Resumo
O artigo de Lisa Herzog examina como Adam Smith e G. W. F. Hegel conceitualizam a identidade de trabalhadores no mercado. Embora ambos vejam seres humanos como indivíduos formados dentro de relações sociais e por meio delas, a relação entre o trabalhador e seu trabalho é vista por eles de modos diferentes. Para Smith, trabalhadores “possuem” capital humano, enquanto, para Hegel, trabalhadores “são” cervejeiros, açougueiros ou padeiros, pois sua profissão é parte de sua identidade. Essa diferença conceitual, que se reflete em diferentes “variedades de capitalismo” contemporâneas, mostra que não apenas graus, mas também tipos de enraizamento devem ser distinguidos na discussão sobre a relação entre indivíduo e sociedade. O artigo é precedido de uma apresentação feita pelos tradutores.
Palavras- chave mercado de trabalho; capital humano; Adam Smith; Hegel
Abstract
Lisa Herzog’s article examines how Adam Smith and G. W. F. Hegel conceptualize the identity of workers in a market economy. Although both see human beings as shaped in and through social relationships, the relation between the worker and his or her work is seen by them differently. For Smith, workers “have” human capital, while for Hegel workers “are” brewers, butchers or bakers; their profession is part of their identity. This conceptual difference, which is reflected in different “varieties of capitalism” today, shows that not only degrees, but also kinds of embeddedness should be distinguished when debating the relationships between individual and society. Before the article there is an Introduction by the translators.
Keywords labour market; human capital; Adam Smith; Hegel
Resumen
El artículo de Lisa Herzog examina cómo Adam Smith y G. W. F. Hegel conceptualizan la identidad de los trabajadores en una economía de mercado. Aunque ambos ven a los seres humanos moldeados en y a través de relaciones sociales, la relación entre el trabajador y su trabajo es vista por ellos de manera diversa. Para Smith, los trabajadores “tienen” capital humano, mientras que para Hegel los trabajadores “son” cerveceros, carniceros o panaderos; su profesión es parte de su identidad. Esta diferencia conceptual, que se refleja en diferentes “variedades de capitalismo” hoy, muestra que al debatir las relaciones entre el individuo y la sociedad se deben distinguir no sólo los grados, sino también los tipos de arraigo. El artículo es antecedido de una introducción escrita por los traductores.
Palabras clave mercado laboral; capital humano; Adam Smith; Hegel
Introdução à tradução
O debate sobre os aspectos econômicos e morais dos mercados é tão antigo quanto a própria sociologia e é parte de uma discussão mais ampla na disciplina a respeito de seus efeitos sobre comportamentos individuais, coletivos e intersubjetivos (para uma visão panorâmica focada exclusivamente na sociologia, ver Fourcade e Healy, 2007). O texto de Lisa Herzog, traduzido a seguir, porém, possui uma característica distintiva nessa área: ao invés de circunscrever sua análise aos efeitos sociológicos da inserção no mercado sobre indivíduos e grupos, a autora inverte a questão e se propõe a investigar os fundamentos sociais e normativos dessa esfera, ou seja, ao invés de se perguntar por que fazemos o que fazemos, ela se ocupa com a questão de quem somos nós nas esferas de mercado e, desdobrando a reflexão, quais promessas e possibilidades estão envolvidas em nossa ação nessa esfera. Nesse sentido, além de uma bem-vinda sociologização de um tema geralmente restrito à filosofia, o artigo de Herzog sobre as visões de Adam Smith e Georg W. F. Hegel sobre trabalho e mercado representa uma tentativa de reconstruir sociologicamente, a partir das visões dos dois autores estudados, a disputa entre condições funcionais da integração social no mercado.
Tanto no caso de Smith quanto no de Hegel, a emergência de um mercado de trabalho no qual sujeitos pudessem obter renda através de atividades que expressam algum tipo de autorrealização por meio de sua interação com outras pessoas é um pressuposto fundamental da organização social moderna. Todavia, as diferenças entre ambos também são, como mostra Herzog, marcantes e decorrentes da complexidade da obra de cada um deles. Se em Smith, n’A riqueza das nações (1999, aqui p. 118-119), a tese da divisão do trabalho social exemplificada pela relação entre o açougueiro, o cervejeiro e o padeiro logo é exposta a partir de sua finalidade econômica, cuja função é o aumento da eficiência por meio da realização do autointeresse profissional e egoísta de cada um daqueles profissionais, em Hegel, n’A filosofia do Direito (2022, p. 450), o trabalho serve como uma mediação entre ambos os lados envolvidos na satisfação de um sistema de carências subjetivas. Na filosofia política moderna, segundo Lisa Herzog, a partir dessas visões, Smith historicamente foi visto como um representante exemplar de uma posição liberal-individualista muitas vezes associada à eficiência econômica e à autorrealização egoísta e Hegel passou a ser visto como o responsável intelectual pelo desenvolvimento de uma noção comunitarista de dependência recíproca que prioriza o bem do grupo sobre o justo para a universalidade.
Essas visões, tornadas lugares-comuns na teoria social, porém, são trabalhadas por Herzog de modo a demonstrar que ambos os autores dificilmente poderiam ser enquadrados de modo unilateral, respectivamente, como um representante do liberalismo egoísta e do comunitarismo, posto que ambos assumem diferentes posições a respeito da relação entre indivíduo e mercado. Aqui, então, vem à tona o tema mais relevante do artigo para o presente dossiê: ao revisar as obras de Smith e Hegel, Lisa Herzog assume como centro de sua análise a ideia de enraizamento no mercado, buscando demonstrar que nem Smith é tão radicalmente defensor de um individualismo vazio e nem Hegel assenta tão fortemente sua concepção de trabalho em uma forma de enraizamento comunitário que o impeça de observar aspectos universalistas do mercado.
Curiosamente, embora o vocabulário e as preocupações do texto de Herzog estejam muito próximas da discussão entre liberalismo e comunitarismo, o pano de fundo da discussão sobre o enraizamento do mercado capitalista desde então ganhou cada vez mais destaque na teoria sociológica e, particularmente, na teoria crítica da sociedade. Um grande marco da emergência desse tema foi a publicação, em 2011, do livro de Axel Honneth, O direito da liberdade (2011, aqui p. 346-360), no qual o debate sobre o caráter moral dos mercados e o “funcionalismo normativo” são reivindicados como modelos teóricos capazes de justificar uma “reconstrução normativa” – ver também o texto de Honneth neste dossiê. Desde então, diversas outras contribuições à análise dos fundamentos sociais e normativos dos mercados têm ocupado autoras e autores associadas e associados à teoria crítica de modo geral, sejam essas discussões mais firmemente estabelecidas dentro da tradição marxista, como, por exemplo, no livro editado por Jan Kandiyali (2018), Reassissing Marx’s Social and Political Philosophy, ou, de modo mais amplo, como na coletânea The Philosophy of the Market, organizada por Hans-Christoph Schmidt am Busch (2016). Em ambos os casos, o caminho trilhado de maneira original no artigo de Herzog – e também em seu livro Inventing the Market (2013) – é discutido à luz da intenção de fundamentar uma crítica do mercado que, ao mesmo tempo, não ignore os aspectos morais implicados pela tese da divisão de tarefas.
O que se apresenta a seguir, então, é uma exposição atualizadora dos entendimentos de Smith e Hegel a respeito da relação entre trabalho, identidade e mercado. Porém, precisamente porque se trata de uma atualização, trata-se também de uma tentativa de mobilizar os fundamentos normativos da crítica assim desenvolvida como critérios de um diagnóstico sobre a atual feição desregulamentada, financeirizada e neoliberal do modo de produção capitalista, identificando, assim, como a relação entre identidade e atividade laboral pode ancorar uma compreensão das promessas e fundamentar uma crítica das condições concretas de inserção social no mercado. Se, para isso, as limitações histórico-sociológicas do recurso a obras como a de Smith e de Hegel são evidentes, para a primeira das tarefas, a destilação de princípios críticos, as reflexões de ambos, atualizadas no artigo de Lisa Herzog, ainda se provam um ponto de partida sólido e incontornável.
