Acessibilidade / Reportar erro

Os estudos sociais da quantificação e suas implicações na sociologia

Resumo

Este trabalho tem um duplo propósito: por um lado, apresentar a relevância, abrangência e profundidade dos estudos históricos e sociológicos sobre a quantificação; de outro, reconstruir as origens deste campo e as transformações por ele conhecidas ao longo dos últimos anos. Nesse percurso, interessa-nos destacar os vínculos entre os trabalhos que analisaram os processos de raciocinar, valorar, medir e comparar com números e as preocupações clássicas e contemporâneas da sociologia. Com este objetivo, o presente artigo oferece uma ampla revisão da literatura do campo, buscando despertar o interesse da comunidade de cientistas sociais por suas potencialidades heurísticas. Ao mesmo tempo, procura-se compilar as contribuições dos estudos sociais da quantificação à sociologia como um todo. A primeira seção apresenta um relato histórico sobre a formação desta perspectiva de análise, suas principais obras de referência e aportes mais significativos. A segunda seção discute as razões pelas quais entendemos que a sociologia deveria ampliar sua atenção para as operações e os regimes de quantificação nas sociedades contemporâneas. Além disso, examina as contribuições que o campo tem a oferecer para a reflexão sobre as questões nodais da disciplina, como o problema dos fundamentos da ordem social e da autoridade política, os processos de diferenciação social e configuração de subjetividades, a participação social, a crítica e a agência social transformadora.

Palavras-chave
sociologia da quantificação; história da estatística; governo dos números; política de população; categorias de classificação

Abstract

This article has a dual purpose: on the one hand, it seeks to present the relevance, scope, and depth of historical and sociological approaches on quantification; on the other, it seeks to reconstruct the origins of this field and its changes over the past few years. Thus, we emphasize the links between the works that analyzed the processes of reasoning, valuing, measuring, and comparing through numbers and sociology’s main classical and contemporary concerns. As such, this article offers a broad review of the literature in the field, seeking to arouse the interest of the community of social scientists for its heuristic potential. At the same time, it seeks to compile the contributions of the social studies of quantification to sociology as a whole. The first section presents a historical account of the formation of this analytical perspective, its main references and most significant contributions. The second section discusses the reasons why we believe sociology should extend its attention to the regimes of quantification in contemporary societies. In addition, it addresses the contributions of the field for the advancement of nodal issues, such as the problem of the foundations of social order and political authority, the processes of social differentiation, and the making of subjects, social engagement, criticism, and social change. The translation of this work was financed with funds from the PUE-CONICET 005 project. Translated by Liana V. Fernandes, lianavfer@gmail.com.

Keywords
sociology of quantification; history of statistics; government by numbers; politics of population; categories of classification

Introdução

Este trabalho tem um duplo propósito: por um lado, mostrar a relevância, amplitude e profundidade dos estudos históricos e sociológicos sobre a quantificação; por outro, reconstruir as origens desse campo e as transformações por ele conhecidas ao longo dos últimos anos. Nesse percurso, interessa-nos destacar os vínculos desses trabalhos analíticos sobre os processos de quantificação com as preocupações clássicas e contemporâneas da sociologia.

Desde fins da década de 1970, a produção de estatísticas passou a ser considerada uma prática social de interesse para as ciências sociais, não só por seus efeitos políticos, mas também por suas características singulares – as relações sociais envolvidas na cadeia de produção estatística, a confiança e a autoridade que esses números costumam inspirar, os esquemas de classificação e representação do mundo que eles propõem. Esse interesse, inicialmente, inclinou-se para a gênese de fontes, classificações e instrumentos estatísticos, sublinhando seus usos sociais e políticos.

Duas tendências se constituem nessa primeira fase. De um lado, uma história política e institucional da produção de dados, colocando em evidência as práticas estatais de registro e contagem ao longo do tempo, como nos dois tomos de Pour une histoire de la statistique (INSEE, 198753 INSEE - Institut National de la Statistique et des Études Économiques. Pour une histoire de la statistique. 2 vols. Paris: Economica, 1987.). Dirigido por Alain Desrosières, este projeto resultou dos colóquios que organizou em 1976, e que reuniram diversos historiadores dos Annales, como Jean-Claude Perrot, Michele Perrot e Jacques Ozouf, consagrando uma preocupação historiográfica pioneira com a estatística como instrumento estatal de administração do território e da população.

De outro lado, a outra tendência é o grupo de Bielefeld, próximo da filosofia da ciência e da epistemologia histórica, congregando autores alemães e anglo-saxões, como Lorraine Daston, Ian Hacking e Theodore Porter, e que publica seu manifesto na obra The probabilistic revolution (1987), baseada em colóquios realizados entre 1982 e 1984. Inspirada pelo programa de pesquisa aberto por Thomas Kuhn, esta corrente dedicou-se a investigar a emergência do risco e do cálculo de probabilidades como novas categorias de percepção da realidade, seu trânsito na formação das ciências naturais e humanas ao longo do século XIX, enquanto condições epistêmicas do aparecimento da biopolítica e da gestão da população, e de diversos processos de racionalização da vida social.

Já no século XXI, os estudos sociais sobre a quantificação alargaram um pouco esses limites e (auto)identificaram-se como aqueles que tratam de analisar processos de produção e comunicação de números, em geral, entendendo a quantificação como um fenômeno social em si mesmo (Diaz-Bone; Didier, 201637 DIAZ-BONE, Rainer; DIDIER, Emmanuel. The sociology of quantification. Perspectives on an emerging field in the social science. Historical Social Research, v. 41, n. 2, p. 7-26, 2016.; Espeland; Stevens, 200842 ESPELAND, Wendy; STEVENS, Mitchell. The sociology of quantification. Arch. europ. sociol., v. 49, n. 3, p. 401-436, 2008.). A quantificação já não mais se restringiria às práticas de elaboração e divulgação de estatísticas oficiais, passando a abranger outras operações e tecnologias de cálculo: cálculos contábeis, análises de custo-benefício, medições de desempenho, cálculos de risco, ratings e rankings. A quantificação é concebida, então, como uma característica fundamental da vida social moderna, que é evidenciada por seus vínculos estreitos com a atividade científica, consolidação dos Estados modernos, administração de organizações complexas, evolução dos mercados e agência econômica. Por isso, resulta difícil pensar a quantificação isolada das questões que a sociologia tradicionalmente formulou sobre a reprodução da ordem, coesão, coordenação social, desigualdades, hierarquias, conflitos,individualização e organização do trabalho.

Neste texto, abordamos e examinamos um conjunto de estudos transversais no campo das ciências sociais que partilham da consideração de que a quantificação não é apenas uma ferramenta que cientistas e administradores utilizam para produzir conhecimento sobre o mundo, mas que é uma atividade social implicada em relações de poder, e que produz efeitos sobre a realidade que pretensamente descreve.1 1 Uma vez que os estudos sobre a quantificação se encontram em franca expansão, não pretendemos oferecer aqui uma revisão completamente exaustiva da literatura, e sim descrever um panorama de um conjunto de pesquisas que partilham certos pressupostos comuns, delineando suas principais linhas de investigação.

Na verdade, os efeitos recursivos dos números sobre a agência e a realidade que eles descrevem é um dos principais eixos de análise dos estudos da quantificação. A mera existência do campo pressupõe a superação de um velho debate das ciências sociais, opondo positivistas metodológicos – que tomam a prova numérica como representação coerente e realista da realidade – a teóricos e etnometodólogos – que acusam os números de reduzir o como ao quanto, omitindo ou mutilando o fenômeno a ser pesquisado. Enquanto os primeiros esquecem o trabalho de objetivação que cerca todo tipo de contagem, contribuindo para mistificar seus efeitos de poder, os segundos ignoram que a quantificação pressupõe uma definição operatória convencional que lhe dá uma força social, e que impele a uma agência padronizada (Besson, 19959 BESSON, Jean-Louis. As estatísticas: verdadeiras ou falsas? In: BESSON, Jean-Louis (org.). A ilusão das estatísticas. São Paulo: Unesp, 1995. p. 25-67., p. 25-67). Por tal razão, a estatística deve ser compreendida, ao mesmo tempo, com base em dois registros de linguagem sobre a realidade, um realista (objetivista) e outro relativista (construtivista) – ou seja, como sendo simultaneamente convencional e real (Desrosières, 199331 DESROSIÈRES, Alain. La politique des grands nombres : histoire de la raison statistique. Paris: La Découverte, 1993., p. 398).

Na primeira seção deste trabalho, tratamos de descrever como se configurou uma agenda de pesquisas sobre a quantificação ao longo do tempo, suas matrizes teóricas e contribuições mais significativas. Na segunda seção, procuramos argumentar por que consideramos que sociólogas e sociólogos deveriam prestar mais atenção às diversas operações e regimes de quantificação, apoiando-nos na ideia de que os estudos até aqui realizados retomam e iluminam ao menos três preocupações fundacionais da disciplina sociológica: i) a questão das bases da ordem social e da autoridade política na modernidade; ii) a questão da diferenciação social e da constituição das subjetividades; iii) a questão sobre os fundamentos da crítica e a participação transformadora do mundo social. Na última seção, desenvolvemos uma reflexão sintetizando o argumento exposto.

Estudos da quantificação: gênese e abordagens

Como afirmamos, os estudos da quantificação consideram as práticas de medição estatística e outras operações de quantificação como um objeto válido de pesquisa. Isso supõe reconhecer o caráter irremediavelmente social das ações que contribuem (e contribuíram) para a mise en nombre do mundo, transformando em quantidades o que até então somente era pensado em termos de qualidades. Partindo dessa plataforma comum, podemos agrupar boa parte dos estudos mais influentes e alinhados a essa perspectiva em duas vertentes fundamentais: por um lado, a corrente francesa, que se formou na interseção entre a socio-história das estatísticas e a sociologia da ciência; a economia das convenções e a sociologia da crítica; por outro lado, a corrente anglo-saxônica, ligada – como já mencionamos – à epistemologia histórica, aos anglo-foucaultianos e ao Departamento de Contabilidade e Finanças da London School of Economics. Examinaremos essas tradições nas páginas seguintes.2 2 Antes disso, vale notar que, sem se articular em coletivos de pesquisa, uma série de obras se destacam fora dessas trajetórias, na qualidade de contribuições isoladas, as quais, em meados da década de 1970 e início da de 1980, germinaram o interesse e o tipo de questionamentos que ainda mobilizam os estudos da quantificação. Referimo-nos à obra de Michael Cullen (1975), que analisa em perspectiva histórica o desenvolvimento das práticas de registro, codificação e enumeração dos cultores da estatística como ciência aplicada – não vinculados à comunidade acadêmica e intelectual – na Inglaterra vitoriana, e que ampliou a nossa compreensão sobre o processo de emergência da razão estatística na modernidade. Em direção semelhante, a obra de Patricia Cohen (1982) focaliza a propensão a contar e medir típica da cultura norte-americana, para realizar um estudo histórico sobre a expansão da numeracy – ou a geração de habilidades aritméticas básicas, como contar, enumerar e calcular – entre a população dos Estados Unidos durante os séculos XVIII e XIX, e que resultou na ampliação do domínio dos números sobre temas até então pensados somente em termos qualitativos.

Como ponto de partida, podemos dizer que o campo adotou o léxico e o vocabulário construtivista das novas sociologias francesas dos anos 1980-2000 (Corcuff, 201524 CORCUFF, Philippe. Las nuevas sociologías. Principales corrientes y debates, 1980-2010. Buenos Aires: Siglo XXI editores, 2015.). Trata-se de uma sociologia claramente herdeira da sociologia crítica de Pierre Bourdieu, que promoveu não apenas o uso das estatísticas nas ciências sociais, como também uma reflexão acurada sobre as práticas que presidem a sua elaboração. Bourdieu (2007)15 BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP; Porto Alegre: Zouk, 2007. legou uma sociologia quantitativa centrada nas questões de reprodução das desigualdades e das relações de dominação entre as classes sociais, apreendidas em seus termos conceituais de habitus e de campo. Essa opção demandava uma reflexão crítica das nomenclaturas oficiais, que seria levada adiante por seus discípulos.

A tradição francesa de pesquisa em história e sociologia das estatísticas tem como uma de suas particularidades haver-se originado no próprio instituto nacional de estatísticas desse país, o Institut National de la Statistique et des Études Économiques – INSEE (Didier, 201638 DIDIER, Emmanuel. Alain Desrosières and the Parisian flock. Social studies of quantification in France since the 1970s. Historical Social Research, v. 41, n. 2, p. 27-47, 2016.). Daí surgiram, entre o final da década de 1970 e início de 1980, os primeiros estudos sobre as categorias socioprofissionais oficialmente empregadas na França, as quais foram analisadas em perspectiva diacrônica e sincrônica, buscando compreender os mecanismos de categorização, com especial atenção aos processos de codificação. Inspirando-se na economia das convenções, em particular na noção de pluralidade das lógicas da ação, tais trabalhos procuraram mostrar como as categorias de classificação aderem aos julgamentos e tipificações que as pessoas comuns fazem em diferentes situações da vida cotidiana (Boltanski, 198210 BOLTANSKI, Luc. Les cadres: la formation d´un groupe social. Paris: Éditions de Minuit, 1982.; Desrosières; Thévenot, 198835 DESROSIÈRES, Alain; THÉVENOT, Laurent. Les catégories socioprofessionnelles. Paris: La Découverte, 1988.; Boltanski; Thévenot, 199112 BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. De la justification : les économies de la grandeur. Paris: Éditions Gallimard, 1991.).

