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Editorial

Editorial

Este último número do ano de Scientiæ udia está inteiramente dedicado a comemorar o ano internacional da química, ciência da transformação da matéria e um dos principais componentes tecnológicos de nossa civilização. Inicia o número uma reflexão filosófica sobre o estatuto ontológico da química quântica, sob a perspectiva da autonomia relativa da química. Seguem-se sete artigos históricos. O primeiro, de certo modo historiográfico, questiona diretamente a interpretação kuhniana do alcance revolucionário da química de Lavoisier; os quatro seguintes apresentam, em ordem cronológica, as teorias da matéria de Bacon e Boyle, os experimentos alquímicos deste último, vertidos à notação química atual, as contribuições de Guyton de Morveau para a revolução química do século XVIII e, por fim, a nomenclatura química em Lavoisier. Finalizam o número dois artigos que se dedicam a episódios da química no Brasil, analisando respectivamente a contribuição de Alcindo Cabral, um químico amador, à classificação periódica dos elementos e os efeitos da extração desordenada de óleos vegetais a partir da canela-sassafrás, que quase extinguiu esta espécie de árvore do Vale do Itajaí em Santa Catarina.

No artigo que inicia o número, Olimpia Lombardi e Juan Camilo Martínez González, após uma indagação acerca da "referência ontológica" da química quântica, concluem que não há propriamente essa referência, pois a química quântica seria antes um modelo – espécie de instrumento – do que propriamente uma teoria, emprestando conceitos de duas teorias incompatíveis, a química estrutural e a física quântica. Essa argumentação, que utiliza boa parte do arsenal de argumentos presentes na literatura da filosofia da química, insere-se em um programa de combate às perspectivas que promovem uma redução da química à física quântica. Afastando-se de uma posição realista, os autores aproximam-se de um pluralismo ontológico de matiz kantiana, próximo a uma solução instrumentalista, para a questão da delimitação da química quântica como disciplina relativamente autônoma à física quântica.

Em seu artigo, Juergen Heinrich Maar, adotando uma perspectiva polêmica, analisa as revoluções – ou evoluções – na química no interior do referencial teórico de Thomas Kuhn, para criticar este autor em relação à tese de que houve na química uma única revolução – isto é, aquela pela qual a química se torna uma ciência madura e constitui seu primeiro paradigma – efetuada exclusivamente por Lavoisier. Essa crítica vem acompanhada pelo argumento de que se levarmos em consideração a parte experimental da química, poderemos perceber a instauração de diversos novos experimentos exemplares, que tiveram contribuição decisiva na constituição do paradigma químico do século XIX, mas cujo padrão de desenvolvimento é o de uma série de pequenas revoluções, cujos efeitos acumulados constituem uma evolução.

Iniciando o primeiro grupo de artigos históricos, Luciana Zaterka, mediante um recorte específico da filosofia da natureza dos séculos XVI e XVII, examina temas comuns às concepções filosóficas de Paracelso, Francis Bacon e Robert Boyle com vistas a esclarecer a teoria da matéria que subjaz à química por eles praticada. O recurso a Paracelso revela-se importante para o entendimento da noção de forma, defendida pelos dois autores ingleses, bem como sua opção pelo caráter operativo da ciência. A autora argumenta no sentido de mostrar como a noção de "forma" desdobra-se, em Boyle e Locke, na noção de "textura", mais apropriada a uma concepção ativa da matéria, apta a captar as transformações químicas. O artigo expõe, assim, os vínculos conceituais entre a filosofia experimental e o nascimento da química moderna.

De sua parte, Kleber Cecon retoma a propriedade de "textura" de Boyle, para argumentar pela compatibilidade entre a filosofia mecânica e sua concepção de matéria ativa, o que se revela nuclear para entender os próprios experimentos alquímicos de Boyle. Seguindo os passos de outros autores, como Principe e Newman, proponentes da possibilidade de uma tradução da notação alquímica do século XVII para a notação química atual, o artigo tem como núcleo a tradução dos experimentos de Boyle com a água régia. Mas, além de tornar acessível aos químicos contemporâneos esses experimentos e, talvez por isso mesmo, o artigo dá um passo além para desvelar, por assim dizer, as operações experimentais que estão como que no subterrâneo da constituição gradativa das propriedades químicas das diversas substâncias, propriedades tais como ponto de fusão, a mudança de gosto, a liberação de som e bolhas, a corrosão etc. É só por meio de descrições precisas das propriedades químicas que se pode aceder a uma tradução entre as duas notações. O que significa que a tradução passa pela compreensão do procedimento experimental.

