Resumo
Esta resenha analisa criticamente as propostas de renovações das relações entre sociologia e literatura no livro de André Botelho, Maurício Hoelz e Andre Bittencourt publicado em 2022. O objetivo deste texto é trabalhar a dimensão formal sob a qual o livro está configurado, mostrando como a relação entre forma e conteúdo é significativa para o argumento central da proposta dos autores. Evidencia-se aqui a relação com o modernismo brasileiro e certa tradição do pensamento social brasileiro contemporâneo. Busca-se ainda apontar características destacadas em alguns textos, assim como possíveis contribuições futuras a serem planejadas a partir deles.
Palavras-chave:
teoria crítica; dialética aberta; teoria sociológica; sociologia da literatura
Abstract
This review critically analyzes the proposals for renewal of the relationship between sociology and literature in the book by André Botelho, Maurício Hoelz and Andre Bittencourt published in 2022. The objective of this text is to work on the formal dimension under which the book is configured, showing how the relationship between form and content is significant for the central argument of the authors’ proposal. The relationship with Brazilian modernism and a certain tradition of contemporary Brazilian social thought is evident here. It also seeks to point out characteristics highlighted in some texts, as well as possible future contributions to be planned based on them.
Keywords:
critical theory; open dialectic; sociological theory; sociology of literature
I
Propor uma renovação das relações entre literatura e sociedade no século XXI pode parecer uma empreitada um tanto repetitiva. Quantas foram as tentativas de refazer conexões entre sociologia, antropologia, psicologia social, filosofia ou psicanálise com o campo literário? Publicações têm na interdisciplinaridade uma espécie de trunfo, muitas vezes bem-sucedido, mas que também pode resultar numa âncora que imobiliza as análises ao recorrer ao excesso de referências, conceitos e termos em moda. Costuma-se encontrar os objetivos de “nos livrarmos” dos velhos marxismo, sociologismo, formalismo, estruturalismo… missão que acaba soando, vez em quando, como uma obsessão. Para substituí-los, abordagens mais “fluidas”, “decoloniais”, “entre-lugares”, que podem significar algo muito potente ou mera retórica, é questão de analisar caso a caso. Não é anacrônico lembrarmos das lições de Habermas a respeito dos perigos do que ele denominou de pensamento pós-moderno (Habermas, 2000); no Brasil, outro interessante estudo – mais fragmentado e menos didático; ainda assim proveitoso – pode ser encontrado na crítica ao relativismo “mole” de Bento Prado Jr. (2004).
Algumas dessas preocupações também estão presentes em Sociedade dos textos, mas há diferenças cruciais que tornam o livro bem mais do que mais uma publicação que visa dar um jeito no eurocentrismo da sociologia da literatura. Informados pelas questões do nosso tempo, em dia com metodologias de análise desenvolvidas dentro e fora do país, esses artigos e ensaios se mostram capazes de analisar atentamente os objetos de pesquisa com riqueza de detalhes a partir de pontos de vista bastante originais.
Sendo uma coletânea, não se pode esperar uma tese única, sólida, bem elaborada, defendida do início ao fim do livro. Entretanto, como os autores evidenciam, existe uma espécie de pensamento coletivo que reúne os textos, permitindo que conversem mesmo quando abordando assuntos distintos ou quando escritos com diferenças de tempo significativas. Coletividades, por vezes, tendem a apagar a individualidade dos envolvidos nas dinâmicas sociais que organizam a vida intelectual. Isso não necessariamente é o caso do livro – aliás, eles mesmos acentuam que, devido ao longo tempo de trabalho coletivo, o resultado final pode ser visto como uma produção em conjunto (p. 12). Entretanto, quem lê pode ter a impressão de estar diante de um livro escrito a seis mãos.
