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Os desequilíbrios regionais da produção técnico-científica

Resumo

O problema central analisado neste artigo diz respeito às acentuadas diferenças regionais relativas à base técnico-científica instalada no Brasil. Após uma rápida caracterização dessas desigualdades, busca-se mostrar que essa concentração não é inexorável. Prova disso são as bem-sucedidas intervenções políticas do Estado, no mundo mais desenvolvido, para combater seus efeitos nocivos. Examina-se, em seguida, como a questão tem sido historicamente conduzida no Brasil e suas perspectivas atuais. Finalmente, salienta-se a importância de um aprimoramento contínuo das políticas e ações públicas, caso se queira realmente reverter o atual quadro brasileiro de desequilíbrios regionais da produção técnico-científica.

desequilíbrios regionais; ciência e tecnologia; política regional


OS DESEQUILÍBRIOS REGIONAIS DA PRODUÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA

FERNANDO ANTÔNIO F. DE BARROS

Analista em Ciência e Tecnologia do CNPq. Autor de Confrontos e Contrastes Regionais da Ciência e Tecnologia no Brasil

Resumo: O problema central analisado neste artigo diz respeito às acentuadas diferenças regionais relativas à base técnico-científica instalada no Brasil. Após uma rápida caracterização dessas desigualdades, busca-se mostrar que essa concentração não é inexorável. Prova disso são as bem-sucedidas intervenções políticas do Estado, no mundo mais desenvolvido, para combater seus efeitos nocivos. Examina-se, em seguida, como a questão tem sido historicamente conduzida no Brasil e suas perspectivas atuais. Finalmente, salienta-se a importância de um aprimoramento contínuo das políticas e ações públicas, caso se queira realmente reverter o atual quadro brasileiro de desequilíbrios regionais da produção técnico-científica.

Palavras-chave: desequilíbrios regionais; ciência e tecnologia; política regional.

Um dos traços mais marcantes da sociedade brasileira diz respeito às grandes desigualdades socioeconômicas que caracterizam seu território. Esses contrastes, embora estejam assustadoramente disseminados no contexto dos grandes centros urbanos, também se constituem em alvo de preocupação e de políticas públicas quando vistos do ponto de vista regional.

Convive-se, assim, há décadas, com informações que revelam as grandes disparidades de desenvolvimento existentes entre as grandes macrorregiões brasileiras. Apesar do crescimento econômico relativo verificado nos últimos 30 anos, os indicadores das condições sociais das regiões tradicionalmente menos desenvolvidas (Nordeste, Norte e Centro-Oeste) são ainda extremamente preocupantes.1 1 . A esse respeito, consultar Comissão Especial Mista do Congresso Nacional (1993). 2 . Segundo o Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil versão 3.0, 1997. 3 . A partir da Constituição de 1988, várias unidades da Federação definiram em suas Cartas, a exemplo de São Paulo que já mantinha investimentos para o desenvolvimento da ciência e tecnologia desde 1962, normas de alocação de recursos para a área. 4 . Dados da National Science Foundation indicam que só cinco dos 51 estados norte-americanos absorvem 46% do dispêndio nacional em ciência e tecnologia. 5 . O Estado de São Paulo é o único que vem mantendo a estabilidade necessária na destinação de recursos substantivos para ciência e tecnologia.

As diferenças na distribuição regional dos recursos científicos e tecnológicos são também muito acentuadas. Basta salientar, por exemplo, que 82% dos grupos atuantes em pesquisa, no país, estão nas Regiões Sudeste e Sul.2 1 . A esse respeito, consultar Comissão Especial Mista do Congresso Nacional (1993). 2 . Segundo o Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil versão 3.0, 1997. 3 . A partir da Constituição de 1988, várias unidades da Federação definiram em suas Cartas, a exemplo de São Paulo que já mantinha investimentos para o desenvolvimento da ciência e tecnologia desde 1962, normas de alocação de recursos para a área. 4 . Dados da National Science Foundation indicam que só cinco dos 51 estados norte-americanos absorvem 46% do dispêndio nacional em ciência e tecnologia. 5 . O Estado de São Paulo é o único que vem mantendo a estabilidade necessária na destinação de recursos substantivos para ciência e tecnologia. A base técnico-científica instalada no Brasil tem, assim, sua expressão mais potente nessas duas regiões, para onde é canalizado a maior parte dos investimentos em ciência e tecnologia realizados pelo Estado brasileiro.

