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Carta de Marin Mersenne a Nicolas-Claude Fabri de Peiresc em Aix

Letter from Marin Mersenne to Nicolas-Claude Fabri de Peiresc in Aix

DOCUMENTOS CIENTÍFICOS

Carta 11 11 Essa carta encontra-se em Mersenne, 1932, 4, p. 267-8. de Marin Mersenne a Nicolas-Claude Fabri de Peiresc 12 12 Peiresc (1580-1637) foi um dos grandes integrantes do sistema de patronato no século XVII, mantendo estreita relação principalmente com Grotius, Naudé, Campanella, Mersenne, Galileu e Gassendi. É importante ressaltar o forte vínculo entre Gassendi e Peiresc, o que fará com que o primeiro publique em 1641 uma biografia de seu patrono e amigo: De Nicoli Claudii Fabrici de Peiresc, Senatoris Aquisextiensis Vita. Seu intenso interesse pela ciência e, por outro lado, sua importância no intercâmbio científico, fazem de Peiresc uma importante referência no contexto social e político do período (cf. Sarasohn, 1993; Chapin, 1957 e Miller, 2000). em Aix

Letter from Marin Mersenne to Nicolas-Claude Fabri de Peiresc in Aix

Senhor,

Eu vos envio os três pequenos tratados13 13 Os tratados aos quais Mersenne se refere são justamente aqueles publicados em 1634. A edição feita pela editora Fayard, publicada em 1985, reúne os cinco tratados com o título Questions inouyes. Todavia, é importante lembrar que Mersenne publica-os em dois volumes. O primeiro, composto pelas Questions inouyes e pelas Questions harmoniques, é impresso no final de 1633. O segundo, do qual fazem parte as Questions théologiques, morales et mathématiques, Les mechaniques de Galilée e Les préludes de l'harmonie universelle, é publicado no início de 1634. De acordo com o teor da carta aqui traduzida, é bastante provável que Mersenne esteja referindo-se aos tratados publicados no início de 1634 e não àqueles impressos no final de 1633. que fiz, a fim de que possais receber algum contentamento entre vossas ocupações mais sérias.

Eu vos peço que envieis ao Monsenhor Doni,14 14 Trata-se de Jean-Baptiste Doni. É Doni que obtém para Mersenne a permissão do Index para a publicação dos tratados aqui referidos (cf. Mersenne, 1932, 4, p. 268, n. 2). quando por alguma ocasião o encontrar, aqueles nos quais seu nome está. Neles, as Questions morales, mathematiques etc. são diferentes das vossas, uma vez que existem razões para o movimento da Terra sem refutação, para as quais eu coloquei a sentença dos cardeais como remédio, como vós vereis. Mas uma vez que me foi dito que houve algum barulho entre os doutores da Sorbonne em virtude das razões que eu não recusei, suprimi todas as questões as quais se poderia formalizar, e coloquei outras que vós vereis no livro para o Monsenhor Doni, que serão mais próprias para Roma.15 15 Este trecho da carta contém dois elementos importantíssimos. Em primeiro lugar, Mersenne reconhece que existem razões sem refutação em favor do movimento terrestre. Tal afirmação se opõe justamente àquilo que o autor afirma em uma passagem da carta a Rebours discutida na nota 8. Com efeito, nela podemos observar claramente que Mersenne não se compromete com a verdade da hipótese copernicana; mais do que isto, ele diz que não existem razões suficientemente fortes para asseverar a verdade da hipótese em questão. Todavia, e aqui podemos provavelmente encontrar a raiz do problema, Mersenne afirma, nesse mesmo momento da carta a Peiresc, que suprimiu as questões diretamente relacionadas com a hipótese em jogo (ou seja, com a hipótese do movimento terrestre), as quais poderiam gerar algum tipo de acusação. Além disso, ele informa Peiresc de que introduziu a sentença dos cardeais (a saber, a sentença contra Galileu) como atenuante às razões que ele mesmo não havia recusado. Ora, tudo isso nos indica a forte influência dos aspectos teológicos e religiosos na postura adotada pelo autor. É em virtude da autoridade eclesiástica que Mersenne expurga de alguns exemplares as questões 34, 37, 44 e 45 das Questions theologiques, substituindo-as por outras nas quais não encontramos qualquer referência ao copernicanismo que pudesse ser tomada como uma defesa da verdade de tal sistema. Originalmente, essas questões têm os seguintes enunciados: questão 34, "Que razões temos para provar, e para persuadir do movimento da Terra, em torno de seu eixo, no período de vinte e quatro horas?"; questão 37, "Que razões podemos ter para crer que a Terra se move em torno do Sol, e que ele está no centro do mundo?"; questão 44, "O que há de mais notável nos Diálogos que Galileu fez sobre o movimento da Terra? Esta questão contém todo o seu primeiro Diálogo"; questão 45, "O que há de notável no segundo Diálogo de Galileu.". Os enunciados das questões que substituem as originais são os seguintes: questão 34, "Saber se podemos estabelecer uma nova ciência dos sons, que seja nomeada psofologia ou com outro nome que se queira."; questão 37, "Saber quanto se deve estar elevado sobre a superfície da Terra, ou sobre outros corpos que se queira, maiores ou menores, para ver um espaço dado."; questão 44, "Qual deve ser a força da voz para ser transportada e estendida até a Lua, ao Sol e ao firmamento, seja naturalmente ou por artifício?"; questão 45, "É permitido ensinar nas escolas que a Terra é imóvel?". Ora, como se vê, há uma clara limpeza do terreno. Ao substituir as questões 34, 37, 44 e 45, Mersenne retira das Questions theologiques os elementos a partir dos quais ele poderia, em princípio, receber algum tipo de censura. É importante notar que a questão que substitui a de número 45 não se afasta totalmente da astronomia e da cosmologia. Contudo, a posição assumida pelo autor nos indica a filiação com um instrumentalismo voltado para o expediente de "salvar os fenômenos". Com efeito, nela lê-se o seguinte: "Mas é preciso enfatizar que não é intenção da censura impedir o cálculo dos eclipses, e dos astros pelo método de Copérnico, visto que esta operação não causa qualquer dano à Escritura, e que ela não se opõe a seu julgamento." (Mersenne, 1985 [1634], p. 425). A carta remetida a Peiresc permite, portanto, compreender a natureza e as razões do expurgo em questão: a decisão de Mersenne é um claro resultado de seus compromissos religiosos e da hierarquia eclesiástica à qual ele estava submetido. Nesse sentido, acredito que é justamente em virtude de tais motivações que podemos encontrar alguma justificativa para a hesitação de Mersenne em defender clara e abertamente a verdade do sistema copernicano. Contudo, se não vos agradar de vê-las ali, enviá-las-ei separadas.

