Open-access A sociedade estancieira: reflexões sobre a pecuária e poder no mundo rural brasileiro

The social economy of the “estancieiros”: Cattle breeder and power in Brazilian society

PICCIN, Marcos Botton. Senhores da terra, senhores da guerra: sociologia histórica do patronato estancieiro do Rio Grande do Sul (1920-2019). Curitiba: CRV, 2021

Resumo

Esta resenha analisa o livro Senhores da terra, senhores da guerra: sociologia histórica do patronato estancieiro do Rio Grande do Sul (1920-2019), do professor Marcos Botton Piccin (UFSM). Fruto de avanço em pesquisas de sua tese de doutorado – apresentada na UNICAMP, em 2014 –, o estudo trata dos estancieiros gaúchos entre século XX e parte inicial do XXI. Lugar de origem de nomes na política nacional – de Getúlio Vargas, João Goulart, Ernesto Geisel a Emilio Garrastazu Médici –, os estancieiros ainda careciam de um estudo acerca de suas estratégias sociais, cálculos, investimentos escolares, práticas sociais e estilos de vida. Destaca-se o cálculo estancieiro em torno da articulação entre honra, prestígio em estratégias que envolvem o estoque do gado e a manutenção de patrimônios e estilos de vida distintos. A resenha destaca a contribuição da obra junto a alguns pontos críticos: desde as escolhas da narrativa escrita de modo impessoal – e, em certo sentido, exagero bourdieusiano –, até insistir na visão do mundo estancieiro como “ilha” autônoma comparando-o à casa-grande canavieira. Por fim, a obra traz um exercício comparativo entre elites do mundo rural do Brasil e abre um espaço criativo para novas pesquisas, não somente sobre estancieiros, mas sobre elites, classes dominantes no mundo rural brasileiro.

Palavras-chave:
estancieiros; elites; classe dominante; estudos rurais

Abstract

Senhores da terra, senhores da guerra: sociologia histórica do patronato estancieiro do Rio Grande do Sul (1920-2019)  , by Marcos Piccin, is a book based in the author’s doctoral thesis about the estancieiros gaúchos. Many notorious Brazilian politicians – Getúlio Vargas, João Goulart, Ernesto Geisel, Emilio Garrastazu Medici – have social origins in this class of Brazilian South cattle breeders. Despite this fact, there still lacked a sociological study about estancieiros and their social strategies. The seven chapters of the book present a sociohistorical study about estancieiros: econonomical, matrimonial and educational investments, practices and lifestyles between the XX and XXI centuries. One of the main strategies is a non-economical calculation between honor, land and cattle stock towards social distinction. This review highlights the contribution of Piccin’s work, with some critical points: from the choice of writing the narrative in an impersonal fashion – which denotes something of a Bourdiesian exaggeration – to the insistance whithin the work to view estancieiros’ social world as an autonomous “island” to make a comparison between the classical literature about Brazilian plantations (sugar cane and coffee). There is no comparison between estancieiros and other sectors of Brazilian livestock. We conclude this review by pointing out that the book makes way for new researches about elites, ruling classes in the rural Brazilian society.

Keywords:
estancieiros; elites; ruling classes; rural studies

1. Introdução

Esta resenha analisa o livro Senhores da terra, senhores da guerra: sociologia histórica do patronato estancieiro do Rio Grande do Sul (1920-2019), do professor Marcos Botton Piccin (UFSM). O livro resulta das pesquisas de uma tese de doutorado – apresentada na UNICAMP, em 2014 – e dos seus respectivos desdobramentos, que foram sendo publicados em artigos (Piccin, 2014, 2015, 2020). A linha central do estudo trata dos estancieiros gaúchos e das suas diversas estratégias sociais, num recorte de oito décadas (1920-2019).