Os efeitos negativos dessa concentração excessivamente desproporcional, todavia, não têm sido ignorados. Ao contrário, desde a década de 70, o Estado brasileiro tem procurado intervir com ações regionais para transformar essa realidade tão heterogênea. Entretanto, os resultados alcançados são ainda inexpressivos, pois, além da debilidade das intervenções, o problema tornou-se mais complexo no contexto da economia globalizada.

De fato, se, por um lado, a relevância que a capacitação técnico-científica passou a ter como vetor básico de competitividade e desenvolvimento no novo ciclo de desenvolvimento capitalista, acarretou tomada de consciência mais ampla sobre as conseqüências negativas dessas diferenciações, determinando maior mobilização política e iniciativas mais locais em torno da questão, por outro, o próprio processo de produção do conhecimento, ao se tornar mais competitivo, vem sofrendo significativas transformações na sua organização social que, conforme observa Gibbons (1994), podem contribuir para ampliar as desigualdades existentes no contexto contemporâneo.

Diante dessa realidade tão complexa, na qual os Estados nacionais continuam a desempenhar um papel crucial no encaminhamento da questão, as intervenções com maiores chances de atenuar ou mesmo reverter a problemática dependem, entre tantos fatores, de um grande esforço de planejamento que possa desencadear, além de ações coerentes com cada realidade específica, uma administração de políticas públicas articuladas, de uma exploração criativa de potencialidades e naturalmente de investimentos maçicos bem direcionados.

Exemplos de sucesso, como o recente caso de integração das duas Alemanhas, comprovam a possibilidade das transformações desejadas e necessárias para um desenvolvimento mais equilibrado espacialmente. Tomando esse estímulo como ponto de partida e tendo como premissas que essas intervenções estão ancoradas em profunda compreensão das realidades que se busca transformar e que cada situação apresenta-se com suas peculiaridades, foram reunidas, neste artigo, algumas informações básicas sobre a questão regional de ciência e tecnologia no Brasil, acompanhadas de reflexões críticas que possam contribuir para ações mais vigorosas e coerentes com as necessidades, possibilidades e potencialidades brasileiras.

DIFERENÇAS REGIONAIS DA BASE TÉCNICO-CIENTÍFICA BRASILEIRA

Os indicadores científicos e tecnológicos existentes revelam, sem dúvida, um grande desnível da base técnico-científica entre as grandes regiões que compõem o território brasileiro. Tomemos como exemplo básico um fator fundamental para o desenvolvimento científico e tecnológico, ou seja, os recursos humanos qualificados para a pesquisa (Tabela 1).

Como se pode verificar, as três regiões menos desenvolvidas (Nordeste, Centro-Oeste e Norte), juntas, agregam apenas 18% dos pesquisadores existentes no Brasil de acordo com o levantamento feito pelo CNPq. Esse problema ganha dimensão ainda mais preocupante ao se considerarem outras informações associadas à distribuição regional de recursos humanos qualificados para a pesquisa.

Segundo dados fornecidos pela Capes, por exemplo, a titulação de mestres e doutores por região está ocorrendo conforme mostra a Tabela 2.

Verifica-se, dessa maneira, que 70,79% dos mestres e 91% dos doutores que estão sendo titulados no Brasil são da Região Sudeste. Além de concentrar o maior número de mestres e doutores brasileiros, o Sudeste é também a região que vem titulando a grande maioria dos novos mestres e doutores no país. Pode-se concluir, portanto, que a formação de pesquisadores em escala regional está seguindo o mesmo padrão das desigualdades existentes, revelando a tendência de continuidade de um problema incompatível com as condições que favorecem o desenvolvimento técnico-científico.

