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A responsabilidade da ciência

DOCUMENTOS CIENTÍFICOS

A responsabilidade da ciência* * Texto revisado da palestra ministrada no Lake Arrowhead Center of the University of California, Los Angeles (julho de 1966). [Esta tradução foi feita a partir da publicação de The responsibility of science em Leonard Krieger e Fritz Stern (Org.), The responsibility of power: historical essays in honor of Hajo Holborn (New York, Doubleday, 1967), p. 439-44.]

Herbert Marcuse

A proposição que desejo apresentar é a seguinte: a ciência (isto é, o cientista) é responsável pelo uso que a sociedade faz da ciência; o cientista é responsável pelas consequências sociais da ciência. Argumentarei que esta proposição não depende para sua validade de quaisquer normas morais fora e além da ciência, ou de qualquer ponto de vista religioso ou humanitário. Em vez disso, sugiro que a proposição é ditada pela estrutura interna e o telos da ciência, e pelo lugar e função da ciência na realidade social. Não se trata de duas razões diferentes, uma pertinente à ciência, a outra externa a ela (sociológica ou política). Elas são essencialmente inter-relacionadas e, nessa inter-relação, determinam o rumo do progresso científico (e sua regressão!). A ciência está hoje em uma posição de poder que traduz quase imediatamente avanços puramente científicos em armas políticas e militares de uso global e eficiente. O fato de que a organização e o controle de populações inteiras, tanto na paz quanto na guerra, tornou-se, em sentido estrito, um controle e organização científicos (dos aparelhos domésticos técnicos mais comuns até os mais sofisticados métodos de formação da opinião pública, da publicidade e da propaganda) une inexoravelmente a pesquisa e os experimentos científicos com os poderes e planos do establishment econômico, político e militar. Consequentemente, não existem dois mundos: o mundo da ciência e o mundo da política (e sua ética), o reino da teoria pura e o reino da prática impura - existe apenas um mundo no qual a ciência, a política e a ética, a teoria e a prática estão inerentemente ligadas.

À primeira vista, parece que a história contradiz esta proposição, pois com o desenvolvimento do mundo moderno veio a bifurcação dos domínios que estiveram unidos durante a maior parte da Idade Média. Além disso, tal separação constituiu uma precondição para que a ciência se libertasse das normas e valores impostos, uma precondição para o avanço técnico e para a contínua conquista da natureza e do homem que chamamos de progresso científico. Entretanto, esse fato histórico foi ultrapassado e a separação que foi uma vez libertadora e progressista tornou-se destrutiva e repressiva. Ou, em outras palavras, embora a ideia de teoria pura tenha tido em outros tempos uma função progressista, ela serve agora, contra a intenção do cientista, aos poderes repressivos que dominam a sociedade. Como isso aconteceu?

A ciência procede de acordo com seus próprios métodos de descoberta, experimentação e verificação, e de acordo com a lógica de seu próprio desenvolvimento conceitual, sem levar em conta o uso social e as consequências de suas descobertas. A intenção do cientista é pura: ele é motivado pela "pura" curiosidade; busca o conhecimento pela busca do conhecimento. Mas seu trabalho, uma vez publicado, insere-se no mercado, torna-se mercadoria para ser avaliada pelos compradores e vendedores em potencial e, em virtude dessa qualidade social, seu trabalho satisfaz necessidades sociais. Além disso, através de sua relação com as necessidades sociais prevalecentes, o trabalho do cientista adquire um valor social; seu trabalho incorpora as características das tendências sociais predominantes e torna-se progressivo ou regressivo, construtivo ou destrutivo, libertador ou repressivo em termos da proteção e melhoramento da vida humana. Afirma-se porém que o cientista trabalhando em seu gabinete ou laboratório não pode prever as consequências sociais de seu trabalho; ele não pode saber antecipadamente se o que está fazendo resultará em um fator construtivo ou destrutivo na história. Além disso, como a aplicação de suas descobertas fica nas mãos do engenheiro ou do técnico, e a decisão final cabe ao político (o governo), o problema das consequências sociais de seu trabalho fica fora de sua alçada, e consequentemente ele não pode ser moralmente responsabilizado.

Mesmo se aceitarmos esse argumento, será que ele justifica a neutralidade e indiferença morais da ciência? Eu diria que não. O cientista permanece responsável enquanto cientista porque o desenvolvimento social e a aplicação da ciência determinam, em considerável medida, o posterior desenvolvimento conceitual interno da ciência. O desenvolvimento teórico da ciência é assim enviesado em uma direção política específica, e a noção de pureza teórica e neutralidade moral é assim invalidada. Dois exemplos podem ajudar a ilustrar este ponto. Comentando o fato de que os recursos federais para a ciência em faculdades e universidades excedem atualmente 1,3 bilhão de dólares, e constituem dois terços do total de gastos com pesquisa nessas instituições, Harrison Brown, professor de geoquímica do Instituto de Tecnologia da Califórnia, diz:

Como a maior parte dessas verbas provém de agências do governo "orientadas por missões", os programas de pesquisa serão inevitavelmente adaptados às necessidades da agência em vez da concepção daquilo que é importante de um ponto de vista puramente científico.1 1 New York Times (11 de maio de 1966).