Desde então, as perspicazes leituras históricas de Alain Desrosières e seus sucessivos aportes ao estudo de uma linguagem – a estatística – que, para ele, combinava as autoridades da ciência e do Estado, abriram caminho para a compreensão da estatística como outil de preuve e outil de gouvernement, dois polos em permanente articulação. Enquanto prova numérica, a estatística serve à descrição da realidade e, como tal, é uma referência indisputável que precede os debates. Por sua vez, enquanto atividade de Estado, a estatística serve à prescrição e à ação sobre esta mesma realidade e, como tal, constitui alvo de denúncia e desconstrução da pirâmide de equivalências que sustentam a distinção social. Em sua obra maior, La politique des grands nombres (1993), Desrosières procurou conciliar o aparente divórcio entre as histórias cognitiva e política da estatística, uma disciplina cujo significado e conteúdo foram se modificando entre os séculos XVIII e XXI.

Em seguida, esse autor adotou o termo quantificação, concebendo-o como a síntese de dois momentos – o de convir (convenir) e o de medir (mesurer) –, passando a se concentrar no exame dos condicionantes, procedimentos e efeitos sociais e políticos da quantificação. O realismo metodológico seguido por essa tradição introduz o social no coração da lógica da metrologia, desfazendo a impressão de que as convenções das formas estatísticas são arbitrárias (Desrosières, 200833 DESROSIÈRES, Alain. Pour une sociologie historique de la quantification. Paris: Presses de l’École des Mines, 2008.). O real não pode ser negado por um construtivismo absoluto, em que a medida cria totalmente o objeto. Inversamente, o papel da quantificação no governo das pessoas e das coisas não pode ser negado “por um realismo absoluto, em que as coisas teriam uma existência anterior independente da sua medida” (Armatte, 20144 ARMATTE, Michel. Introduction aux travaux d’Alain Desrosières : histoire et sociologie de la quantification. Statistique et Société, v. 2, n. 3, p. 17-23, 2014., p. 22).

No terreno anglo-saxônico, a sociologia da quantificação se nutriu dos aportes dos governmentality studies realizados principalmente no Reino Unido e na Austrália. Postulando um estilo de análise, mais do que um modelo teórico, as obras de Rose e Miller (1992)73 ROSE, Nikolas; MILLER, Peter. Political power beyond the state: problematics of government. British Journal of Sociology, v. 43, n. 2, p. 172-205, 1992., Rose (1999)72 ROSE, Nikolas. Powers of freedom: reframing political thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1999., Miller (2001)61 Miller, Peter. Governing by numbers: why calculative practices matter. Social Research, v. 68, n. 2, p. 379-396, 2001., Burchell, Gordon e Miller (1991)19 BURCHELL, Graham; GORDON, Colin; MILLER Peter (eds.). The Foucault Effect: studies in governmentality. Chicago: University of Chicago Press, 1991. e Dean (1999)29 DEAN, Mitchell. Governmentality: power and rule in modern society. Londres: Sage, 1999. procuram explicitar as formas de racionalidade subjacentes a diferentes regimes de governo, de maneira a demonstrar as conexões entre os modos pelos quais nos conhecemos e somos levados a nos conhecer, e os modos como nos governamos e somos governados no presente. Seus trabalhos exploram as ressonâncias entre as últimas reflexões de Michel Foucault (200844 FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.; 2009)45 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2009. sobre a gestão da população e outros projetos intelectuais, como a teoria do ator-rede, de Bruno Latour (2000)55 LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp, 2000..

Dessa maneira, oferecem uma abordagem empírica sobre o caráter capilarizado do governo nas sociedades modernas, através da noção de governo à distância, que também aplicaram à política dos números (Rose, 199972 ROSE, Nikolas. Powers of freedom: reframing political thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.). Nesse quadro, certos instrumentos de cálculo passam a ser examinados em termos de “tecnologias de governo”, ou seja, como mecanismos por meio dos quais programas de governo se tornam operacionais (Miller, 200161 Miller, Peter. Governing by numbers: why calculative practices matter. Social Research, v. 68, n. 2, p. 379-396, 2001.; Miller; Power, 201362 MILLER, Peter; POWER, Michael. Accounting, organizing, and economizing: connecting accounting research and organization theory. The Academy of Management Annals, v. 7, n. 1, p. 557-605, 2013.).

A contabilidade, por exemplo, foi reconhecida como um dos instrumentos preeminentes da quantificação moderna, enquanto dispositivo que permite atuar sobre a vida dos indivíduos e induzir comportamentos adequados a determinados objetivos econômicos. As práticas contábeis exigem e inspiram formas particulares de organização, encontrando-se vinculadas a uma ambição estratégica ou programática – aumentar a eficiência, fomentar a responsabilidade, melhorar a tomada de decisões, aumentar a competitividade –, mas fundamentalmente fornecem um meio de agir sobre os indivíduos de maneira a influenciar suas condutas, sem perder sua “liberdade” de escolha. Assim, as práticas de cálculo da contabilidade, a exemplo de outras ferramentas de quantificação, promovem o governo dos indivíduos, induzindo-os a pensarem em si mesmos como calculating selves (Miller, 2001).

A obra de dois egressos do já referido grupo de Bielefeld e expoentes da tradição anglo-saxã merece destaque. Os trabalhos precursores do epistemólogo Ian Hacking sobre a emergência e a expansão do raciocínio estatístico resgataram o conceito de biopolítica de Foucault, mas enfocando um aspecto pouco desenvolvido pelo filósofo francês – a estatística. No campo da ciência, a erosão do determinismo e a introdução do acaso, ainda que “domesticado” pelo cálculo, impulsionaram a racionalidade estatística, um processo acompanhado no plano da institucionalidade do Estado pela proliferação de agências produtoras de dados em toda a Europa. A “avalanche de números impressos” produzidos por essas agências, ao longo da primeira metade do século XIX, promoveu a formação de novas categorias de classificação de pessoas, em resposta à necessidade de contar e enumerar uniformemente a população que se pretendia governar (Hacking, 198248 HACKING, Ian. Biopower and the avalanche of printed numbers. Humanities in Society, v. 5, p. 279-295, 1982.; 199049 HACKING, Ian. The taming of chance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.). Um processo histórico que também vai resultar no estabelecimento da ideia de normalidade como conceito-chave para a compreensão dos comportamentos sociais.

Alguns anos mais tarde, a obra de Theodore Porter (1995)69 PORTER, Theodore. Trust in numbers: the pursuit of objectivity in science and public life. Princeton: Princeton University Press, 1995., Trust in numbers, deslocou o foco sobre a ciência e a administração estatal para o papel da quantificação em campos aplicados. Porter mostrou que a difusão da razão estatística dependeu da importância crescente da objetividade mecânica na ciência e na vida pública, isto é, da preferência sistemática por protocolos e técnicas analíticas padronizadas em relação ao julgamento profissional, baseado na prática, no treinamento e na experiência pessoal. Assim, desde o século XIX, grupos profissionais em competição recorreram aos números para consolidar sua posição na divisão do trabalho, produzindo novos dispositivos de quantificação e aplicando-os a domínios até então incomensuráveis, como o cálculo dos seguros, nas mãos dos atuários, e a análise de custo-benefício, pioneiramente desenvolvida pelos engenheiros.

Tais antecedentes inspiraram novos olhares sobre a quantificação, na virada de século. A agenda de pesquisa viu-se ampliada com a introdução da análise da reatividade (reactivity) gerada pelas medições estatísticas (Espeland; Sauder, 200741 ESPELAND, Wendy; SAUDER, Michael. Rankings and reactivity: how public measures recreate social worlds. American Journal of Sociology, v. 113, p. 1-40, 2007.; Espeland; Stevens, 200842 ESPELAND, Wendy; STEVENS, Mitchell. The sociology of quantification. Arch. europ. sociol., v. 49, n. 3, p. 401-436, 2008.) como forma de reconhecer a reflexividade (e não a mera passividade) dos atores que são objeto das medidas, os efeitos de retroalimentação (feedback loops) e a performatividade (performativity) das estatísticas, em termos da sua capacidade de incidir sobre a realidade que os números não apenas descrevem ou refletem.

O desenvolvimento – por muitos anos em paralelo – das duas correntes ou “tradições” aqui mencionadas resultou na iluminação das dimensões social e político-cognitiva dos números, dos objetos estatísticos e das categorias de pensamento que eles propõem. O distanciamento da epistemologia clássica, somado a uma abordagem convencionalista, abriu a possibilidade de inquirir as escolhas, pressupostos, acordos e compromissos que estão na origem de todo dispositivo de medição estatística.

Nesse sentido, podemos identificar um primeiro passo dado por toda essa literatura, visando recuperar a historicidade, de modo a romper com a percepção dos números como simples objetos técnicos – fortemente relacionados aos ideais de precisão, objetividade ou neutralidade – e revelar seu caráter convencional. O segundo passo consistiu em tornar visíveis os diversos efeitos sociais e políticos produzidos pelos números nas sociedades modernas.

Entre os anos de 1990 e o início dos anos de 2000, o variado leque de estudos de caso (Anderson, 19882 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. 2. ed. São Paulo: Cia das Letras, 2008.; Beaud; Prévost, 19975 BEAUD, Jean-Pierre; PRÉVOST, Jean-Guy. La forme est le fond : la structuration des appareils statistiques nationaux (1800-1945). Revue de Synthèse, v. 118, n. 4, p. 419-456, 1997.; Blum; Mespoulet, 200313 BLUM, Alain; MESPOULET, Martine. L’anarchie bureaucratique : statistique et pouvoir sous Staline. Paris: La Découverte, 2003.; Curtis, 200127 CURTIS, Bruce. The politics of population: state formation, statistics and the census of Canada, 1840-1875. Toronto: University of Toronto Press, 2001.; Loveman, 200957 LOVEMAN, Mara. The race to progress: census taking and nation making in Brazil (1870-1920). Hispanic American Historical Review, v. 89, n. 3, p. 435-470, 2009.; Otero, 200666 OTERO, Hernán. Estadística y nación: una historia conceptual del pensamiento censal de la Argentina moderna, 1869-1914. Buenos Aires: Prometeo libros, 2006.; Patriarca, 199668 PATRIARCA, Silvana. Numbers and nationhood: writing statistics in nineteenth century Italy. Cambridge: Cambridge University Press, 1996., entre outros), o caráter fortemente empírico e a perspectiva socio-histórica de muitos desses trabalhos foram fundamentais para comprovar a hipótese –central para a sociologia– de que as estatísticas concorrem para instituir a realidade social antes de refleti-la. Este aspecto chama atenção para a importância particular da abordagem histórica e historiográfica na afirmação de uma perspectiva relativista e construtivista sobre um objeto de fronteira como a estatística.

Assim, a aproximação bastante produtiva entre a história e a sociologia nos parece uma característica que está na gênese do campo, e que traduz o caráter pluridisciplinar do seu objeto. Não por acaso, uma grande parte dos seus autores tem dupla formação e/ou atua na interface entre a história e as ciências sociais. Nesse sentido, os sociólogos encontraram o debate sobre a natureza performativa e recursiva dos números já fermentado por esses trabalhos de socio-história e sociologia histórica, quando passaram a se interessar mais diretamente sobre as formas de quantificar e induzir a agência social no neoliberalismo.

Os efeitos reflexivos e críticos da abordagem histórica da estatística como objeto de estudo, que se encontra na origem do campo, ampliaram o potencial explicativo de análises mais recentes sobre a quantificação nas sociedades do presente. A partir dos anos 2000, novos temas de investigação foram incorporados, como as medições ou avaliações de desempenho, os rankings (Espeland; Sauder, 200741 ESPELAND, Wendy; SAUDER, Michael. Rankings and reactivity: how public measures recreate social worlds. American Journal of Sociology, v. 113, p. 1-40, 2007.), o benchmarking (Bruno; Didier, 201355 LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp, 2000.; Fougner, 200846 FOUGNER, Tore. Neoliberal governance of states: the role of competitiveness indexing and country benchmarking. Millenium: Journal of International Studies, v. 37, n. 2, p. 303-326, 2008.) e a política dos Big Data (Rouvroy, 201474 ROUVROY, Antoinette. Big data : de nouveaux outils à combiner aux savoirs établis et à encadrer par la délibération publique. Statistique et Société, v. 2, n. 4, p. 33-41, 2014.; 201620 CAMARGO, Alexandre de P. R. A construção da medida comum: estatística e política de população no Império e na Primeira República. Tese (Doutorado em Sociologia). Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.). Trata-se de um novo regime de quantificação, que apenas começa a ser problematizado pelas ciências sociais, despertando crescente atenção (Espeland; Stevens, 200842 ESPELAND, Wendy; STEVENS, Mitchell. The sociology of quantification. Arch. europ. sociol., v. 49, n. 3, p. 401-436, 2008.).

