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Copernicanismo e realismo: rumo à unificação entre astronomia e cosmologia

Copernicanism and realism: towards the unification of astronomy and cosmology

RESENHAS

Copernicanismo e realismo: rumo à unificação entre astronomia e cosmologia

Copernicanism and realism: towards the unification of astronomy and cosmology

Claudemir Roque Tossato

Pesquisador do Projeto Temático "Estudos de filosofia e história da ciência" da FAPESP, pós-doutorando do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. toclare@uol.com.br

Kepler. A descoberta das leis do movimento planetário

Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Editora Odysseus, Coleção Imortais da Ciência,

Rio de Janeiro, 2003, 241 págs.

O livro sobre Johannes Kepler (1571-1630), escrito pelo professor Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, diretor do Observatório Nacional no Rio de Janeiro, é a primeira biografia escrita por um pesquisador brasileiro sobre a vida do astrônomo que é considerado o pai da astronomia moderna – título esse dado justamente em virtude da invenção das três leis dos movimentos planetários. Escrever uma biografia em português sobre Kepler já é motivo suficiente para parabenizar Mourão. Existem pouquíssimos trabalhos em língua portuguesa acerca de Kepler, ademais nenhuma de suas obras foi traduzida para a nossa língua, a não ser que excetuemos pequenas passagens traduzidas em partes de livros.

De fato, as obras que dissertam sobre Kepler com tradução para o português são poucas. Nenhum livro específico sobre Kepler foi traduzido; o que temos são capítulos de livros ou partes de capítulos; os mais importantes e conhecidos são Koestler (1961, p. 151-293) obra que contém amplos relatos biográficos de imparcialidade contestável, pois a narrativa, além de ser romanceada, está impregnada de uma visão muito pessoal sobre Kepler; assim, o livro de Koestler é muito limitado e insuficiente quanto ao tratamento dos desenvolvimentos científicos; Koyré (1986b, p. 230-54), acerca do conceito de "inércia" kepleriano; Koyré (1986a, p. 63-89) a respeito do universo finito de Kepler; Burtt (1983), que contém um capítulo interessante sobre a matematização do cosmo feita por Kepler; e Alpers (1999, p. 83-157), que versa sobre a óptica kepleriana, principalmente sobre a função do olho no processo da visão, comparando-a com a concepção de perspectiva utilizada na pintura holandesa do século XVII. Quanto aos capítulos de caráter mais geral, temos Cohen (1967, p. 135-58); Butterfield (1949, p. 57-73); Verdet (1991, p. 98-126); Hall (1983, p. 169-208) e Simaan & Fontaine (2003, p. 159-80). De autores brasileiros, destacam-se Gleiser (1997, p. 108-34); Mourão (1995, verbete "Kepler"); e Mariconda (Galilei, 2001), que sustenta, em algumas das notas à tradução do Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo, ptolomaico e copernicano de Galileu, posições interessantes acerca da relação entre Galileu e Kepler.

Em outras línguas, principalmente a inglesa e a francesa, duas obras devem ser destacadas, a primeira é a de Caspar (1993), principal biógrafo de Kepler, que fornece os dados mais seguros sobre a vida do astrônomo e Koyré (1961), obra que analisa detalhada e atentamente os aspectos científicos e filosóficos envolvidos no processo de elaboração das três leis dos movimentos planetários, aventurando-se nas dificuldades envolvidas nos aspectos técnicos da astronomia de posição dos séculos XVI e XVII. A biografia de Kepler feita por Mourão alicerça-se nos livros de Koestler e Caspar.