Quem somos nós quando trabalhamos? Identidade social no mercado em Smith e Hegel1
Em seu livro A corrosão do caráter, Richard Sennett traça uma imagem do moderno mundo do trabalho que soa a muitos leitores ao mesmo tempo familiar e assustadora: ele descreve pessoas que, a partir do lema “hoje aqui, amanhã acolá”, se movem de emprego a emprego, pulando de galho em galho, sem conexões profundas com seu local de trabalho, seus colegas ou mesmo com suas próprias capacidades profissionais. Sua vida não forma qualquer narrativa linear, e sim consiste em obrigações pontuais; preocupações imediatas se impõem a preocupações de longo prazo. Nem sempre esse estilo de vida é escolhido voluntariamente. A permanente pressão do mundo econômico por inovação se precipita na vida de quem trabalha sob a forma de uma incessante desvalorização da experiência anteriormente adquirida e da exigência por flexibilidade incessante e da prontidão para adquirir novas capacidades. Uma identificação mais aprofundada com a própria atividade e com o contexto social no qual ela se encontra parece, em um tal ambiente, condenada a falhar.
A figura apresentada por Sennett, que, a despeito de possíveis exageros, parece apontar para desenvolvimentos importantes no mundo do trabalho das últimas décadas, soa muito inquietante. Em especial, ela aparece como um fenômeno estranho ao mundo do trabalho da Europa continental e que, na Alemanha, frequentemente é percebido sob a forma de uma crescente “americanização” das relações econômicas, que, então, também tem seus próprios casos particulares (Reisach, 2007).2 A flexibilidade do hire and fire e as correspondentes reações psicológicas dos empregados parecem estar em conflito com virtudes como minuciosidade, obrigações e zelo pela qualidade que dominaram o mundo do trabalho alemão, ao menos de acordo com seu ideal, marcado pelo artesanato e pela engenharia.
Que essas percepções sobre diferentes “estilos” nacionais de trabalho possuem um núcleo real mostra o método empírico de pesquisa das varieties of capitalism desenvolvido por Peter Hall e David Soskice. De acordo com eles, existem grandes diferenças na maneira como mercados de trabalho podem ser organizados em sociedades capitalistas. Nas chamadas “sociedades liberais de mercado”, o tipo que reina no espaço anglo-americano, os contratos de trabalho são, em média, muito mais curtos e existem apenas alguns mecanismos de proteção para empregados; nas chamadas sociedades de “economia coordenada de mercado”, como as existentes na Europa continental, contratos de trabalho são estabelecidos de modo mais longo e muito mais fortemente assegurados por meio de regramentos jurídicos da proteção contra a demissão. Como argumentam Hall e Soskice, isso se deve essencialmente à estrutura das empresas e à forma de capital humano de que elas precisam: em sociedades de economia coordenada de mercado é necessário um tipo bem específico de capital humano, daí que, para os empregados, vale a pena investir nisso, caso seja necessária uma salvaguarda mais rigorosa dos postos de trabalho. Nos mercados de trabalho flexíveis das economias liberais, pelo contrário, os empregados têm mais possibilidades de aplicar seu capital humano de maneira flexível na busca por um salário mais alto, o que cria o ímpeto de investir em capacidades e conhecimentos amplamente aplicáveis e relativamente vagos (Hall; Soskice, 2001, Introduction). As estruturas de estabelecimentos educacionais e outras instituições – pense-se, por exemplo, na cogestão dos empregados, na Alemanha – refletem essas diferentes variantes do capitalismo; ambos os modelos podem ser bem-sucedidos caso tenham à mão o “mix” adequado de instituições e formas de produção.
Esses dois modelos se diferenciam, no entanto, não apenas em um nível puramente “técnico” do desenho institucional. Antes, na questão da organização do mundo do trabalho, lida-se com questões mais profundas sobre a relação entre indivíduo e sociedade e, assim, sobre como vemos a nós mesmos e aos outros enquanto trabalhadores – de modo direto, trata-se de quem somos nós quando trabalhamos. Tais questões não pertencem somente à economia, ao menos de acordo com a autocompreensão corrente e relativamente estreita de seu mainstream. São perguntas genuinamente filosóficas, que rondam conceitos como identidade, indivíduo, sociabilidade e reconhecimento. A relação entre indivíduo e comunidade foi, também ela, em um nível mais abstrato, o ponto de cristalização de uma importante discussão das últimas décadas, o chamado debate liberal-comunitarista. Embora isso nem sempre tenha sido feito de modo explícito, ressoava frequentemente na crítica dos chamados pensadores comunitaristas ao liberalismo de extração rawlsiana a censura de que uma determinada forma de “enraizamento” do indivíduo e a perda da comunidade deveriam ser conectadas a processos econômicos e às forças erosivas do mercado (em especial Sandel, 1982, 1984). Entretanto, a questão “quem somos nós quando trabalhamos” e a possibilidade de que isso fosse diferente em diferentes formas do capitalismo não foram discutidas explicitamente nesse debate.
Sem responder à questão escorregadia a respeito da relação de causa e efeito entre processos econômicos reais e desenvolvimentos no âmbito da história das ideias, quero apresentar, neste artigo, o quão distintamente foi conceitualizada a questão relativa à nossa identidade enquanto trabalhadores já na infância da economia de mercado. Com isso, discuto como dois importantes precursores da moderna sociedade, Adam Smith e Georg Wilhelm Friedrich Hegel, se aproximaram dessa questão. De acordo com clichês estabelecidos, esses dois pensadores representam as posições extremas que se pode ocupar na questão do “indivíduo versus comunidade”. Smith, que é frequentemente citado como fundador da economia política, aparece como aquele que inventou o homo economicus, o paradigma do indivíduo desenraizado, estrategicamente maximizador de suas vantagens, ou ao menos como aquele que, por meio da teoria econômica, o fez apresentável. Hegel, pelo contrário, em cuja teoria o conceito de espírito desempenha um papel essencial, foi visto como pensador de uma imagem humana “contextualista” (Berry, 1982), de uma compreensão do ser humano como tão fortemente enraizado na linguagem e na cultura de seu povo que uma separação conceitual completa entre natureza humana enquanto tal e sociedade é impossível.3
Como mostrarei no que se segue, essa imagem é imprecisa, pois tanto Smith quanto Hegel conceitualizam aspectos atomistas da vida, mas também veem o indivíduo como profundamente marcado pela comunidade. Precisamente esse fato é que codetermina também o significado do mundo do trabalho para a identidade humana. Em uma sociedade de mercado, indivíduos dependem de efetuarem transações com outros e, assim, oferecerem ou bens de consumo ou sua força de trabalho, isto é, em um certo sentido, a si mesmos. Esse processo foi descrito por Smith e Hegel de modos diferentes: enquanto Smith pode ser visto como precursor da teoria do capital humano, para Hegel, indivíduos são formados, em um sentido muito mais profundo, por meio de suas atividades profissionais e ali encontram sua identidade e reconhecimento social. Esses diferentes modelos recuperam uma série de implicações em vista da maneira como a relação entre indivíduo e comunidade é concebida teoricamente. Quem somos nós quando trabalhamos? As diferentes respostas que podem ser dadas a essa pergunta implicam que não apenas níveis, mas também formas do enraizamento social devem ser diferenciadas na relação entre indivíduo e comunidade.
I
O ser social
Para captar o significado do mundo do trabalho para a identidade humana, inicialmente é preciso tornar claro um pressuposto partilhado por Smith e Hegel: ambos veem o ser humano como profundamente marcado por suas contrapartes humanas e como, em um sentido quase ontológico, “social”. Na história da filosofia, a oposição entre uma imagem social e uma atomística do ser humano pode ser fixada nas posições de Aristóteles e do jovem Rousseau. Para Aristóteles, apenas animais e deuses podem viver sem comunidade, ao passo que o humano deve ser parte de uma pólis (Aristóteles, 1958, p. 5). Para o Rousseau do “Segundo discurso”, influenciado por Hobbes, pelo contrário, o ideal de humanidade se mostra no descampado selvagem de um estado de natureza prévio, no qual o ser humano seria de “simplicidade celestial e majestática”, enquanto teria se tornado “fraco, temerário e rastejante ao [se tornar] sociável e escravo” (Rousseau, 1993, p. 45 e 93).
