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Algumas relações entre a mecânica de Roberval e a acústica de Mersenne

Resumos

Este artigo apresenta algumas relações entre a mecânica de Gilles Personne de Roberval e a acústica de Marin Mersenne, mostrando, por um lado, como a primeira proporciona fundamentos importantes para a compreensão da relação entre o movimento de uma corda e a tensão à qual ela está submetida e, por outro lado, em que sentido a acústica contribui para os estudos sobre a mecânica.

Mecânica; Acústica; Filosofia mecânica; Ciência moderna; Roberval; Mersenne


This article presents some relationships between Gilles Personne de Roberval´s mechanics and Marin Mersenne´s acoustics, showing, for one side, how the first provides important foundations to understand the relationship between the motion of a string and the tension to which it is submitted and, for another side, in what sense acoustics contributes to mechanical studies.

Mechanics; Acoustics; Mechanical philosophy; Modern science; Roberval; Mersenne


ARTIGOS

Algumas relações entre a mecânica de Roberval e a acústica de Mersenne

Paulo Tadeu da Silva

Professor do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Brasil. paulotadeu@uesc.br

RESUMO

Este artigo apresenta algumas relações entre a mecânica de Gilles Personne de Roberval e a acústica de Marin Mersenne, mostrando, por um lado, como a primeira proporciona fundamentos importantes para a compreensão da relação entre o movimento de uma corda e a tensão à qual ela está submetida e, por outro lado, em que sentido a acústica contribui para os estudos sobre a mecânica.

Palavras-chave: Mecânica. Acústica. Filosofia mecânica. Ciência moderna. Roberval. Mersenne.

ABSTRACT

This article presents some relationships between Gilles Personne de Roberval´s mechanics and Marin Mersenne´s acoustics, showing, for one side, how the first provides important foundations to understand the relationship between the motion of a string and the tension to which it is submitted and, for another side, in what sense acoustics contributes to mechanical studies.

Keywords: Mechanics. Acoustics. Mechanical philosophy. Modern science. Roberval. Mersenne.

I

No início do décimo terceiro capítulo de Les origines de la statique, Pierre Duhem afirma que, durante o primeiro terço do século XVII, nenhum trabalho relevante sobre a estática fora publicado na França. Segundo Duhem, o ano de 1634 é um marco na história dessa ciência naquele país, em virtude da publicação de três livros que revelaram aos matemáticos franceses as descobertas mecânicas produzidas em outros países do mundo europeu (cf. Duhem, 1991, p. 202). Os três livros indicados por Duhem são os seguintes: 1) a tradução francesa, feita por Albert Girard, dos Mathematical works, de Simon Stevin; 2) a tradução francesa de Mersenne do tratado Le mecaniche, de Galileu Galilei e 3) o Cours mathématique, de Pierre Hérigone. Não obstante a importância dessas obras para o desenvolvimento da mecânica na França, pretendo considerar neste texto apenas alguns aspectos relacionados com os impactos da mecânica na acústica desenvolvida por Marin Mersenne.

Notadamente conhecido por sua cooperação científica com diversos autores de sua época, Mersenne, principalmente a partir de 1634, apresenta-se como um dos grandes representantes do mecanicismo que então se desenvolvia. Uma das consequências da confluência entre a cooperação científica e a adoção do modelo mecanicista pode ser notada no interesse de Mersenne pela mecânica. Não parece ser outro o motivo que levou o autor a publicar, em 1634, a tradução francesa do tratado de mecânica de Galileu Galilei, intitulada Les mechaniques de Galilée (As mecânicas de Galileu) e, em 1636, um tratado de mecânica de Gilles Persone de Roberval, intitulado Traité de méchanique; des poids soustenus par des puissances sur les plans inclinez à l'horizon; des puissances qui soutiennent un poids suspendu à deux chordes (Tratado de mecânica [sobre] os pesos suspensos por forças sobre planos inclinados ao horizonte; das forças que sustentam um peso suspenso por duas cordas). É importante notar que o ano de 1634 representa um marco importante no pensamento de Mersenne. Isso não se deve apenas às publicações que Duhem indica, mas também a uma guinada na trajetória intelectual do autor (cf. Lenoble, 1943). De fato, é precisamente em 1634 que Mersenne publica um con-junto de textos, a partir dos quais podemos perceber com muita clareza a adoção do modelo mecanicista que marcará suas obras posteriores, principalmente seus trabalhos sobre a acústica e a óptica. A hipótese que inspira as observações que apresento consiste na relação entre os estudos mecânicos e a concepção mecanicista do som desenvolvida por Mersenne no tratado Harmonie universelle (Harmonia universal), de 1636, no qual o texto de Roberval comparece no final do terceiro livro.