Diferente de outras elites agrárias – como a elite canavieira do Nordeste, estudada por um dos prefaciadores do livro, Garcia Júnior (1989, 2007) –, os estancieiros gaúchos não “reagiram” para tentar conter um descenso e declínio durante o século XX. Investimentos como escolarização, laços matrimoniais e a internalização de novos padrões sociais não foram usados contra um descenso. Foram cálculos econômicos e sociais para reforçar e ascender socialmente dentro de um conjunto de distinções e estilos de vida ligados ao patrimônio fundiário. Exemplo disso é o uso do patrimônio fundiário e o estoque do gado em uma lógica que articulava honra e prestígio, tendo em vista a manutenção de um estilo de vida de consumo de artigos de luxo, até estar associado a grandes exposições de gado e clubes da elite. Há um comportamento econômico “desinteressado” que visa fins não econômicos: evita o lucro em si como atividade autônoma e busca construir uma rede de favores, isso que o autor denomina a sociabilidade de um “espírito estancieiro” (Piccin, 2021, p. 334).

No recorte temporal da pesquisa, Piccin (2021) registra também a mudança no movimento das hierarquias entre proprietários de terra, peões, “gringos” imigrantes e trabalhadores nas lavouras de arroz, trigo e soja. Os valores que orientam o cálculo econômico estancieiro durante o século XX também demarcam transformações de várias ordens: da transição de charqueadas para frigoríficos (década de 1940), de como o cálculo estancieiro e o estoque do gado aparecem juntos em registros e cadastros das propriedades, além de agências de Estado e instituições bancárias que operam crédito rural e, por fim, arquivos da contabilidade pessoal dos estancieiros. Para montar esse quadro, a pesquisa que origina o livro utilizou um conjunto diverso de fontes documentais e procedimentos visando evidências quantitativas e qualitativas que incluía: cadastros do INCRA, dados do censo agropecuário, livros de família, cadernos de contas das fazendas até entrevistas com estancieiros e trabalhadores das propriedades. Focada em boa parte no município de São Gabriel – RS, o livro é um valioso recurso de consulta tanto para quem for pesquisar os estancieiros do sul do Brasil, como também para quem for analisar as elites e classes dominantes do mundo rural brasileiro.

Esta resenha crítica à obra de Piccin (2021) está dividida em duas partes. Na primeira, analiso a organização e o direcionamento da escrita e da narrativa da obra. Destaco a rigidez no ponto de vista “impessoal” escolhido pelo autor que, por vezes, se “despersonaliza” e entrega a escrita a certo tom excessivo de identidade bourdieusiana na obra. O exagero somente será suavizado de forma criativa no uso das vozes de personagens e trechos da obra de Erico Verissimo. Na segunda parte da resenha, há uma reflexão crítica sobre a análise sociológica do cálculo estancieiro. O argumento incide na tendência do autor para considerar a estância como uma “ilha” econômica, numa tentativa de equiparar o modelo explicativo da casa-grande freyriana ou plantation com as propriedades dos estancieiros.

A visão das estâncias como “ilhas” econômicas e sociais acaba por ser contrariada no decorrer da própria obra, que mostra o cálculo estancieiro não como parte de “substâncias isoladas”, mas dentro de redes e conexões de mercados, classes e recursos materiais e simbólicos de um mundo social. Aqui também a resenha tenta ampliar o espectro comparativo da obra para outras frações pecuaristas do Brasil. Esse exercício é importante na medida em que o livro se restringe a comparar os estancieiros apenas com as elites agrárias canavieiras nordestinas ou a elite cafeeira de São Paulo. Nesse sentido, a leitura da obra de Piccin (2021) provoca a análise de como são produzidas, legitimadas e transformadas as formas de poder e dominação internalizadas no mundo rural da sociedade brasileira. Nas considerações finais, a resenha aponta como a obra de Piccin (2021) ajuda a “olhar os ricos do campo” e dá contribuição significativa para criação de uma agenda de estudos acerca do poder e dominação das elites e classes dominantes no mundo rural.