Ao lado da história e da sociologia, porém com menor vigor, se constituiu uma terceira abordagem sobre a quantificação, que merece ser mencionada. Desde uma perspectiva antropológica, os números são enfocados como elemento mediador das mais diferentes práticas culturais, um processo cognitivo fundacional, um fenômeno constitutivo de toda a vida social, como demonstrado pela obra pioneira de Thomas Crump (1990)25 CRUMP, Thomas. The anthropology of numbers. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.. As formas numéricas importam aqui em sua convergência com os poderes seculares e espirituais, os estados emocionais das pessoas comuns e a experiência do transcendente. A numerologia, o jogo, a contabilidade e a probabilidade aparecem interligados, em sua capacidade de mobilizar, de calcular a ocorrência de eventos auspiciosos, de computar as dívidas e os méritos dos membros de uma comunidade religiosa, mas também de informar apostas, loterias e estratégias de investimento. A antropologia resgata o caráter mágico dos números que povoam o mundo moderno e contemporâneo, o qual se encontra na arbitragem de riscos e incertezas nas finanças, no cálculo das indenizações devidas às vítimas, na equivalência pretendida entre o crime ou a ofensa, de um lado, e a punição, a anistia e a conciliação, de outro (Guyer et al., 201047 GUYER, Jane et al. Introduction: Numbers as inventive frontier. Anthropological Theory, v. 10, n. 1-2, p. 36-61, 2010., p. 36-61). Enquanto a sociologia, solidamente ancorada em uma sensibilidade histórica, coloca em questão os modos como nos governamos através dos números e as formas alternativas de quantificar a realidade, os trabalhos orientados pela etnografia se interessam pelas maneiras de habitar um mundo apreendido numericamente.

Alguns estudiosos descrevem os estudos da quantificação como uma conversa vibrante que cruza diferentes campos (Berman; Hirschman, 20188 BERMAN, Elizabeth; HIRSCHMAN, Daniel. The sociology of quantification: where are we now? Contemporary Sociology, v. 47, n. 3, p. 257-266, 2018.), outros se referem a ela como um movimento científico transdisciplinar ou um emerging field in the social sciences (Diaz-Bone; Didier, 201637 DIAZ-BONE, Rainer; DIDIER, Emmanuel. The sociology of quantification. Perspectives on an emerging field in the social science. Historical Social Research, v. 41, n. 2, p. 7-26, 2016.). O debate sobre já existir ou não um campo especializado ainda não está resolvido3 3 Para todos os efeitos, utilizamos o termo “campo” com fins expositivos. . Mas, vale lembrar que, no final da década de 1980, uma obra pioneira tentou definir algo como um programa próprio à sociologia da estatística e projetar o caminho por meio do qual as investigações empíricas deveriam se orientar (Alonso; Starr, 19871 ALONSO, William; STARR, Paul (eds.). The politics of numbers. Nova York: Russell Sage Foundation, 1987.).4 4 Paul Starr propôs um programa de pesquisa sobre a estrutura social e cognitiva dos sistemas estatísticos (Alonso; Starr, 1987, p. 8-9). A estrutura social corresponderia às relações sociais entre informantes, agências estatais, empresas privadas, órgãos profissionais e associações internacionais envolvidos nas redes de produção e usos da estatística. A estrutura cognitiva, por sua vez, consistiria nos determinantes da produção e da legibilidade dos números: os vínculos entre o desenho dos questionários, os pressupostos assumidos sobre a realidade social, os princípios de classificação, os métodos de mensuração e as normas de interpretação e apresentação dos dados. Retrospectivamente, não há dúvida de que aquele programa inicial foi transbordado em diferentes planos, em parte porque a quantificação como fenômeno social continuou a expandir-se, fortalecer-se e adquirir novas formas no presente, acompanhando as transformações sofridas pelo regime de acumulação capitalista, a partir dos anos 1970. A forte tendência à financeirização, a profusão dos modos neoliberais de governo, o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação estimularam ainda mais o interesse acadêmico na quantificação. Ao mesmo tempo, os intercâmbios entre especialistas de diferentes latitudes enriqueceram a perspectiva teórica, de tal maneira que a caixa de ferramentas conceituais para a investigação empírica da quantificação vem sendo bastante ampliada (Espeland; Stevens, 200842 ESPELAND, Wendy; STEVENS, Mitchell. The sociology of quantification. Arch. europ. sociol., v. 49, n. 3, p. 401-436, 2008.; Mennicken; Espeland, 201959 MENNICKEN, Andrea; ESPELAND, Wendy. What’s new with numbers? Sociological approaches to the study of quantification. Annual Review of Sociology, v. 45, p. 223-245, 2019.).

Quantificação e sociologia: uma agenda comum

Consideramos que a sociologia não deve deixar os números fora de suas poderosas lentes desrreificadoras uma vez que, como sugerem Espeland e Stevens (2008, p. 433)42 ESPELAND, Wendy; STEVENS, Mitchell. The sociology of quantification. Arch. europ. sociol., v. 49, n. 3, p. 401-436, 2008., “os números se encontram fortemente implicados nas questões centrais que atravessam a disciplina”. Tanto as pesquisas históricas revisadas acima quanto as contribuições sociológicas mais recentes convergem em apontar que as estatísticas afetam a forma como percebemos e interpretamos a realidade; como classificamos e valorizamos os outros, a nós mesmos e as situações compartilhadas; intervêm quando consideramos nossas opções, decidimos e agimos, sozinhos ou em interrelação com os outros; tornam operáveis as relações de poder e medeiam a manutenção das – ou a resistência às – formas de dominação. Por isso, concordamos com Mennicken e Espeland (2019)59 MENNICKEN, Andrea; ESPELAND, Wendy. What’s new with numbers? Sociological approaches to the study of quantification. Annual Review of Sociology, v. 45, p. 223-245, 2019. quando assinalam que a pesquisa sociológica teria muito a ganhar ao se interessar mais em compreender as interações entre os diferentes regimes de quantificação e suas implicações mais amplas para a (re)criação da ordem social e política.

Quantificar e governar

Desde suas origens, os estudos sociais da quantificação chamaram a atenção para a centralidade da estatística e dos sistemas estatísticos na construção da autoridade e da dominação social. Enquanto os enfoques de raiz foucaultiana analisaram a produção de espaços e sujeitos de governo por meio dos números, autores ligados à sociologia pragmática, especialmente Desrosières e seus seguidores, entenderam a quantificação como um sistema de convenções e uma ferramenta de coordenação.

No começo dos anos de 1990, essas duas chaves de leitura foram impulsionadas empiricamente por um conjunto de pesquisas historiográficas. São estudos que releram o processo de construção do Estado, dos espaços nacionais e da regulação dos conflitos a partir da trajetória dos censos, nos Estados Unidos (Anderson, 19883 ANDERSON, Margo. The American census: a social history. New Haven: Yale University Press, 1988.), na Itália (Patriarca, 199668 PATRIARCA, Silvana. Numbers and nationhood: writing statistics in nineteenth century Italy. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.), no Canadá (Curtis, 200127 CURTIS, Bruce. The politics of population: state formation, statistics and the census of Canada, 1840-1875. Toronto: University of Toronto Press, 2001.) e na Argentina (Otero, 200666 OTERO, Hernán. Estadística y nación: una historia conceptual del pensamiento censal de la Argentina moderna, 1869-1914. Buenos Aires: Prometeo libros, 2006.). Houve obras que examinaram a relação entre as estatísticas regionais e a autoridade política na União Soviética, onde se desenvolveu uma “demografia stalinista”, pretensamente mais científica (Blum; Mespoulet, 200313 BLUM, Alain; MESPOULET, Martine. L’anarchie bureaucratique : statistique et pouvoir sous Staline. Paris: La Découverte, 2003.).

Outras obras se inseriram no cruzamento entre a história social da produção dos números e sua relação com os regimes políticos, colocando em evidência o funcionamento dos sistemas estatísticos em experiências totalitárias, como a da Alemanha nazista (Tooze, 200182 TOOZE, Adam. Statistics and the German State: the making of modern economic knowledge, 1900-1945. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.) e a da Itália fascista (Prévost, 200970 PRÉVOST, Jean-Guy. A total science: statistics in liberal and fascist Italy. Montreal: McGill-Queens University Press, 2009.). Tiveram papel igualmente importante os trabalhos que buscaram relacionar as inovações epistemológicas ao fortalecimento da capacidade governativa do Estado. Este é o caso, entre outros, das análises sobre a revolução político-cognitiva provocada pela adoção da amostragem probabilística nas estatísticas oficiais, através da qual se realizou a montagem da engenharia institucional do Estado social, em meados do século XX (Beaud; Prévost, 19986 BEAUD, Jean-Pierre; PRÉVOST, Jean-Guy. The politics of measurable precision: the emergence of sampling techniques in Canada’s Dominion Bureau of Statistics. The Canadian Historical Review, v. 79, n. 4, p. 691-725, 1998.).

Na perspectiva foucaultiana (2008; 2009) e latouriana (2000), mapas, cartogramas, censos e estatísticas são abordados como tecnologias de governo à distância, porque respeitam a autonomia de esferas privadas e sugerem condutas adequadas a concepções particulares de bem-estar individual e coletivo. Nesse registro, a estatística seria uma tecnologia liberal de governo, porque procede pela delimitação da autoridade e pela codificação de domínios da sociedade, com seus próprios processos econômicos e dinâmicas de coesão, povoados por indivíduos que agem de acordo com certos princípios de interesse, fora do escopo legítimo de uma intervenção direta. A estatística é vista aqui como um dispositivo de transferência da atividade governamental para a superfície da sociedade, ao estruturar o campo de ações possíveis, e “fornecer aos atores normas e padrões para seus próprios julgamentos, aspirações e condutas” (Rose, 199972 ROSE, Nikolas. Powers of freedom: reframing political thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1999., p. 48-49).

Autores situados no marco teórico dos governmentality studies, como Nikolas Rose, Peter Miller e Mitchell Dean, dedicaram-se a analisar o elo constitutivo entre a quantificação da vida pública e o governo liberal. Os números se apresentariam como instrumento de realização da promessa democrática de alinhar o exercício da autoridade pública com as crenças e os valores privados dos cidadãos.

Por um lado, os números impõem um freio ao poder discricionário de governantes e especialistas, ao obrigar que escolhas políticas e decisões burocráticas se submetam a protocolos que as fazem parecer produtos de técnicas analíticas padronizadas. Por outro lado, “o governo democrático requer cidadãos vigilantes e calculadores em relação aos efeitos do poder e aos riscos de suas decisões privadas”, constantemente afetadas por pesquisas de opinião e de mercado, que deslocam e quantificam as percepções de realidade (Rose, 199972 ROSE, Nikolas. Powers of freedom: reframing political thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1999., p. 197-198). A quantificação crescente do mundo contemporâneo seria um fenômeno a ser compreendido por duas dimensões complementares que caracterizam o governo das sociedades modernas: a vigilância mútua e a indução das condutas mediante liberdades e autonomias produzidas e consumidas pelo liberalismo.

Nesse sentido, algumas questões heurísticas tornam-se sociologicamente relevantes para pensarmos a relação entre quantificação, dominação e coordenação: o que pode ser visualizado ou, inversamente, o que permanece obscuro em determinados momentos ou sociedades, quando olhamos para dispositivos como censos, mapas, gráficos, tabelas e diagramas que formam o campo visual sobre o que e quem deve ser governado? Como a estatística produz sujeitos de governo – de trabalhadores e consumidores aos chamados grupos de risco? Como os números sugerem ou induzem as habilidades deles esperadas? Como indivíduos e populações são levados a se identificar com determinados grupos, de maneira a se tornaram virtuosos e governáveis?

Estas são questões sensíveis aos governmentality studies, mas também aos estudos da quantificação, na medida em que privilegiam a dimensão material, visual e espacial do governo, e chamam atenção para as cartografias de poder e autoridade. Assume-se que o sucesso de um regime de governo depende de como os atores se experimentam através das capacidades (como tomar decisões racionais), qualidades (como ter um emprego) e estatutos (como ser um cidadão ativo) por ele incentivados e favorecidos (Dean, 199929 DEAN, Mitchell. Governmentality: power and rule in modern society. Londres: Sage, 1999., p. 32).

Em que pese a fecundidade dessa perspectiva teórica, evidente para pensar a relação entre Estado, população e estatística como um trinômio governamental (Camargo, 201620 CAMARGO, Alexandre de P. R. A construção da medida comum: estatística e política de população no Império e na Primeira República. Tese (Doutorado em Sociologia). Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.), seu construtivismo radical não leva em conta a ciência estatística e seu papel na coordenação da vida social. Assim como Foucault, seus autores vincularam os números públicos à governamentalidade liberal e neoliberal, deixando de lado as variações entre as técnicas estatísticas e suas correspondências com distintas modalidades de crítica da realidade, justamente o que interessou a Desrosières e aos pragmatistas franceses (Diaz-Bone; Didier, 201637 DIAZ-BONE, Rainer; DIDIER, Emmanuel. The sociology of quantification. Perspectives on an emerging field in the social science. Historical Social Research, v. 41, n. 2, p. 7-26, 2016., p. 15).