Esse número limitado de publicações reflete o quanto há de lacunas acerca da compreensão da obra de Kepler em nosso país e, justamente por isso, vemos quantas possibilidades de trabalho sobre esse astrônomo há para pesquisadores brasileiros que se interessam ou venham a se interessar pelo estudo da obra kepleriana ou da história da astronomia de Copérnico a Kepler, período em que há uma intensa elaboração dos fundamentos epistemológicos e metodológicos da astronomia moderna. Uma obra como a de Mourão abre as portas para futuras pesquisas sobre um dos autores centrais do processo de constituição da ciência moderna, além de fornecer informações para o público leigo interessado na história da astronomia ou mesmo da ciência em geral.

Mas a biografia feita por Mourão não é gratificante apenas por ser uma boa introdução em língua portuguesa a respeito de Kepler; as informações biográficas dadas ao leitor sobre a vida e obra de Kepler são relevantes e corretas. O leitor dessa obra encontrará aspectos interessantes sobre a vida e o trabalho científico de Kepler.

A vida de Kepler, sempre muito tumultuosa e difícil, é mostrada por Mourão como um exemplo de dedicação e empenho ao trabalho astronômico, sobretudo quando as condições eram as mais adversas. Nós, que estamos acostumados ao planejamento familiar e procuramos as condições mais adequadas possíveis de estudo para os nossos filhos, talvez não consigamos entender como um homem que viveu uma vida tão atribulada pôde chegar a mudar os rumos da astronomia. O nascimento de Kepler, em 1571, na cidade protestante de Weil der Stadt, na Suábia, Alemanha, marca o início das relações problemáticas com a família, as quais sempre lhe incutiram um misto de desespero e angústia perante o mundo. De fato, a família Kepler pode muito bem lembrar as famílias descritas nos romances de Dostoiévsky: brigas intermináveis entre avós, pai, mãe, tios, irmãos faziam parte do cotidiano. O pai, Heinrich Kepler (1547-1590), era um homem de temperamento difícil e que freqüentemente abandonava a casa para lutar como mercenário nas guerras que eram muito comuns nessa época na Alemanha. A mãe, Katherine Guldemann (1547-1622), quando não acompanhava o marido nas campanhas mercenárias, brigava incessantemente com a própria mãe ou ajudava-a nos trabalhos de feitiçaria que as duas apreciavam e cultivavam, de modo que ambas viram-se diante do inconveniente de ter que se defender de acusações de bruxaria. Os irmãos de Kepler que não morreram prematuramente levaram vidas marcadas por doenças ou perturbações mentais. Aliado a tudo isso, Kepler sempre teve uma saúde frágil, sofrendo de diversos males durante toda a sua vida. Também se tornam marcantes os dois casamentos de Kepler, o primeiro em 1597 com Bárbara Müller (1575-1611), mulher melancólica e solitária, que o incomodava insistentemente com infindáveis reclamações, não compartilhando com ele o gosto pela pesquisa astronômica; o segundo com Susanna Reutinger (1591-1638), uma mulher bem mais nova do que Kepler, mas que lhe deu uma certa paz de espírito nos últimos anos de sua existência. Desses dois casamentos, Kepler teve 13 filhos, dos quais a maioria morreria ao nascer ou na primeira infância.

Mourão também apresenta os primeiros estudos de Kepler, feitos na escola de gramática do convento de Aldelberg (1584-1589). Esses também não foram um exemplo ideal de estudos. Freqüentes brigas com os companheiros de escola levam-no a tornar-se um jovem quieto e introvertido. Quando sai de Aldelberg, ingressa na Universidade de Tübingen, no ducado de Württemberg, onde se dedica ao estudo de teologia por cinco anos (1589-1594). Nesse período, o gosto pela astronomia começa a aparecer, suscitado pelo convívio com Michael Mästlin (1550-1631), o qual lhe ensina tanto o modelo geocêntrico de Ptolomeu quanto a nova proposta de Nicolau Copérnico. Essa relação foi uma das mais marcantes da vida de Kepler, que viu em Mästlin não apenas um mestre, mas um amigo, mantendo um grande respeito por ele por toda a vida.

