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Editorial

Editorial

Este número de Scientiæ zudia está dedicado, em grande parte, à obra de Galileu Galilei, com especial destaque para os dois documentos científicos, que fazem parte dos antecedentes e preparativos para a elaboração do Diálogo sobre os dois máximos sistemas de 1632: a tradução do pequeno tratado intitulado De situ et quiete Terrae contra Copernici systema disputatio, que Francesco Ingoli endereçou a Galileu em 1616 às vesperas da condenação e proibição do sistema copernicano, e a tradução do original italiano da carta que Galileu enviou em resposta oito anos mais tarde, em setembro de 1624. A publicação conjunta dos dois documentos só se tornou possível graças à inestimável colaboração de Adriano Machado Ribeiro e Letizio Mariconda que traduziram o documento latino.

Os dois primeiros artigos tratam de aspectos da obra de Galileu. Fernando Tula Molina analisa os trabalhos científicos de Galileu no início da carreira, da invenção da balança hidrostática em 1586 até o tratado de mecânica por volta de 1600, e propõe a interpretação de que a dinâmica de Galileu é o resultado de uma síntese que amalgama elementos de quatro tradições de pesquisa: os lugares naturais de Aristóteles, o peso específico de Arquimedes, a virtus motiva de Avempace e o corpus ponderibus de Nemorario. Essa síntese permite explicar não só o uso do legado mecânico anterior, mas também e principalmente sua superação. No segundo artigo, Júlio Celso Ribeiro de Vasconcelos expõe a interpretação que atribui a Galileu uma suposta conceituação circular da inércia, examinando as passagens utilizadas em apoio a essa visão que se encontram nas duas últimas obras de Galileu, o Diálogo de 1632 e os Discorsi de 1638. Defende, opondo-se a essa interpretação, que a conceituação galileana da inércia prescinde da trajetória do movimento e está baseada na idéia de conservação do "grau de velocidade indelevelmente impresso" no corpo movente. O último artigo relaciona-se indiretamente à discussão acerca da obra de Galileu ao tratar das concepções ópticas que antecedem a invenção do telescópio. Nele, Claudemir Roque Tossato expõe a história da ligação da anatomia e fisiologia do olho com as concepções ópticas desde a Antiguidade até o final do século xvi, antes dos trabalhos ópticos fundamentais de Kepler. Com base em um panorama histórico geral dos dois momentos especialmente produtivos para a óptica, a Antiguidade e o século XIII, a teoria óptica tradicional é apresentada como o resultado da confluência de três tradições de pesquisa, que tratam dos aspectos de filosofia natural, de anatomia e de matemática envolvidos no estudo da visão humana.

Os documentos científicos publicados neste número são introduzidos por um texto que os contextualiza visando apresentar os motivos que retardaram a resposta de Galileu por oito anos e argumentar que o destinatário visado, antes de ser Francesco Ingoli, de quem cuidadosamente os aliados de Galileu escondem a carta de resposta, é, muito plausivelmente, o papa Urbano viii. A seguir, é apresentado o duplo alcance da carta de Galileu a Ingoli. Alcance cosmológico, porque, na carta, Galileu destrói o núcleo central da concepção, mantida desde a Antiguidade até o próprio Copérnico, do universo como um todo limitado e esférico. Alcance mecânico, porque Galileu nela expõe pela primeira vez a conseqüência mecânica correta do princípio de relatividade do movimento, a saber, a da indistinguibilidade entre o repouso e o movimento do sistema mecânico para os experimentos que são feitos no interior do sistema. Em ambas as dimensões, está em curso uma profunda transformação na própria concepção do objeto da cosmologia e da mecânica.

Encerra este número de Scientiæ zudia a nota de Eduardo Henrique Peiruque Kickhöfel, na qual são criticados vários textos recentes que perpetuam a imagem triunfalista, tão ao gosto do senso comum, do Leonardo da Vinci precursor genial de tudo nas ciências, nas artes e nas técnicas. Imagem essa persistente e impermeável à crítica dos estudiosos e acadêmicos, profundamente enraizada no individualismo imediatista e produtivista da cultura contemporânea, em sua reduzida capacidade de apreensão dos tempos e ritmos históricos; imagem veiculada em nome da ampla divulgação da ciência que se torna responsável pela difusão da "ignorância informada" que penetra até as melhores universidades.

Pablo Rubén Mariconda

editor responsável

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    Set 2005
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