramsci e do althusserianismo, chegara nos anos de 1970 a um impasse diante das transformações do capitalismo contemporâneo (Costa; Coelho, 2016).
Ao recusar as concepções essencialistas da classe e do sujeito histórico, Laclau e Mouffe elaboraram uma teoria pós-marxista da política, ancorada na noção de hegemonia como articulação contingente de demandas sociais, mediada por práticas discursivas. Como destacam os autores:
Nossa abordagem está fundada no privilégio do momento da articulação política, e a categoria central de análise é, a nosso ver, hegemonia. Neste caso, como – para repetir nossa questão transcendental – tem que ser uma relação entre os entes para que seja possível uma relação hegemônica? Sua condição é que uma força social particular assuma a representação de uma totalidade que lhe é radicalmente incomensurável. Tal forma de “universalidade hegemônica” é a única que uma comunidade política pode alcançar (Laclau; Mouffe, 2015, p. 37).
Com isso, deslocaram o eixo da análise das determinações estruturais para as disputas simbólicas e discursivas que constituem a realidade social, lançando as bases de uma ontologia política que concebe a sociedade como resultado precário de articulações hegemônicas. Nesse ponto, conforme os autores, “[...] torna-se de maior importância uma concepção do social como espaço discursivo” (Laclau; Mouffe, 2015, p. 37), sendo o discurso o resultado de um processo articulatório em um terreno indecidível:
No contexto desta discussão, chamaremos de articulação qualquer prática que estabeleça uma relação entre elementos de tal modo que a sua identidade seja modificada como um resultado da prática articulatória. A totalidade estruturada resultante dessa prática articulatória, chamaremos de discurso. As posições diferenciais, na medida em que apareçam articuladas no interior de um discurso, chamaremos de momentos. Por contraste, chamaremos de elemento toda diferença não discursivamente articulada (Laclau; Mouffe, 2015, p. 178).
No Brasil, a tradução da obra ocorreu tardiamente em 2015, isto é, trinta anos após a publicação original. Apesar disso, como discutimos em outra oportunidade, a versão brasileira da obra, publicada pela editora Intermeios, foi lançada em um momento em que o pensamento de Mouffe e, sobretudo o de Laclau, já vinha sendo disseminado no contexto intelectual do país. Cabe ressaltar que em 2013, menos de um ano antes de seu falecimento, Laclau permaneceu no Brasil durante três meses, período em que compareceu em algumas universidades – como UERJ, UFPE e UFPel – ministrando palestras, nas quais elencou o cabedal teórico, metodológico e epistemológico da Escola de Altos Estudos em Teoria do Discurso (Costa; Coelho, 2016). Nessas três instituições, inclusive, estão localizados três grandes polos de investigação em TD no Brasil: Ideologia e Análise de Discurso (IdAD), grupo de pesquisa coordenado pela Profa. Bianca de Freitas Linhares e pelo Prof. Daniel de Mendonça, no PPG de Ciência Política da UFPel; Laboratório de Estudos de Religião e Política (LABERP), coordenado pelo Prof. Joanildo Burity na FUNDAJ/UFPE; e Políticas de Currículo e Cultura, coordenado pela Profa. Alice Casimiro Lopes, no PPG em Educação da UERJ.
Assim, embora temporã, é indiscutível que a tradução de Hegemonia e estratégia socialista contribuiu para o aprofundamento e a disseminação da TD em língua portuguesa, ampliando o interesse por seus desdobramentos teóricos e suas aplicações empíricas. Isso porque, a tradução tem possibilitado um diálogo mais sistemático com o léxico conceitual dos autores, permitindo que pesquisadores(as), inclusive em nível de graduação, se apropriem de suas categorias com maior precisão, criatividade e aplicação empírica. Esse processo não apenas tem reforçado a presença da obra nos currículos de programas de pós-graduação, mas também tem fomentando o surgimento de grupos de pesquisa, seminários e dossiês temáticos dedicados ao debate em torno da democracia radical, do populismo e da construção das identidades políticas. Assim, embora tardia, a tradução da obra se deu em um momento oportuno, contribuindo para consolidar um campo de estudos que hoje ocupa lugar de destaque na teoria política crítica latino-americana. Celebrar os 40 anos de Hegemonia e estratégia socialista, portanto, não é apenas revisitar um clássico da teoria política contemporânea. É, sobretudo, reconhecer sua força heurística e sua atualidade diante dos desafios que atravessam as democracias contemporâneas: polarização, crise da representação, emergência de discursos populistas e disputa por novos significantes políticos.