Em 1594, Kepler ocupa o cargo de professor de matemática na escola provincial de Graz, onde permaneceu até 1600, quando se muda para Praga a convite do maior astrônomo de observação antes do uso do telescópio, Tycho Brahe (1546-1601). A relação entre Kepler e Brahe é uma das mais interessantes da história da ciência. Apesar das constantes desavenças entre os dois, o contato com Brahe serviu de impulso para Kepler direcionar os novos rumos que daria para a astronomia. Digna de nota é a apresentação de Mourão de alguns acontecimentos da vida de Brahe e da importância da observação a olho nu e dos instrumentos de observação astronômica no século XVI.

Em 1601, Kepler ocupa o cargo de Matemático Imperial da corte de Rodolfo II (1552 – 1612), permanecendo nesse cargo até 1612. Esse é o período mais profícuo da vida de Kepler, época em que ele obtém as duas primeiras leis dos movimentos planetários: a lei da forma elíptica e a lei das áreas, e também elabora as bases dos seus estudos sobre óptica.

De 1612 até 1626 Kepler ocupa o cargo de Matemático Provincial em Lins, quando chega à terceira lei, a lei harmônica; mora depois disso em Ulm, Sagan e outras localidades, e finalmente Ratisbona, onde falece em 1631.

Assim, a vida tumultuosa de Kepler, as relações nem sempre agradáveis com seus familiares; as constantes mudanças de moradia decorrentes, em sua maior parte, das guerras religiosas que solaparam as cidades alemãs do final do século XVI até a metade do século XVII; as obrigações, nem sempre satisfatórias, com os Imperadores e os mandatários dos diversos lugares em que habitou; a constante precariedade econômica, somente mitigada um pouco quando viveu em Praga, e as catástrofes familiares pelas quais passou são descritas pela biografia feita por Mourão. As idas e vindas do pai da astronomia tornam-se conhecidas para o público brasileiro, destacando as diversas contribuições de Kepler tanto no que concerne à ciência astronômica – com as três leis dos movimentos planetários – quanto aos trabalhos de óptica – o estudo da função do olho no ato de ver e a procura da lei da refração; também se destaca a apresentação dos estudos de astrologia, matemática e sobre a natureza dos cristais. Além disso, e esse é o seu aspecto mais importante, a biografia também traz, mesmo que não concordemos com algumas delas, interpretações interessantes sobre Kepler e sobre a astronomia e a cosmologia de sua época. Essas interpretações estimulam o pensamento a pesquisar e refletir sobre o que foram os séculos XVI e XVII para as ciências e para a cultura num sentido amplo.

A principal caracterização de Kepler feita por Mourão reside na consideração de que o astrônomo alemão não foi apenas um adepto, ou podemos dizer continuador, das propostas originais de Copérnico; mais do que isso, Kepler construiu uma astronomia vinculada ao copernicanismo, mas mais abrangente do que aquela proposta por Copérnico; a síntese dessa abrangência encontra-se no final do livro de Mourão, quando, após ter descrito a vida de Kepler na sua totalidade, faz um balanço dos ganhos que a astronomia teve com seus trabalhos. Podemos assim ler:

(...) Realmente, antes dele [Kepler] a Astronomia era uma Geometria Celeste, essencialmente descritiva. Foi com a publicação de sua Astronomia Nova, fundada sobre as causas, ou Física Celeste que teve início a síntese entre Astronomia e Física.

A importância primordial da obra de Kepler reside no fato de ter destruído o dualismo entre o mundo celeste e o sublunar. A Terra, o Sol e os planetas foram pela primeira vez considerados como objetos de uma mesma natureza. Os astros não configuravam mais o quinto elemento da natureza divina conforme sugeria Aristóteles e, portanto, diferiam dos outros quatro elementos: ar, terra, água e fogo. Tal proposição, mais a ordem dada pelas suas leis à incipiente Mecânica Celeste, promoveram toda a revolução astronômica que se seguiu, desdobrada do pensamento copernicano (Mourão, 2003, p. 195-6).