Tanto Smith quanto Hegel ficam ao lado de Aristóteles nessa questão: o ser humano não é um ser social apenas por razões instrumentais, mas também qua ser humano e não poderia realizar sua natureza humana de outro modo, sem a sociedade. Isso talvez surpreenda, no caso de Smith. Economistas e filósofos inspirados pela economia (p. ex., pela filosofia moral, Gauthier, 1976) frequentemente argumentam com apoio de “Robinsonadas” – o cenário do isolado Robinson Crusoé em sua ilha – e apresentam esse self, por definição “atomístico”, como ideal da racionalidade humana. Essa, porém, não é, de modo algum, a imagem do ser humano de Smith. Para Smith, o humano é um ser social que, por meio do sentimento de “empatia”,4 pode trocar de sentimentos e se colocar em numerosos relacionamentos de diversas formas e intensidades com outras pessoas.5 Um ser humano isolado não poderia desenvolver qualquer autoconsciência, dado que sua consciência sempre estaria direcionada a “objetos afetivos” externos. Somente por meio do “espelho” (Smith, 2010, p. 178 e ss.) de outros humanos e do olhar deles sobre si é que o primeiro humano aprende a desenvolver uma relação com os próprios afetos. Apenas através da comunidade com outros é possível dividir-se “em duas pessoas” (Smith, 2010, p. 181) e ponderar as próprias ações. O olhar dos outros é internalizado (Griswold, 1999, p. 107), o que ocorre tanto no sentido formal de que se está, em geral, na situação de tomar uma posição crítica sobre si mesmo quanto no nível do conteúdo, na medida em que somos influenciados por como outros nos julgam (Smith, 2010, p. 178 e s.). Esse é o ponto de partida para a construção de Smith do observador imparcial, a figura fundante de sua filosofia moral.
Por meio do contato com outros, os humanos aprendem a dominar seus próprios instintos e impulsos, de modo que a ação autônoma se lhes torna possível. Crianças aprendem, principalmente pelo contato com crianças de sua idade, que devem controlar seus sentimentos para serem aceitas por outras e incorporadas ao grupo. Nessa “escola do autocontrole”, inicialmente de modo totalmente lúdico, a criança aprende a “submeter seus sentimentos a uma certa disciplina” e, assim, tornar-se “senhora de si” (Smith, 2010, p. 227). Um tal autocontrole é inevitável para que os humanos vivam em comunidade e possam agir dentro dela de modo autossuficiente; mas a comunidade educa o humano também para aprender justamente isso (p. 29). Smith fala, nesse contexto, de uma “harmonia” dos sentimentos – não é necessária, nesse caso, uma completa afinação, mas uma concordância com o contexto geral da comunidade (p. 29). Para ser um indivíduo humano no sentido pleno de agir de modo autossuficiente, mas também poder viver em comunidade com outros, devem concorrer empatia, autoconsciência e autocontrole: por meio da empatia, pode-se assumir a posição de outra pessoa e, com a consciência dos próprios sentimentos, por meio do autocontrole, trazer esses últimos a um nível que possa ser compartilhado pelos outros.6
Um proponente de “Robinsonadas” poderia objetar que tudo isso seria concebível desde que se tratasse de crianças; quando se tratasse de adultos, que já teriam aprendido tais condutas, o modelo “atomístico” do indivíduo seria, no entanto, mais útil. Mas isso também não corresponde à imagem de Smith: para ele, as conexões estabelecidas entre seres humanos por meio da empatia permanecem um fator essencial na vida de humanos crescidos. Smith descreve, na Teoria dos sentimentos morais, como a comiseração e a beneficência de indivíduos se alargam em círculos concêntricos ao redor destes em direção àqueles com quem eles vivem: família, vizinhos, amigos e conhecidos. Nesses “círculos de empatia”7, a pessoa está enraizada por toda a sua vida; eles desempenham um papel importante para a possibilidade de reflexão moral. Como afirma Smith (2010, p. 243), o “humano em nosso peito, o observador ideal imaginado de nossos sentimentos e condutas” deve frequentemente, por meio da presença de observadores reais, ser “despertado e lembrado de suas obrigações”. Ele toma como autoevidente que o ser humano vive em comunidades sociais, nas quais esse “despertar” pode suceder. A única indicação a uma outra forma de vida – e aos perigos a ela conectados – se encontra em um apontamento sobre a “cidade grande”, na qual um simples trabalhador vive no “anonimato e no isolamento” e, ao contrário da situação em uma aldeia, não tem “a perder aquilo a que se chama caráter” (Smith, 1974, p. 675). Isso, aos olhos de Smith, é um perigo para a manutenção de padrões morais fundamentais: um tal trabalhador é “tentado […] a se deixar levar, mesmo a se perder em todo tipo de libertinagem e vício” (p. 675).8 Este caso é, no entanto, uma perigosa anomalia, não a regra – ainda que o clichê de um Smith neoliberal no sentido da “Escola de Chicago” esteja próximo dele. Via de regra, para Smith, humanos são enraizados nas estruturas sociais de seus círculos privados de família, vizinhança e amizade e a circulação de empatia desempenha um papel relevante, para os indivíduos, por toda uma vida. A vida “sob a opinião de outrem”, que Rousseau (1993, p. 269) apontava como sinal da decadência moral da sociedade civilizada, é desde sempre parte da conditio humana; a questão essencial é como os seres humanos se espelham nos olhos de outros e se o fazem da maneira moralmente correta (Rasmussen, 2008, p. 115).9 Como se vai mostrar, para Smith, a esfera econômica é, entretanto, estruturada de outra forma, de modo que lá se pode falar de um self “atomístico”. Mas que, então, o indivíduo smithiano seja enraizado de outra maneira, isso já não é mais tão implausível e problemático, como à primeira vista possa parecer.
No caso de Hegel, quase não surpreende falar de um “self social”. O conceito do Espírito como “Eu que sou Nós e Nós que somos Eu” (1970a, p. 145) expressa o íntimo entrelaçamento entre indivíduo e sociedade, entre os quais uma completa separação conceitual não é possível (ver, p. ex., Hardimon, 1994, p. 106 e ss.). O espírito, que, depois da malsucedida luta por reconhecimento e do episódio do senhor e do escravo, é constituído por meio do reconhecimento recíproco entre indivíduos (Hegel, 1970a, p. 145 e ss.), é o fundamento da filosofia política de Hegel, conforme encontrada nas Linhas fundamentais da filosofia do Direito (Hegel, 1970b)10 e nas anotações de aulas a ela correspondentes.11. Por meio da educação dentro da família, cada geração novamente se transforma em parte desse espírito, no qual o indivíduo é reconhecido e, em contrapartida, reconhece outros (Hegel, 1970b, §174 e ss). De modo similar a Smith, Hegel nomeia como aspecto essencial da educação o aprendizado do autocontrole e, assim, a libertação da situação de dominação por instintos naturais e impulsos (Hegel, 1970b, §175; Hotho em Hegel, 1974, p. 553). Estes são substituídos pelo aprendizado de normas sociais que trazem o ser humano de uma primeira natureza, impulsiva, até uma “segunda, espiritual” (Hegel, 1970b, §151, Adendo; conf. §148 e ss; Hegel 1970c, §485).
O resultado do processo educacional é o humano adulto que, inicialmente, é visto como objetivamente independente e, por assim, dizer, “atomizado”: o indivíduo pode adquirir propriedade e fechar contratos e, desse modo, adentrar relações puramente instrumentais com outros. Estas não são, no entanto, as únicas formas de relações na sociedade civil. A expressão “filho da sociedade civil” já indica que o processo formativo do indivíduo não se completa ao abandonar a família. Aspectos essenciais dessa “formação” continuada se dão, para Hegel, por meio do trabalho que o indivíduo desempenha na economia de mercado, como será discutido em breve. O papel do trabalho para a formação do indivíduo, no entanto, já é insinuado pelo fato de que, também na constituição do espírito na Fenomenologia, o trabalho desempenha um papel central: por meio do trabalho, o servo aprende a controlar suas paixões, ele é o “desejo atrofiado” por meio do qual o servo chega “a si” (Hegel, 1970a, p. 153 e ss.). Essa ênfase no trabalho como influência formativa sobre o espírito humano sobrevive também no Hegel maduro, em sua descrição da sociedade civil.
II
Identidade no mercado
Na oposição esboçada entre Aristóteles e Rousseau quanto à sociabilidade do ser humano, tanto Smith quanto Hegel se encontram, então, ao lado de Aristóteles; fenomenologicamente, a adequação desse modelo também parece ser quase irrefutável. O ser humano é um animal sociale e só pode ser humano em comunidade com outros humanos. Este enraizamento e, principalmente, o aprendizado de técnicas fundamentais do Eu pela educação também devem, pois, estar diante dos olhos quando, por razões metodológicas, parte-se de indivíduos crescidos e plenamente capazes de refletir.