Vale a pena dar destaque à composição formal do livro; ela parece crucial para a apreensão dos argumentos gerais que coagulam os sentidos dos escritos coletados. Com isso, adianto um pouco de minha própria leitura de Sociedade dos textos: trata-se, apesar de textos espalhados temporalmente, da expressão de um pensamento mais ou menos coeso que vem se formando a partir do trabalho de pesquisa em Pensamento Social Brasileiro e Sociologia da Literatura no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ. Com isso, não pretendo repetir o que os autores já descreveram nas páginas introdutórias: desejo levar mais adiante o fato de que essa é uma produção circunscrita temporal e geograficamente no Rio de Janeiro do século XXI e propor que, a partir daqui, aparece um exemplar de um novo capítulo na história do pensamento social brasileiro.
Pensamento social que se reescreve, que tem a intenção de se reinventar, mais do que formar um cânone ou uma tradição. Os três autores, apesar de sociólogos interessados em literatura, são também inegavelmente envolvidos com o pensamento social brasileiro. Trata-se, evidentemente, de um termo em disputa e em constante mutação. Mas justamente aí que me parece ingressar um dos objetivos do livro enquanto intervenção acadêmica: reafirmar uma vertente de pesquisa sociológica importante no passado, assim como no presente das ciências sociais brasileiras.
Não que essa vertente tenha sido fundada com a publicação desse livro; o contrário me parece verdadeiro: A Sociedade dos textos que me parece exprimir a maturidade que vinha se anunciando há décadas no trabalho de pesquisa em sociologia, antropologia e história das ideias no Rio de Janeiro, tendo como precursores nomes como os de Antonio Brasil Jr., José Murilo de Carvalho ou Ricardo Benzaquen de Araújo. A linguagem hegeliana aqui não quer indicar uma concepção progressista do conhecimento: nada seria mais contraditório, seja com as pretensões intrínsecas a essa vertente de estudos, seja com as intenções desta resenha. Entretanto, quer dizer sim a emergência de algo novo que, porém, não surge do vazio, mas de anos de trabalhos prévios.
Isso não esgota o interesse do livro. Em primeiro lugar, pode-se apontar seu caráter lúdico; como dizem os autores, “o que, de fato, nos fascina e intriga é […] o jogo – em geral dialético, mas nem sempre sintético e nunca de soma zero – entre texto, contexto e autoria. Melhor dizendo: entre textos e contextos no plural” (p. 13). A referência à dialética nem sempre sintética é importante; é uma pista de suas raízes intelectuais (ao menos, uma delas): a obra de Ricardo Benzaquen de Araújo (1994), a quem foi dedicado o livro. Se é verdade que seu legado não deixa herdeiros de doutrina, certamente deixa herdeiros de postura intelectual – de uma maneira muito similar ao que ocorreu com Georg Simmel em outras terras no último século – à qual os autores aqui buscam se filiar.
Outra característica é uma espécie de atualização da antiga dialética entre cosmopolitismo (ou universalismo) e localismo, teorizada dentro da sociologia da literatura por Antonio Candido (2023). Como foi posto acima, o livro mostra acesso a diversas metodologias e publicações espalhadas pelo mundo, mas a recepção das obras estrangeiras não vem com a marca de superioridade às influências brasileiras. Sabe-se aproveitá-las sem cair naquela típica “forçação de barra” provocada por uma teoria nova e europeia.
O contrário também não se confirma, uma vez que não há aquela arrogância e devaneios do viralatismo às avessas, outra marca (bastante cômica) de nossa história intelectual. Em lugar dos extremos, uma espécie de recepção crítica – que remonta menos ao modelo que se estabeleceu numa determinada tradição intelectual mais próxima à Universidade de São Paulo (Arantes, 1994/2021), do que àquele que que as obras de Silviano Santiago, Luiz Costa Lima e Ricardo Benzaquen de Araújo representam. Isso, acredito, tem tudo a ver com o modernismo brasileiro.
II
Um objeto de inegável importância para o livro e para a orientação intelectual do grupo de autores é o modernismo brasileiro (p. 16). Talvez menos sua história “oficial”, consagrada pela literatura especializada, em grande parte paulista, e mais pelas intenções, motivos e desejos que mobilizaram a formação daquele movimento (Botelho, 2020). Isso quer dizer: é possível identificar preocupações comuns, como se fosse um fio que se alonga desde os modernistas Mario de Andrade, mas também Ronald de Carvalho e Pedro Nava, até os dias de hoje. E não apenas porque esses autores são objetos de estudo de vários dos textos, mas porque parece haver, em Sociedade dos Textos, um desejo de insubordinação à maneira modernista.