A sua atualidade é justamente o segundo motivo que torna o presente dossiê relevante. Em um contexto marcado pela emergência e consolidação de articulações populistas ao redor do mundo, inclusive em democracias liberais consideradas estáveis pela literatura, as contribuições de Laclau e Mouffe mantêm notável vitalidade.
Nesse ponto em particular das contribuições dos autores, destacam-se especialmente as obras A Razão Populista, de Laclau, e Por um Populismo de Esquerda, de Chantal Mouffe. Originalmente publicada em 2005, a obra de Laclau só foi traduzida para o português em 2013, pela editora Três Estrelas; já o livro de Mouffe foi lançado em 2018 e traduzido em 2019 pela editora Autonomia Literária. Ambas as obras são fundamentais para os debates sobre o populismo e suas implicações teóricas e políticas. A Razão Populista, obra mais conhecida no Brasil, propõe uma ruptura com as leituras reducionistas que associam o populismo a uma patologia da democracia ou a um desvio irracional das instituições liberais. Ao contrário, o autor interpreta o populismo como uma lógica política específica de construção do social e de constituição do “povo” como sujeito político, formado no processo de “[...] formação de uma fronteira antagonista interna separando ‘povo’ do poder” (Laclau, 2013, p. 124).
Dessa forma, a obra oferece importantes contribuições para a compreensão da política contemporânea, especialmente diante do atual “momento populista” (Mouffe, 2019), ao deslocar o foco da análise das características empíricas de lideranças ou regimes para as operações discursivas que constituem sujeitos políticos e produzem fronteiras antagônicas no espaço social. Ao conceber o populismo como uma lógica de articulação que permite a emergência do “povo” como unidade política contingente e ao pensar a política como prática de construção hegemônica – de um lado, está o reconhecimento e a defesa do “povo”; de outro, a delimitação do seu “inimigo”, cuja presença representa a impossibilidade da realização plena do povo –, em que afetos, significações e identificações coletivas desempenham papéis relevantes na mobilização e na disputa por legitimidade, A Razão Populista fornece uma chave analítica para examinar fenômenos políticos diversos sem incorrer em classificações normativas ou dicotômicas, desafiando, portanto, leituras convencionais do populismo.
Vale destacar que essa defesa do povo pode ser processada tanto a partir de princípios ético-político-democráticos, como também autoritários. Isso porque, sendo uma experiência particular do fenômeno político, o populismo é destituído de uma conotação ideológica apriorística, bem como de uma determinação histórica (Laclau, 2013; Mouffe, 2019). Nesses termos, o populismo pode ganhar tanto contornos político-ideológicos de direta excludente1, como observado nas experiências de Trump (EUA), Orbán (Hungria) e Bolsonaro (Brasil), como democrático-progressistas, a exemplo da construção do Podemos (Espanha) ou do Syriza (Grécia)2. Como esclarecem Lopes e Mendonça (2013, p. 12) no texto de apresentação da edição brasileira:
[...] “povo” não é uma categoria estática, possível de ser medida em termos econômicos e/ou sociológicos. O “povo” é sempre uma articulação discursiva e, como tal, varia conforme as mais diversas experiências populistas, independentemente de critérios ideológicos [...]. O povo pode ser o discurso dos mais pobres contra os ricos, mas pode ser também o dos nacionais contra os estrangeiros, dos nacionalistas contra os “traidores da pátria”, dos trabalhadores contra os capitalistas e assim por diante. O ponto fundamental é que a articulação discursiva seja capaz de nomear o povo contra o seu inimigo.