O mundo social no qual se movem os indivíduos de Smith e Hegel não é, no entanto, a pólis aristotélica, na qual as atividades econômicas eram limitadas à economia doméstica, ao oikos. A vida econômica na época de Smith e Hegel havia se transformado em uma “economia política” (Smith, 1974, p. 347; Hegel, 1970b, §189 – ali ele se refere a “Smith, Say e Ricardo” como representantes da “economia política”) e assim permanece até hoje: uma esfera autônoma e pública na qual indivíduos se topam em diferentes papéis, como fornecedor e consumidor, como vendedor, força de trabalho e colegas. De um lado, isso implica em uma qualidade completamente nova do consumo de bens e serviços, que ficam à disposição em uma medida e diferenciação muito maior do que era o caso em sociedades pré-capitalistas – ao menos para o grosso da população. De outro lado, porém, isso também significou que os seres humanos deveriam submeter sua força de trabalho ao jogo do mercado, seja diretamente, como trabalhador assalariado, ou indiretamente, dado que produzem por si mesmos para o mercado. Embora o papel do consumo na determinação da identidade social do indivíduo não possa ser de modo algum refutado, ao segundo fator parece ser atribuído um significado ainda mais essencial, pelo simples motivo da grande medida de tempo que seres humanos em relações de mercado despendem em suas relações de trabalho. O que isso significa para sua identidade – quem são eles quando trabalham – é, no entanto, a questão na qual se separam os caminhos de Smith e Hegel e à qual eles respondem com concepções fundamentalmente diversas sobre o mundo do trabalho.
A venda da força de trabalho
Para se tornar consciente dessa conceitualização de Smith é proveitoso chamar à lembrança como ele concebe “o mercado” em geral. Para Smith caem no conceito de mercado todas as formas de troca de bens e serviços, do comércio local com produtos artesanais até o comércio internacional com bens de luxo. A troca é lucrativa porque diferentes seres humanos oferecem diferentes coisas que se completam mutuamente. Esta capacidade humana para a troca Smith considera como única no reino animal: embora as distinções, por exemplo, entre diferentes raças caninas sejam muito maiores do que aquelas entre diferentes seres humanos (Smith, 1974, p. 18-19), a eles falta a possibilidade de colocarem seus diversos talentos a serviço da melhora da situação de vida da espécie por meio da “permuta e comércio” (p. 18-19). Seres humanos são muito mais parecidos uns com os outros – suas distinções se apoiam muito mais fortemente em “hábitos, costumes e educação” do que em causas naturais (p. 18, ver também Smith 1978, p. 348) – mas, para eles, as distinções existentes são úteis, já que por meio do comércio todos podem lucrar com elas:
os mais diferentes dons são de uso uns para os outros, uma vez que os diferentes produtos de seus diferentes talentos, graças à disposição geral para a negociação, a permuta e o comércio, sejam transformados, por assim dizer, em um fundo comum do qual qualquer pessoa pode adquirir qualquer parte do produto que outros produziram com seus talentos
(Smith, 1974, p. 19; comparar com Smith, 1978, p. 348 e 488 e ss.)
É notável quanta dignidade e respeito recíproco Smith vê nessa utilidade recíproca dos seres humanos. A conhecida passagem sobre os interesses privados “do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro” é retoricamente contrastada com um cãozinho que bajula sua mãe e com um cão Spaniel que “procura, de mil maneiras, chamar a atenção de seu dono que está jantando, quando quer ser alimentado por este” (Smith, 1974, p. 16 e ss.). Seres humanos, pelo contrário, enquanto agentes de mercado, aparecem como parceiros de comércio dotados dos mesmos direitos: eles oferecem algo por si mesmos e, com isso, entram em uma relação contratual que é útil para ambos os lados. Em uma sociedade moderna, com divisão do trabalho social, de fato cada pessoa não se encontra em troca direta com cada outra, mas cada uma sabe que também as outras, cada uma do seu jeito, contribuem com algo útil para a sociedade, mesmo que somente sendo úteis ao ajudar outras pessoas a carregar os bens adquiridos no mercado, como mostra o exemplo de Smith sobre os carregadores (Smith, 1974, p. 18; 1978, p. 348).
Conscientes de que todos contribuem com algo para o “fundo comum” da sociedade, cidadãos de uma sociedade de mercado dão-se atenção e respeitam-se reciprocamente.12 Essencial aqui é que não só aqueles que dispõem de capital podem participar do mercado nessa função [de contribuir com algo, N.T.] – uma grande parte dos participantes do mercado na época de Smith não o faziam (Smith, 1974, p. 68). O que cada um pode oferecer, no entanto, é a própria força de trabalho. Por meio do aprendizado e da aquisição de experiência e expertise pode ser investido em sua melhora. Smith antecipa o conceito de “capital humano” quando argumenta que “a destreza adquirida por um trabalhador” pode ser comparada com a de “uma máquina ou ferramenta que facilita ou encurta o trabalho e que gera custos que são saldados pelos lucros” (p. 232; para os princípios da teoria do capital humano e os diversos autores que, quanto a ela, explicitamente remeteram a Smith, ver Teixeira, 2007).
O significado deste argumento – segundo o qual uma entrada juridicamente igualitária no mercado e nas “possibilidades de investimento” também é possível às camadas mais pobres da população13 – fica claro quando se considera uma concepção alternativa central, então em voga: para muitos pensadores do civic republicanism (ver esp. Pocock, 1975, 1983), à posse do capital, ao menos na forma de propriedade fundiária, em menor medida na forma do dinheiro vivo em circulação, seria atribuída a qualidade de habilitar os possuidores ao domínio de diversas virtudes. Smith, com sua ampliação do conceito de capital, vira o civic republicanism contra si mesmo (Berry, 1994, p. 154 e ss.): comércio e permuta não corroem os costumes, mas, pelo contrário, conduzem a que, por princípio, cada ser humano tenha uma forma de “capital”, que lhe dá uma forma de independência, e que pensadores republicanos consideravam como fundamento da virtude. De fato, nem todos se tornarão proprietários de terra, mas mesmo os mais pobres têm seu “capital humano”, a respeito de cuja aplicação a diferentes clientes eles podem decidir livremente.
A imagem que Smith traça é atraente: indivíduos soberanos se encontram no mercado e ali trocam bens e serviços, de modo que cada um dá atenção ao outro enquanto participante do mercado que tem algo valioso a oferecer. Importante, no entanto, é como exatamente Smith conceitualiza isso. Os indivíduos smithianos manuseiam sua força de trabalho como capital humano e, assim, como algo que eles possuem, não como algo que eles são. Como enfatiza Werhane, esta distinção conceitual entre o trabalhador e sua força produtiva permite descrever que o trabalhador vende sua força de trabalho sem vender a si próprio (Werhane, 1991, p. 132; ver também Griswold, 1999, p. 299; Haakonssen, 2006, p. 19). Eles escolhem livremente entre as diferentes possibilidades de aplicar seu capital humano e o vendem pela melhor oferta.
Sem essa suposição, a descrição de Smith para o mecanismo de preço não funcionaria. Smith descreve o movimento dos preços de mercado até o “preço natural”, até o preço no qual todos os componentes (rendas, salários e lucros) recebem uma compensação corrente e oferta e demanda estão em proporção (Smith, 1974, p. 28 e ss.) como consequência de um processo de adequação dos indivíduos: se oferta e demanda se encontram em desproporção, existe para os indivíduos a possibilidade de empregar terra, capital e salário de outro modo e, assim, almejar um lucro mais alto (Smith, 1974, p. 50 e ss. para ênfase). A “gravitação” (p. 51) do preço de mercado em direção ao preço natural, porém, só pode ocorrer se os indivíduos também se comportarem de acordo. Isso pressupõe que todos os fatores aplicados da produção são flexíveis e que indivíduos não são ligados a seu capital em formas determinadas de produção. Em uma passagem, Smith nota que mudanças na regulamentação do sistema econômico devem ser anunciadas com certa antecedência, a fim de que aqueles que tenham investido em “oficinas e máquinas” de uma determinada área tenham tempo suficiente para se adequarem (p. 386). No que concerne ao capital humano, ele não fala de problemas desse tipo; ao invés disso, parece ser uma de suas suposições fundamentais que, para trabalhadores, é comparativamente mais fácil mudar para outras posições e áreas. Esta é uma pressuposição pesada e que depende de diversos fatores. Primeiro, é preciso que exista, antes de mais nada, demanda por capital humano; enquanto a economia cresce, Smith parece não ver isso como problemático (ver, p. ex., p. 70). Além disso, os trabalhadores devem estar em condições de assumirem esses postos de trabalho, o que pressupõe que eles consigam realizar o trabalho ali exigido. Seu capital humano não deve, então, ser tão específico que seja útil somente para uma aplicação muito determinada; antes, ele deve ser amplamente aplicável. Smith assume que este é o caso para a maioria das pessoas: até mesmo habilidades tecnicamente complicadas, como a de um relojoeiro, poderiam ser aprendidas dentro de “poucas semanas, até mesmo alguns dias, talvez” (p. 107) e a maioria dos processos de produção seriam tão parecidos entre si que os trabalhadores facilmente poderiam se mudar para uma outra área (p. 384; como Smith adiciona, muitos trabalhadores ainda trabalhariam ocasionalmente na agricultura).