Pode-se argumentar, no entanto, embora a titulação ocorra com total predomínio nessa região, que grande parte dos pós-graduandos pode ser proveniente de outras localidades. Mas outros dados confirmam que a composição dos quadros docentes das universidades brasileiras continua com uma expressiva maioria não só de doutores mas também de mestres concentrada no Sudeste. Assim, conforme observam Guimarães e Caruso (1996), o sucesso da pós-graduação verificado nos últimos dez anos no Brasil não foi alcançado pelo conjunto das universidades brasileiras, ou seja, o programa ainda não conseguiu capacitar os docentes de forma ampla, resumindo-se ainda a algumas áreas e regiões.

Os indicadores relativos aos fatores infra-estruturais para o desenvolvimento da pesquisa revelam, por sua vez, que a Região Sudeste abriga também grande parte dos centros universitários com o mais alto nível de excelência em inúmeras áreas do conhecimento e os institutos e empresas de pesquisa mais bem aparelhados do país.

Os resultados finais dos editais dos anos 1996, 1997 e 1998 do Programa Nacional de Apoio aos Grupos de Excelência/Pronex (Tabela 3) evidenciam de certa forma essa realidade.

Mais de 90% dos projetos e dos recursos investidos pelo Programa foram direcionados para as Regiões Sudeste e Sul. E note-se também que apesar de estar se colocando em prática um novo tipo de mecanismo de política de desenvolvimento regional por meio de cooperação e articulação institucionais, tanto a Região Norte quanto a Centro-Oeste, que poderiam vir a se beneficiar mais com a referida estratégia programática, têm um percentual de participação menor que o de instituições localizadas no Exterior.

O fato é que grande parte dos investimentos públicos federais destinados à ciência e tecnologia continua a ser canalizada para as regiões mais desenvolvidas. Os dados apresentados no Gráfico 1 dão uma noção dessa distribuição espacialmente tão desproporcional.


Mas existem os investimentos estaduais e municipais que objetivam também o desenvolvimento técnico-científico.3 1 . A esse respeito, consultar Comissão Especial Mista do Congresso Nacional (1993). 2 . Segundo o Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil versão 3.0, 1997. 3 . A partir da Constituição de 1988, várias unidades da Federação definiram em suas Cartas, a exemplo de São Paulo que já mantinha investimentos para o desenvolvimento da ciência e tecnologia desde 1962, normas de alocação de recursos para a área. 4 . Dados da National Science Foundation indicam que só cinco dos 51 estados norte-americanos absorvem 46% do dispêndio nacional em ciência e tecnologia. 5 . O Estado de São Paulo é o único que vem mantendo a estabilidade necessária na destinação de recursos substantivos para ciência e tecnologia. Todavia, se verificarmos os percentuais das despesas realizadas pelas unidades federativas e suas respectivas regiões (Tabela 4), veremos que existe uma reprodução da concentração observada nos gastos realizados por fontes federais.

Como se vê, as Regiões Sudeste e Sul ¾ apesar de serem internamente também heterogêneas ¾ são responsáveis por 81,98% do total investido pelos Estados brasileiros. Embora não sejam tão recentes, esses são os últimos dados disponíveis sobre o assunto. Sabe-se, todavia, que as proporções de participação regional de investimentos estaduais em C&T não sofreram grandes alterações, havendo apenas variações em grande parte dos Estados, como é o caso do Rio de Janeiro.

Pode-se continuar a afirmar, por conseguinte, que as regiões que estão investindo recursos mais substantivos são as mesmas contempladas com maiores percentuais do governo federal. É compreensível que isso esteja ocorrendo, pois as regiões mais capacitadas agregam condições de atrair e absorver a maior parte dos recursos públicos federais destinados à ciência e tecnologia.

É de se questionar, no entanto, uma vez que existe um comprometimento político de se buscar meios para atenuar essas desigualdades regionais que inviabilizam o atendimento de necessidades e o desenvolvimento de potencialidades regionais, comprometendo assim toda a unidade federativa, se as ações regionais desenvolvidas pelo Governo Federal, longe de estarem atenuando o quadro de desigualdades regionais, não estariam contribuindo para mantê-las?