Desde princípios dos anos de 1990, Desrosières engajou-se em subsidiar conceitualmente uma agenda de estudos empíricos e históricos sobre a construção estatística de um espaço internacional de coordenação dos Estados, do mercado e da agência econômica. Nesse sentido, a relação entre a ciência estatística – enquanto referência indisputável que precede os debates –, e as tradições nacionais dos sistemas estatísticos foi originalmente sugerida como um programa de pesquisa. Embora tenha permanecido algo fluida e pouco teorizada, a proposta de abordar a estatística “entre a ciência universal e as tradições nacionais” (Desrosières, 199535 DESROSIÈRES, Alain; THÉVENOT, Laurent. Les catégories socioprofessionnelles. Paris: La Découverte, 1988., p. 167-183) forneceu as “condições de equivalência” até então inexistentes para uma base de estudos comparados sobre a quantificação.

Nas décadas de 1990 e de 2000, na esteira aberta por Desrosières, uma série de trabalhos tematizou as relações entre, de um lado, a difusão do internacionalismo estatístico, pressionando pela normalização das classificações, dos instrumentos de medição e da infraestrutura de contagem populacional –, e, de outro lado, a conformação histórica de práticas estatísticas nacionais, cujo perfil é inseparável da genealogia dos Estados e das estruturas locais de dominação. Anos depois, esta proposta foi ampliada para uma análise comparada das experiências estatísticas da Europa, dos Estados Unidos e do Canadá (Beaud; Prévost, 20007 BEAUD, Jean-Pierre; PRÉVOST, Jean-Guy (orgs.). L’ère du chiffre : systèmes statistiques et traditions nationales. Montreal: Presses de l´Université du Québec, 2000.) e, posteriormente, também da América Latina (Senra; Camargo, 201080 SENRA, Nelson de C.; CAMARGO, Alexandre de P. R. (orgs.). Estatísticas nas Américas: por uma agenda de estudos históricos comparados. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.; Otero, 201867 OTERO, Hernán. Socio-history of statistics on Latin America: a review. Histoire et Mesure, v. 33, p. 13-32, 2018.).

Entre as questões compartilhadas por esses trabalhos, encontramos: os métodos empregados nos censos dos séculos XIX e XX, as formas de apresentação das informações numéricas e seu papel nos movimentos de construção e reforma do Estado; as instituições e os atores que tiveram na estatística uma fonte de autoridade e intervenção nos debates sociais; o papel das tecnologias de quantificação na construção das práticas e dos públicos das ciências; a importância das formas de raciocinar e valorar com números para a formação de um éthos econômico capitalista e para a modernização das relações de trabalho. Estas e outras questões deram uma identidade e um interesse comum aos historiadores sociais da estatística, que, assim, conseguiram superar parcialmente sua dispersão inicial, chamando atenção para as condições de comparabilidade, face às diferenças nacionais nos modos de produção e circulação dos objetos quantificados.

Em decorrência da reconstrução histórica dos sistemas estatísticos oficiais – ou “tradições nacionais” – a perspectiva permitiu, ainda, evidenciar a relação entre as questões socialmente relevantes, que foram colocadas na agenda das políticas públicas em diferentes momentos históricos, e as ferramentas estatísticas criadas para objetivar tais questões, dar-lhes legibilidade e, assim, delimitar domínios de ação governamental, com o propósito de atuar sobre elas. Nesse sentido, os temas e os limites das investigações estatísticas oficiais estariam refletindo os contornos da agenda política a cada momento. Para além da utilização – tão comum hoje em dia – de indicadores sociais nas diferentes etapas do ciclo de formulação e avaliação das políticas públicas, a proposta de Desrosières (1993)31 DESROSIÈRES, Alain. La politique des grands nombres : histoire de la raison statistique. Paris: La Découverte, 1993. evidenciou a profunda interdependência entre os modos de objetivar estatisticamente a realidade e as formas institucionais de gerenciá-la. As categorias de descrição estatística estão enredadas nas modalidades de ação do Estado.

Em L’État, le marché et les statistiques (2003), Desrosières32 DESROSIÈRES, Alain. Historiciser l’action publique. L’Etat, le marché et les statistiques. In: LABORIER, Pascale; TROM, Danny (eds.). Historicités de l’action publique. Paris : Presses Universitaires de France, 2003. p. 207-221. redefiniria aquele programa, ao conceber o conceito de “regimes políticos da estatística”, identificando cinco tipos ideais de Estado, a partir de sua relação com a economia e a conduta econômica. Dessa maneira, procurava demonstrar as associações entre os modos de quantificar e os modos de governar.

Assim, as tecnologias do censo e das estatísticas de população e produção se ajustariam às necessidades do “Estado engenheiro”; as estatísticas de preço fundamentadas na teoria econômica clássica acompanham o “Estado liberal”; as estatísticas do trabalho, as pesquisas de orçamento das famílias operárias, as técnicas de cálculo de probabilidade para determinação do seguro social estão na base da racionalidade política do “Estado providencial”; a contabilidade nacional, as pesquisas sobre consumo e emprego e as técnicas econométricas respondem às necessidades do “Estado keynesiano”. Cabe destacar aqui o interesse expressivo dos Estados na elaboração de indicadores sociais e na sua utilização para nortear as políticas públicas. Então ainda uma promessa, o investimento nos indicadores visava fazer nascer uma verdadeira matriz de “contabilidade social”. Os indicadores sociais foram inspirados em outras ferramentas de comprovado sucesso no segundo pós-guerra, como as contas nacionais e o cálculo do PIB, no quadro da montagem do planejamento governamental, da reafirmação dos princípios econômicos keynesianos e da preocupação política com a instauração de uma democracia social baseada em medidas redistributivas.5 5 Para uma descrição do contexto histórico de surgimento dos indicadores sociais e sua importância progressiva no Brasil, ver Santagada (1992)

Sucedendo a crise dos dois modelos precedentes e imbricados, o “Estado neoliberal” põe fim às técnicas de previsão e planificação apoiadas no conhecimento macroeconômico, em proveito da generalização das técnicas de benchmarking, que repousam sobre o princípio das antecipações racionais e a promoção da competição entre os atores, segundo metas e objetivos mensuráveis, não mais segundo as relações concretas de que tomam parte (Armatte, 20144 ARMATTE, Michel. Introduction aux travaux d’Alain Desrosières : histoire et sociologie de la quantification. Statistique et Société, v. 2, n. 3, p. 17-23, 2014., p. 21).

Em um de seus últimos artigos, Le rôle du nombre dans le gouvernement de la cité neolibérale (2011), o modelo de Desrosières se sofistica significativamente, com a incorporação da noção de governamentalidade, em parte um reflexo da publicação tardia dos cursos de Foucault no Collège de France. Nele, Desrosières desenvolve a hipótese central de que a retroação dos indicadores sobre o comportamento dos atores deixa de ser o efeito não previsto das técnicas de quantificação para se tornar a finalidade da racionalidade política do neoliberalismo. Esta ideia rapidamente desperta a atenção de diversos cientistas sociais atraídos por seu valor explicativo e pela proliferação das formas contemporâneas de quantificação, especialmente os big data e o benchmarking, responsáveis pela rápida expansão conhecida pelo campo nos últimos anos.

Em função dos limites deste artigo, não podemos nos deter no seu exame, porém cabem algumas palavras sobre o benchmarking, esta arte específica de condução das organizações que, ao longo dos últimos anos, sob influência do paradigma do New Public Management, migrou do âmbito das empresas e negócios privados para a administração dos Estados. À diferença das estatísticas oficiais, o benchmarking não tem por finalidade refletir e transformar uma realidade concebida como objetiva e exterior aos sujeitos, mas modificar o comportamento dos próprios atores das organizações no curso da ação, promovendo um olhar autorreferenciado sobre si mesmos, descolado das relações sociais de que tomam parte. Isto porque os indicadores selecionados como referências nas comparações dependem dos próprios agentes para quantificar e monitorar suas atividades. A prerrogativa dos avaliadores em se avaliar é apresentada como uma vantagem, uma arma antiburocrática, já que os assalariados ganham uma margem expressiva de iniciativa, “supostamente se libertando das amarras da hierarquia e do formalismo dos regulamentos” (Bruno; Didier, 201316 BRUNO, Isabelle; DIDIER, Emmanuel. Benchmarking: l’État sous pression statistique. Paris: Zones, 2013., p. 17-27).

De um lado, sendo públicas (ou publicizadas), as medidas das atividades quantificadas constrangem os responsáveis a se esforçarem para evitar a humilhação dos resultados ruins. Por outro lado, cada ação a tomar é julgada em termos de fracasso a estigmatizar ou sucesso a recompensar, o que tem como efeito “dessolidarizar os agentes públicos do conjunto da sociedade e esvaziar a percepção de sua função social” (Bruno; Didier, 201316 BRUNO, Isabelle; DIDIER, Emmanuel. Benchmarking: l’État sous pression statistique. Paris: Zones, 2013., p. 51). Segundo esses autores, ao recorrer à quantificação incessante de todas as atividades segundo os imperativos da “qualidade total” e da “competitividade internacional”, o benchmarking “submete os indivíduos a uma disciplina indefinida, destinada a orientar seu engajamento na ação e a governar o que há de mais pessoal: suas iniciativas” (p. 120).

Para finalizar esta seção, apontamos algumas tendências de fundo. As origens e perspectivas bastante distintas das duas grandes tradições do campo – francesa e anglo-saxã –, não impediram que elas se encontrassem nos últimos anos, com a generalização do conceito de governamentalidade neoliberal, entendido como um modo de gerir e quantificar a população.

Outro aspecto importante, Alain Desrosières pode ser considerado o principal mediador dos dois grandes momentos no desenvolvimento do campo. Ao situar a estatística entre a ciência (outil de preuve) e as tradições nacionais (outil de gouvernement), ele diminuiu a dispersão dos estudos históricos até então existentes e forneceu subsídios para pesquisas comparadas, baseadas em pressupostos comuns. Anos mais tarde, seu projeto de relacionar os modos de quantificar aos modos de governar atrairia os cientistas sociais, interessados na generalização da quantificação para níveis da agência e domínios da vida social até então incomensuráveis.

Como vimos, os estudos das estatísticas começaram com uma forte vocação historiográfica, relacionando a elaboração dos números aos processos de state-building, à criação de imagens e representações da nação. Ainda mais, formularam questões como a construção da autoridade e os fundamentos da legitimidade dos serviços estatísticos do Estado. Hoje, o Estado é apenas uma entre diversas organizações que promovem um governo baseado em medições e números, seja em escala nacional ou global. Observa-se o crescente protagonismo de organismos internacionais (Nações Unidas, Banco Mundial, OCDE), organizações não-governamentais (na defesa dos direitos humanos e do meio-ambiente, na luta contra a pobreza e a favor da transparência) e think tanks transnacionais, junto a atores que poderíamos chamar de privados. Entre estes últimos, destacam-se as agências de avaliação de risco, o Fórum Econômico Mundial e o International Institute for Management Development (Fougner, 2008), cujo papel na elaboração de índices, rankings e todo tipo de informação numérica chamou a atenção dos cientistas sociais, marcando uma nova tendência nos estudos sobre a quantificação.

Compreender as especificidades do exercício do poder por meio dos números no mundo contemporâneo passa por colocar em relevo essa variedade de atores de reconhecida reputação, centrais no estabelecimento de novos modos de governança global e local, capazes de encobrir agendas normativas sob linguagens técnicas de avaliação neutra.6 6 Sobre ONGs, ver Rosa (2014); sobre agências de avaliação de crédito, Fioramonti (2014); sobre instrumentos da OCDE, como o PISA, Bogdandy e Goldmann (2012). Em paralelo ao deslocamento do Estado pela “competência” progressiva desses atores na elaboração de índices e rankings, o cenário atual é atravessado por um rápido processo de privatização da produção de dados, o que, segundo Diaz Bone (2019)36 DIAZ-BONE, Rainer. Statistical panopticism and its critique. Historical Social Research, v. 44, n. 2, p. 77-102, 2019., supõe a invisibilização das convenções em que se baseia a geração desses dados, permitindo-lhes contornar exigências de justificação e, assim, reduzir as possibilidades de questionamento e crítica.

Quantificar, classificar e “inventar” pessoas

Segundo Ian Hacking (1991)50 HACKING, Ian. How should we do the history of statistics? In: BURCHELL, Graham; GORDON, Collin; MILLER, Peter (eds.). The Foucault effect. Studies in governmentality. Chicago: The University of Chicago Press, 1991. p. 181-195., a linguagem estatística promoveu um conjunto de classificações por meio das quais as pessoas pensaram (e ainda pensam) a si mesmas. O vasto acúmulo de dados oficiais na Europa ao longo do século XIX forneceu o corpus empírico em que este autor baseou seu conceito de “nominalismo dinâmico” e que lhe permitiu ilustrar o processo social que denominou making up people – ou “modelação de pessoas” (Hacking, 200051 HACKING, Ian. Façonner les gens : le seuil de pauvreté. In: BEAUD, Jean-Pierre; PRÉVOST, Jean-Guy (orgs.). L’Ère du chiffre : systèmes statistiques et traditions nationales. Quebec: Presses de l’Université du Québec, 2000. p. 17-36.). “A enumeração requer tipos de coisas ou de pessoas a contar. A contagem é sedenta de categorias. Muitas das categorias que hoje utilizamos para descrever pessoas são derivadas das necessidades de enumeração”7 7 No original: “enumeration demands kinds of things or people to count. Counting is hungry for categories. Many of the categories we now use to describe people are byproducts of the needs of enumeration”. (Hacking, 198248 HACKING, Ian. Biopower and the avalanche of printed numbers. Humanities in Society, v. 5, p. 279-295, 1982., p. 280).