O senador Fulbright expressa a mesma constatação em termos mais gerais:

Suspeito que quando uma universidade volta-se muito fortemente para as necessidades correntes do governo, ela incorpora um pouco a atmosfera de um lugar de negócios, enquanto perde a de um lugar de estudo. Suponho que as ciências são promovidas às custas das humanidades e, dentro das humanidades, a escola behaviorista nas ciências sociais às custas das abordagens mais tradicionais - e a meu ver mais humanas. De maneira geral, minha expectativa é a de que um interesse em informações vendáveis pertinentes aos problemas correntes seja enfatizado às custas de ideias gerais referentes à condição humana.2 2 Senador Fulbright, na conferência "The University in América", Santa Barbara Center (maio de 1966).

Em outras palavras, a pretensa neutralidade da ciência e a indiferença quanto aos valores, das quais ela se gaba, na verdade promovem o poder de forças externas sobre o desenvolvimento científico interno.

Defensores da neutralidade científica frequentemente apontam para o fato de que a ciência tem embutido nela um mecanismo de detecção de erros. Assim, C. P. Snow escreve:

A ciência é um sistema autocorretivo. Isto é, nenhum erro (ou equívoco honesto) ficará sem ser detectado por muito tempo. Não há necessidade de uma crítica científica externa, pois a crítica é inerente ao próprio processo, e assim tudo o que uma fraude pode fazer é desperdiçar o tempo dos cientistas que têm de expô-la.

3 3 "The Moral Un-Neutrality of Science", in: Science (27 de janeiro de 1961), p. 257.

O problema é que não é a "fraude" que penetra no processo científico, mas tarefas e objetivos "científicos" perfeitamente legítimos. Ao cientista são dados problemas que estão dentro de sua competência e interesse como cientista: problemas científicos; acontece que eles são também problemas de destruição da vida, de guerra química e bacteriológica. Mas se o mecanismo de autocorreção da ciência não trata desses problemas, a ênfase na natureza autocrítica da ciência perde muito de sua validade.

Sua própria "indiferença quanto aos valores" torna a ciência cega para o que acontece com a existência humana. Ou, formulando isso de modo diferente, e um pouco menos caridosamente, a ciência livre de valores promove cegamente certos valores políticos e sociais e, sem abandonar a teoria pura, a ciência sanciona uma prática estabelecida. O puritanismo da ciência transforma-se em impureza. E essa dialética levou à situação na qual a ciência (e não apenas a ciência aplicada) colabora na construção da mais eficiente maquinaria de aniquilamento da história.

Como esta separação de conhecimento e valores, que foi primeiramente progressiva, tornou-se regressiva? Qual é a relação entre progresso e destruição? Em certo sentido, a própria destruição é progressiva e libertadora, e a ciência moderna em seus começos era destrutiva nesse sentido progressista. Ela foi destrutiva do dogmatismo e da superstição medievais, destrutiva da aliança sagrada entre filosofia e autoridade irracional, destrutiva da justificação teológica da desigualdade e da exploração. A ciência moderna desenvolveu-se em conflito com os poderes que se opunham à liberdade de pensamento; hoje a própria ciência encontra-se em aliança com os poderes que ameaçam a autonomia humana e frustram a tentativa de realizar uma existência livre e racional.

Quais são as possibilidades de reverter essa tendência? Uma coisa deve ficar clara desde o começo: não existe a possibilidade de reverter o progresso científico, de um retorno à idade de ouro da ciência "qualitativa". Por certo é verdade que uma mudança poderia ser imaginada apenas como um evento no desenvolvimento da própria ciência, mas tal desenvolvimento científico somente pode ser esperado como resultado de uma ampla mudança social. O necessário é nada menos que uma completa transvalorização dos objetivos e necessidades, a transformação das políticas e instituições repressivas e agressivas. A transformação da ciência é imaginável apenas em um ambiente transformado; uma nova ciência exigirá um novo clima, em que novos experimentos e projetos serão sugeridos ao intelecto por novas necessidades sociais. Em seu sentido mais geral, essa transformação implicaria o desaparecimento das necessidades sociais de produção e produtos parasitários e desperdiçadores, de defesa agressiva, de competição por status e conformismo, e exigiria a correspondente liberação das necessidades individuais de paz, alegria e tranquilidade. Em vez de promover a conquista da natureza, a restauração da natureza; em vez da lua, a terra; em vez da ocupação do espaço extraterrestre, a criação do espaço interno; em vez da coexistência não-tão-tranquila da afluência e da pobreza, a abolição da afluência até que a miséria tenha desaparecido; em vez de armas e manteiga nas nações superdesenvolvidas, margarina suficiente para todas as nações. Evidentemente, esta seria a mudança global mais radical que podemos imaginar. O que podem fazer os cientistas a respeito disso? Aparentemente, nada.