Isto é importante. Acostumamo-nos a falar em "revolução copernicana" sem compreender que as propostas iniciais de Copérnico (principalmente as postulações de centralidade do Sol e de movimento da Terra) são uma parte dessa revolução que não se exaure nelas. Kepler pertence a essa revolução, assim como outros, por exemplo, Galileu, Descartes, Newton etc. O termo "revolução copernicana", portanto, por si só, pode enganar o não especialista, aquele que não se debruça sobre os textos dos pensadores dos séculos XVI e XVII nem sobre os dos comentadores desse período. "Revolução copernicana" designa um processo no qual ocorreu uma grande mudança de mentalidade, grandes mudanças conceituais que tiveram profundo impacto tanto na física terrestre quanto na ciência astronômica. As concepções de física e de astronomia vigentes no aristotelismo eram incompatíveis com as propostas de Copérnico. As hipóteses copernicanas deram corpo e significado aos trabalhos que sucederam, mesmo àqueles que visavam rejeitar as hipóteses de Copérnico, de modo que os desenvolvimentos futuros do copernicanismo original foram o resultado de trabalhos que envolveram um grande número de contribuições particulares e de novas posições interpretativas. O que ocorreu nos séculos XVI e XVII (sem desconsiderarmos os trabalhos relevantes de filósofos e cientistas que antecederam Copérnico, os quais também são importantes para a compreensão desses 200 anos) foi uma guinada de direção acerca do entendimento do mundo. As categorias utilizadas na Idade Média para sua compreensão, tais como a de qualidade e a de uma organização hierarquizada, deixaram de ser vistas como centrais para a visão de mundo. A obra de Kepler insere-se no contexto de ruptura com os padrões epistemológicos e metodológicos aceitos na Antigüidade e na Idade Média, substituindo-os por novas formas de pensar o cosmo: de uma estrutura qualitativa, passa-se a procurar expressões quantitativas para os fenômenos do mundo celeste, com base na idéia de uma identidade de estrutura com o mundo dos fenômenos terrestres.

A mudança de mentalidade produzida pela ruptura epistemológica e metodológica mostra que o desenvolvimento da ciência astronômica contém uma dinâmica ao longo da história. Os padrões admitidos em um determinado período podem ser mudados de acordo com as necessidades de um outro, havendo, entre eles, um estágio no qual ocorrem transformações que refletem um período de transição. Se admitirmos isso, Kepler pode, então, ser visto como um pensador no meio do caminho, isto é, se ele não é completamente moderno, também não é apenas a expressão heterodoxa do antigo. Isso nos auxilia a vê-lo não simplesmente como um pensador ligado ao misticismo e à religião, mas como um homem que, mesmo possuindo essas facetas, produziu racionalmente uma obra científica que constitui uma etapa significativa do copernicanismo e das bases epistêmicas e metodológicas da ciência moderna.

Selecionamos algumas passagens do livro de Mourão que pensamos mostrarem alguns dos pontos fundamentais dos trabalhos keplerianos como expressão de um aprofundamento do copernicanismo. Tais pontos dizem respeito: (1) à racionalidade kepleriana no tratamento astronômico, interpretando essa racionalidade como expressão dos padrões keplerianos e (2) as questões referentes à metodologia aplicada para a ciência astronômica. A proposta kepleriana para a astronomia visa primordialmente a uma cosmologia que vincula os aspectos técnicos astronômicos às possibilidades de organização racional dos corpos celestes. Nesse sentido, pode-se dizer conforme Mourão:

Apesar do fundo religioso, segundo o qual Deus havia racionalmente estabelecido uma escala das distâncias entre o Sol e os planetas, a proposta kepleriana era essencialmente de natureza cosmológica. O mundo devia apresentar uma organização racional e, para Kepler, não bastava verificá-la empiricamente, era preciso justificá-la teórica e teologicamente. Tal ambição não soava excepcional para a época (Mourão, 2003, p. 46).