Não menos importante, os indivíduos também deveriam estar dispostos a mudar suas atividades se a situação de mercado o exigisse. Isso significa que eles não devem considerar sua atividade profissional como constitutiva para sua identidade. Nesse sentido, eles não devem ser imediatamente enraizados e ver objetivos profissionais – ou pelo menos a ocupação em uma área muito determinada – como “constitutivos”. As atividades profissionais não devem ser tão importantes para eles a ponto de que, como escreve Sandel a respeito do enraizamento, estas “os definam tão completamente a ponto de que eles não possam compreender a si mesmos sem elas” (Sandel, 1984, p. 86; também Sandel, 1982, p. 180). Ao invés disso, eles devem possuir seu capital humano e dele dispor de modo soberano; ele não deve ser uma parte tão grande de seu self a ponto de a necessidade decorrente de processos de mercado de mudar de uma atividade a outra seja vista como perda da própria identidade.
Isso não significa, no entanto, que os indivíduos smithianos seriam completamente “desenraizados”. O enraizamento social se encontra nos “círculos de empatia” privados, nos quais os indivíduos podem ter objetivos perfeitamente constitutivos enquanto membros de uma família ou amigos que compartilham um entendimento comum de virtude (Smith, 2010, p. 365 e ss.). Estes círculos, para Smith, são o pressuposto necessário para desenvolver um “caráter” e se apegar a regras morais fundamentais, como mostrou o contraexemplo do trabalhador na grande cidade anônima.14 Sem esse enraizamento social também é questionável se os indivíduos estariam, psicologicamente, na condição de aplicar seu capital humano de maneira tão soberana quanto Smith descreve; nesse sentido, esse enraizamento prévio é um pressuposto para a possibilidade de um mercado de trabalho livre. Fossem os indivíduos, no entanto, enraizados da mesma forma no próprio mercado não existiria a flexibilidade do mecanismo de preços, com todas as vantagens que, segundo Smith, ela possui.15
A escolha da própria posição na sociedade
Na descrição de Hegel da sociedade civil, a relação entre a pessoa e sua força de trabalho é construída de outro modo. Uma citação do §207 da Filosofia do direito sumariza os elementos essenciais dessa concepção:
O indivíduo se dá efetividade somente entrando no ser-aí em geral, por conseguinte, na particularidade determinada […] Por isso, a disposição de ânimo ética nesse sistema é a retidão e a honra ligada ao estamento, é fazer de si e, no caso, por determinação própria, por sua atividade, diligência e habilidade, um membro de um dos momentos da sociedade civil e manter-se enquanto tal, e [assim] prover para si somente por essa mediação com o universal, assim como ser reconhecido na sua representação e na representação dos outros somente por essa mediação.
Para Hegel, é um aspecto da liberdade moderna que seres humanos possam escolher suas profissões por conta própria (Hegel, 1970b, §185, §206, §262 adendo, §299; Hotho em Hegel, 1974, p. 634).16 Diferentes fatores – “as disposições naturais, o nascimento e circunstância” – desempenham aí um papel, mas “a determinação última e essencial reside na opinião subjetiva e no arbítrio particular” (1970b, §206; Hotho em Hegel 1974, p. 633).17 Nessa escolha, os indivíduos não decidem, porém, apenas sobre seu capital humano, mas também sobre sua posição na sociedade civil e, com isso, sobre um aspecto essencial de sua identidade: não se trata de adquirir algo, mas de tornar-se algo. O indivíduo se torna membro de um dos estamentos, dos “momentos” da sociedade civil (1970b, §207), e dentro do segundo estamento, o da industriosidade, de uma das corporações (1970b, §250 e ss.). As corporações conformam “pequenos círculos nos grandes círculos” (Hotho em Hegel, 1974, p. 713) e junto com os estamentos constituem a diferenciabilidade interna da sociedade civil.
A escolha da profissão é, para Hegel, mais que o investimento em capital humano; na conceitualização de Sandel, pode-se dizer que sua identidade profissional é “constitutiva” para os indivíduos. Inicialmente há um motivo puramente prático para isso: em oposição a Smith, Hegel acredita que uma mudança entre profissões é difícil, quando não mesmo impossível. Isso se segue de seu comentário sobre o desemprego: as capacidades daqueles que perderam seus postos de trabalho são, na maior parte das vezes, tão especiais que eles não podem ser integrados em nenhuma outra área (Hotho em Hegel, 1974, p. 610; de modo similar Griesheim em Hegel, 1974, p. 600).18 Priddat (1990, p. 202 e ss.) refere essa imagem do mercado de trabalho à influência do cameralismo alemão. Como será mostrado na sequência, no entanto, não apenas reflexões práticas, mas reflexões fundamentalmente filosóficas estão por trás do pensamento de Hegel de que a atividade profissional de um ser humano é algo que ele não apenas tem, mas também é.
A pergunta implícita aqui concerne à relação entre “particularidade” e “universalidade” na sociedade civil. A sociedade civil é, para Hegel, o “estágio da diferença”, no qual a universalidade mostra-se apenas “interior” na particularidade (Hegel, 1970b, §181). Aqui o princípio da particularidade se torna efetivo: cada indivíduo obtém aqui o “direito de desenvolver-se e difundir-se para todos os lados” (1970b, §184; ver também Hotho em Hegel, 1974, p. 501, 620) enquanto “subjetividade sendo infinitamente para si, livre” (1970b, §187). A ordem jurídica com propriedade privada e direitos fundamentais constitui a pressuposição para isso.
A particularidade do indivíduo moderno encontra expressão, por um lado, no fato de que ele pode satisfazer suas carências e desejos: a pessoa age aqui enquanto “um todo de carências e uma mistura de necessidade natural e de arbítrio” (Hegel, 1970b, §182; ver também §194 para o papel da representação e da opinião para as carências humanas). Mas a diferenciação das carências traz também consigo a diferenciação “dos meios para seus fins” (Hegel, 1979b, §191 e ss.), isto é, a divisão do trabalho. Para participar no processo de trabalho, os indivíduos devem aqui, da mesma maneira, chegar a uma decisão: na sociedade moderna “cada um [pode] se assentar […], portanto, onde ele se sentir chamado” (Griesheim em Hegel, 1974, p. 509) correspondentemente a “seus talentos particulares, planos, interesse próprio” (Griesheim em Hegel, 1974, p. 481). Por meio dessa escolha, o ser humano entra “na particularidade determinada” (Hegel, 1970b, §207) e ganha, através disso, “efetividade e objetividade ética” (§207). Assim se realiza a universalidade “em suas diferenças compreensíveis” (Hotho em Hegel, 1974, p. 526) e a sociedade se torna um todo orgânico internamente diferenciado e, com isso, estável; seus cidadãos “se tornam algo” e, assim, podem efetivar seus interesses determinados (Hotho em Hegel, 1974, p. 638). Hegel indica que “nós alemães” perguntamos “o que ele é?” e esperamos como resposta o pertencimento a um determinado estamento (Griesheim em Hegel, 1974, p. 525; ver também Hotho em Hegel, 1974, p. 635). Sem um tal pertencimento a um estamento, o ser humano é “uma mera pessoa privada”, ao passo que em uma posição profissional em um estamento ele é elevado a uma “particularidade […] que é generalizadamente reconhecida e válida” (Hotho em Hegel, 1974, p. 637). Ele participa enquanto mais particular na “universalidade” da sociedade civil – a promoção indireta do bem-estar de todos por meio da mão invisível do mercado (1970b, §199).
O significado desses papéis profissionais também repousa, para Hegel, em que neles e em outros papéis se efetiva a eticidade, na qual a moralidade é “suprassumida” e concretamente realizada. Hegel indica explicitamente que a moralidade tem seu lugar na sociedade civil na particularidade da vida profissional: tão logo sejam preenchidas as tarefas e obrigações essenciais, permaneceria “uma porção de aleatoriedades atribuída à particularidade e, para estas, é que a disposição moral deve surgir” (Hohto em Hegel, 1974, p. 639). Também a participação política dos indivíduos – tanto quanto ela efetivamente exista para Hegel – encontra-se sob o ponto de vista dessa “particularidade” e, por meio dela, a particularidade encontra entrada na “universalidade” da esfera política. Os estamentos, que representam as diferentes partes da sociedade no legislativo, recolhem em si o “conhecimento das carências do poder de Estado” (Hegel, 1970b, §300) e são “órgão mediador” entre o governo e a população (§302).