Mas aqui também somos confrontados com uma ilusão, pois o cientista já não é o pesquisador dissociado e isolado, mas se tornou o esteio das políticas e das instituições estabelecidas. Na medida em que a economia se torna um sistema tecnológico, a ciência se transforma num fator decisivo nos processos econômicos da sociedade. Mesmo o trabalho físico torna-se cada vez mais dependente de fundamentos científicos (tecnológicos). Ao mesmo tempo, a brecha entre ciência pura e aplicada se estreita; as realizações mais abstratas e formais na lógica e na matemática traduzem-se em valores muito concretos e materiais (por exemplo, computadores). A ciência literalmente abastece a economia. Na medida em que a ciência é parte da base da sociedade ela se torna um poder material, uma força política e econômica, e todo cientista individual é uma parte desse poder. Assim como o cientista depende do governo e da indústria para o financiamento de sua pesquisa, também o governo e a indústria dependem do cientista. O cientista individual pode de fato ser impotente para deter a maré da destruição "científica", mas pode recusar-se a emprestar suas mãos e seu cérebro para a perfeição da destruição, e ele pode denunciar. Com certeza, sua recusa e seu protesto são apenas expressões individuais, e podem resultar na perda do apoio necessário para um determinado projeto. Há sempre esse risco. Mas sua recusa pode fazer com que indústria e governo pensem, e pode encorajar outros a segui-lo. Se estivermos inclinados a desprezar esse esforço como "meramente negativo", devemos recordar que muitas vezes no passado o negativo foi o primeiro passo positivo.

Hoje não há conflito entre a ciência e a sociedade (a sociedade estabelecida); elas impelem-se reciprocamente na direção estabelecida do progresso, uma direção que parece cada vez mais perigosa para a humanidade. Mas existe um conflito entre a ciência moderna tal como é praticada e o telos interno da ciência. A ciência está ameaçada pelos seus próprios progressos, ameaçada por seu avanço como instrumento de um poder livre de valores, em vez de um instrumento de conhecimento e verdade. A ciência, como todo pensamento crítico, tem sua origem no esforço de proteger e melhorar a vida humana em sua luta com a natureza; o telos interno da ciência não é nada mais que a proteção e o melhoramento da existência humana. Essa tem sido a razão de ser da ciência, e seu abandono é equivalente à ruptura entre a ciência e a razão. A ciência pode de fato continuar a crescer, em um sentido limitado, como uma técnica, mas perderá sua própria raison d´être.

A ciência como um esforço humano continua a ser a mais poderosa arma e o instrumento mais eficaz na luta por uma existência livre e racional. Esse esforço estendese para além do estudo, além do laboratório, além da sala de aula, e visa a criação de um ambiente, tanto social quanto natural, no qual a existência pode ser libertada de sua união com a morte e a destruição. Tal libertação não será um objetivo externo ou subproduto da ciência, mas antes a realização da própria ciência.

Traduzido do original em inglês por Marilia Mello Pisani

Revisão técnica de Marcos Barbosa de Oliveira

With permission of the Literary Estate of Herbert Marcuse, Peter Marcuse, Executor, whose permission is required for any further publication. Supplementary material from previously unpublished work of Herbert Marcuse, much now in the Archives of the Goethe University in Frankfurt/Main, is being published by Routledge Publishers, England, in a six-volume series edited by Douglas Kellner, and in a German series edited by Peter-Erwin Jansen published by zu Klampen Verlag, Germany. All rights to further publication are retained by the Estate.

  • *
    Texto revisado da palestra ministrada no
    Lake Arrowhead Center of the University of California, Los Angeles (julho de 1966). [Esta tradução foi feita a partir da publicação de
    The responsibility of science em Leonard Krieger e Fritz Stern (Org.),
    The responsibility of power: historical essays in honor of Hajo Holborn (New York, Doubleday, 1967), p. 439-44.]
  • 1
    New York Times (11 de maio de 1966).
  • 2
    Senador Fulbright, na conferência
    "The University in América", Santa Barbara Center (maio de 1966).
  • 3
    "The Moral Un-Neutrality of Science", in:
    Science (27 de janeiro de 1961), p. 257.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2009
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