Esse círculo vicioso não é conseqüência de uma estratégia política débil, inadequada às necessidades da realidade brasileira? Não existe premência de se rever as bases da política de descentralização que está sendo posta em prática? É coerente que o Governo Federal, tradicionalmente o principal responsável pelo desenvolvimento técnico-científico no Brasil, continue esperando maiores investimentos dos Estados e do setor privado, quando ele tem conhecimento do grande número de dificuldades a ser enfrentado pelo menos a curto-prazo?

Existem condições de se romper com o mencionado círculo vicioso? Isso é possível no contexto contemporâneo? A concentração espacial da produção técnico-científica é inexorável? Como tem se caracterizado a atuação do Estado brasileiro na condução do processo de desenvolvimento científico e tecnológico perante os exemplos do mundo em fase de alta modernidade? Todas essas perguntas deverão formar o eixo central da reflexão a ser desenvolvida nos próximos itens.

A QUESTÃO DA CONCENTRAÇÃO E O TRATAMENTO POLÍTICO NO CONTEXTO INTERNACIONAL

As grandes mudanças de ordem estrutural que vêm ocorrendo no mundo contemporâneo, que têm causado, inclusive, reestruturação do modo capitalista de produção, não modificaram uma de suas características básicas, a dinâmica concentradora. Como afirma Soja (1993), o capitalismo baseia-se nas desigualdades regionais ou espaciais como meio de sua sobrevivência contínua.

As atividades técnico-científicas seguem essa tendência, distribuindo-se de forma desigual sobre os espaços e acompanhando a acumulação do capital. Conforme observa Buarque (1988), a liderança econômica além de requerer uma base técnica mais desenvolvida, apta para ser introduzida na atividade produtiva, necessita do conhecimento como fator de acumulação de capital. É a partir, portanto, do centro de difusão do capital que se propaga a base técnico-científica sobre outros espaços, ao mesmo tempo em que se dinamiza e reforça a capacitação técnico-científica no centro.

Segundo Ben-David (1974), a tendência de concentração das atividades técnico-científicas em pólos econômicos mais dinâmicos ¾ que ele denomina de centros ¾ tem sido uma constante na história do desenvolvimento científico e tecnológico. Mas, ele ressalta que, embora a mudança de hegemonia de um centro para o outro indique uma ligação entre o crescimento econômico e o científico, ela não é direta nem exclusiva. Existem, segundo o autor, fatores culturais e individuais, como o valor atribuído pela sociedade à ciência e o talento de determinados cientistas, que são também importantes para a compreensão do processo de desenvolvimento científico.

Dessa forma, Ben-David não chega a afirmar que a tendência concentradora seja inexorável. Na sua visão, o apoio dado à ciência e a adequação das organizações e dos sistemas de pesquisa são os fatores mais dinâmicos para o desenvolvimento técnico-científico. Com isso, ele admite que esse processo possa ser trabalhado politicamente, podendo vir a ser menos concentrado.

Nesse sentido, sua contribuição aproxima-se da de Salomon (1995), que acredita que a concentração das atividades científicas e tecnológicas em poucos países no contexto contemporâneo possa ser atenuada desde que os governos nacionais definam seus projetos de desenvolvimento adequados às condições de cada país e atrelem suas políticas de ciência e tecnologia a outras políticas estratégicas, a exemplo do que fazem os países desenvolvidos.

Acrescente-se que, em geral, esses países, até mesmo aqueles de menor extensão territorial como o Japão, têm mantido uma política regional de distribuição mais proporcional de sua base técnico-científica em torno de potencialidades e necessidades locais. Essa constatação, de certa forma, comprova a existência de uma consciência mais amplamente difusa da correlação direta que há entre produção e uso do conhecimento e desenvolvimento no novo contexto globalizado.