No terceiro artigo histórico, Ronei Clécio Mocellin explora a metáfora da revolução como um grande rio para cujo caudal contribuem uma série de afluentes maiores ou menores que vão gradativamente constituindo a química como disciplina científica institucionalizada. Analisa então as contribuições pedagógicas e enciclopédicas de Guyton de Morveau, revelando sua atuação decisiva junto à "república dos químicos", sem descuidar de suas contribuições conceituais para a ciência da química, dentre as quais se encontram o claro abandono do conceito de "flogístico" e avanços na elaboração de uma nomenclatura química. O autor opõese, assim, também ele, à análise de Kuhn, pertencente, de certo modo, a uma historiografia heroica, que vê a revolução química como sendo obra exclusiva de Lavoisier. Ao contrário, o autor propõe que a revolução científica da química moderna é a expressão de uma concepção revolucionária republicana, mais próxima dos valores coletivistas que caracterizam o empreendimento científico no início de sua institucionalização.

Encerrando o primeiro grupo de artigos históricos, Regina Simplício Carvalho retoma a avaliação da contribuição de Lavoisier para a química, detendo-se no caso particular da sistematização da nomenclatura química. Desenvolve então uma reconstrução, segundo a qual Lavoisier teria baseado sua sistematização em Condillac, e ambos os autores ter-se-iam inspirado em Locke. No curso dessa reconstrução, mostra-se significativamente como o uso da nova nomenclatura implicava a aceitação da teoria do oxigênio proposta por Lavoisier. Ao final, para contrabalançar a imagem heroica que decorre da perspectiva monográfica do artigo, a autora sugere uma combinação – debatível – entre a visão kuhniana da centralidade da figura de Lavoisier na revolução química e a ideia de Fleck dos "coletivos de pensamento".

Dois artigos que se dedicam à história da química no Brasil encerram este número de Scientiæ udia. Em seu artigo de história filosófica da química, Juergen Heinrich Maar e Eder João Lenardão analisam a contribuição praticamente desconhecida de Alcindo Flores Cabral, pesquisador brasileiro, à tabela periódica dos elementos, apresentando seu modelo de representação helicoidal. Adotando a perspectiva de explorar a obra de Cabral por meio da análise dos comentários de seus correspondentes estrangeiros, e da comparação de sua proposta de tabela com as de outros químicos, os autores contextualizam a pesquisa de Cabral no conjunto das pesquisas realizadas sobre a tabela periódica e exploram suas representações imagéticas. Nessa descrição histórica esquemática da constituição da tabela periódica, os autores não deixam de conjecturar sobre as razões epistemológicas que teriam conduzido ao predomínio da representação de Mendeleiev. O resultado final é um interessante exercício de contextualização histórica da atividade de científica de um pesquisador trabalhando na periferia da comunidade química.

Em seu artigo de história da tecnologia química, Juergen Heinrich Maar e Ligia Clélia Casas Rosenbrock analisam o caso da extração do óleo de sassafrás em Santa Catarina. Além de descrever os detalhes históricos dessa exploração de matas nativas de canela-sassafrás, os autores argumentam, em um cenário quase "contrafactual", que teria sido possível explorar industrialmente, no Brasil, o processamento de substâncias presentes no óleo dessa espécie vegetal, principalmente o safrol e seus derivados de amplo emprego industrial. O artigo avança também na procura das razões históricas pelas quais tal processo de industrialização de uma química fina não foi levado a cabo, embora neste ponto os próprios autores reconheçam a necessidade de maior pesquisa histórica.

Com este número, Scientiæ udia comemora o ano internacional da química, objetivando que as contribuições aqui reunidas possam incentivar entre nós os estudos sobre a química que, enquanto ciência experimental da matéria, ocupa um lugar central na constituição do dispositivo tecnológico da civilização contemporânea.

Os editores

Pablo Rubén Mariconda

Osvaldo Pessoa Júnior

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2013
  • Data do Fascículo
    2012
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