Em primeiro lugar, destaca-se aqui um elemento da escrita do livro, ou podemos dizer, o momento da obra em que “Erico Verissimo encontra Pierre Bourdieu”, na estância gaúcha. Vale dizer que, apesar de não serem literários nem ficcionais, os textos produzidos a partir de pesquisas das ciências sociais contêm, de alguma maneira, narradores, narradoras e narrações. Sobre a escrita acadêmica, a autora Lisa Tota (2005) chama a atenção para como o ato de escrita das ciências sociais cria identidades entre leitores e autores modelo (Lisa Tota, 2005, p. 289). O lugar da escrita é fundador: é nela que se produz conhecimento e criam-se identidades de pertencimento e reconhecimento nas carreiras acadêmicas. Ainda no caso particular da produção textual nas ciências sociais, destaco aqui a reflexão de Enzo Colombo (2005) acerca das narrações realistas e processuais. A primeira é o estilo de escrita caracterizado pela predominância de discurso da terceira pessoa, documentarístico, cuja eliminação da voz do autor e de qualquer caracterização subjetiva dos protagonistas serve para despertar no leitor a confiança na objetividade1 da narração. Um outro estilo de narração referendado na trajetória das ciências sociais é o que Colombo (2005) denomina processual. Usando da 1ª pessoa, mais introspectiva e envolvida, a narração processual transita entre estilos literários. Narração em que o autor debate com teorias e tradições das ciências sociais, mas, antes de tudo, fala de si, das suas emoções, dos seus erros, das suas preferências, buscando estabelecer uma relação direta com o leitor; um clima de intimidade que se propõe a criar uma atmosfera de cumplicidade e empatia. Apresentar-se com autocrítica, ironia, renunciar ao tom frio e distanciado do perito e, assim, estimular o leitor a sentir o pesquisador como seu semelhante e a identificar-se com ele (Colombo, 2005, p. 275).

Aqui cabem alguns comentários acerca do tipo de identidade escrita e, consequentemente, da narração selecionada por Piccin (2021) para conduzir o leitor nos debates de sua pesquisa entre os estancieiros gaúchos. O autor parte da escolha de uma narração que se aproxima mais do estilo realista delimitado por Colombo (2005). Descritivo e impessoal – até mesmo “oculto” no texto –, o narrador de Senhores de terra, senhores de guerra adota uma linha de monografia “clássica” realista e apresenta, em sete capítulos, aspectos da vida social e econômica dentro de uma trajetória temporal de uma fração da elite agrária do Rio Grande do Sul. Há triunfos nessa escolha de escrita e pesquisa: Piccin (2021) traz um trabalho cuidadoso em evidenciar processos históricos, lógicas de cálculo e estratégias matrimoniais, dados censitários e dados de patrimônio que evidenciam estratégias sucessorais, matrimoniais, educacionais e econômicas das frações estancieiras. Uma linguagem quase que documental – como se o narrador falasse junto a imagens de sobrevoo da região2 –, que inicia o texto apresentando ao leitor parte da história do Rio Grande do Sul no que diz respeito às grandes propriedades fundiárias de criação de gado (Piccin, 2021, p. 37).