Além disso, nada envio ao Monsenhor Gassendi,16 16 Nesse momento Gassendi encontrava-se em Aix, juntamente com Peiresc. uma vez que ele, estando sempre convosco, poderá lê-los e examinar atentamente o que digo dele seriamente em um corolário inteiro, página 66 dos Préludes de l'harmonie.17 17 A passagem aludida por Mersenne refere-se ao terceiro corolário da quinta proposição da segunda questão dos Preludes de l'harmonie. A segunda questão é dedicada ao exame de todos os princípios da astrologia judiciária. Na quinta proposição, Mersenne defende que as regras da astrologia judiciária não permitem predizer que tipo de influência os astros poderiam ter na determinação do caráter ou do temperamento dos homens. O corolário, por sua vez, é um elogio ao trabalho desenvolvido por Gassendi com respeito à física, mais precisamente, à recuperação do atomismo presente em Epicuro (cf. Mersenne, 1985 [1634], p. 562).

De qualquer modo, receba tudo como daquele que vos honra como nenhum outro e que é vosso amado servidor,

28 de Julho de 1634

Mínimo.

Notas

Traduzido do original em francês por Paulo Tadeu da Silva

  • 11
    Essa carta encontra-se em Mersenne, 1932, 4, p. 267-8.
  • 12
    Peiresc (1580-1637) foi um dos grandes integrantes do sistema de patronato no século XVII, mantendo estreita relação principalmente com Grotius, Naudé, Campanella, Mersenne, Galileu e Gassendi. É importante ressaltar o forte vínculo entre Gassendi e Peiresc, o que fará com que o primeiro publique em 1641 uma biografia de seu patrono e amigo:
    De Nicoli Claudii Fabrici de Peiresc, Senatoris Aquisextiensis Vita. Seu intenso interesse pela ciência e, por outro lado, sua importância no intercâmbio científico, fazem de Peiresc uma importante referência no contexto social e político do período (cf. Sarasohn, 1993; Chapin, 1957 e Miller, 2000).
  • 13
    Os tratados aos quais Mersenne se refere são justamente aqueles publicados em 1634. A edição feita pela editora Fayard, publicada em 1985, reúne os cinco tratados com o título
    Questions inouyes. Todavia, é importante lembrar que Mersenne publica-os em dois volumes. O primeiro, composto pelas
    Questions inouyes e pelas
    Questions harmoniques, é impresso no final de 1633. O segundo, do qual fazem parte as
    Questions théologiques, morales et mathématiques,
    Les mechaniques de Galilée e
    Les préludes de l'harmonie universelle, é publicado no início de 1634. De acordo com o teor da carta aqui traduzida, é bastante provável que Mersenne esteja referindo-se aos tratados publicados no início de 1634 e não àqueles impressos no final de 1633.
  • 14
    Trata-se de Jean-Baptiste Doni. É Doni que obtém para Mersenne a permissão do
    Index para a publicação dos tratados aqui referidos (cf. Mersenne, 1932, 4, p. 268, n. 2).
  • 15
    Este trecho da carta contém dois elementos importantíssimos. Em primeiro lugar, Mersenne reconhece que existem razões sem refutação em favor do movimento terrestre. Tal afirmação se opõe justamente àquilo que o autor afirma em uma passagem da carta a Rebours discutida na nota 8. Com efeito, nela podemos observar claramente que Mersenne não se compromete com a verdade da hipótese copernicana; mais do que isto, ele diz que não existem razões suficientemente fortes para asseverar a verdade da hipótese em questão. Todavia, e aqui podemos provavelmente encontrar a raiz do problema, Mersenne afirma, nesse mesmo momento da carta a Peiresc, que suprimiu as questões diretamente relacionadas com a hipótese em jogo (ou seja, com a hipótese do movimento terrestre), as quais poderiam gerar algum tipo de acusação. Além disso, ele informa Peiresc de que introduziu a sentença dos cardeais (a saber, a sentença contra Galileu) como atenuante às razões que ele mesmo não havia recusado. Ora, tudo isso nos indica a forte influência dos aspectos teológicos e religiosos na postura adotada pelo autor. É em virtude da autoridade eclesiástica que Mersenne expurga de alguns exemplares as questões 34, 37, 44 e 45 das