Assim compreendido, o populismo não pode ser percebido como um “[...] tipo de movimento, identificado ou com uma base social especial ou com uma orientação ideológica particular” (Laclau, 2013, p. 181). Como um momento particular do fenômeno político, o populismo “[...] não possui uma unidade referencial, pois não é um fenômeno delimitável, e sim uma lógica social, cujos efeitos perpassam muitos fenômenos. O populismo é, muito simplesmente, um modo de construir o político” (Laclau, 2013, p. 28). Corroborando Mouffe (2019), estamos novamente em um momento particular do fenômeno político: “[...] o momento populista”.
Para a autora, atenta ao contexto europeu ocidental, esse momento populista começou a se estruturar com a crise financeira de 2008 e a consequente adoção de políticas de austeridade e seus efeitos dramáticos, afetando não apenas as pessoas mais pobres, mas também as classes médias. Desde de então, como destaca Mouffe (2019), emergiram críticas mais radicais a política do consenso, hegemônica na política europeia desde os anos 19803, especialmente quanto ao seu caráter tecnocrático, centrado nas elites político-partidárias e, portanto, fechado aos anseios populares. A alternativa populista, portanto, consiste na ideia de “[...] devolver ao povo a voz que lhe tinha sido tomada pelas elites” (Mouffe, 2019, p. 24).
Sendo o “povo” uma construção radicalmente política, trazer o povo de volta “[...] pode abrir caminho para soluções autoritárias – através de regimes que enfraquecem as instituições democráticas liberais –, mas também pode levar à reafirmação e à extensão dos valores democráticos”. Tudo dependerá, ainda segundo Mouffe, “[...] de quais forças políticas terão sucesso em hegemonizar as demandas democráticas atuais e o tipo de populismo que será vitorioso na luta contra a pós-política” (Mouffe, 2019, p. 26)4. O objetivo de Mouffe é a elaboração de uma estratégia de um populismo de esquerda:
Uma estratégia populista de esquerda visa à cristalização de uma vontade coletiva sustentada pelos afetos comuns, aspirando uma ordem mais democrática. Esta requer a criação de um regime diferente de desejos e afetos através da inscrição em práticas discursivas/afetivas que promoverão novas formas de identificação [...]. De acordo com a estratégia populista de esquerda, essa fronteira [política] deve ser construída de uma forma “populista”, opondo o “povo” contra a “oligarquia”, um confronto no qual o “povo” é constituído pela articulação de diversas demandas democráticas [...]. Ela é uma construção discursiva, resultante de uma “cadeia de equivalência” entre demandas heterogêneas, cuja unidade é assegurada pela identificação com uma concepção democrática radical de cidadania e uma oposição comum à oligarquia, forças que estruturalmente impedem a realização do projeto democrático [...]. Em vez de ver o momento populista apenas como uma ameaça à democracia, é urgente perceber que ele também oferece a oportunidade para a sua realização [...]. É apenas restaurando o caráter agonístico da democracia que será possível mobilizar afetos e criar uma vontade coletiva na direção do aprofundamento dos ideais democráticos (Mouffe, 2019, p. 119; 123; 124; 130).
No contexto latino-americano, como se pode conferir nos artigos deste dossiê, a “leitura populista” revela-se particularmente fecunda, ao permitir interpretações mais nuançadas das dinâmicas políticas locais e dos sentidos de povo, democracia e antagonismo que nelas estão em jogo. No Brasil, em particular, a tradução da obra de Laclau ocorreu em um momento de intensificação das polarizações políticas e de emergência de lideranças que se apresentam como representantes autênticos do “povo” (Marques; Carlos, 2025). No caso das contribuições de Mouffe, cuja publicação original em inglês data de 2018, a tradução foi quase imediata, dada sua pertinência diante do contexto nacional. Temos observado que o cenário pós-2013 e as importantes contribuições de ambos os autores resultaram em seu progressivo acolhimento por círculos acadêmicos interessados em compreender essas transformações. Inegavelmente, Laclau e Mouffe têm se consolidado como referências incontornáveis para os estudos críticos sobre o populismo, justamente por oferecerem uma abordagem que, mais do que classificar regimes ou lideranças, busca compreender as operações discursivas que constituem o campo do político.