Mas também na própria sociedade civil estão entretecidas particularidade e universalidade de forma complexa; a universalidade aparece ali sob forma “mediada”. Na vida econômica sob a divisão do trabalho, o “egoísmo subjetivo” é direcionado por meio de um “movimento dialético” à satisfação dos interesses de outros (Hegel, 1970b, §199; Hotho em Hegel, 1974, p. 567, 581; Avineri, 1971, p. 192 e ss.). Daí que a universalidade é “fundamento e forma necessária da particularidade e, também, […] potência sobre ela e […] seu fim último” (1970b, §184, itálicos da autora). Essa universalidade é formal, ela é a “necessidade interna” do sistema de “dependência omnilateral” (§183). A particularidade, que o indivíduo escolhe para si próprio, deve então estar conectada com a universalidade: como participante do mercado, o indivíduo deve produzir bens ou serviços que se deixam vender e, assim, sem que isso seja conscientemente intencionado, contribuir para o bem-estar da sociedade. Ele transforma-se, pois em um “elo da cadeia dessa conexão” (§187). Neste ponto, topa conosco pela segunda vez na Filosofia do direito o tema da educação, ou mais especificamente, do cultivo:19 já que a sociedade civil contém esse elemento da universalidade, ela pode contribuir para conduzir seus membros para longe das pulsões e impulsos particulares e os “cultivar”. Isso ocorre por meio do trabalho que os indivíduos devem executar (§187; ver também Inwood, 1992, p. 247). Nele, os indivíduos devem exercitar o autocontrole e se adequar aos interesses e humores de outros trabalhadores20 e, através dele, eles desenvolvem o “hábito dessa ocupação” (§197). Enquanto contribuição para a dissociação de imposições biológicas, o trabalho contém, pois, para Hegel um “momento da libertação (§194).
Seria possível objetar que esta universalidade contraria a particularidade da sociedade civil. Mas, como Hegel enfatiza, ela representa somente a forma na qual indivíduos vivenciam sua particularidade. O cultivo é, aqui, o nível no qual “o particular recebe a forma da universalidade” (Griesheim em Hegel, 1974, p. 417; Hotho em Hegel, 1974, p. 479, itálicos da autora). As reflexões de Hegel sobre a formação na sociedade civil, com isso, não se encontram em contradição com a proposição de que ela é a “esfera da particularidade”, muito pelo contrário: já que o cultivo ocorre em diferentes profissões, pode-se supor que ele contenha, junto da universalidade, também aspectos particulares. Hegel fala que a aquisição de conhecimentos e capacidades torna o ser humano “senhor do seu fazer”, de modo que ele encontra satisfação em produzir uma coisa como ela “deve ser” (Hegel, 1970b, §197 Adendo). Na medida em que o cultivo da sociedade civil – que representa, de fato, uma modelagem abrangente do ser humano por completo – também recebe elementos da particularidade, ele reforça a identidade do indivíduo que enquanto particular se encontra em conexão geral com a economia sob a divisão do trabalho. Hegel descarta, desse modo, explicitamente, uma compreensão externa, instrumental, de formação (Hegel, 1970b, §187). Em clara oposição à compreensão smithiana de capital humano, o conceito hegeliano de formação descreve um processo mais abrangente pelo qual passam os indivíduos quando eles se tornam alguém particular e, então, na forma da universalidade, mas enquanto particulares contribuem para o bem-estar da sociedade civil.
Se os indivíduos da sociedade civil se topam mutuamente, isso ocorre, consequentemente, enquanto particulares, enquanto membros de determinados grupos sociais e corporações – enquanto cervejeiro, açougueiro ou padeiro. Hegel liga o reconhecimento que os indivíduos experimentam na sociedade civil explicitamente com suas profissões: é-se “reconhecido na sua representação e na representação dos outros” porque torna-se “um membro de um dos momentos da sociedade civil” (Hegel, 1970b, §207). O espaço social em que este reconhecimento especificamente toma forma é a corporação: ali o indivíduo tem “a sua honra no seu estamento” (§253). Aqui são reconhecidas tanto a capacidade de contribuir com algo útil para a sociedade21 quanto a capacidade particular e a contribuição particular de um indivíduo. Com isso, as escolhas livres dos indivíduos ao terem escolhido estas determinadas profissões, portanto, seu livre arbítrio, também recebem sua valorização. Se Hegel descreve a sociedade civil como o lugar em que “opinião subjetiva e […] arbítrio particular” recebem “seu direito, o seu mérito e a sua honra” (§206), com isso não se fala somente sobre o lado do consumo, mas também da escolha livre por uma determinada profissão e do correspondente cultivo da personalidade.
Tudo isso mostra que, para Hegel, a identidade profissional individual, em um sentido muito profundo, constitui uma parte daquilo que se é. Indivíduos não apenas vendem sua força de trabalho, mas suas atividades profissionais são, para falar com Sandel, “constitutivas” para eles. Conceitualmente isso já se mostra na palavra “profissão” (Beruf), que etimologicamente remonta a “chamamento” (Berufung); do ponto de vista da história das ideias, soam temas da tradição luterana, com seu “sacerdócio de todos os crentes”, que concede a dignidade de uma “liturgia” não apenas ao padre, mas também ao crente em sua profissão mundana. De fato, essa conotação religiosa já deve ter diminuído no decorrer do século XVIII (Conze, 1990, p. 503), no entanto, as associações com o cumprimento do próprio dever e com a própria identidade ainda são claramente visíveis em Hegel e, possivelmente, ressoam até hoje. Essa circunstância talvez explique também o desconforto, na Alemanha, em vista do conceito de capital humano.22
Em Hegel, os indivíduos no mercado são, pois, bem menos “desenraizados” do que em Smith. De fato, também em Hegel é admitida uma esfera para o eu “atomista”: na esfera do consumo, os indivíduos podem vivenciar de modo autônomo suas preferências individuais sem estarem constitutivamente ligados a qualquer outra coisa.23 No mercado de trabalho, pelo contrário, eles não são concebidos atomizadamente: ao invés de aplicar individualmente da melhor maneira possível seu capital humano, desimpedidos de ligações pessoais e da especificidade de sua formação – como Smith os concebe – eles escolhem, em Hegel, de uma vez por todas seu lugar na sociedade, consideram as obrigações que decorrem deste papel e são reconhecidos enquanto particulares que, por meio de seu cultivo, tornaram-se “alguém”.
III
As oportunidades e riscos do enraizamento profissional
O clichê de uma figura humana completamente atomizada, em Smith, e uma completamente enraizada, em Hegel, é, com relação às suas teorias, inadequado como um todo. No que se refere ao mercado de trabalho, no entanto, ele tem uma certa razão de ser. Em Smith, indivíduos soberanos vendem seu capital humano em um mercado de trabalho, de modo ideal, totalmente flexível; em Hegel, indivíduos são padeiro, açougueiro ou cervejeiro e são enraizados nas classes sociais e comunidades profissionais correspondentes. Como mencionado no início, essa distinção se reflete parcialmente na distinção entre o capitalismo anglo-saxão e o europeu continental; as observações de Richard Sennett indicam, além disso, que nos últimos anos e décadas um modelo ainda mais acentuadamente “smithiano” do que era o caso anteriormente se consolidou nos EUA. Isso significa uma clara mudança na relação entre indivíduo e sociedade.
No “debate liberal-comunitarista”, dominado por autores como Rawls e Sandel, a questão gira, principalmente, em torno do grau de enraizamento e, como diversos autores deixaram claro, ali é essencial encontrar o ponto médio correto na escala entre enraizamento total e atomização total (Dagger, 1999, esp. p. 190 e ss.). Como a discussão das perspectivas smithiana e hegeliana a respeito da relação entre indivíduo e sociedade no mercado de trabalho deixou claro, no entanto, não se trata apenas de graus de enraizamento; ao menos tão importante quanto isso é distinguir diferentes formas do enraizamento social em diferentes esferas sociais. Muitos processos de mudança social deixam-se compreender com base na interrelação entre diferentes formas de enraizamento.