A publicação desse tratado de mecânica juntamente com os três primeiros livros da Harmonia universal requer alguns esclarecimentos. Inicialmente, Mersenne pretendia inserir o texto de Roberval depois da quinta proposição do terceiro livro, dedicado ao estudo "do movimento, da tensão, da força e de outras propriedades das cordas harmônicas e de outros corpos" (Mersenne, 1975 [1636], p. 157). Na advertência, que segue após o corolário da quinta proposição, Mersenne afirma que antes de desenvolver alguns aspectos concernentes aos sons, ao peso e outras qualidades sonoras das cordas e de outros corpos, ele apresentará o tratado de mecânica de Roberval, uma vez que o mesmo contém um discurso sobre a força necessária para "sustentar, puxar ou empurrar um peso dado sobre todos os tipos de planos inclinados" (Mersenne, 1975 [1636], p. 168). Contudo, Mersenne prossegue o texto com a sexta proposição, informando que não introduziu o tratado de Roberval após a quinta proposição, uma vez que o mesmo era mais longo do que ele acreditava, reservando-lhe, então, um livro particular.

O tratado de Roberval é composto por uma definição, cinco axiomas e três proposições. A definição e os cinco axiomas que compõem a parte inicial do texto apresentam alguns fundamentos que serão utilizados nas demonstrações das três proposições. Por meio dessa definição e desses axiomas, Roberval procura explicar o que deve ser entendido por linha de direção de uma potência, de um peso ou de uma força, qual a relação entre uma força e a superfície a ela oposta e, finalmente, quais as relações entre peso, distância e linha de direção. As três proposições, por sua vez, têm em vista basicamente a determinação da força ou da potência capaz de sustentar um peso disposto sobre um plano inclinado ou suspenso por duas cordas. O terceiro livro da Harmonia universal é dedicado, entre outras coisas, ao estudo do movimento das cordas e dos sons por elas produzidos, levando em consideração o comprimento, a tensão e os pesos ou forças a elas aplicados. É justamente nesse momento que Mersenne estabelece algumas propriedades fundamentais de sua acústica, em franca consonância com os estudos sobre a natureza do som apresentados no primeiro livro dessa mesma obra. Isso posto, vejamos agora algumas relações entre a mecânica de Roberval e a teoria do movimento das cordas desenvolvida por Mersenne.

II

Durante a primeira metade do século XVII, diversos autores voltaram-se para os estudos sobre a música e a acústica, dentre os quais Galileu, Beeckman, Descartes e, principalmente, Mersenne são referências obrigatórias. Em todos esses autores, encontramos um mesmo tipo de explicação sobre o comportamento das cordas vibrantes, posteriormente conhecida como a teoria da coincidência da consonância. Como afirma Cohen:

Em sua forma mais simples, tal como exposta por Galileu, a teoria da coincidência da consonância caracteriza-se como segue. O som é concebido como uma sucessão de "batidas", ou "percussões", as quais são supostamente transmitidas de um modo muito similar ao que ocorre em uma lagoa tranquila quando uma pedra é arremessada dentro dela. As batidas são produzidas pela vibração de uma corda ou outro instrumento musical. Ora, todo intervalo musical é caracterizado por uma sucessão padrão definida de tais batidas (Cohen, 1985, p. 359).