Durante a fase do entusiasmo estatístico e da avalanche de números impressos, em meados do século XIX, os burocratas estatísticos estabeleceram uma série de classificações para a contagem, que lhes permitiu agrupar pessoas, classificá-las e codificá-las. A invenção de categorias em que cada uma das pessoas poderia (e deveria) se enquadrar foi, ao mesmo tempo, um modo de gerir e de enrijecer as novas conceituações acerca do ser humano. A criação dessas categorias deu origem a outras formas de conceber as pessoas. Assim, por exemplo, a classificação segundo a aptidão para o trabalho, originalmente desenhada por inspetores de fábrica, será assimilada pelo censo na escala da população, consagrando um princípio de categorização baseado no papel desempenhado pelos indivíduos nas relações de produção. Uma inovação que ajudou a instituir a estrutura de ocupações e de classes, orientando os termos pelos quais nós vemos a sociedade e nos situamos em relação a ela.

Ancorados em suas tradições estatísticas nacionais, e através do novo poder de classificar oficialmente todos os habitantes de um determinado território, os estatísticos geraram descrições das populações que viriam a moldar seu “caráter nacional”. Para Hacking, os modos de descrever as pessoas não são alheios a elas, porém, antes, as constituem, visto que delimitam o campo de possibilidades da sua personalidade.

A categorização censitária, em sua relação com as tradições estatísticas nacionais, foi objeto de uma série de estudos voltados para os processos de etnização e racialização das populações. São trabalhos que abordaram os censos como instrumento fundamental de construção e legitimação da identidade nacional e (pós)colonial. Para essa literatura, os censos permitem aos Estados produzir, representar e monitorar as identidades coletivas e, assim, regular os conflitos e as pressões sociais constitutivas da vida pública (Kertzer; Arel, 200254 KERTZER, David; AREL, Dominique (eds.). Census and identity: the politics of race, ethnicity and language in national censuses. Nova York: Cambridge University Press, 2002.).

Contar a população de maneira a construir posições de sujeito e, assim, solidificar identidades mais reais do que outras – tradicionais, familiares, locais, regionais – passou por atribuir efeitos legais e simbólicos a categorias que diluíam as individualidades em individualizações. Nessa perspectiva, a “língua materna” reflete menos a língua do indivíduo do que a língua da nação à qual ele pertence e pela qual ele se percebe. De modo similar, a “origem étnica” nos países imigrantistas do Ocidente “tem mais a ver com a presunção de pertencer a outro país de origem, não com o sentimento de pertencimento” (Kertzer; Arel, 200254 KERTZER, David; AREL, Dominique (eds.). Census and identity: the politics of race, ethnicity and language in national censuses. Nova York: Cambridge University Press, 2002., p. 27). Nesse sentido, o censo aparece ao lado de outros registros estatais criados para estabelecer o monopólio dos meios legítimos de mobilidade e dotar as categorias de eficácia simbólica, como, por exemplo, o uso dos documentos de identidade para garantir trânsito e distinguir os cidadãos dos estrangeiros, ou os nacionais dos súditos coloniais.

Outro ponto importante assinalado por essa literatura é que a adscrição de efeitos legais e simbólicos às categorias censitárias contribuiu para instituir a concepção estatística da normalidade como recorrência, o que reduz as diferenças entre os indivíduos a uma questão de medida, de acordo com a média e a distribuição da curva normal (Hacking, 199049 HACKING, Ian. The taming of chance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.; Carson, 200621 CARSON, John. The measure of merit: talents, intelligence and inequality in the French and American Republics, 1750-1940. Princeton: Princeton University Press, 2006.). Por um lado, mesmo as identidades de indivíduos “desviantes” e racializados se tornam escalonáveis, uma vez que se abre a possibilidade (ainda que hipotética) de o desempenho dos grupos subclassificados se elevar ao do estrato superior, considerado normativo, o que autoriza intervenções mais ou menos violentas sobre as suas condições de vida e socialização. Serão estes grupos os mais suscetíveis a estratégias marcadamente biopolíticas de gestão da população (Camargo, 201620 CAMARGO, Alexandre de P. R. A construção da medida comum: estatística e política de população no Império e na Primeira República. Tese (Doutorado em Sociologia). Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.).

Por outro lado, a concepção da normalidade como recorrência convida sutilmente os indivíduos a se verem através das categorias estatísticas, seja reforçando o estigma produzido pela geografia racializada do Estado (por gênero, cor, língua e etnia), seja, mais recentemente, denunciando a dominação pela contestação dos critérios de classificação, redefinindo seus usos e conteúdos.

Alguns trabalhos abordaram a relação entre a categorização racial e a própria construção do Estado. Pensemos, por exemplo, no caso dos Estados Unidos, onde a comparação estatística entre livres e escravos, negros e brancos, concorreu para cristalizar a imagem de país dividido. Em sua história social do censo estadunidense, Margo Anderson (1988)3 ANDERSON, Margo. The American census: a social history. New Haven: Yale University Press, 1988. mostrou como a guerra de secessão foi construída por uma polarização crescente, que teve nos números o referente comum dos pontos de vista em conflito. No censo de 1850, o desejo dos políticos do Sul de demonstrar estatisticamente a longevidade superior do estrato servil, em relação aos negros livres do Norte, deu origem a uma divisão racial tripartite – brancos, negros e mulatos –, que instituiu a noção poligenista de população – até então considerada crime pela religião –, enquanto subordinava os grupos de cor em número e condição, condenando-os à rápida absorção pela raça branca. Esse sistema foi concebido para controlar a população negra como um todo – não apenas aquela oriunda de cativeiro – e isolar biologicamente uma maioria branca avolumada pela imigração (Nobles, 200065 NOBLES, Melissa. Shades of citizenship: race and the census in modern politics. Stanford: Stanford University Press, 2000.).

A partir de 1890, essa classificação se sofisticou, subdividindo os mulatos em quadroons e octoroons, de acordo com a fração atávica de sangue negro. Ela perduraria até o censo de 1920, quando se adotou o princípio da one drop, one rule, que liquidava o grupo intermediário de mulatos, ao fazer da gota de sangue o critério de definição dos negros, e da pureza de sangue o de identificação dos brancos. Por essa razão, alguns trabalhos mostraram como o censo estadunidense se constituiu em um laboratório para a introdução pioneira de uma concepção antropológica e biológica da população, antes mesmo que o racismo científico e a teoria social formalizassem algumas de suas categorias como conceitos explicativos da mudança social (Schor, 200379 SCHOR, Paul. Statistiques de la population et politique des catégories aus États-Unis au XIXe siècle : théories raciales et questions de population dans le recensement américain. Annales de Démographie Historique, n. 105, p. 5-22, 2003.).

Também se inscrevem nesse grupo os estudos comparados sobre as categorias censitárias e as políticas raciais no Brasil e nos Estados Unidos (Nobles, 2000) e sobre as relações entre censo, Estado e sociedade na América Latina. Nessa direção, destaca-se a obra de Mara Loveman (2014)57 LOVEMAN, Mara. The race to progress: census taking and nation making in Brazil (1870-1920). Hispanic American Historical Review, v. 89, n. 3, p. 435-470, 2009., para quem os censos dos países da região foram orientados por dois projetos políticos complementares: um descritivo, que, para aquela autora, ajudou a definir as fronteiras culturais da comunidade imaginada; outro prescritivo, que estabeleceu a miscigenação racial como uma singularidade positiva desses países, diante do sistema internacional de Estados.

Um outro grupo de pesquisas situa-se no marco dos estudos pós-coloniais, tendo examinado o papel dos censos na montagem da empresa colonial e nos movimentos de libertação nacional. Seguindo a trilha aberta por Benedict Anderson (2008), trata-se de trabalhos que exploraram as interseções tecnológicas entre os censos e os mapas, de modo a alicerçar a territorialidade do Estado colonial, fixar suas fronteiras, prevenir conflitos e distribuir a burocracia, remodelando a hierarquia etnorracial pré-existente e modificando, assim, o terreno em que as populações colonizadas vivem, sentem e agem (Scott, 199581 SCOTT, David. Colonial governmentality. Social Text, n. 43, p. 191-220, 1995.; Chatterjee, 200422 CHATTERJEE, Partha. The politics of the governed: reflections on popular politics in most of the world. Nova York: Columbia University Press, 2004.; Legg, 200656 LEGG, Stephen. Governmentality, congestion and calculation in colonial Delhi. Social & Cultural Geography, v. 7, n. 5, p. 709-729, 2006.).

Nesse modo de uso, a estatística seria estratégica na superação da topografia local, que classificava vilas, mercados e aldeamentos segundo sua inserção em tradições culturais e relatos religiosos. Tais espaços, há séculos segmentados, seriam configurados e reconfigurados por meio dos censos e dos mapas, sendo reconstruídos como unidades territorialmente sólidas e delimitadas. Unidades dotadas de uma narrativa política e biográfica, “que lhes confere uma inédita profundidade histórica, atestando a existência, duradoura e estável, de um domínio colonial” (Scott, 199581 SCOTT, David. Colonial governmentality. Social Text, n. 43, p. 191-220, 1995., p. 208).

Sob esse ângulo, a história das estatísticas mostrou como as categorias oficiais concorrem para dividir grupos no interior de uma população, separando-os e ordenando-os em hierarquias codificadas. As estatísticas não apenas estabelecem essas divisões sociais, como também fixam essas categorias de pessoas, mesmo quando as margens dos grupos não são claramente definidas na vida social (Alonso; Starr, 19871 ALONSO, William; STARR, Paul (eds.). The politics of numbers. Nova York: Russell Sage Foundation, 1987.). No trabalho de agrupamento, as estatísticas oficiais podem reunir pessoas que até então não eram consideradas parte de uma mesma categoria. Uma vez subordinados a um estatuto administrativo e estatístico comum, pode ocorrer também que seus interesses se complementem ou se combinem. Nesse sentido, como disse Starr, as classificações oficiais não apenas registram, como também reescrevem as linhas da diferenciação social.

A estatística passou a ser um meio de reconhecimento da identidade e da importância numérica dos grupos (étnicos, raciais, de gênero etc.) perante o Estado. Por isso, certos grupos sociais se interessaram em ser contados e passaram a exigir que as autoridades públicas e os sistemas estatísticos institucionalizados registrassem e produzissem dados que tornassem seus grupos visíveis na esfera pública. Minorias raciais e étnicas, coletividades nacionais e comunidades religiosas mobilizaram-se e expressaram publicamente sua intenção de participar das definições estatísticas e/ou censitárias.

Por outro lado, devemos notar que, como indicamos acima, os estudos da quantificação são herdeiros da preocupação com os modos como os dispositivos permitem moldar e influenciar o comportamento das pessoas e atuar como “tecnologias de si”. Dando continuidade às análises sobre a subjetividade disciplinada (Rose, 199671 ROSE, Nikolas. Inventing ourselves: psychology, power and personhood. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.), alguns estudiosos têm explorado o fenômeno mais recente da penetração cada vez mais difusa da quantificação na vida cotidiana, sua expansão no plano da vida pessoal, e sua influência na configuração do quantified-self (Nafus, 201663 NAFUS, Dawn (ed.). Quantified: biosensing technologies in everyday life. Cambridge: MIT Press, 2016.). As novas tecnologias criaram a possibilidade de as pessoas quantificarem a si mesmas, gerando e analisando rotineiramente seus próprios dados (self-tracking), de maneira a avaliar e qualificar suas ações e, também, a dos outros (Neff; Nafus, 201664 NEFF, Gina; NAFUS, Dawn. Self-tracking. Cambridge: MIT Press, 2016.).

Para essas abordagens, fica claro que os dispositivos que quantificam o eu têm a intenção de influir ativamente no comportamento que rastreiam. Da mesma forma, as métricas digitalizadas levam a novos e variados esquemas de classificação dos indivíduos, os quais são usados por empresas e corporações para a criação de mercados – por exemplo, mercados de créditos ou de seguros, de saúde, de educação, entre outros –, o que, por sua vez, afeta as chances e a qualidade de vida dessas pessoas. Nesse sentido, também aqui fica evidente que os Estados e suas classificações oficiais tendem a perder protagonismo no século XXI, enquanto novos dispositivos de quantificação, criados e disseminados por outros atores tornam-se disponíveis – empresas de plataforma e redes sociais, sociedades financeiras, agências nacionais e internacionais de crédito, fundações transnacionais etc. –, tornam-se capazes de moldar e gerir novas subjetividades.