Nas páginas que se seguem à introdução, o autor se posiciona dentro da linha de pesquisas, teorias e modelo de análise bourdieusianas. Dedica a isso um longo trecho entre as páginas 40 e 44. Espaço de relações, estratégias sucessorais, econômicas e matrimoniais, capital escolar e cultural, princípios de dominação, sistemas de disposições e habitus: o uso de todos esses termos convence o leitor sociológico de uma legítima identidade acadêmica3 de Piccin (2021) com a sociologia de Pierre Bourdieu – uma referência já consagrada para quem vai estudar elites e classes dominantes nas ciências sociais brasileiras. Aqui, a obra de Piccin (2021) é atravessada parcialmente pela tensão que ronda esses estudos: fazer pesquisa autêntica ou imitação/reprodução local de conceitos produzidos em um “centro francês”, em detrimento de referências a produções locais sobre o tema das elites e grupos dirigentes (Oliveira; Petrarca, 2018)4. Afirmo “parcialmente” porque se, de um lado, a obra de Piccin (2021) pode ser criticada pelo “inchaço” de um linguajar bourdieusiano, de outro lado, não pode ser acusada de falta de referência e diálogo com as produções locais – está lá um amplo diálogo com décadas de produções acadêmicas, muitas delas sobre a economia agropecuária na sociedade estancieira. Por exemplo, o recurso a um estudo da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul de 1978 (Piccin, 2021, p. 116). Ao apontar insuficiências nos trabalhos das décadas passadas e nas suas teses sobre os processos de consolidação do capitalismo no mundo rural estancieiro, a obra de Piccin (2021) conduz o debate de forma competente e clara. Até um leitor pouco familiarizado com a região estancieira fica bem situado no debate.

Ainda há um ponto em que a impessoalidade escrita de Piccin (2021) acaba deixando dúvidas ao leitor quanto às conexões do autor/pesquisador com o tema da pesquisa. Se Pierre Bourdieu, em pessoa, jamais pesquisou a estância gaúcha, é ao autor e pesquisador Piccin (2021) que devemos perguntar: em que medida o seu grau de pessoalidade e envolvimento com a região ajudou a produzir a pesquisa? Isso poderia esclarecer algumas escolhas, por exemplo, por que a seleção de São Gabriel para um núcleo da pesquisa? Essas questões acabam não ficando claras, na medida em que há momentos da escrita em que o autor “some” da narração ou entrega a escrita aos jargões bourdieusianos, partindo de uma análise que é sua enquanto pesquisador – e autor que tem autoridade sobre o texto escrito.

O problema desse estilo de exposição impessoal e descritiva dos dados será um pouco “suavizado” a partir do capítulo II (Propriedade da terra e distinção social), no qual Piccin (2021, p. 95) usa trechos da trilogia O Tempo e O Vento, do escritor Erico Verissimo. Fato que ocorre também no avanço de tópicos do capítulo III e IV, cujo uso do narrador da obra de Erico Verissimo fornece bons exemplos, além de análises que esclarecem a ética e “espírito” estancieiro, reforçando a tese que guia a obra. O personagem Arno Spielvogel, que tenta pagar o médico Rodrigo5 pela consulta, e este, “ofendido”, nega o pagamento, reforça a visão de construir redes de favores mais prestigiosos do que uma ética monetária de profissão (Piccin, 2021, p. 127). Também é mencionada uma cena de velório em que o personagem Rodrigo reflete sobre moralidade e masculinidade na estância (Piccin, 2021, p. 146). Por fim, as citações mais interessantes são aquelas em que se destaca o sentimento de honra e prestígio da sociedade estancieira: as lealdades desinteressadas e o código de honra (Piccin, 2021, p. 175), bem como considerações do personagem Veiguinha sobre o descenso do prestígio dessa elite, na medida em que os clubes passam a ser frequentados por sócios que compram os títulos (Piccin, 2021, p. 177). A excelente exposição de dados quantitativos e qualitativos dentro da narração impessoal de Piccin, ao “misturar-se” com evocação dos personagens do universo de Verissimo, amacia o “sociologuês” bourdieusiano dos primeiros capítulos. Verissimo nos “salva” de Bourdieu.

Um segundo caminho desta revisão critica trata da análise sobre a economia estancieira. Destaco aqui um trecho em que Piccin (2021) menciona a situação dos “cigarros em notas de dinheiro” e remete a um “Potlatch” da economia estancieira. Ver o trecho abaixo:

Durante a sua juventude, Leonardo acendia cigarros com notas de dinheiro, motivos de riso quando da declaração ao pesquisador, feito também recordado por outros estancieiros quando se referiam a ele (Piccin, 2021, p. 295).