Considerando as potencialidades da TD, o atual contexto de tensionamento democrático e as (re)emergências populistas, o presente dossiê reúne trabalhos empíricos e teóricos que, além de promoverem avanços na compreensão da TD, discutem os processos democráticos e as possibilidades de radicalização da experiência democrática e analisam o fenômeno populista. Assim, o dossiê busca aprofundar o entendimento sobre os atuais desafios democráticos, os processos de construção de identidades políticas e as tensões inerentes ao populismo e suas possíveis implicações para a democracia contemporânea.
A relevância deste tema reside na necessidade de compreendermos como os discursos disputam e moldam a democracia contemporânea e quais as contribuições da TD na análise da emergência, tensões e divergências que configuram o populismo como uma experiência política particular. Com esses dois objetivos, os trabalhos que integram este dossiê visam contribuir para a expansão e o aprofundamento dos estudos sobre teoria social e, em particular, teoria política, a partir da TD, sem desconsiderar as controvérsias e tensões em torno tanto da aplicação prática do arcabouço da referida teoria como da noção de populismo, frente às experiências contemporâneas.
Iniciando a apresentação dos trabalhos, o primeiro artigo, intitulado “El pueblo unido ¿jamás será vencido? potencia y límites de la estrategia populista”, de Javier Balsa, analisa, num primeiro momento, as críticas elaboradas por Karl Marx ao conceito de “povo”, ao mesmo tempo em que levanta hipóteses sobre as motivações que influenciaram o próprio Marx a manter o seu uso em vários de seus escritos. Ademais, mediante às experiências políticas dos governos de esquerda e centro esquerda, pelas quais passaram alguns países da América Latina, Javier alerta para as dificuldades que o abuso em relação à utilização do conceito de “povo” pode acarretar, especialmente no que tange às propostas emancipatórias. Para tanto, o autor se debruça sobre as contribuições de Laclau sobre “povo” e “populismo”, trazendo à baila importantes argumentos que demonstram a potencialidade de análise laclauniana e, também, suas limitações em termos de uma estratégia emancipatória populista.
Alice Casimiro Lopes, Érika Virgílio Rodrigues da Cunha e Hugo Heleno Camilo Costa, assinam o segundo artigo, “Como enfrentar o negacionismo e a crítica à educação em tempos de populismo de direita?”. Nele, as autoras e o autor defendem enfaticamente a produção de deslocamentos nos discursos populistas de direita, através do que eles chamam de hiperpotilização, bem como do questionamento à racionalidade na política, especialmente no campo da educação. Diante disso, tomam como ponto de partida o significativo aumento do populismo de direita em âmbito mundial, ligado a movimentos nazifascistas e ultraconservadores, cujos discursos produzidos por tais grupos direcionam seus ataques à educação e à ciência, o que acaba consubstanciando o negacionismo científico, além da desvalorização do caráter público das universidades e escolas com a utilização em massa de fakenews. Um potente argumento utilizado neste artigo versa sobre utilização do Novo Iluminismo como forma de produzir um antagonismo ao negacionismo, pautando-se numa valorização da ciência e do conhecimento na escola e na sociedade em detrimento de discursos da diferença e da lógica pós-estrutural. Nesse sentido, Alice, Érika e Hugo propõem uma outra abordagem, baseada nos conceitos de antagonismo, deslocamento e antagonismo de Laclau e Mouffe, juntamente à lógica da desconstrução derridiana. Tal proposta visa, portanto, questionar os efeitos deletérios do populismo de direita sem a necessidade de retornar aos metarrelatos do Iluminismo ou a qualquer outra perspectiva universalista sobre a verdade do conhecimento e da própria ciência.