Quantificar, resistir e criticar

Embora as estatísticas possuam uma longa história de articulação com o Estado, em sua pretensão de controlar populações e exercer a dominação, não é menos verdade que elas se têm vinculado à reforma social (Cullen, 197526 CULLEN, Michael J. The statistical movement in Early Victorian Britain. Nova York: The Harvester Press Limited, 1975.) e associado a denúncias de injustiças, arbitrariedades e desigualdades sociais (Bruno; Didier; Previeux, 201417 BRUNO, Isabelle; DIDIER, Emmanuel; PRÉVIEUX, Julien (eds.). Statactivisme: comment lutter avec les nombres. Paris: Zones, 2014.; Bruno; Didier; Vitale, 201417 BRUNO, Isabelle; DIDIER, Emmanuel; PRÉVIEUX, Julien (eds.). Statactivisme: comment lutter avec les nombres. Paris: Zones, 2014.). Conforme destacou Desrosières (2014)34 DESROSIÈRES, Alain. Statistics and social critique. Partecipazione e Conflitto, v. 7, n. 2, p. 348-359, 2014., existe uma outra história dos usos da estatística como instrumento de crítica social. Enquanto as abordagens históricas relacionaram a estatística ao exercício do poder, privilegiando o polo dos grupos dominantes, os estudos mais recentes têm enfocado a estatística como uma ferramenta que potencializa a ação política e a crítica da realidade, enfatizando a capacidade de agência dos atores sociais, incluindo os grupos subordinados, que delas também se apropriam para resistir e tentar reverter relações de poder.

Uma das contribuições mais importantes dessa literatura foi mostrar que, para além da autoridade dos números estar baseada na pretendida objetividade e imparcialidade das técnicas, e apesar de uma das grandes promessas da estatística moderna ser a despolitização da política, os números podem ser repolitizados de diferentes maneiras. Um conjunto de trabalhos tem chamado atenção para o papel renovado que a quantificação assume na organização do ativismo político, dos movimentos sociais e de variados tipos de protestos (Bruno; Didier; Previeux, 201417 BRUNO, Isabelle; DIDIER, Emmanuel; PRÉVIEUX, Julien (eds.). Statactivisme: comment lutter avec les nombres. Paris: Zones, 2014.; Bruno; Didier; Vitale, 201418 BRUNO, Isabelle; DIDIER, Emmanuel; VITALE, Tommaso. Statactivisme. Forms of action between disclosure and affirmation. Partecipazione e Conflitto, v. 7, n. 2, p. 198-220, 2014.; Didier; Tasset, 201340 DIDIER, Emmanuel; TASSET; Cyprien. Pour un statactivisme. La quantification comme instrument d’ouverture du possible. Revue des Sciences Humaines, v. 24, p. 123-140, 2013.). Ativistas das mais diversas causas recorreram a argumentos estatísticos e se apropriaram das informações numéricas como um meio de denúncia e crítica dos poderosos. Essas situações demonstraram que a quantificação não é sempre, nem naturalmente, um instrumento de imposição dos interesses das elites – econômicas, técnicas e políticas –, ou de quem está à frente das grandes organizações, sejam elas públicas ou privadas, nacionais ou transnacionais. Também pode ser um instrumento valioso para minar a autoridade e confrontar os poderes institucionalizados.

Segundo os autores que cunharam o termo, a noção de statactivisme combina uma grande variedade de práticas militantes e de ação política com números, e que possui em comum “a disposição para colocar as estatísticas a serviço da emancipação política” (Bruno; Didier; Previeux, 201417 BRUNO, Isabelle; DIDIER, Emmanuel; PRÉVIEUX, Julien (eds.). Statactivisme: comment lutter avec les nombres. Paris: Zones, 2014., p. 27). Os últimos anos assistiram à emergência de novos movimentos sociais, como focos de resistência à expansão dos meios de quantificação abraçados pelo neoliberalismo, o que levou tais autores a formular este conceito descritivo – e, ao mesmo tempo, otimista –, capaz de abranger um ativismo social plural que se expressa através da linguagem da estatística.

Do ponto de vista teórico, é importante sublinhar que se trata de uma inovação inspirada na economia das convenções. O conceito consiste em uma peça do campo intelectual francês, após se consagrar a passagem da sociologia crítica de Pierre Bourdieu à sociologia da crítica (ou sociologia pragmática) de Boltanski e Thévenot. Em Sociologie de la critique, Boltanski propõe uma distinção entre o que chama de realidade, que “tende a se confundir com o que parece se manter por sua própria força”, ou seja, com a ordem, e, de outro lado, o mundo, o fluxo de acontecimentos e experiências, cuja possibilidade não está contida na totalidade conhecida (Boltanski, 200911 BOLTANSKI, Luc. De la critique: précis de sociologie de l’émancipation. Paris: Gallimard, 2009., p. 93). Nessa abordagem, a estatística é concebida como forma institucional que coloca em questão a realidade e abre caminho para o mundo. Dessa maneira, justifica-se a reivindicação de que a sociologia aborde os modos de governo e seu investimento em formas estatísticas, assim como as operações críticas que envolvem diferentes atores sociais.

Como defende o artigo de Bruno e Didier neste dossiê, as pesquisas mais recentes dentro dessa linha de análise têm demonstrado que, tanto ao longo da história quanto na atualidade, o statactivisme se difundiu em diferentes campos e com variados alcances. Em alguns casos, as experiências de ativismo estatístico consistiram meramente na denúncia das falhas, lacunas ou limitações das estatísticas públicas. Por vezes, tomou a forma da militância a favor das estatísticas oficiais, levando em consideração aspectos da realidade até então negligenciados, denunciando as prioridades estabelecidas pelos regimes de medição, e destacando a relevância de elementos desprezados pelas práticas de quantificação. Em outros casos, procurou-se expor as contradições internas de um sistema estatístico ou expor os preconceitos em que este se baseia, para mostrar que as estatísticas não têm a neutralidade ou a imparcialidade que muitos pretendem.

Entre as práticas statactivistes, encontra-se a elaboração de indicadores alternativos aos oficiais como fonte de intervenções políticas, e como um contradiscurso estatístico que permite confrontar o poder estatal de nomeação e descrição do real, para mostrar uma realidade diferente da oficial. No entanto, cabe notar, com Desrosières (2014)34 DESROSIÈRES, Alain. Statistics and social critique. Partecipazione e Conflitto, v. 7, n. 2, p. 348-359, 2014., que o sucesso de um empreendimento crítico desse tipo nunca está garantido com antecedência. Depende da precisão dos instrumentos de crítica, bem como da solidez de instituições e redes que dão sustentação aos números: “o sucesso da crítica social expressa na linguagem estatística não pode se apoiar meramente na justeza dos argumentos, mas depende, em grande medida, da rede política e social em que aquela está inserida” (Desrosières, 201434 DESROSIÈRES, Alain. Statistics and social critique. Partecipazione e Conflitto, v. 7, n. 2, p. 348-359, 2014., p. 357).8 8 No original: “the success of the social critique expressed in the language of statistics cannot rely simply on the justness of the arguments, but depends largely on the political and social network in which it is inscribed”.

O ativismo estatístico seria um passo para a emancipação em relação à autoridade das estatísticas oficiais, com vistas a retomar a autoridade que tais dispositivos são capazes de conferir aos argumentos em favor do grupo cujos interesses este ativismo representa. Esse processo termina por promover a repolitização das estatísticas.

Outra modalidade de statactivisme reside na denúncia pública dos sujeitos ou grupos sociais invisibilizados ou ocultados pelas estatísticas oficiais; ação às vezes acompanhada pelo uso das próprias estatísticas para criar ou consolidar esses grupos enquanto categorias sociais institucionalizadas. Diversos agrupamentos políticos aspiraram e aspiram a se libertar de relações de subordinação ou lutam para reverter as condições de desigualdade às quais estão submetidos. Este é o caso dos hispânicos nos Estados Unidos (Nobles, 200065 NOBLES, Melissa. Shades of citizenship: race and the census in modern politics. Stanford: Stanford University Press, 2000.), dos povos indígenas americanos, das minorias religiosas, entre muitos outros que buscaram se institucionalizar estatisticamente para ganhar reconhecimento social, traduzir sua grandeza moral em tamanho e em peso político, de maneira a fortalecer a legitimidade de suas reivindicações.

No mundo de hoje, há diversas redes de uso dos números envolvendo associações de defesa de direitos humanos e ONGs que produzem e utilizam dados originais sobre violência contra minorias, ajudando a consolidá-las como categorias sociais. Estudando uma dessas redes, Eugenia de Rosa (2014)30 DE ROSA, Eugenia. Gender statactivism and NGOs. Development and use of gender sensitive-data for mobilizations and women’s rights. Partecipazione e Conflitto, v. 7, n. 2, p. 314-347, 2014. mostrou como os números sobre a violência são empregados em quatro fases de mobilização da opinião pública pelo movimento de igualdade de gênero: no processo de enquadramento e categorização, no desenho e implementação das políticas, nas campanhas de difusão e conscientização, e no monitoramento das oscilações. Ao longo dessas quatro fases, as redes de uso conferem consistência aos agregados sociais que a estatística permite instituir.

Mas números, cifras e indicadores não são apenas recursos políticos na luta por reconhecimento movida por minorias previamente organizadas. Muitas vezes, estão na origem mesma da sua constituição como grupo social. O caso da comunidade LGBTQ é emblemático. Como se sabe, a publicação do famoso relatório Kinsey, em 1948, instaurou uma grande controvérsia sobre as práticas sexuais na sociedade estadunidense, minando as visões convencionais a respeito. Em particular, os dados produzidos em suas pesquisas sobre o comportamento homossexual mostraram que a proporção de homens que haviam tido relações exclusivamente com outro homens ao longo da vida era muito maior do que se pensava, influenciando diretamente a formação de uma nova “comunidade estatística”, que se percebia pela primeira vez como grupo político, organizado com base em uma cultura e uma identidade compartilhadas, que logo daria lugar ao movimento de luta por direitos (Michaels; Espeland, 200660 MICHAELS, Stuart; ESPELAND, Wendy. Queer counts: measurement and the emergence of gay identity. Presentation at 101st Annual Meeting of the American Sociological Association. Montreal, 2006.). Portanto, as experiências statactivistes também envolvem atores sociais que mobilizam as práticas de quantificação com o objetivo de criar ou consolidar categorias estatísticas, nas quais encontram apoio para defender ou reivindicar direitos.

Embora já houvesse diversas experiências históricas de ativismo estatístico, a governamentalidade neoliberal produziu condições específicas para o surgimento de novas formas de lutar com os números. Ao seguirmos Bruno, Didier e Previeux (2014)17 BRUNO, Isabelle; DIDIER, Emmanuel; PRÉVIEUX, Julien (eds.). Statactivisme: comment lutter avec les nombres. Paris: Zones, 2014., a noção de statactivisme adquire um significado particular como meio de oposição às formas neoliberais de governo. No mundo contemporâneo, as práticas statactivistes consistem fundamentalmente em evidenciar as regras de produção de indicadores, rankings e metas que integram a racionalidade política do neoliberalismo; o benchmarking como tecnologia de governo global; e as técnicas gerenciais atualmente aplicadas em organizações públicas e privadas, valendo-se especialmente das margens de liberdade que tais regras deixam aos agentes.

Esse tipo de ativismo estatístico pressupõe a intervenção dos atores, ao mesmo tempo sujeitos e objetos dos instrumentos de medição, com base no uso conveniente das regras para influir nos seus resultados. Por exemplo, por meio da adaptação ou manipulação – em benefício próprio – das regras envolvidas nas avaliações de desempenho, que obrigam os indivíduos a atingir metas quantificadas em seus locais de trabalho (sobre polícia, Didier, 2018; sobre o ranking universitário Espeland; Sauder, 200741 ESPELAND, Wendy; SAUDER, Michael. Rankings and reactivity: how public measures recreate social worlds. American Journal of Sociology, v. 113, p. 1-40, 2007.).

Assim, são os próprios atores sociais que, através de sua participação em operações críticas, repolitizam os modos de organizar e governar por números, promovidos a partir da aplicação de ferramentas técnicas “transparentes”, “objetivas” e “neutras”. Como assinalado por Didier e Tasset (2013)40 DIDIER, Emmanuel; TASSET; Cyprien. Pour un statactivisme. La quantification comme instrument d’ouverture du possible. Revue des Sciences Humaines, v. 24, p. 123-140, 2013., “quantificar é produzir conhecimento e, portanto, adquirir poder. Sendo assim, é uma arma preciosa que podemos reaproveitar”.9 9 No original: “quantifier, c’est produire du savoir, donc acquérir du pouvoir. C’est donc une arme précieuse dont nous pouvons nous ressaisir”. As estatísticas podem constituir recursos a ser empregados por qualquer uma das partes engajadas em disputas políticas e conflitos sociais.

Não obstante, se o statactivisme pode ser pensado como “um desafio à lógica hegemônica de quantificação estabelecida em um determinado momento” (Bruno; Didier; Previeux, 201417 BRUNO, Isabelle; DIDIER, Emmanuel; PRÉVIEUX, Julien (eds.). Statactivisme: comment lutter avec les nombres. Paris: Zones, 2014., p. 30), nem todas as práticas que ele abrange colocam em questão os princípios em que se baseia a quantificação. Podemos dizer que existem modalidades mais radicais, outras mais reformistas, e até conservadoras.10 10 Como apontou Desrosières (2014), a crítica pode ser “reformista” e apoiar-se em “números inquestionáveis” ou, pelo contrário, mais ou menos “radical”, e rejeitar os cálculos e ferramentas utilizados, ou desqualificar o mero recurso a eles. O contraponto entre o statactivisme reformista e radical foi abordado também por Didier e Tasset (2013). No limite, há diferentes combinações entre as estatísticas e as formas de violência. Tomemos como exemplo o profundo conflito social havido em Guadalupe – um pequeno arquipélago das Antilhas que constitui uma região ultramarina da França –, devido ao aumento do custo de vida, em 2009, quando os números foram envolvidos em uma grave tensão social. Segundo estudo de Samuel (2014)76 SAMUEL, Boris. Statistics and political violence: reflections on the social conflict in 2009 in Guadeloupe. Partecipazione e Conflitto, v. 7, n. 2, p. 238-257, 2014., as estatísticas apareceram tanto como suporte de mediação de reações populares explosivas, quanto como ferramentas de intimidação e coerção, propiciando a escalada de violência.