Sabe-se, por exemplo, que até mesmo nos Estados Unidos, onde a descentralização da política de C&T é um fato consolidado, com forte participação estadual e local, existe ainda preocupação do Estado no âmbito federal para garantir uma distribuição espacialmente mais equilibrada da capacitação técnico-científica nacional. Exemplo disso são os programas especiais implementados pela National Science Foundation, com recursos aprovados pelo Congresso, em Estados que não atingem certos patamares de capacitação no complexo de C&T. Dessa maneira, mesmo havendo nos Estados Unidos uma base técnico-científica de ponta mais concentrada em poucos Estados,4 1 . A esse respeito, consultar Comissão Especial Mista do Congresso Nacional (1993). 2 . Segundo o Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil versão 3.0, 1997. 3 . A partir da Constituição de 1988, várias unidades da Federação definiram em suas Cartas, a exemplo de São Paulo que já mantinha investimentos para o desenvolvimento da ciência e tecnologia desde 1962, normas de alocação de recursos para a área. 4 . Dados da National Science Foundation indicam que só cinco dos 51 estados norte-americanos absorvem 46% do dispêndio nacional em ciência e tecnologia. 5 . O Estado de São Paulo é o único que vem mantendo a estabilidade necessária na destinação de recursos substantivos para ciência e tecnologia. tenta-se garantir nos demais o desenvolvimento de atividades ligadas à educação, formação e treinamento, capacitação tecnológica, entre outras, de forma a permitir uma apropriação mais ampla dos avanços da ciência e da tecnologia (Barros, 1999a).

Um outro exemplo que se destaca na prática constante de políticas regionais, que tem resultado em realidades nacionais menos heterogêneas, é o da França. Esse país, que tinha um sistema tradicional de poder unitário e centralizado, conseguiu transformar-se em modelo de Estado descentralizado, no qual a instância regional desempenha papel estratégico para a organização e desenvolvimento mais harmônico de todo o seu território. São 21 regiões, com conselhos eleitos, poder de decisão e meios financeiros próprios atuando, desde 1982, de forma articulada com o Estado central, que tem o papel de principal formulador e coordenador das políticas regionais conduzidas em estreita associação com as regiões. Existe hoje, na França, um entendimento ¾ conforme expressa a nova lei de organização e desenvolvimento do território de fevereiro de 1995 ¾ sobre as políticas regionais serem de interesse geral, pois concorrem para a "unidade e solidariedade nacionais" (Tavares, 1996).

Essa perspectiva de desenvolvimento regional acompanha naturalmente a política de C&T, que, além de estar articulada aos projetos e aos programas de desenvolvimento, busca também descentralizar seu aparato institucional. Esse processo pode ser constatado tanto na expressiva distribuição espacial das unidades de pesquisa dos grandes institutos franceses como o Centre National de Recherche Scientifique ¾ CNRS, quanto no progresso obtido em regiões como Rhône-Alpes e Provence-Alpes-Côte d'Azur, hoje destacadas como fortes centros de pesquisa no contexto europeu (Barros, 1999b).

E no Brasil, como tem sido tratada essa questão regional? Qual a percepção atual que se tem da problemática? Quais as perspectivas de uma intervenção mais eficaz?

O ENCAMINHAMENTO DADO NO BRASIL

A redução das diferenças regionais nunca chegou a ser considerada propriamente prioridade nacional pelo Estado brasileiro. Pode-se dizer que houve sempre um descompasso entre o discurso e a política posta em prática. Para que se tenha uma visualização mais completa e sucinta dessa intervenção, ainda que correndo o risco de simplificar em demasia, deve-se periodizá-la em duas grandes fases.

A primeira tem como marco mais significativo a criação da Sudene em 1959 e atinge seu apogeu na década de 70, quando o desenvolvimento regional foi considerado estratégico para o crescimento nacional. O planejamento, centralizado em instâncias federais, pretendia reverter o quadro do grande desequilíbrio socioeconômico existente entre as grandes regiões brasileiras, promovendo uma maior integração nacional.

Na prática, porém, essa política fluiu, como observado por Jatobá (1980), basicamente para duas direções: ou a exploração de potencialidades locais que beneficiava a dinâmica de expansão econômica comandada pela indústria implantada principalmente em São Paulo, ou para ações compensatórias, quase de caráter assistencialista, a fim de abrandar as graves disparidades.