E mais à frente, quando comenta que os poliedros perfeitos podem ser entendidos como suporte para o conhecimento do mundo material:

(...) Na realidade, os poliedros perfeitos – corpos tridimensionais inscritos na esfera – e os polígonos perfeitos – formas bidimensionais inscritas no círculo – constituíam uma relação mística. Convém recordar que a esfera constituía, para Kepler, o símbolo da Santíssima Trindade, enquanto o plano bidimensional simbolizava o mundo material. A interseção da esfera e do plano – origem do círculo – pertencia à Natureza, corpo e espírito do homem (Mourão, 2003, p. 173).

As citações acima apontam para dois itens importantes. O primeiro enfoca o aspecto de que Kepler não se restringiu a um trabalho meramente astronômico, mas sim cosmológico, no qual o cerne da pesquisa encontra-se justamente na consideração do cosmo como contendo uma organização racional garantida pelas disposições estruturadas mediante a colocação do Sol no centro e a Terra movendo-se ao seu redor. Mas a racionalidade científica para Kepler não está somente na aceitação do "copernicanismo bruto"; deve-se dar mais um passo. É justamente nesse ponto que a racionalidade mistura-se com o religioso, pois esse último aspecto determina a base racional da cosmologia; isso fica mais claro quando consideramos o segundo item. Este nos remete para a importância de termos em mente as singularidades do pensamento de Kepler e, a partir disso, entender o fundamento singular de sua racionalidade. O fato de Kepler ter sido um homem extremamente religioso, no sentido de considerar o cosmo como uma criação divina e perfeita, aponta para o elemento teológico que dá sentido ao trabalho epistêmico-metodológico na astronomia e na cosmologia. Isso fica explícito no uso do modelo dos sólidos perfeitos inscritos e circunscritos nas órbitas dos seis planetas conhecidos no início do século XVII – pois, nessa época, apenas Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno eram conhecidos; Urano foi descoberto em 1781, Netuno em 1846, e Plutão em 1930. Lembremos que o modelo, ou hipótese, dos sólidos perfeitos foi a primeira tentativa de Kepler para responder a certas questões astronômicas vitais para o período: por que existem apenas seis, e não mais, planetas? Por que eles se movem periodicamente em torno de um centro? Por que eles têm uma figura determinada para as suas órbitas? Essas questões foram levantadas no Mysterium cosmographicum de 1596, e as respostas foram obtidas com a descoberta das leis dos movimentos planetários. O que parece estranho à primeira vista nesse modelo é a postulação de que os sólidos perfeitos (cubo, tetraedro, dodecaedro, octaedro e icosaedro) "estão intercalados" – inscritos e circunscritos – entre as órbitas de cada planeta. A estranheza está na imaginação por demais fértil de Kepler que lhe permite trazer para o bojo científico um modelo aparentemente tão desprovido de racionalidade. Porém, essa hipótese cosmológica de inscrever e circunscrever os sólidos perfeitos nas esferas expressa justamente a racionalidade fundamentada na geometria; ao representar os movimentos planetários por meio de sólidos perfeitos e esferas, pode-se expressar matematicamente, isto é, geometricamente, tais movimentos de uma forma racional, pois a geometria da esfera – dada pelos Elementos de Euclides – é a garantia de que há uma objetividade subjacente aos fenômenos observados. Além disso, o que se deve levar em conta, tal como Mourão levou, na sua biografia sobre Kepler, é que tal modelo metafísico foi o responsável por uma das maiores conquistas da astronomia moderna: a obtenção das leis dos movimentos planetários. Somente isso já é, pensamos, motivo para o estudo não preconceituoso do processo da descoberta científica. Escreve Mourão:

Esses e outros argumentos, por incrível que possa parecer, foram usados por um dos fundadores da Ciência Moderna. Quando se faz a história de qualquer Ciência, é muito importante compreender a época em que a obra foi escrita, levando em consideração as idéias teológicas que predominavam, das quais não era fácil se libertar. Nossa perspectiva nos permite deixar de lado os argumentos de ordem teológica que dominaram o primeiro livro de Kepler, mas não nos esqueçamos, sob pena de perder parte crucial do desenvolvimento de todo um campo de conhecimentos, de que nesses argumentos encontravam-se as sementes das suas futuras descobertas (Mourão, 2003, p. 51).

Os cientistas do século XXI, voltados para as necessidades de desenvolvimento tecnológico, esqueceram-se, e com isso contribuíram para o esquecimento do homem comum, de que uma empreitada científica não segue, em casos revolucionários, um receituário rígido fundamentado em padrões estabelecidos de racionalidade, no qual aquilo que não se apresenta como pertencente aos cânones da racionalidade científica (isto é, valores que podem ser entendidos como contingentes, não necessários no processo de elaboração do saber, tais como valores religiosos ou culturais) deve ser abandonado do processo de aquisição do conhecimento científico; o caso de Kepler nos mostra que a racionalidade científica não é um produto desvinculado da sua história. Ela deve antes ser entendida como o conjunto dos valores aceitos pelo astrônomo de Rudolfo II. A construção teórica kepleriana, para dar conta dos movimentos planetários, necessitou, por assim dizer, de um "pano de fundo" expresso principalmente pela crença teleológica em um cosmo racional e determinista. Desvincular essa crença do processo de obtenção das leis é simplificar em demasia o pensamento kepleriano. A racionalidade científica para Kepler não é algo desprovido de intenção, isto é, a admissão de que o universo é racional (pode-se elaborar leis objetivas sobre ele) liga-se à crença metafísico-religiosa de que o mundo não foi criado ao acaso por Deus, mas que ele, independentemente de sabermos qual a razão que o levou a isso, criou o mundo com uma estrutura objetiva que pode ser compreendida pelo intelecto humano.

Ora, o que a astronomia ganha com isso é a possibilidade de construção de um discurso racional sobre os seus acontecimentos. Não estamos dizendo que a astronomia anterior a Kepler era irracional; longe disso, pois a tradição grega nos forneceu um arcabouço matemático extremamente detalhado para o mapeamento dos céus e, também, uma cosmologia que visava interpretar o mundo celeste por meio de mecanismos inteligíveis. O que se entende por "racional" liga-se à possibilidade das hipóteses astronômicas não serem simples construções para cálculos, independentemente de podermos decidir sobre a sua verdade ou falsidade. A própria situação do estatuto das hipóteses astronômicas no início do século XVII, que eram entendidas como simples instrumentos para os cálculos e cômputos astronômicos, desagradava consideravelmente Kepler. Sua intenção era dotar a astronomia de condições epistêmicas para poder decidir racionalmente sobre a realidade do mundo celeste. A biografia feita por Mourão contempla essa faceta de Kepler, enriquecendo a interpretação sobre a sua obra astronômica.

Outro aspecto salientado por Mourão reside no método kepleriano. Novamente, a diferença de procedimento com relação à forma com que se concebe um relato científico hoje em dia, quando a comparamos à forma kepleriana, está presente. Se hoje costumamos "limpar" o terreno, isto é, mantemos somente aquilo que nos interessa: os resultados e os pontos positivos aos quais chegamos, desconsiderando os aspectos negativos presentes numa pesquisa científica, Kepler agiu de outro modo, narrando ao leitor de suas obras, principalmente da Astronomia nova de 1609, que contém as duas primeiras leis, todas as etapas de seu trabalho investigativo. Essa estratégia visava, fundamentalmente, tratar os movimentos planetários como fenômenos idênticos aos fenômenos terrestres; para tanto, Kepler trata da causa física presente em tais movimentos; entendendo essa causa como a ação solar (a força magnética do Sol) sobre os planetas. Segundo Mourão,