Narrado no capítulo 7, essa cena fez parte da entrevista do pesquisador com o estancieiro descendente de uma família tradicional. O “desinteresse” pelo monetário – a ponto de queimar notas em cigarro, à moda de um “Potlatch”, estudado por Marcel Mauss – é uma prática que faz parte do universo econômico que preza o prestígio desinteressado à economia do dinheiro. E como se dá o cálculo e estratégias nisso? O estudo de Piccin (2021, p. 51) parte dos seguintes aspectos: a) destino das atividades produtivas nos domínios estancieiros após 1930; b) capital escolar e capital social, a exemplo de estratégias matrimoniais; c) estilos de vida estancieiros; d) internalização de outras atividades mercantis e sua demanda de mão de obra; e) cálculos estancieiros no gado bovino; f) gastos da família; e h) preços do gado na década de 1990 e descenso da rede de frigoríficos iniciada em 1940, assim como desclassificação de padrões de prestígio e distinção.

Esses aspectos são analisados com um acervo de tabelas, gráficos e quadros. Com fontes de cadastros do INCRA e censos do IBGE (tabelas 2 a 5), junto a dados dos patrimônios e genealogias das famílias, obtidos em entrevistas e pesquisa de campo (tabelas 7 a 10), bem com as receitas, gastos e cálculos registrados nos cadernos dos estancieiros (tabelas 31 a 34). É nesse refinado debate entre sociologias histórica e econômica que Piccin (2021) evidencia a direção dos orçamentos econômicos e patrimônios dos estancieiros em um sistema simbólico de honra e prestígio em que não há separação entre gastos de família e gastos da estância (Piccin, 2021, p. 302).

Diferente das outras racionalidades de outros grupos envolvidos nos mercados agrários, o estoque do gado e a venda de matrizes são estratégias econômicas para manutenção dos padrões de consumo distintos, bens de luxo e estilos de vida estancieiros. Do ponto de vista de um negócio estrito, isso é um caminho inverso à intensificação dos processos de produção: nada próximo da racionalidade industrial capitalista moderna, um cálculo que busca distinção e fins não econômicos de manutenção de padrões de vida orientada nas noções de segurança e poupança dos estancieiros (Piccin, 2021, p. 263). Esse cálculo econômico estancieiro acaba gerando, ao final do século XX, uma crise nos mercados pela incapacidade de aumentar os rebanhos. Isso acarreta prejuízos no sistema de frigoríficos e cooperativas que substituirá as charqueadas a partir da década de 1930. Logo, passa a haver uma maior demanda de linhas de crédito e subsídio de agências estatais – a exemplo do Banco do Brasil e o Instituto das Carnes.

Mas é chegado o momento em que “a vaca não paga mais a conta” e entra uma desclassificação e reclassificação social (Piccin, 2021, p. 282). Na década de 1990, um conjunto de disposições, visões de mundo e percepções dos estancieiros entra, de vez, em descompasso com as condições objetivas de um mundo pautado por mercados. Isso ocorre também devido às relações do trabalho no campo – entre peões, agricultores, lavradores, moradores de corredor – não serem mais baseadas em confiança e morada. São difundidas as “leis sociais do Getúlio que antes só existiam no papel passam a ser aplicadas por aqui”, segundo fala de alguns entrevistados de Piccin (2021, p. 284).

Vítimas de um mal estar com a diminuição de rendimento monetário e simbólico, tiveram, ainda, a identidade social questionada: os modos de pensar e categorias sociais de apreensão estancieira não mais têm plena legitimidade. Nesse ponto, estão as práticas sociais e reclassificações expressas em uma “dolorida” ruptura com o estoque do gado, vindo daí o lamento pelo fim de um mundo social hierárquico da confiança entre trabalhadores e grandes proprietários estancieiros. Lamenta-se a dissolução de um mundo em que os pobres do campo têm acesso mínimo a políticas de transferência de renda, ou direitos, e ficam submetidos a uma teia de favores. Lamenta-se a quebra da “confiança” da dominação pessoal marcada por processos de famílias de trabalhadores contra os proprietários na década de 2000 (Piccin, 2021, p. 201). Todas essas dinâmicas anunciam um sentido de pesar na declaração um estancieiro em entrevista: o “fim da Campanha” (Piccin, 2021, p. 326).