Nesse período, as ações regionais voltadas para o desenvolvimento científico e tecnológico estiveram formalmente acopladas a essa política mais geral de concepção desenvolvimentista e de integração nacional. Entretanto, como salienta Barros (1999b), a política regional de C&T, expressa inicialmente nos Programas do Trópico Úmido e do Semi-Árido Nordestino, não considerou devidamente os limites e necessidades locais; mais grave ainda, esteve pouquíssimo articulada aos programas de desenvolvimento regional ¾ dos quais provinha a grande parte dos recursos aplicados ¾, tendo assumido um teor mais científico que tecnológico.

Como conseqüência dessas distorções, os resultados da intervenção regional do Estado brasileiro, nessa fase que termina com a eclosão da crise econômica dos anos 80, ficaram praticamente limitados a uma relativa integração da economia nacional e a um pequeno abrandamento dos problemas centrais.

Quanto à questão técnico-científica, especificamente, não ocorreram também grandes transformações. No entanto, alguns Estados das Regiões Norte e Nordeste tiveram suas bases fortalecidas não só em termos de recursos humanos e de infra-estrutura para pesquisa, mas na organização institucional das atividades técnico-científicas.

A segunda fase, que se estende até hoje, está associada às mudanças políticas e econômicas que se estabeleceram a partir da expansão do processo de globalização da economia. O Estado, bastante fragilizado por uma série de fatores, tenta redefinir seu papel e suas funções. As dificuldades político-administrativas vividas, então, foram grandes. A economia brasileira atingiu índices inflacionários altíssimos que inviabilizavam qualquer tentativa de se pensar e se planejar a médio ou longo prazos.

Nesse contexto, o planejamento e as ações de cunho regional evidentemente declinaram. A questão ficou mais complexa e as estratégias para o desenvolvimento mais equilibrado entre as regiões tornaram-se mais difíceis. Os investimentos em C&T passaram a declinar, o que levou até mesmo os centros mais desenvolvidos a enfrentar situações calamitosas. Assim, a política científica e tecnológica nacional, bastante afetada pela crise, passa a se restringir basicamente ao incentivo de uma maior participação tanto do setor produtivo quanto dos Estados federados nos investimentos em C&T, colocando em prática, dessa forma, uma decisão de se descentralizar também as ações voltadas para o desenvolvimento científico e tecnológico.

Essa política de descentralização, entretanto, ainda carece de bases mais consistentes e de instrumentos mais adequados a cada realidade específica. É preciso levar em conta, de acordo com Lavinas (1997a), que muitos Estados, principalmente no Nordeste, dependem de significativas transferências do governo federal, não tendo, por conseguinte, fôlego para criar políticas sociais ou de desenvolvimento. Cabe lembrar ainda que no caso da política científica e tecnológica existe mais um fator limitante que é a falta de tradição de atuação desses Estados na área de ciência e tecnologia.

Com a retomada da estabilidade política e econômica e amadurecidas as perplexidades das mudanças e das expectativas quanto ao processo de globalização, torna-se a considerar com mais atenção os grandes contrastes socioeconômicos regionais que, conforme informa Lavinas (1997b), recrudesceram nas últimas décadas. Verifiquemos aqui as mudanças e perspectivas que se colocam para a dimensão científica e tecnológica da questão.

PERCEPÇÃO ATUAL DO PROBLEMA REGIONAL, A AÇÃO EM DESENVOLVIMENTO E SUAS PERSPECTIVAS

Existe hoje um entendimento mais amplo nas esferas acadêmica, burocrática e política de que a concentração em si não chega a ser problemática. As atividades técnico-científicas ao se aglomerarem podem tornar-se mais dinâmicas e produtivas. Exemplos disso são os casos das regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo. O problema diz mais respeito à intensidade com que se apresenta a concentração espacial e institucional da produção técnico-científica no país.

Isto porque está claro também que a ausência ou quase ausência de determinado nível de capacitação técnico-científica em um determinado espaço acarreta desvantagens comparativas em termos de atração de investimentos produtivos. Dessa maneira, localidades que não contam com uma base educacional mais forte, com uma infra-estrutura de apoio técnico (laboratórios, prestação de serviços, etc.) e com uma infra-estrutura de comunicação correm o risco de ficar estagnadas ou mesmo de ser excluídas do processo de desenvolvimento em curso. Como ressalta Barros (1999b), embora não exista uma correlação direta, automática entre C&T e desenvolvimento econômico e social, não há como negar, no atual contexto, o círculo virtuoso que se realimenta desses fatores.