À maneira dos grandes navegadores, Kepler descreveu suas pesquisas como quem faz notas no diário de bordo, registrando sua longa viagem de exploração por céus astronômicos nunca dantes navegados. A idéia essencial, a idéia nova, era calcular o movimento dos astros a partir das suas causas e, desse modo, considerar a Astronomia uma Física Celeste, como muito bem sugere o título da obra. A exposição se orientava, portanto, pela unidade de um objetivo, em busca do qual se faziam registrar as diferentes etapas, tentativas e dúvidas pelas quais passou, para atingir sua meta (Mourão, 2003, p. 114).

A grande contribuição de Kepler à astronomia e à cosmologia foi agrupá-las num único construto teórico, dando-lhes os mesmos preceitos metodológicos para a obtenção de conhecimento na ciência dos céus. O fio condutor kepleriano está alicerçado na tentativa de dar significado físico e cosmológico para o estudo dos movimentos planetários, algo que para a astronomia do período era uma novidade.

Por trás desses novos rumos dados à astronomia está o debate metodológico entre o realismo e o instrumentalismo. Kepler sempre se mostrou um ardente realista, nunca aceitando uma leitura instrumentalista das hipóteses copernicanas. Os astrônomos do início do século XVII viam o copernicanismo apenas como mais um conjunto de hipóteses para representar convenientemente os posicionamentos dos planetas, mas sem considerá-lo como uma cosmologia que se referisse à realidade do mundo celeste. Para Kepler, uma hipótese astronômica não é uma expressão meramente instrumental destinada a determinar os melhores posicionamentos possíveis com a menor margem de erro, isto é, não é apenas uma hipótese voltada para a prática mas é uma representação da realidade física dos movimentos planetários. Nesse sentido, ao defender o copernicanismo como uma cosmologia, e não apenas como uma astronomia prática, Kepler viabiliza uma mudança metodológica nas ciências do céu, pois a astronomia necessita de um suporte cosmológico real (que para Kepler é o copernicanismo) para poder determinar conhecimentos sobre os seus fenômenos.

O livro de Mourão apresenta duas pequenas imprecisões que, entretanto, não alteram o valor do trabalho como um todo. Acerca da primeira, na página 115, comentando o fato de Copérnico utilizar os artifícios geométricos para adequar os movimentos não circulares e uniformes dos planetas, ele escreve: "Se a força responsável pelo movimento dos planetas provinha do Sol, por que Copérnico, como Ptolomeu, insistia em fazê-los girarem ao redor do equante?" Isto é um engano conceitual, pois Copérnico nunca aceitou o equante (cf., por exemplo, Copérnico, 1984, Livro IV, Cap. 2, p. 319); aliás, um de seus objetivos centrais era justamente o de abolir o equante ptolomaico, pois ele fere, e muito, o axioma platônico de movimentos circulares e uniformes, tão ardentemente defendido pelo cônego polonês. Copérnico não utilizou o equante, mas o expediente do duplo epiciclo com deferente, justamente para compor os movimentos mediante o axioma da circularidade e uniformidade. A segunda confusão refere-se à data da publicação da segunda edição do Mysterium cosmographicum; afirma Mourão que a segunda edição é de 1625 (Mourão, 2003, p. 46), quando na verdade ela se deu em 1621. Porém esses dois pequenos deslizes não comprometem o trabalho do autor.

Em linhas gerais, a biografia feita por Mourão contempla, para o público brasileiro interessado em questões astronômicas e cosmológicas, uma vida e um período significativos. Esperemos que ela estimule o pesquisador e o público brasileiro em geral a aventurarem-se no conhecimento e compreensão de Kepler, que é uma das figuras centrais da revolução científica do século XVII.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2003
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