O caso de Guadalupe mostra que “a quantificação ajuda a construir situações de tensão social, ao revelar ou criar sentimentos de injustiça social. Dessa maneira, contribui para desencadear ações de protesto contra os métodos do ‘governo por números’, motivando confrontos com o Estado e os atores dominantes” (Samuel, 201476 SAMUEL, Boris. Statistics and political violence: reflections on the social conflict in 2009 in Guadeloupe. Partecipazione e Conflitto, v. 7, n. 2, p. 238-257, 2014., p. 254). Além de situações excepcionais como esta, os argumentos estatísticos costumam aparecer nos cenários de conflito político como princípio de evidências para erodir a autoridade pública, como recurso na disputa entre facções políticas pelo acesso à direção do governo, ou como instrumento de mediação de conflitos sociais redistributivos (Hayes, 201152 HAYES, Matthew. The social history of quantifying inflation: a sociological critique. Journal of Economic Issues, v. 65, n. 1, p. 97-111, 2011.). Em certas ocasiões, o statactivisme adota outra modalidade de expressão, quando o uso de estatísticas contra a autoridade governamental supõe a mobilização de uma crítica conservadora em seus fundamentos, a qual no fundo aceita, sanciona e reforça os modos de quantificação estabelecidos, restituindo as convenções que baseavam a mensuração (Daniel; Lanata Briones, 201928 DANIEL, Claudia; LANATA BRIONES, Cecilia. Battles over numbers: the case of the Argentine consumer price index (2007–2015). Economy and Society, v. 48, n. 1, p. 127-151, 2019.).

Em suma, muitas são as razões que justificam uma maior atenção às estatísticas como como argumento político e como ferramenta para a ação política. Qual é o papel desempenhado pelos números na formulação e no enquadramento de uma discussão pública? Que tipo de crítica social eles permitem, restringem ou fortalecem? Como os números transformaram o modo de engajamento dos atores na política? Que efeitos específicos as estatísticas produzem quando associadas aos protestos sociais? Como e em que circunstâncias um dispositivo de persuasão como a estatística pode se tornar um suporte de ameaça ou coerção? Até que ponto a quantificação promove ou bloqueia a participação democrática? A reflexão sobre a intervenção da linguagem estatística nos debates políticos e nas disputas sociais, suas implicações e efeitos têm grande relevância para a compreensão das dinâmicas das sociedades contemporâneas.

Considerações finais

Como procuramos demonstrar neste artigo, as práticas de quantificação merecem integrar uma agenda legítima de pesquisa nas ciências sociais. Se concordamos que a quantificação é tanto uma ferramenta de conhecimento quanto de governo (Desrosières, 200833 DESROSIÈRES, Alain. Pour une sociologie historique de la quantification. Paris: Presses de l’École des Mines, 2008.), sua investigação em chave sociológica não é apenas relevante, mas necessária. Mas por que uma leitura sociológica dos números é tão essencial?

Diferentes pesquisas empíricas e teóricas que aqui revisamos mostraram que as operações de quantificação são constitutivas das relações sociais, não apenas derivadas delas; isto é, são intrínsecas a elas mesmas, e não secundárias. Por meio dos objetos produzidos pela quantificação (números, indicadores, rankings, séries, gráficos, tabelas) e das relações que estes estabelecem – entre as pessoas, e entre as pessoas e as coisas –, veiculam-se formas de exercer o poder. A quantificação afeta a forma como percebemos e construímos a realidade social, a forma como avaliamos nossas ações e as dos outros, como consideramos nossas opções e objetivos, como administramos as organizações e gerimos a vida; a quantificação não está somente presente, como também influencia diretamente o mundo que habitamos. É importante reconhecer que, nas sociedades contemporâneas, a extensão da quantificação a novos domínios antes não-comensuráveis se vê impulsionada por uma multiplicidade de atores, instituições e processos, os quais, por sua vez, ela ajuda a configurar. A quantificação opera como um dispositivo que atua sobre os indivíduos e intervém em suas vidas para garantir um determinado tipo de conduta ou comportamento. É importante estudar o papel constitutivo das práticas de quantificação, porque elas criam uma forma particular de compreender, representar e atuar sobre processos, eventos e subjetividades. Da mesma maneira, é fundamental resgatar seu potencial para a transformação social, na medida em que essas ferramentas também nos permitem mobilizar críticas, denunciar desigualdades, definir e dar visibilidade a novos problemas, para que seja possível intervir sobre eles. As estatísticas não são e nem sempre foram armas exclusivas dos poderosos, permanecendo inesgotável seu potencial para desafiar consensos e repolitizar as relações sociais.

Pensar sociologicamente realidades complexas como as da América Latina através do enfoque da quantificação é um desafio urgente, que nos leva a recortar novos objetos de estudo e a construir outros eixos de problematização. As profundas desigualdades sociais da região – agudizadas pela pandemia de covid19 – devem ser compreendidas em sua dinâmica de reprodução, a qual inclui os modelos de objetivação estatística e suas implicações no desenvolvimento das políticas públicas. Acreditamos ser necessário revelar a natureza social de suas formas padronizadas de mensuração para construir quantificações alternativas, que nos permitam vislumbrar outras vias de solução dos impasses e problemas da região.

Os estudos sociais da quantificação ampliaram nossa compreensão acerca dos vínculos entre o Estado e as minorias étnicas, raciais e sexuais em sociedades pluriétnicas e diversas como as latino-americanas, tanto no presente como no passado. Realçaram os processos de configuração de suas identidades, o reconhecimento ou a invisibilidade desses grupos, através da alteração ou criação de categorias de classificação, no quadro das lutas políticas pelo reconhecimento do Estado, como mostra artigo de Mara Loveman nesse dossiê. Um caminho que merece ser mais explorado.

Outro tipo de questionamento surge ao observarmos a circulação cada vez mais intensa de números (não apenas díspares, como muitas vezes contraditórios) nas culturas públicas nacionais, em termos do papel que desempenham nas discussões democráticas, em um cenário de crescente polarização política em vários países da região. Cabe ainda a este enfoque a possibilidade de alertar, em bases conceituais e empíricas sólidas, sobre a “neo-colonização” dos Estados latino-americanos, presente na tendência de subordinação dos últimos governos (da direita à esquerda do espectro político) às diversas modalidades da métrica neoliberal, cada vez mais arraigada na administração pública, após a adoção do modelo gerencial de gestão.

Este trabalho buscou destacar as contribuições dos estudos sociais da quantificação para a sociologia como um todo. A revisão da literatura permitiu realçar a riqueza desta perspectiva analítica, reconhecendo que, para além das discordâncias sobre se tratar ou não de um campo especializado, no sentido estrito do termo, falta ainda um programa de investigação que vá além das questões e filiações comuns dos pesquisadores que nele se situam.

Nessa direção, nossa análise apontou que ainda há muito a se estudar sobre os impactos sociais e políticos da quantificação nas sociedades democráticas. Para tanto, a sociologia dispõe de ferramentas muito valiosas, que permitem evidenciar os efeitos produzidos pelos dispositivos de quantificação entre os diferentes grupos sociais, discernir a variedade de usos e aplicações a que podem estar sujeitos, bem como revelar os modos como operam as relações de poder, seus limites e ambiguidades. Resta-nos apelar à comunidade de cientistas sociais, convocando-os a alimentar, fortalecer e expandir um programa de investigação cuja fecundidade esperamos ter demonstrado neste artigo.

  • 1
    Uma vez que os estudos sobre a quantificação se encontram em franca expansão, não pretendemos oferecer aqui uma revisão completamente exaustiva da literatura, e sim descrever um panorama de um conjunto de pesquisas que partilham certos pressupostos comuns, delineando suas principais linhas de investigação.
  • 2
    Antes disso, vale notar que, sem se articular em coletivos de pesquisa, uma série de obras se destacam fora dessas trajetórias, na qualidade de contribuições isoladas, as quais, em meados da década de 1970 e início da de 1980, germinaram o interesse e o tipo de questionamentos que ainda mobilizam os estudos da quantificação. Referimo-nos à obra de Michael Cullen (1975)26 CULLEN, Michael J. The statistical movement in Early Victorian Britain. Nova York: The Harvester Press Limited, 1975., que analisa em perspectiva histórica o desenvolvimento das práticas de registro, codificação e enumeração dos cultores da estatística como ciência aplicada – não vinculados à comunidade acadêmica e intelectual – na Inglaterra vitoriana, e que ampliou a nossa compreensão sobre o processo de emergência da razão estatística na modernidade. Em direção semelhante, a obra de Patricia Cohen (1982)23 COHEN, Patricia C. A calculating people: the spread of numeracy in Early America. Chicago: University of Chicago Press, 1982. focaliza a propensão a contar e medir típica da cultura norte-americana, para realizar um estudo histórico sobre a expansão da numeracy – ou a geração de habilidades aritméticas básicas, como contar, enumerar e calcular – entre a população dos Estados Unidos durante os séculos XVIII e XIX, e que resultou na ampliação do domínio dos números sobre temas até então pensados somente em termos qualitativos.
  • 3
    Para todos os efeitos, utilizamos o termo “campo” com fins expositivos.
  • 4
    Paul Starr propôs um programa de pesquisa sobre a estrutura social e cognitiva dos sistemas estatísticos (Alonso; Starr, 19871 ALONSO, William; STARR, Paul (eds.). The politics of numbers. Nova York: Russell Sage Foundation, 1987., p. 8-9). A estrutura social corresponderia às relações sociais entre informantes, agências estatais, empresas privadas, órgãos profissionais e associações internacionais envolvidos nas redes de produção e usos da estatística. A estrutura cognitiva, por sua vez, consistiria nos determinantes da produção e da legibilidade dos números: os vínculos entre o desenho dos questionários, os pressupostos assumidos sobre a realidade social, os princípios de classificação, os métodos de mensuração e as normas de interpretação e apresentação dos dados.
  • 5
    Para uma descrição do contexto histórico de surgimento dos indicadores sociais e sua importância progressiva no Brasil, ver Santagada (1992)77 SANTAGADA, Salvatore. Indicadores sociais: contexto social e breve histórico. Indicadores Econômicos FEE, v. 20, n. 4, p. 245-255, 1992.
  • 6
    Sobre ONGs, ver Rosa (2014)30 DE ROSA, Eugenia. Gender statactivism and NGOs. Development and use of gender sensitive-data for mobilizations and women’s rights. Partecipazione e Conflitto, v. 7, n. 2, p. 314-347, 2014.; sobre agências de avaliação de crédito, Fioramonti (2014)43 FIORAMONTI, Lorenzo. How numbers rule the world. The use and abuse of statistics in global politics. Londres: Zed Books, 2014.; sobre instrumentos da OCDE, como o PISA, Bogdandy e Goldmann (2012)14 BOGDANDY, Armin von; GOLDMANN, Matthias. Taming and framing indicators: a legal reconstruction of the OECD’s programme for international student assessment (PISA). In: DAVIS, Kevin E. et al. (eds.). Governance by Indicators. Oxford: Oxford University Press, 2012. p. 52-85..
  • 7
    No original: “enumeration demands kinds of things or people to count. Counting is hungry for categories. Many of the categories we now use to describe people are byproducts of the needs of enumeration”.
  • 8
    No original: “the success of the social critique expressed in the language of statistics cannot rely simply on the justness of the arguments, but depends largely on the political and social network in which it is inscribed”.
  • 9
    No original: “quantifier, c’est produire du savoir, donc acquérir du pouvoir. C’est donc une arme précieuse dont nous pouvons nous ressaisir”.
  • 10
    Como apontou Desrosières (2014)34 DESROSIÈRES, Alain. Statistics and social critique. Partecipazione e Conflitto, v. 7, n. 2, p. 348-359, 2014., a crítica pode ser “reformista” e apoiar-se em “números inquestionáveis” ou, pelo contrário, mais ou menos “radical”, e rejeitar os cálculos e ferramentas utilizados, ou desqualificar o mero recurso a eles. O contraponto entre o statactivisme reformista e radical foi abordado também por Didier e Tasset (2013).