Cohen está referindo aqui à parte final da primeira jornada dos Discorsi (1631), de Galileu Galilei, na qual ele discute alguns problemas relativos aos intervalos musicais. Essa mesma concepção de som está presente no tratado Harmonia universal, a partir da qual Mersenne explica uma série de propriedades do som e, já no terceiro livro do referido tratado, apresenta outro conjunto de características, relações e propriedades das cordas vibrantes e dos tubos. É nesse contexto que Mersenne demonstra, por exemplo, que o som produzido por uma corda não pode ser explicado apelando-se exclusivamente para os diferentes comprimentos de uma corda, mas é preciso considerar outros elementos físicos igualmente importantes, a saber, a espessura da corda, a tensão à qual ela está submetida e o material do qual é feita. Não pretendo apresentar neste momento maiores considerações sobre as relações entre o comprimento de uma corda e o som produzido por ela, tal como estabelecido por Mersenne ao longo das primeiras proposições do terceiro livro da Harmonia universal (cf. Silva, 1999; 2007). O que importa considerar aqui diz respeito à "ação" dos pesos aplicados às cordas, o que significa considerar a tensão à qual as mesmas estão submetidas.

O som produzido por uma corda é resultado de uma série de fatores, dentre os quais está a tensão. A fim de obter um determinado som, dada uma corda com tamanho e espessura previamente estabelecidos, é necessário aplicar à mesma o peso (ou a força) que produzirá a tensão desejada. Assim, é possível notar aqui as diferentes relações entre os três componentes físicos presentes na operação em questão. Tais relações são consideradas por Mersenne em pelo menos duas proposições do terceiro livro, as proposições XIV e XV, cujos enunciados são, respectivamente, os seguintes:

Podemos saber o comprimento das cordas, e a diferença de seus sons, pela diferença dos pesos suspensos às ditas cordas, e a diferença dos pesos que estão suspensos às cordas, pela diferença dos sons, e pelo comprimento das cordas [...]. Determinar por que é preciso um peso maior, ou uma força maior para colocar em uníssono uma corda dupla em comprimento, do que para colocar a corda dupla em espessura; e se o uníssono é uma prova da igual tensão de todos os tipos de cordas (Mersenne, 1975 [1636], p. 184, 189).

Vejamos alguns aspectos dessas duas proposições.

A primeira delas tem uma função "operativa", ou seja, ela permite, por meio de uma lei e de uma tabela, na qual Mersenne faz a correspondência entre o peso, o intervalo produzido e a razão matemática dos intervalos musicais, conhecer o comprimento, o som ou o peso atribuído às cordas dadas. A lei é enunciada por Mersenne no terceiro parágrafo da proposição, no qual encontramos o seguinte:

Ora, esta proposição tem duas partes; mas visto que a segunda é a conversa da primeira, uma mesma prova servirá para todas as duas. Eu afirmo, portanto, que a razão de cada intervalo da música, sendo duplicado, fornece o peso, pela gravidade do qual a corda, sendo tendida, produz o som que se deseja, o que eu explico por exemplos (Mersenne, 1975 [1636], p. 184).

Nos exemplos que seguem o enunciado da lei, Mersenne toma os intervalos de oitava e quinta. Como sabemos, a oitava, desde os antigos, é representada pela relação 1:2. Desse modo, se tomamos duas cordas (submetidas a uma mesma tensão e com uma mesma espessura) segundo essa relação matemática, obteremos como resultado a oitava. Ora, tal relação não é, contudo, a mesma que expressa aquela existente entre os pesos que devem ser aplicados a duas cordas de mesmo comprimento e espessura para a produção do mesmo intervalo. Aplicando a lei enunciada por Mersenne, notamos que, nesse último caso, a relação não é de 1 para 2, mas de 1 para 4. Assim, como mostra o autor no primeiro exemplo, se desejamos saber qual é o peso que deve ser aplicado a uma corda a fim de que ela soe uma oitava acima, é preciso, em primeiro lugar, conhecer a tensão à qual ela está submetida. Para tanto, é preciso saber qual foi o peso aplicado à corda. Feito isso, basta então aplicar a lei geral. Portanto, de acordo com Mersenne, supondo que o peso aplicado originalmente a uma dada corda seja de quatro libras, será necessário aplicar um peso de dezesseis libras a fim de obter o resultado esperado.