Talvez não por acaso o livro tenha saído em 2022, ano em que muitas outras publicações em editoras maiores, reivindicando de maneira muito mais explícita suas releituras e renovações da Semana de 1922, mas que acabaram fazendo mais do mesmo. Botelho, Hoelz e Bittencourt, propositalmente ou não, ofereceram mais do que as novas velhas histórias no ano do centenário1.
Não será injusto dizer que o livro tem predileção pelo romance, em especial pelo tipo memorialístico, autobiográfico ou autoficcional. É o caso com os estudos de Pedro Nava e do mais recente Menino sem passado, de Silviano Santiago. Entretanto, as críticas musical e literária também ingressam nesta edição enquanto objetos de estudo – o que diferencia um pouco os estudos mais tradicionais do modernismo brasileiro, cujo foco costuma girar em torno da poesia.
III
A meu ver, a melhor maneira de identificar a contribuição dos autores se dá num duplo movimento de identificação intra e extratextual. Quanto à dimensão intertextual , pode-se dizer cada que artigo ou ensaio é capaz de descobrir algo de novo no seu objeto de estudo, muito provavelmente porque estão desprovidos de intenções canônicas, estruturais ou excessivamente sociológicas; quer dizer, eles não pretendem descobrir nem a sociedade mimetizada, nem o povo por vir daqueles textos, mas a maneira pela qual eles são testemunhos pensantes e capazes por si mesmos de valer enquanto expressões sociológicas. O que há de novo não emerge de mais informações sobre os autores, sobre os contextos ou sobre modificações operadas em cada edição, mas pela mudança de perspectiva dos analistas, que abandonam o paradigma formativo (ao estilo Antonio Candido).
Isso não vem se uma espécie de tensão, de ansiedade diante do desconhecido; se a sociologia da literatura da magnitude que foi da escola paulista formada por Candido e companhia tinha uma espécie de intenção formativa, ao mesmo tempo nacionalista, democrática e civilizatória (Arantes, 1994/2021), parece bem claro que Sociedade dos Textos busca algo bem distinto: daí a afirmação no livro – no final de um ensaio de André Botelho sobre Silviano Santiago – de que é preciso atentar para “[...] os limites e os riscos impostos a cada um de nós pelo domínio da ‘cultura objetiva’ no mundo em que o ideal de Bildung já desapareceu” (p. 216, grifo meu). Aqui retornamos àquela ideia de dialética não sintética, a dialética aberta que Benzaquen de Araújo descobriu ao analisar a obra de Gilberto Freyre sobre o pano de fundo da estética modernista.
Isso pode ser lido a partir da maneira pela qual esses textos se relacionam com a literatura especializada acumulada até o momento pelas pesquisas sobre modernismo. Pode-se dizer que, só o fato de que o ponto nevrálgico dos estudos sobre modernismo estar deslocado de autores (ou das formas de sociabilização que atravessam o movimento) de ou em São Paulo ou Rio de Janeiro já tem um efeito tremendo. Isso permite uma maneira muito interessante de relacionar os interesses da sociologia política com a sociologia cultural – uma proposta que André Botelho nomeia sociologia política da cultura. Uma pesquisa que remete às preocupações não apenas de Gilberto Freyre, mas do referido Benzaquen de Araújo, em especial na identificação das relações entre estética e classes sociais no Brasil.
Sobre esse ponto, “MinasMundo: hermenêutica de uma subjetividade individual”, que analisa a obra de Pedro Nava sob a perspectiva da decadência parcial da classe e ethos patriarcal em Minas, em comparação com a mesma decadência no Nordeste do país (e com o romance social de 1930 nordestino) é um ponto alto do livro.