Percebe-se também que a debilidade ou ausência de competência técnico-científica pode resultar na impossibilidade de aproveitamento de potencialidades locais e de respostas, sobretudo tecnológicas, para problemas específicos. Coloca-se, por exemplo, a situação da Região Amazônica que, por não contar com uma densidade de massa crítica, de núcleos de excelência locais, de institutos de pesquisa e desenvolvimento, deixa ainda de aproveitar as oportunidades abertas por um universo tão rico para a pesquisa e a exploração produtiva.

De uma forma geral, visualiza-se que em um país da dimensão do Brasil, com desigualdades regionais há muito sedimentadas, mas que procura manter uma certa unidade nacional, corre-se o perigo de se ter regiões estanques, desagregadas, com maiores dificuldades e cada vez mais atrasadas. Daí muitos serem favoráveis a uma política de âmbito regional mais incisiva liderada pelo governo federal, pois ele tem sido a principal fonte indutora das atividades científicas e tecnológicas no país. Por isso, há quem acredite que, na falta de uma distribuição mais eqüitativa, mais balanceada dos recursos federais, o problema da concentração se perpetuará indefinidamente.

Essa crença é, no entanto, rebatida por outros, que vêem maior complexidade na questão. Para essa corrente, não se trata apenas de garantir mais recursos; há aspectos culturais, políticos e da própria capacidade local em absorver e aplicar corretamente os recursos que precisam ser levados em consideração.

Esse embate tem contribuído possivelmente para uma nova configuração do tratamento da questão regional, ainda que de forma embrionária. A abordagem do problema em escala de grandes regiões é considerada, por exemplo, inadequada e superficial, pois além de tentar integrar realidades bastante diferenciadas, é de difícil operacionalização, porque o regional, na organização político-administrativa do Estado brasileiro, não corresponde a uma instância de poder.

Assim, a abrangência do regional está sendo identificada como de âmbito estadual e novas linhas de atuação regional estão sendo testadas e formatadas nas instituições federais, principalmente aquelas que estimulam o envolvimento e a participação dos Estados. Essa política de articulação com os Estados, todavia, ainda se processa de forma lenta e sobretudo como iniciativa daquelas localidades que contam justamente com uma base mais consolidada. Isso ocorre, talvez, por não existirem canais institucionalizados mais definidos para esse fim na esfera federal.

Não há dúvida, porém, que essa estratégia é bastante promissora, podendo representar um grande avanço no encaminhamento da questão. Problemas associados ao planejamento ¾ como o da escolha de prioridades e de entrosamento com os programas de desenvolvimento local ¾ ou ao envolvimento efetivo de atores locais envolvidos no processo, para não mencionar os de ordem operacional, poderão encontrar nessas parcerias soluções eficazes.

Ademais, apesar da instabilidade política da grande maioria dos sistemas estaduais de C&T,5 1 . A esse respeito, consultar Comissão Especial Mista do Congresso Nacional (1993). 2 . Segundo o Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil versão 3.0, 1997. 3 . A partir da Constituição de 1988, várias unidades da Federação definiram em suas Cartas, a exemplo de São Paulo que já mantinha investimentos para o desenvolvimento da ciência e tecnologia desde 1962, normas de alocação de recursos para a área. 4 . Dados da National Science Foundation indicam que só cinco dos 51 estados norte-americanos absorvem 46% do dispêndio nacional em ciência e tecnologia. 5 . O Estado de São Paulo é o único que vem mantendo a estabilidade necessária na destinação de recursos substantivos para ciência e tecnologia. a atuação recente de alguns Estados, como o Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Bahia, entre outros, representa no cenário nacional o fato novo mais promissor. Não só por estarem ampliando seus investimentos em C&T, como também aprimorando sua organização institucional, suas articulações e atuações.