Com base nessa lei, Mersenne apresenta ao leitor uma tabela contendo, como dito anteriormente, a correspondência entre os pesos, os intervalos e as razões que definem cada um desses intervalos. Como podemos notar, os valores constantes na primeira coluna da tabela poderiam indicar alguma inconsistência com respeito aos dois casos anteriormente discutidos pelo autor (o da oitava e o da quinta). Nota-se, por exemplo, que o peso a ser aplicado a uma corda para que a mesma produza o intervalo de oitava não é de 16 libras, mas de 24. Contudo, é preciso lembrar que Mersenne, ao apresentar a tabela, informa que tomou como valor de referência 6 libras, que é o peso que está associado ao uníssono. Portanto, é fácil notar que a lei foi devidamente obedecida, uma vez que o peso a ser aplicado à mesma corda para produzir a oitava (supondo evidentemente o peso de referência de 6 libras) é de 24 libras. Além disso, Mersenne adverte: "(...) o que não impede que se tome qualquer outro peso que se queira para marcar o uníssono da corda, ou o primeiro som ao qual os outros são comparados" (Mersenne, 1975 [1636], p. 185). Outro aspecto não menos importante diz respeito ao procedimento por meio do qual Mersenne chegou aos valores por ele descritos, "a tabela que segue contém os pesos que permitem ajustar a corda para todos os intervalos harmônicos da oitava, segundo a experiência que fiz na presença de vários" (p. 185).

Enquanto a proposição XIV apresenta a lei que regula a aplicação de pesos às cordas, a proposição XV estabelece a razão em virtude da qual é preciso aplicar uma força maior para colocar uma corda duplamente mais longa em uníssono, do que aquela necessária para produzir o mesmo efeito, quando a corda é duplamente mais grossa.

Ora, é preciso um peso quádruplo para colocar em uníssono a corda dupla em comprimento, uma vez que a corda dupla em comprimento tem duas coisas que é preciso recompensar, a saber, o duplo comprimento e o dobro de ar que é agita-do. Ora, é preciso um peso duplo para recompensar o dobro de ar e depois um peso duplo para recompensar o comprimento duplo, consequentemente é preciso um peso quádruplo para a compensação de um e de outro (Mersenne, 1975 [1636], p. 189).

Assim, como afirma Mersenne no parágrafo seguinte, não encontramos a mesma situação quando temos cordas de espessuras diferentes, pois, nesse caso, há apenas um elemento a ser compensado: a espessura. Nessa segunda situação, a quantidade de ar a ser agitada ou movida é exatamente a mesma. A prova fornecida por Mersenne está baseada nas propriedades dos cilindros, tendo em vista as relações entre suas bases, alturas e diâmetros. Concebendo a corda como um cilindro, o autor mostra que a corda mais grossa não possui o mesmo diâmetro que a corda mais longa e, portanto, as concavidades de ar por elas movimentadas são diferentes.

As razões apontadas por Mersenne nesse momento o levam ao segundo problema indicado no enunciado da proposição, relacionado com a igualdade da tensão de diferentes cordas e, consequentemente, com o problema da resistência das mesmas. A segunda parte da proposição XV é inteiramente dedicada a estes dois aspectos. Entretanto, ainda que Mersenne apresente algumas soluções para as duas questões, notamos claramente as dificuldades com as quais ele se deparou.

A fim de demonstrar a igualdade da tensão de duas cordas, Mersenne recorre a dois expedientes diferentes. No primeiro deles, o autor leva em consideração o som produzido no caso em questão, ou seja, o uníssono. Tal escolha justifica-se porque o uníssono é tomado como uma medida padrão ou um valor de referência. No segundo, Mersenne recorre ao grau de resistência da corda quando tocada, ou a sua maior ou menor resistência em ceder, quando se aplica um determinado peso no meio da corda.