Um outro ponto de crítica está em uma tendência de Piccin (2021), principalmente nos capítulos iniciais, de visualizar o mundo do estancieiro como uma “ilha” econômica formada historicamente em si. Essa formulação se dá principalmente quando o autor tenta dialogar com a obra de Gilberto Freyre, comparando a estância e a casa-grande (Piccin, 2021, p. 146). Essa visão da grande propriedade açucareira e a grande propriedade pecuária – em suas várias formas no Brasil – tem sido criticada já há décadas em trabalhos da historiografia agrária sobre fronteiras e sistemas de abastecimento (Teixeira da Silva, 2018). Essa acertada desconstrução do mito da “democracia sulina”, de uma “liberdade” dos peões das fazendas, que parece circular entre os estancieiros6, precisaria estar acompanhada de uma literatura mais atualizada sobre processos históricos e econômicos inter-relacionados na terra, agricultura e sistemas de abastecimento. Ou seja, respeitadas as especificidades regionais, é preciso considerar que a construção histórica de fazendas e engenhos no Brasil pode ser lida não por espaços econômicos fechados, mas por processos interdependentes, relações, fluxos, caminhos e diferentes hierarquias e categorias sociais. Daí temos frestas deixadas em séculos de fluxos demográficos, econômicos e políticos das frentes agrárias e fundiárias brasileiras.

Um outro ponto de debate é o leque comparativo que o autor faz dos estancieiros com outros processos históricos de outras elites regionais agrárias do Brasil, extremamente interessante para ficar restrito apenas aos casos de trabalhos clássicos dos engenhos da zona da mata nordestina ( Garcia Júnior, 1989, 2007) e aos proprietários cafeeiros (Stolcke, 1986). Falta ao trabalho de Piccin (2021) um comparativo com outras pesquisas mais recentes sobre as frações dominantes envolvidas com a pecuária e poder no Brasil. Por exemplo, no debate sobre as inovações zootécnicas entre os estancieiros, há vários momentos em que Piccin (2021, p. 261) menciona as inovações das raças, inseminação artificial e sistemas produtivos no gado (vide tabela 30), contudo, apresenta esse dado sem aprofundar quais seriam as raças, como elas chegam à região da estância ou aprofundar as redes em torno de quais entidades7 patrocinam as inovações.

O debate da obra pode abrir diálogo com obras como a de Natacha Leal (2016), que trata das redes que envolvem genética, feiras agropecuárias, sangue e família de zebus e zebuzeiros em torno das feiras do circuito de Uberaba-MG. A obra de Piccin (2021) também pode ser guia para pesquisar outras frentes pecuaristas mais recentes, como: quais racionalidades econômicas dão sentido à entrada expansionista da pecuária na Amazônia acreana, universo de fazendeiros, colonos, seringueiros, indígenas – estudados por Hoelle (2021). A lógica de cálculo do patrimônio estancieiro e as mudanças de relações sociais aí atreladas indicam aproximações possíveis com o trabalho de Meneses (2020) sobre a convivência com semiárido, que envolve memória, terra, família e símbolos da pecuária bovina e caprina entre elites pecuaristas da região do Cariri da Paraíba.

Essas e outras inevitáveis lacunas que restam na cuidadosa análise de Piccin (2021), longe de serem graves problemas da pesquisa, trazem instigantes debates. A análise do mundo estancieiro feita por Piccin (2021) está alinhada à demanda de uma sociologia das elites – ver, por exemplo, Pinçon e Pinçon Charlot (2007), publicados nessa revista. Dados qualiquantitativos, entrevistas, imersões etnográficas entre frações de grandes proprietários de terra, e ainda elites e classes dominantes do campo podem abrir frentes de estudo da desigualdade no mundo rural e, consequentemente, da desigualdade da própria sociedade brasileira. Ao apresentar uma pesquisa sobre elites – e estar longe de apresentar simpatia pelas distinções de poder dos estancieiros –, o livro indica um alerta de como formas de dominação dos que estão no “topo” das hierarquias se transformam e respondem ativamente, inclusive a processos recentes de mudanças de desigualdades sociais e padrões populacionais nas ruralidades em todo Brasil.