IV
Apesar da evidente convergência no pensamento dos autores, há diferenças significativas entre os textos: a presença mais forte da teoria sociológica contemporânea em “Sociologias da literatura: do reflexo à reflexividade” (Andre Botelho e Maurício Hoelz) e “Cosmopolítica do entre-lugar” (Maurício Hoelz). “MinasMundo” (André Botelho) e “Personalidade e destino” (Andre Bittencourt) se aproximam nas suas intenções de mapear a sociabilidade característica do modernismo brasileiro.
Um texto que merece destaque é justamente aquele que mais se distancia do conjunto, “Poesia e perigo” (Lucas van Hombeeck), não apenas porque seu objeto é diferente (a poesia de Ferreira Gullar), ou porque suas referências acabam se deslocando para escolas mais “estéticas” que propriamente sociológicas, mas porque ali o autor encontrou um problema central para todas as áreas das ciências humanas no Brasil: a ideia (num sentido bem amplo do termo) de povo brasileiro. Em especial, depois do governo de Jair Bolsonaro2 e, talvez mais ainda, agora no terceiro governo Lula, as imagens e imaginações a respeito dessa figura complexa, historicamente disputada e sociologicamente variável que é povo brasileiro volta à cena como protagonista. Pesquisas contemporâneas voltadas à construção do imaginário social brasileiro puderam identificar elementos muito interessantes, como a invenção da utopia brasileira (Cardoso, 2010). Seria de grande proveito a junção das pesquisas históricas, mesmo quando preocupadas com política ou sociologia do trabalho, a respeito do tema com as abordagens contemporâneas em sociologia da cultura e da literatura tal como encontramos nesse capítulo de Sociedade dos textos.
V
Talvez a maior contribuição do livro esteja em seu gesto: nada ingênuo, dotado de uma capacidade de dar continuidade a certa tradição do pensamento social brasileiro, sem, contudo, submeter-se a modelos ou dogmas consagrados pelos vícios da disciplina, o livro oferece uma oportunidade de nos aproximarmos da literatura (dos textos propriamente ditos) enquanto objetos que pensam. Não apenas enquanto testemunhos de uma sociedade estruturalmente assim ou assado, os textos são abordados aqui com criatividade que não se permite a voos irrelevantes (sociologicamente falando), capazes de conservar uma das mais interessantes características de nossa tradição intelectual, que é essa aproximação entre pensamento social e literatura para a pensar a cultura e a estética politicamente. Não se trata de um livro grande em extensão (257 páginas no total), mas certamente de um grande livro, apesar de conservarem aquela modéstia tão crucial aos bons professores e pesquisadores.
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1
Um exemplo dessa renovação bem-feita, ainda que bem menos indiscreta nas suas intenções, pode ser encontrada em Fischer (2022).
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2
Como bem percebeu o autor, ver página 126.
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BOTELHO, André; HOELZ, Maurício; BITTENCOURT, André. A Sociedade dos Textos. Rio de Janeiro: Relicário, 2022.
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Fonte de financiamento:
Capes.
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Aprovação do Comitê de Ética:
Não se aplica.
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Disponibilidade de Dados:
Total.
Referências
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ARANTES, Paulo Eduardo. Um departamento francês de ultramar: estudos sobre a formação da cultura filosófica uspiana (uma experiência dos anos 1960). São Paulo: [s.n.], [1994] 2021. (Coleção Sentimento da Dialética). ePUB. Recurso eletrônico. DOI: https://doi.org/10.34024/9786500240238
» https://doi.org/10.34024/9786500240238 - BENZAQUEN DE ARAÚJO, Ricardo. Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 1930. São Paulo: Editora 34, 1994.
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BOTELHO, André. O Modernismo como movimento cultural: uma sociologia política da cultura. Lua Nova: Revista De Cultura e Política, v. 111, p. 175-209, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-175209/111
» https://doi.org/10.1590/0102-175209/111 - CARDOSO, Adalberto. A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2010.
- FISCHER, Luís Augusto. A Ideologia Modernista: a semana de 1922 e sua consagração. São Paulo: Todavia, 2022.
- HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade: doze lições. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Editado por
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Editor:
Jalcione Almeida.
Disponibilidade de dados
Total.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Maio 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
26 Set 2023 -
Aceito
10 Out 2023