“Populismo y derechos. La lucha del colectivo travesti/trans por la inclusión laboral en Argentina” é o título do terceiro artigo, escrito por Fidela Azarian. Nele, a autora apresenta algumas reflexões, a partir dos pressupostos onto-epistemológicos e metodológicos da Teoria do Discurso, sobre o devir identitário do coletivo travesti/trans na Argentina, frente ao marco das lutas pela inclusão laboral, as quais acarretaram, em 2021, na aprovação da lei nacional “Diana Sacayán-Lohana Berkins”. Para examinar o processo de identificação política que provocou as lutas por acesso ao trabalho, Fidela se traz à tona as distintas enunciações acerca das demandas de inclusão formuladas pelo movimento, as estratégias emergentes para sua defesa, além da fronteira antagônica traçada, por meio de uma cadeia articulatória que se contrapõe ao projeto político neoliberal mediante ao que foi nomeada de “anti direitos”. Tal articulação, a autora chama de “Peronização do coletivo travesti/trans”, caracterizado pela lógica populista, cuja emergência se dá pelo discurso de direitos pela qual o referido movimento aglutina suas demandas.
Mediante a premissa de que Laclau estabelece uma relação entre populismo e política, enquanto única lógica propriamente política, Marcelo Gabriel Nazareno, em “¿Qué (no) hay de populismo en ‘la razón populista’? Significantes vacíos, fronteras y la especificidad de la lógica populista”, centra sua análise à singularidade ontológica do populismo, sobretudo mediante a uma definição mais específica do que ele denomina de “dupla fronteira”, diante da noção de “preeminência da equivalência”, definição esta proposta por Laclau como característica distinta do populismo. Ademais, Marcelo salienta que apesar de capturar a especificidade populista, tal pressuposto laclauniano não avança para além do nível ôntico. Para tanto, o autor apresenta sua própria proposta, a qual demonstra o papel desempenhado pelos significantes vazios no que diz respeito à especificidade ontológica de toda e qualquer lógica política, inclusive a populista.
Partindo da perspectiva de que a emergência dos discursos de extrema-direita em nações democráticas, cujas instituições gozam de certa estabilidade, tem abalado as estruturas da democracia liberal, Felipe Corral de Freitas, no artigo intitulado “A crise da democracia liberal e a exclusão do antagonismo da política”, aborda a relação entre democracia e antagonismo a partir da Teoria do Discurso, bem como a reflexão sobre a estabilidade e a crise da democracia liberal, realizando um importante diálogo com as noções institucionalistas e populistas. Nesse sentido, Felipe argumenta que a estabilidade da democracia e suas próprias crises dependem da forma como suas instituições têm incorporado (ou não) os antagonismos políticos emergentes, destacando, ainda, a relevância do antagonismo ao funcionamento da democracia e à permeabilidade das instituições no que tange às demandas dos cidadãos e cidadãs.
Marcelo de Souza Marques e Euzeneia Carlos, por sua vez, em “O populismo de extrema direita no governo Bolsonaro: uma abordagem discursiva”, mobilizam os aportes teóricos da TD na tentativa de compreender a construção do discurso bolsonarista como um populismo de extrema direita no Brasil. Utilizando o método de análise articulatório-discursiva, os autores analisam o Plano de Governo de Bolsonaro e algumas de suas enunciações no período 2018-2022. Os resultados mostram que o governo de Jair Bolsonaro articulou significados políticos, religiosos e morais, construindo um populismo de extrema direita.