    Questions theologiques, substituindo-as por outras nas quais não encontramos qualquer referência ao copernicanismo que pudesse ser tomada como uma defesa da verdade de tal sistema. Originalmente, essas questões têm os seguintes enunciados: questão 34, "Que razões temos para provar, e para persuadir do movimento da Terra, em torno de seu eixo, no período de vinte e quatro horas?"; questão 37, "Que razões podemos ter para crer que a Terra se move em torno do Sol, e que ele está no centro do mundo?"; questão 44, "O que há de mais notável nos
    Diálogos que Galileu fez sobre o movimento da Terra? Esta questão contém todo o seu primeiro
    Diálogo"; questão 45, "O que há de notável no segundo
    Diálogo de Galileu.". Os enunciados das questões que substituem as originais são os seguintes: questão 34, "Saber se podemos estabelecer uma nova ciência dos sons, que seja nomeada psofologia ou com outro nome que se queira."; questão 37, "Saber quanto se deve estar elevado sobre a superfície da Terra, ou sobre outros corpos que se queira, maiores ou menores, para ver um espaço dado."; questão 44, "Qual deve ser a força da voz para ser transportada e estendida até a Lua, ao Sol e ao firmamento, seja naturalmente ou por artifício?"; questão 45, "É permitido ensinar nas escolas que a Terra é imóvel?". Ora, como se vê, há uma clara limpeza do terreno. Ao substituir as questões 34, 37, 44 e 45, Mersenne retira das
    Questions theologiques os elementos a partir dos quais ele poderia, em princípio, receber algum tipo de censura. É importante notar que a questão que substitui a de número 45 não se afasta totalmente da astronomia e da cosmologia. Contudo, a posição assumida pelo autor nos indica a filiação com um instrumentalismo voltado para o expediente de "salvar os fenômenos". Com efeito, nela lê-se o seguinte: "Mas é preciso enfatizar que não é intenção da censura impedir o cálculo dos eclipses, e dos astros pelo método de Copérnico, visto que esta operação não causa qualquer dano à
    Escritura, e que ela não se opõe a seu julgamento." (Mersenne, 1985 [1634], p. 425). A carta remetida a Peiresc permite, portanto, compreender a natureza e as razões do expurgo em questão: a decisão de Mersenne é um claro resultado de seus compromissos religiosos e da hierarquia eclesiástica à qual ele estava submetido. Nesse sentido, acredito que é justamente em virtude de tais motivações que podemos encontrar alguma justificativa para a hesitação de Mersenne em defender clara e abertamente a verdade do sistema copernicano.
  • 16
    Nesse momento Gassendi encontrava-se em Aix, juntamente com Peiresc.
  • 17
    A passagem aludida por Mersenne refere-se ao terceiro corolário da quinta proposição da segunda questão dos
    Preludes de l'harmonie. A segunda questão é dedicada ao exame de todos os princípios da astrologia judiciária. Na quinta proposição, Mersenne defende que as regras da astrologia judiciária não permitem predizer que tipo de influência os astros poderiam ter na determinação do caráter ou do temperamento dos homens. O corolário, por sua vez, é um elogio ao trabalho desenvolvido por Gassendi com respeito à física, mais precisamente, à recuperação do atomismo presente em Epicuro (cf. Mersenne, 1985 [1634], p. 562).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
    Universidade de São Paulo, Departamento de Filosofia Rua Santa Rosa Júnior, 83/102, 05579-010 - São Paulo - SP Brasil, Tel./FAX: (11) 3726-4435 - São Paulo - SP - Brazil
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