Referências

  • 1
    ALONSO, William; STARR, Paul (eds.). The politics of numbers Nova York: Russell Sage Foundation, 1987.
  • 2
    ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. 2. ed. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
  • 3
    ANDERSON, Margo. The American census: a social history. New Haven: Yale University Press, 1988.
  • 4
    ARMATTE, Michel. Introduction aux travaux d’Alain Desrosières : histoire et sociologie de la quantification. Statistique et Société, v. 2, n. 3, p. 17-23, 2014.
  • 5
    BEAUD, Jean-Pierre; PRÉVOST, Jean-Guy. La forme est le fond : la structuration des appareils statistiques nationaux (1800-1945). Revue de Synthèse, v. 118, n. 4, p. 419-456, 1997.
  • 6
    BEAUD, Jean-Pierre; PRÉVOST, Jean-Guy. The politics of measurable precision: the emergence of sampling techniques in Canada’s Dominion Bureau of Statistics. The Canadian Historical Review, v. 79, n. 4, p. 691-725, 1998.
  • 7
    BEAUD, Jean-Pierre; PRÉVOST, Jean-Guy (orgs.). L’ère du chiffre : systèmes statistiques et traditions nationales. Montreal: Presses de l´Université du Québec, 2000.
  • 8
    BERMAN, Elizabeth; HIRSCHMAN, Daniel. The sociology of quantification: where are we now? Contemporary Sociology, v. 47, n. 3, p. 257-266, 2018.
  • 9
    BESSON, Jean-Louis. As estatísticas: verdadeiras ou falsas? In: BESSON, Jean-Louis (org.). A ilusão das estatísticas São Paulo: Unesp, 1995. p. 25-67.
  • 10
    BOLTANSKI, Luc. Les cadres: la formation d´un groupe social. Paris: Éditions de Minuit, 1982.
  • 11
    BOLTANSKI, Luc. De la critique: précis de sociologie de l’émancipation. Paris: Gallimard, 2009.
  • 12
    BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. De la justification : les économies de la grandeur. Paris: Éditions Gallimard, 1991.
  • 13
    BLUM, Alain; MESPOULET, Martine. L’anarchie bureaucratique : statistique et pouvoir sous Staline. Paris: La Découverte, 2003.
  • 14
    BOGDANDY, Armin von; GOLDMANN, Matthias. Taming and framing indicators: a legal reconstruction of the OECD’s programme for international student assessment (PISA). In: DAVIS, Kevin E. et al (eds.). Governance by Indicators Oxford: Oxford University Press, 2012. p. 52-85.
  • 15
    BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP; Porto Alegre: Zouk, 2007.
  • 16
    BRUNO, Isabelle; DIDIER, Emmanuel. Benchmarking: l’État sous pression statistique. Paris: Zones, 2013.
  • 17
    BRUNO, Isabelle; DIDIER, Emmanuel; PRÉVIEUX, Julien (eds.). Statactivisme: comment lutter avec les nombres. Paris: Zones, 2014.
  • 18
    BRUNO, Isabelle; DIDIER, Emmanuel; VITALE, Tommaso. Statactivisme. Forms of action between disclosure and affirmation. Partecipazione e Conflitto, v. 7, n. 2, p. 198-220, 2014.
  • 19
    BURCHELL, Graham; GORDON, Colin; MILLER Peter (eds.). The Foucault Effect: studies in governmentality. Chicago: University of Chicago Press, 1991.
  • 20
    CAMARGO, Alexandre de P. R. A construção da medida comum: estatística e política de população no Império e na Primeira República. Tese (Doutorado em Sociologia). Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
  • 21
    CARSON, John. The measure of merit: talents, intelligence and inequality in the French and American Republics, 1750-1940. Princeton: Princeton University Press, 2006.
  • 22
    CHATTERJEE, Partha. The politics of the governed: reflections on popular politics in most of the world. Nova York: Columbia University Press, 2004.
  • 23
    COHEN, Patricia C. A calculating people: the spread of numeracy in Early America. Chicago: University of Chicago Press, 1982.
  • 24
    CORCUFF, Philippe. Las nuevas sociologías Principales corrientes y debates, 1980-2010. Buenos Aires: Siglo XXI editores, 2015.
  • 25
    CRUMP, Thomas. The anthropology of numbers Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
  • 26
    CULLEN, Michael J. The statistical movement in Early Victorian Britain Nova York: The Harvester Press Limited, 1975.
  • 27
    CURTIS, Bruce. The politics of population: state formation, statistics and the census of Canada, 1840-1875. Toronto: University of Toronto Press, 2001.
  • 28
    DANIEL, Claudia; LANATA BRIONES, Cecilia. Battles over numbers: the case of the Argentine consumer price index (2007–2015). Economy and Society, v. 48, n. 1, p. 127-151, 2019.
  • 29
    DEAN, Mitchell. Governmentality: power and rule in modern society. Londres: Sage, 1999.
  • 30
    DE ROSA, Eugenia. Gender statactivism and NGOs. Development and use of gender sensitive-data for mobilizations and women’s rights. Partecipazione e Conflitto, v. 7, n. 2, p. 314-347, 2014.
  • 31
    DESROSIÈRES, Alain. La politique des grands nombres : histoire de la raison statistique. Paris: La Découverte, 1993.
  • 32
    DESROSIÈRES, Alain. Historiciser l’action publique. L’Etat, le marché et les statistiques. In: LABORIER, Pascale; TROM, Danny (eds.). Historicités de l’action publique Paris : Presses Universitaires de France, 2003. p. 207-221.
  • 33
    DESROSIÈRES, Alain. Pour une sociologie historique de la quantification Paris: Presses de l’École des Mines, 2008.
  • 34
    DESROSIÈRES, Alain. Statistics and social critique. Partecipazione e Conflitto, v. 7, n. 2, p. 348-359, 2014.
  • 35
    DESROSIÈRES, Alain; THÉVENOT, Laurent. Les catégories socioprofessionnelles Paris: La Découverte, 1988.
  • 36
    DIAZ-BONE, Rainer. Statistical panopticism and its critique. Historical Social Research, v. 44, n. 2, p. 77-102, 2019.
  • 37
    DIAZ-BONE, Rainer; DIDIER, Emmanuel. The sociology of quantification. Perspectives on an emerging field in the social science. Historical Social Research, v. 41, n. 2, p. 7-26, 2016.
  • 38
    DIDIER, Emmanuel. Alain Desrosières and the Parisian flock. Social studies of quantification in France since the 1970s. Historical Social Research, v. 41, n. 2, p. 27-47, 2016.
  • 39
    DIDIER, Emmanuel. Globalization of quantitative policing: between management and statactivism. Annual Review of Sociology, v. 44, n. 1, p. 515-534, 2018.
  • 40
    DIDIER, Emmanuel; TASSET; Cyprien. Pour un statactivisme. La quantification comme instrument d’ouverture du possible. Revue des Sciences Humaines, v. 24, p. 123-140, 2013.
  • 41
    ESPELAND, Wendy; SAUDER, Michael. Rankings and reactivity: how public measures recreate social worlds. American Journal of Sociology, v. 113, p. 1-40, 2007.
  • 42
    ESPELAND, Wendy; STEVENS, Mitchell. The sociology of quantification. Arch. europ. sociol, v. 49, n. 3, p. 401-436, 2008.
  • 43
    FIORAMONTI, Lorenzo. How numbers rule the world The use and abuse of statistics in global politics. Londres: Zed Books, 2014.
  • 44
    FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população São Paulo: Martins Fontes, 2008.
  • 45
    FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica São Paulo: Martins Fontes, 2009.
  • 46
    FOUGNER, Tore. Neoliberal governance of states: the role of competitiveness indexing and country benchmarking. Millenium: Journal of International Studies, v. 37, n. 2, p. 303-326, 2008.
  • 47
    GUYER, Jane et al Introduction: Numbers as inventive frontier. Anthropological Theory, v. 10, n. 1-2, p. 36-61, 2010.
  • 48
    HACKING, Ian. Biopower and the avalanche of printed numbers. Humanities in Society, v. 5, p. 279-295, 1982.
  • 49
    HACKING, Ian. The taming of chance Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
  • 50
    HACKING, Ian. How should we do the history of statistics? In: BURCHELL, Graham; GORDON, Collin; MILLER, Peter (eds.). The Foucault effect Studies in governmentality. Chicago: The University of Chicago Press, 1991. p. 181-195.
  • 51
    HACKING, Ian. Façonner les gens : le seuil de pauvreté. In: BEAUD, Jean-Pierre; PRÉVOST, Jean-Guy (orgs.). L’Ère du chiffre : systèmes statistiques et traditions nationales. Quebec: Presses de l’Université du Québec, 2000. p. 17-36.
  • 52
    HAYES, Matthew. The social history of quantifying inflation: a sociological critique. Journal of Economic Issues, v. 65, n. 1, p. 97-111, 2011.
  • 53
    INSEE - Institut National de la Statistique et des Études Économiques. Pour une histoire de la statistique 2 vols. Paris: Economica, 1987.
  • 54
    KERTZER, David; AREL, Dominique (eds.). Census and identity: the politics of race, ethnicity and language in national censuses. Nova York: Cambridge University Press, 2002.
  • 55
    LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
  • 56
    LEGG, Stephen. Governmentality, congestion and calculation in colonial Delhi. Social & Cultural Geography, v. 7, n. 5, p. 709-729, 2006.
  • 57
    LOVEMAN, Mara. The race to progress: census taking and nation making in Brazil (1870-1920). Hispanic American Historical Review, v. 89, n. 3, p. 435-470, 2009.
  • 58
    LOVEMAN, Mara. National colors: racial classification and the State in Latin America. Nova York: Oxford University Press, 2014.
  • 59
    MENNICKEN, Andrea; ESPELAND, Wendy. What’s new with numbers? Sociological approaches to the study of quantification. Annual Review of Sociology, v. 45, p. 223-245, 2019.
  • 60
    MICHAELS, Stuart; ESPELAND, Wendy. Queer counts: measurement and the emergence of gay identity. Presentation at 101st Annual Meeting of the American Sociological Association Montreal, 2006.
  • 61
    Miller, Peter. Governing by numbers: why calculative practices matter. Social Research, v. 68, n. 2, p. 379-396, 2001.
  • 62
    MILLER, Peter; POWER, Michael. Accounting, organizing, and economizing: connecting accounting research and organization theory. The Academy of Management Annals, v. 7, n. 1, p. 557-605, 2013.
  • 63
    NAFUS, Dawn (ed.). Quantified: biosensing technologies in everyday life. Cambridge: MIT Press, 2016.
  • 64
    NEFF, Gina; NAFUS, Dawn. Self-tracking Cambridge: MIT Press, 2016.
  • 65
    NOBLES, Melissa. Shades of citizenship: race and the census in modern politics. Stanford: Stanford University Press, 2000.
  • 66
    OTERO, Hernán. Estadística y nación: una historia conceptual del pensamiento censal de la Argentina moderna, 1869-1914. Buenos Aires: Prometeo libros, 2006.
  • 67
    OTERO, Hernán. Socio-history of statistics on Latin America: a review. Histoire et Mesure, v. 33, p. 13-32, 2018.
  • 68
    PATRIARCA, Silvana. Numbers and nationhood: writing statistics in nineteenth century Italy. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
  • 69
    PORTER, Theodore. Trust in numbers: the pursuit of objectivity in science and public life. Princeton: Princeton University Press, 1995.
  • 70
    PRÉVOST, Jean-Guy. A total science: statistics in liberal and fascist Italy. Montreal: McGill-Queens University Press, 2009.
  • 71
    ROSE, Nikolas. Inventing ourselves: psychology, power and personhood. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
  • 72
    ROSE, Nikolas. Powers of freedom: reframing political thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
  • 73
    ROSE, Nikolas; MILLER, Peter. Political power beyond the state: problematics of government. British Journal of Sociology, v. 43, n. 2, p. 172-205, 1992.
  • 74
    ROUVROY, Antoinette. Big data : de nouveaux outils à combiner aux savoirs établis et à encadrer par la délibération publique. Statistique et Société, v. 2, n. 4, p. 33-41, 2014.
  • 75
    ROUVROY, Antoinette. Des données et des hommes Droits et libertés fondamentaux dans um monde de données massives. Estrasburgo: Conseil de L’Europe, 2016.
  • 76
    SAMUEL, Boris. Statistics and political violence: reflections on the social conflict in 2009 in Guadeloupe. Partecipazione e Conflitto, v. 7, n. 2, p. 238-257, 2014.
  • 77
    SANTAGADA, Salvatore. Indicadores sociais: contexto social e breve histórico. Indicadores Econômicos FEE, v. 20, n. 4, p. 245-255, 1992.
  • 78
    SCHOR, Paul. Compter et classer Histoire des recensements américains. Paris: Éditions de EHESS, 2009.
  • 79
    SCHOR, Paul. Statistiques de la population et politique des catégories aus États-Unis au XIXe siècle : théories raciales et questions de population dans le recensement américain. Annales de Démographie Historique, n. 105, p. 5-22, 2003.
  • 80
    SENRA, Nelson de C.; CAMARGO, Alexandre de P. R. (orgs.). Estatísticas nas Américas: por uma agenda de estudos históricos comparados. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.
  • 81
    SCOTT, David. Colonial governmentality. Social Text, n. 43, p. 191-220, 1995.
  • 82
    TOOZE, Adam. Statistics and the German State: the making of modern economic knowledge, 1900-1945. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2020
  • Aceito
    21 Fev 2021
Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFRGS Av. Bento Gonçalves, 9500 Prédio 43111 sala 103 , 91509-900 Porto Alegre RS Brasil , Tel.: +55 51 3316-6635 / 3308-7008, Fax.: +55 51 3316-6637 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: revsoc@ufrgs.br