Em “Minorities Conform or Disappear”: Bolsonarism’s construction of the People and its impact in limiting LGBTQIA+ Rights, Álvaro Bartolotti Tomas e Michele Diana da Luz argumentam que os discursos populistas de extrema direita mobilizam o sentimento de abandono mediante uma linguagem majoritariamente excludente. Com base nisto, os autores observam o cenário brasileiro a fim de analisar como tal sentimento se reflete em ações judiciais concretas no que diz respeito às questões de gênero movidas pelos bolsonaristas no Congresso Brasileiro durante o mandado de presidente de Jair Bolsonaro (2019-2022). Com base nas lentes da teoria do populismo de Laclau, Álvaro e Michele buscam examinar como o discurso bolsonarista produz identidades a partir do uso que faz de valores familiares e de sua oposição à “ideologia de gênero”, além de explorar como tais identidades são reforçadas por normas legais e culturais através do aparato estatal. Logo, o ponto central do artigo é o destaque do Estado como principal contribuinte à difusão de valores os quais restrigem os direitos civis, em especial, aqueles que têm interferência direta nas comunidades LGBTQIA+, limitando, com isso, a cidadania àqueles conformados na noção bolsonarista de “povo”, atingindo diretamente as instituições democráticas, bem como os direitos das minorias sociais.
Ao fim e ao cabo, esperamos que as contribuições reunidas neste dossiê ofereçam reflexões relevantes e análises significativas sobre como o discurso político molda práticas democráticas e influencia os movimentos populistas. Acreditamos que as reflexões sobre estratégias discursivas, construção de identidades políticas e os desafios impostos pelo populismo à democracia serão valiosas para pesquisadores(as), docentes e estudantes interessados(as) nas dinâmicas políticas contemporâneas.
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Aproximando a análise da extrema direita de Cas Mudde (2020) e do populismo de Mouffe, compreendemos que a direita se torna extremista ao intensificar as posições políticas antagônicas na construção de um populismo radicalmente excludente, substituindo o confronto democrático-pluralista por um “enfrentamento entre valores morais inegociáveis ou por formas de identificação essencialistas” (Mouffe, 2019, p. 143). Nesse processo, marcado por práticas discursivo-afetivas voltadas à ressignificação sentimentos e valores antidemocráticos e antiliberais, os sujeitos estabelecem fronteiras radicais: de um lado, a construção discursiva do povo, do outro, o inimigo a ser eliminado.
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É nesse exato sentido que Mouffe (2019) defende um projeto político de construção de um “populismo de esquerda”.
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3
Esse consenso, segundo Mouffe, também envolveu partidos de esquerda que paulatinamente se redefiniram com “centro-esquerda” ou socialdemocratas sob o lema de “modernização”, sedimentando um contexto de “pós-política”. Nesse processo, relegaram o modelo confrontacional da política, entre “direita e esquerda”, tendo como resultado a promoção de uma “forma tecnocrática de política de acordo com a qual a política não seria mais um confronto partidário, mas a administração neutra dos negócios públicos” (Mouffe, 2019, p. 23). Conferir também Mouffe (2015, p. 7-32; 63-88).
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É nesse sentido que Mendonça e Machado (2021, p. 11) destacam que “[...] a democracia, enquanto governo do povo, estaria sempre aberta à possibilidade da articulação populista, que busca trazer o povo de volta ao centro do palco da política, mesmo que suas consequências possam vir a ter o sentido contrário, recrudescendo o autoritarismo”.
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Fonte de financiamento:
Nenhuma.
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Aprovação do Comitê de Ética:
Nada a declarar.
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Disponibilidade de Dados:
Nenhum dado de pesquisa foi utilizado.
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Uso de tecnologia assistida por inteligência artificial:
Os autores declaram que nenhuma ferramenta de inteligência artificial foi utilizada na pesquisa aqui relatada ou na preparação deste artigo.
Referências
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MENDONÇA, Daniel; MACHADO, Igor. Apresentação do Dossiê: o populismo e a construção política do povo. Mediações Revista de Ciências Sociais, v. 26, n. 1, p. 10-27, 2021. DOI: http://doi.org/10.5433/2176-6665.2021v26n1p10.
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- MOUFFE, Chantal. Por um populismo de esquerda São Paulo: Autonomia Literária, 2019.
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Editado por
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Editor:
Gabriel Bandeira (UFRGS, Brasil).
Disponibilidade de dados
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
30 Jun 2025 -
Aceito
30 Jun 2025