O modelo smithiano, com seu forte enraizamento privado e desenraizamento limitado no mercado de trabalho, distingue-se essencialmente do temerário cenário de uma sociedade totalmente atomizada, como temida por críticos comunitaristas. O foco de pensadores comunitaristas repousa amplamente em formas institucionais do enraizamento, de modo que Smith não é visto como um pensador que deu uma contribuição particularmente única à questão sobre a relação entre indivíduo e sociedade: ele enfatiza o enraizamento do indivíduo em contextos privados e o papel essencial que esse enraizamento desempenha para a capacidade de reflexão moral e de ação moral. Hoje surge como problemático, no entanto, que também justamente essas ligações privadas parecem perder força, possivelmente, entre outras coisas, pelas influências erosivas do livre mercado. Um modelo hegeliano do mercado de trabalho poderia servir como contraponto aqui, na medida em que relações de trabalho, que exibem grande estabilidade, também poderiam constituir um pilar psicológico para indivíduos: a identidade profissional poderia, então, possivelmente constituir um ancoramento mais duradouro para a personalidade do indivíduo do que o fazem ligações privadas (ver também Reisach, 2007, p. 194 e s.). Essa possibilidade parece, cada vez mais, perder-se em um mercado de trabalho crescentemente flexibilizado; entretanto, é fácil imaginar que o anseio atualmente observado na Alemanha por valores familiares e relações confiáveis representa uma reação ao desenraizamento na esfera econômica.24
Entretanto, a forma hegeliana de enraizamento profissional também não é necessariamente totalmente positiva para os indivíduos envolvidos. Do pensamento de Smith se deixam derivar os perigos da salvaguarda de tais tipos de instituições historicamente crescidas; assim, deve-se sempre perguntar se elas efetivamente servem ao bem-estar universal ou se não cimentam os direitos e privilégios de grupos individuais ao custo da universalidade e, especialmente, dos mais pobres (hoje provavelmente os desempregados). Além disso, como especialmente Rothschild (2001, cap. 4, p. 27) enfatizou, persistem nessas tais instituições frequentemente relações de dependência que propiciam oportunidades para tormentos e “despotismo pessoal”. Também Hegel admite que as corporações “se ossificaria[m], se enclausuraria[m] em si mesma[s] e se degradaria[m] em um mísero corporativismo” (Hegel, 1970b, §255 Adendo). Um “excesso” de enraizamento profissional, então, o próprio Hegel vê como ameaçador. Antes de tudo, porém, o enraizamento profissional dos indivíduos leva a uma vulnerabilidade mais aguda se, por exemplo, uma determinada área desmorona e eles não são flexíveis o bastante para, com sua particularidade, encontrar diretamente um enraizamento comparável em outro lugar. Enraizamento significa, então, também “morrer abraçado”. Ameaça perder-se o que os seres humanos sentiram como peça essencial de sua própria personalidade.
Entre as oportunidades e os riscos do enraizamento profissional, com isso, impera uma tensão que não admite qualquer otimização. Essencial é, pois, tomar seriamente a complexidade da temática e a forma das ponderações e compromissos que são possíveis. Isso é especialmente necessário, já que no debate especializado da economia mainstream repousa um modelo de mercado de trabalho que efetivamente se aproxima do modelo smithiano de uma venda plenamente flexível do capital humano, evidentemente sem a reflexão conjunta sobre o enraizamento privado dos indivíduos. É tarefa das outras ciências sociais e da filosofia política lembrar que este é um ângulo possível para observar a realidade econômica, cuja adequação, porém, absolutamente não pode ser assumida a priori. Muitos mal-entendidos entre economistas e outros participantes do discurso público devem ser remetidos ao fato de que as suposições implícitas sobre a natureza e a estrutura do mercado de trabalho que as ciências econômicas assumem não são partilhadas por todos os agentes. A comparação entre os modelos de Smith e de Hegel é proveitosa para descortinar tais inconsistências no debate público sobre a política do mercado de trabalho e apontar para discrepâncias: uma situação na qual capital humano muito específico é necessário, capital que possivelmente está ligado fortemente com a identidade dos indivíduos, não se deixa unir sem mais com o chamado irrefletido por cada mais flexibilização. Mas tampouco é plausível o chamado pela salvaguarda de estruturas preexistentes se o trabalhador entende sua atividade como puro “trabalho” (job) e poderia e desejaria trabalhar tão bem quanto nela, mas em outra área.
Em geral, no mercado de trabalho alemão das últimas décadas, muita coisa indica que ocorre um movimento em direção a um modelo “smithiano”. Não sem importância, a “proliferação de diplomas” (Bachelorisierung) da educação com seu foco na eficiência e “soft skills” portáveis vai nessa direção; entretanto, crescem nessas áreas também os chamados dos críticos que avisam que em áreas nodais da economia alemã – como a engenharia e a mecânica – uma educação mais profunda e fundamental é inevitável. Está em jogo não apenas a questão da especificidade do capital humano. Em jogo também está uma forma bastante determinada de práxis humana, que consiste em um modo de trabalho que se orienta por padrões de qualidade intrínsecos e almeja uma medida de excelência que só é alcançável por meio de um envolvimento de longa data com um objeto, da discussão construtiva com os colegas da mesma área. Trata-se da questão fundamental de até que ponto formas determinadas de viver e existir – tal qual elas se associam a uma forte identidade profissional, no sentido hegeliano – devam ser protegidas e salvaguardadas e, em caso positivo, qual preço se está disposto a pagar por isso. Aqui ameaça a perda não apenas dos bens que assim aparecem, mas também das formas culturais e comunitárias dentro das quais eles são produzidos. A questão sobre quem somos nós quando trabalhamos e quais formas de sociabilidade ali imperam demanda, pois, uma discussão que ultrapassa a mera dimensão econômica. O significado que o trabalho assumiu na sociedade contemporânea torna necessário dele se aproximar a partir de diferentes ângulos disciplinares, com diferentes heurísticas e consciência da diversidade das relações de trabalho realmente existentes e de suas distintas dimensões normativas. Esta discussão não deveria ser deixada somente ao discurso especializado da economia.
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1
Artigo traduzido do alemão por Gustavo Cunha (UFSC) e Thiago Aguiar Simim (UFLA), publicado originalmente em 2011 como: Lisa Maria Herzog, “Wer sind wir, wenn wir Arbeiten? Soziale Identität im Markt bei Smith und Hegel”, em Deutsche Zeitschrift für Philosophie, v. 59, n. 6, 2011. Berlin: De Gruyter/Akademia Verlag. https://doi.org/10.1524/dzph.2011.59.6.835. Os tradutores agradecem à autora e à editora pela autorização da publicação.
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2
Nesse livro de caráter jornalístico, são descritas tendências essenciais e suas oportunidades e riscos.
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3
Berry enfatiza a importância de Herder e do Romantismo para o modelo de Hegel de uma unidade orgânica entre indivíduo e sociedade (1982, 31 e ss.).
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4
Smith define empatia (sympathy) como “nossa compaixão para com toda sorte de afetos” (Smith, 2010, p. 8). Sympathy também não é correlata ao conceito alemão Sympathie e tampouco, enquanto compaixão, deve ser entendida como experiências entristecedoras. [N.T.: As citações em alemão da Teoria dos sentimentos morais feitas pela autora foram cotejadas com a seguinte edição em inglês: Smith, Adam. The theory of moral sentiments. Editado por D. D. Raphael e A. L. McFie. Indianapolis: Liberty Fund, 1984].
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Estou pressupondo que Smith deva ser lido como pensador sistemático que, na Teoria dos sentimentos morais, preparou o terreno para sua teoria econômica. Para discussões, ver, por exemplo, Raphael e Macfie (1976), Montes (2004), Otteson (2002, cap. 4 e 5).
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A função socializadora desse processo baseado na empatia foi especialmente enfatizada por Fonna Forman-Barzilai (2010, cap. 3 e 4), que a toma para uma explicação dos conceitos de Foucault de “vigilância” e “disciplinamento” (p. 76 e ss.). Isto, no entanto, é equivocado, na medida em que, em Foucault (por exemplo na descrição do panóptico), a vigilância não é recíproca e ocorre com o objetivo explícito de controlar o outro. Em Smith, pelo contrário, a “vigilância” ocorre de modo espontâneo e majoritariamente recíproco: cada um possui poder sobre o outro enquanto puder extrair empatia. Em Smith, a socialização é necessária e vantajosa para os próprios indivíduos, pois ela os ensina a dominar seus sentimentos, o que, para eles mesmos é mais adequado (Smith, 2010, p. 31).