  • 1
    O estilo realista busca entender a regularidade dos fatos – puxando de tradições, como a durkheimiana. A ausência – às vezes presente no início da obra, mas que desaparece no seu decorrer – do narrador do texto é colocada como questão de “vida e morte” epistemológica: impedir que os juízos subjetivos distorçam os fatos objetivos e a eliminação de fontes de distorção (Colombo, 2005, p. 270-271).
  • 2
    Esse estilo narrativo é característico de obras clássicas da sociologia e antropologia do mundo rural brasileiro. Exemplo disso são Garcia Júnior (1989) e Stolcke (1986). As duas obras são consultadas com frequência na obra de Piccin (2021).
  • 3
    Há outras passagens interessantes em que Piccin (2021) relaciona seus estudos de autores clássicos da sociologia que tiveram foco nas transformações do mundo rural que “gestam” o capitalismo moderno na Europa. Ver, por exemplo, a análise da dominação pessoal dos estancieiros e as relações ente Instleute e Junker de Max Weber (Piccin, 2021, p. 164), assim como sobre os estancieiros, a mão de obra e o desenvolvimento de lavouras comparado ao processo de expulsão dos camponeses e expropriação de suas terras na Inglaterra, a partir do século XV, analisada por Marx (Piccin, 2021, p. 236-237).
  • 4
    Tensões essas bem definidas pela noção de “guinada intelectual” de Oliveira e Petrarca (2018, p. 38), que apontam algumas das concorrências internas e confrontos nacionais na medida em que foi consolidada uma produção de pesquisas e teorias sobre o tema das elites nas ciências sociais brasileiras.
  • 5
    O personagem Rodrigo das obras de Erico Verissimo, é bastante acionado por Piccin (2021) para reforçar seus argumentos acerca da honra e valores do mundo estancieiro. Herdeiro de estancieiros, Rodrigo, cultiva bons gostos de comidas e bebidas e é formado em medicina. Ele é impulsivo na política, na honra e com as mulheres. Isto o faz ser tido como um personagem que sofre as contradições morais do mundo estancieiro e as hierarquias com as chinocas, empregadas e filhas de peões da fazenda. Na cena de um velório, reproduzida por Piccin (2021, p. 146), Rodrigo observa as empregadas da fazenda – algumas grávidas –, e suas fisionomias familiares. A tensão de Rodrigo estava também em um mundo social transitório, no qual não era mais tão permitido resolver questões políticas na ponta da faca e na honra (Piccin, 2021, p. 150).
  • 6
    Aqui podem ser feitas comparações possíveis com o mito sesmarial colonial da pecuária, muito apreciada pela elite pecuaristas do semiárido nordestino. Ela amarra uma ideia “harmônica” da civilização do “couro”: uma escravidão branda, os vaqueiros livres e a narrativa de ocupação da pecuária por descendentes portugueses nos sertões coloniais. Para uma crítica sociológica e historiográfica, ver o trabalho de Nunes (2016).
  • 7
    Chega a mencionar algumas atuações, como FARSUL, ABCZ ou CNA de forma bastante breve e fora dos objetivos centrais.
  • PICCIN, Marcos Botton. Senhores da terra, senhores da guerra: sociologia histórica do patronato estancieiro do Rio Grande do Sul (1920-2019). Curitiba: CRV, 2021.
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Referências

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    Jalcione Almeida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2023
  • Aceito
    23 Nov 2023
Creative Common - by 4.0
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