Todavia, as ações regionais desenvolvidas no âmbito das agências de fomento federais não conseguiram imprimir ainda o impacto mais vigoroso que a situação requer. Isso talvez porque ainda não haja uma definição clara de política regional por parte do Ministério da Ciência e Tecnologia. Dessa forma, caminha-se em um sistema híbrido, no qual estão reunidos os programas nacionais que procuram considerar a dimensão regional, as ações regionais de cunho mais tradicional e as novas experiências de parcerias com os Estados.

COMENTÁRIOS CONCLUSIVOS

As novas formas de conceber ações regionais voltadas para o desenvolvimento científico e tecnológico mais conseqüentes representam, sem dúvida, um fato significativo na experiência de intervenção do Estado brasileiro. Esse esforço de desenvolver ações mais articuladas com interesses e potencialidades locais, e a participação efetiva de Estados e municípios poderão, aprimorando-se continuamente, trazer transformações significativas. Alguns programas do CNPq, como o do Agronegócio, o de Apoio às Tecnologias Apropriadas, os do Nordeste e Centro-Oeste de Pesquisa e Pós-Graduação já se alinham nessa direção.

Louvável também é o trabalho de planejamento realizado pelo Programa Plurianual/PPA 2000-2003 que buscou retomar a articulação institucional, sobretudo federal, para o desenvolvimento das ações de ciência e tecnologia, além de referendar a determinação de se ampliar a competência tecnológica no país.

Outras ações políticas, tais como a definição de percentuais regionais para os recém-criados Fundos Setoriais de Pesquisa, injetam uma perspectiva mais promissora para o encaminhamento da questão regional pois, como se sabe, um fator complicador contribui decisivamente para a manutenção do problema e diz respeito aos recursos reduzidos para ciência e tecnologia existentes no Brasil. Esses, como vimos, estão sendo canalizados principalmente para a base técnico-científica mais desenvolvida que está localizada no Estado de São Paulo. Tal fato, entretanto, não evidencia uma necessidade de que o país venha a ter uma participação mais efetiva na produção técnico-científica no contexto mundial?

Aí parece residir o aspecto perverso da questão. Sabemos das desvantagens de termos uma realidade tão heterogênea que, até por razões estratégicas para o desenvolvimento, precisa ser modificada. Por outro lado, sabemos também da importância de se garantir uma participação mais expressiva na produção técnico-científica no contexto mundial, que está também cada vez mais concentrada. Se não se quer nivelar por baixo, como superar esse impasse sem contar com mais recursos?

A ampliação de recursos públicos para a área é, sem dúvida, um fator importante. Eles poderão garantir, por exemplo, os pré-investimentos necessários naquelas localidades que se encontram praticamente desprovidas de recursos científicos e tecnológicos.

Por fim, é importante acentuar que o trabalho político desenvolvido pelo Estado, a fim de reverter as incômodas e negativas desigualdades regionais, não deveria se limitar a garantir maiores investimentos públicos para o desenvolvimento técnico-científico. Ele precisa aprimorar continuamente sua intervenção: seja para aperfeiçoar seus instrumentos que induzam o setor privado a um investimento mais significativo em inovação tecnológica nas diferentes regiões, seja para colocar mais em uso sua experiência técnica acumulada, pondo em prática ações mais criativas de articulação com os Estados e municípios, seja para reavaliar sua atual política de descentralização.

NOTAS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    . A esse respeito, consultar Comissão Especial Mista do Congresso Nacional (1993).
    2
    . Segundo o Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil versão 3.0, 1997.
    3
    . A partir da Constituição de 1988, várias unidades da Federação definiram em suas Cartas, a exemplo de São Paulo que já mantinha investimentos para o desenvolvimento da ciência e tecnologia desde 1962, normas de alocação de recursos para a área.
    4
    . Dados da
    National Science Foundation indicam que só cinco dos 51 estados norte-americanos absorvem 46% do dispêndio nacional em ciência e tecnologia.
    5
    . O Estado de São Paulo é o único que vem mantendo a estabilidade necessária na destinação de recursos substantivos para ciência e tecnologia.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Nov 2002
    • Data do Fascículo
      Jul 2000
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