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7
Cf. o livro de Forman-Barzilai, mencionado acima. Como ela mostra (especialmente nos capítulos 3 e 4), as raízes da teoria de Smith repousam na ideia estoica da “oikeiôsis” [geralmente traduzido como ‘apropriação de si’ ou ‘percepção interna’, N. T.], mas, enquanto para os estoicos essa tendência humana natural aparece como algo a ser superado em favor de uma ética cosmopolita, Smith a defende como um sagaz enriquecimento da natureza.
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8
Smith adiciona que o melhor contraponto seria virar membro de uma “pequena comunidade religiosa”, embora, de todo modo, permanecesse o perigo de que a vigilância social fosse excessivamente rígida e os costumes se tonassem “inadequadamente rígidos e associais”. [N.T.: as citações em alemão d’A riqueza das nações feitas pela autora foram cotejadas com as seguintes edições em inglês: Smith, Adam. An inquiry into the nature and causes of the wealth of the nations. Books 1-III. Londres: Penguin, 1999; Smith, Adam. An inquiry into the nature and causes of the wealth of the nations. Volume II. Indianápolis: Liberty fund, 1981].
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9
Smith também compartilha, entretanto, algumas das preocupações rousseaunianas, por exemplo, quanto à tendência humana de querer impressionar os outros por meio da posse de bens materiais (2010, p. 93 e ss.)
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10
Quanto à afirmação de que o conceito do Espírito (e também o do direito) já estão pressupostos aqui, veja-se Hegel, 1970b, §2 e Hegel, 1970c, §433 e ss. [N.T.: Todas as citações diretas do alemão para a Filosofia do Direito seguiram a edição brasileira traduzida por Marcos Lutz Müller: Hegel, G. W. F. Linhas fundamentais da Filosofia do Direito. São Paulo: Editora 34, 2022; as citações do livro de Hegel serão apresentadas, conforme a utilização da autora do artigo, de acordo com os parágrafos e, quando necessário, indicando se estão no adendo ao parágrafo].
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11
Refiro-me aqui, principalmente, aos manuscritos de Hotho e Griesheim, que contêm a maioria dos detalhes referentes às questões de ordem econômica, nos volumes III e IV da edição dos Cursos sobre a ‘Filosofia do Direito’ editados por Ilting (Hegel, 1974). [N.T.: Heinrich Gustav Hotho e Karl-Gustav von Griesheim foram estudantes de Hegel, em cujos manuscritos e anotações de aula o filósofo alemão Karl-Heiz Ilting se apoiou para editar os volumes 3 e 4 de sua edição comentada dos cursos ministrados por Hegel sobre seu livro Linhas fundamentais da Filosofia do Direito. Para uma contextualização da importância da obra e de sua posição dentro da fortuna crítica da filosofia hegeliana, ver Müller, Marcos Lutz, “Apresentação”. In: Hegel, G. W. F. Linhas fundamentais da Filosofia do Direito. São Paulo: Editora 34, 2022, p. 7-26. As citações originadas das anotações de Hotho ou Griesheim serão referenciadas como Hotho em Hegel, 1974 ou Griesheim em Hegel, 1974].
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12
Kalyvas e Katznelson (2001) argumentam que o mercado, enquanto espaço no qual se anseia por reconhecimento, dissolveu a esfera política ou a militar nas quais isso ocorria em sociedades mais antigas. Aqui, no entanto, deve ser distinguido entre o reconhecimento recíproco como parceiros de comércio, que têm algo útil a oferecer a todos, e o desejo de reconhecimento por possuir mais do que outros. Esse objeto desempenha, em Smith (assim como também em Hegel), um papel importante como elucidação dos desejos humanos que se elevam para além das carências biológicas.
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Aqui pode haver um problema na restrição do acesso ao ensino superior. Smith fala, no entanto, de “destreza adquirida”, o que sugere que também as experiências adquiridas profissionalmente podem representar uma melhora no capital humano. Esta temática se apresenta de modo ainda muito mais problemático nas “sociedades do conhecimento” de hoje.
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A afirmação de Griswold (1999, p. 210) de que Smith não descreveria qualquer comunidade orgânica face-to-face, mas uma “coleção de pessoas alheias” é, então, apenas parcialmente aceitável: no mercado se encontram indivíduos “abstratos” (Haakonssen, 2006, p. 7), mas a sociedade é estruturada por meio de unidades menores, os tais “círculos de empatia” nos quais existem relações face-to-face.
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Em Smith também se encontram certas indicações que suas identidades profissionais poderiam ser mais para os indivíduos da sociedade de mercado do que o comércio de “capital humano” e, também, de que ligações pessoais e regionais podem emergir graças ao trabalho conjunto (cf., p.ex., Smith, 2010, p. 362; 1974, p. 65). Faz parte deste lado “não oficial” de Smith também uma passagem em que acentua o papel de associações profissionais e grupos de interesse, pois estes estabilizariam a sociedade como um todo (2010, p. 375); esta passagem, no entanto, se encontra em tensão com sua desconfiança geral frente a tais grupos, que exercem pressão política e procuram influenciar o livre jogo das forças de mercado por meio de privilégios e monopólios (cf. p.ex., 1974, p. 112).
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16
A oposição que Hegel constitui nesse ponto é com a Pólis platônica, na qual já na infância o indivíduo é atribuído a um determinado grupo social.
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No curso de Griesheim encontra-se, além disso, a anotação: “mas não se pode dizer que o indivíduo enquanto tal está ligado a este seu estamento, ele pode se libertar de seus barreiras, mas isto só ocorre novamente por meio de sua particularidade, por meio da energia de seu espírito, de seu caráter; é, pois, sua responsabilidade” (Griesheim em Hegel, 1974, p. 514).
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18
Posteriormente, no curso de Hotho, Hegel discute explicitamente a tese do “liberalismo econômico” de que, em caso de “superlotação” de uma área, os indivíduos mudariam por conta própria para uma outra. Ele argumenta que os indivíduos “somente possuem essa habilidade de terem aplicado aqui seu capital tanto de equipamentos quanto de dinheiro”, de modo que a “passagem” a uma outra indústria somente pode ocorrer com “pesar e dificuldade”, quando “por meio de deterioração” (Hotho em Hegel, 1974, p. 698 e s.). No curso de Griesheim, Hegel liga esse problema com o embrutecimento dos trabalhadores por meio da divisão do trabalho, do qual já Smith havia alertado, e argumenta que, devido a esse embrutecimento, os trabalhadores têm dificuldade de encontrar um novo posto de trabalho e, assim, se tornam os “seres humanos mais absolutamente dependentes” (Griesheim em Hegel, 1974, p. 503; cf. também sobre isso Priddat, 1990, p. 202 e ss.).
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Sobre o conceito de cultivo (Bildung) no Iluminismo alemão, cf. Vierhaus (1990). Para o grande significado da formação para a autocompreensão de Hegel, cf. também Pinkard (2001, p. 16, 49, 50, 160 e s., 198, 268 e ss., 289 e ss., 321, 369, 488). [N.T.: A tradução de Marcos Lutz Müller para a Filosofia do Direito utiliza as traduções ‘cultivo’ e ‘formação’ para o termo alemão Bildung, segundo as conveniências do texto. Aqui seguimos o uso feito por Müller].
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20
Hegel, 1970b, §197. Como destacado especialmente por Neuhouser (2000, p. 161), o trabalho na sociedade burguesa demanda uma consideração sistemática das vontades de outros seres humanos, algo que diferencia esta forma de trabalho de formas pré-modernas.
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21
Esta capacidade também possuem aqueles que não são membros de uma corporação (trabalhadores diaristas etc. cf. Hegel, 1970b, §252). Para uma discussão da distinção entre reconhecimento como “prestador de desempenhos socialmente úteis” e “possuidor de capacidades específicas”, cf. Schmidt am Busch, 2009, p. 45 e ss.
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22
O conceito foi eleito, em 2004, a “não palavra” do ano (Unwort des Jahres). Cf. https://de.wikipedia.org/wiki/Unwort_des_Jahres_(Deutschland).
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Entretanto, Hegel também nota que os membros de uma corporação normalmente se adéquam aos padrões de consumo ali existentes (cf. Hegel, 1970b, §253 Adendo).
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24
Ver, por exemplo, os resultados do Shell-Jugendstudie de 2010 sobre o crescente significado da família. https://www.ssoar.info/ssoar/handle/document/38592
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
14 Nov 2022 -
Aceito
21 Out 2023