Portanto, desses dois expedientes, Mersenne afirma que a igualdade da tensão pode ser concluída com segurança a partir da igualdade do som produzido pela corda, o que ele obtém por meio de dois casos; no primeiro, toma-se cordas de mesma matéria, comprimento e espessura e, no segundo, as cordas apresentam espessuras diferentes. No primeiro caso, é preciso concluir a igualdade, pois, como afirma Mersenne: "(...) se a corda é mais longa, ou mais grossa, ela deve ser tendida mais fortemente do que a mais curta, ou a mais delicada, para produzir o uníssono com ela" (1975 [1636], p. 190). No segundo caso, a igualdade é inferida tanto em virtude do som produzido quanto pela resistência da corda, ainda que nessa situação as dificuldades sejam maiores do que na anterior:

Quanto à corda dupla em espessura, encontro mais dificuldade, pois a experiência não faz ver tão evidentemente que ela seja igual ou desigualmente tendida por duas forças, quando a subdupla em espessura é tendida por uma força, ainda que seja preciso, ao que parece, concluir pela igual tensão, não somente porque elas estão em uníssono, mas porque a dupla em espessura resiste duplamente à força, de maneira que o uníssono mostra a igual tensão, não somente entre as cordas iguais em todas as coisas, mas também entre as cordas desiguais em espessura, contanto que elas sejam iguais em comprimento (Mersenne, 1975 [1636], p. 190).

Entretanto, no parágrafo seguinte, Mersenne relata outra experiência em que pesos diferentes são aplicados a cordas de espessuras diferentes (na mesma proporção considerada anteriormente, isto é, de 2 para 1), a partir da qual são obtidos resultados diferentes:

Eu experimentei que o meio da corda dupla em espessura tendida com um peso igual, é muito mais dura e mais forte, e resiste mais do que o meio da corda subdupla (Mersenne, 1975 [1636], p. 190).

Tudo isso faz com que Mersenne conclua, nesse mesmo parágrafo, o seguinte:

(...) o que mostra evidentemente que não devemos julgar a igualdade da tensão pela igualdade da dureza da corda, nem pela dificuldade que encontramos para fazê-la curvar (Mersenne, 1975 [1636], p. 191).

Não obstante tudo isso, quando tomamos cordas de comprimentos diferentes e igual espessura, submetidas a uma força igual de uma mesma cravelha, podemos concluir que a razão de suas flexibilidades ou durezas segue a mesma razão de seus comprimentos (cf. Mersenne, 1975 [1636], p. 191). Como afirma Mersenne, a corda dupla em comprimento é subdupla em dureza e a subdupla em comprimento é dupla em dureza e resistência.

Os problemas investigados por Mersenne nessas duas proposições estão evidentemente associados ao tema que percorre boa parte do terceiro livro da Harmonia universal, a saber, explicar os movimentos realizados por uma corda, os sons por ela produzidos e as causas que determinam os efeitos que observamos nesses dois contextos. Contudo, a relação entre peso, tensão e som resultante mostra que as investigações a esse respeito não estão circunscritas apenas ao estudo da natureza do som. Encontramos aqui o vínculo entre a acústica e a mecânica. É precisamente esse aspecto que nos obriga a considerar a importância de alguns elementos presentes no tratado de mecânica de Roberval.

III

As noções de peso e de força desempenham um papel central nas situações discutidas por Mersenne, bem como naquelas consideradas por Roberval. No primeiro caso, isso é bastante evidente levando-se em consideração a importância do peso (ou da força) para a determinação da tensão a qual uma corda está submetida e, consequentemente, para o som que ela produz. No segundo caso, são os conceitos de peso, de força, ou ainda, de potência, que comparecem como elementos fundamentais para o desenvolvimento das três proposições do Traité de mechanique (Tratado de mecânica), de Roberval. Isso é de tal modo evidente, que os cinco axiomas que antecedem as referidas proposições são inteira ou parcialmente dedicados a esses três conceitos; seja em virtude das relações entre pesos ou potências diferentes, seja por conta dos efeitos que pesos diferentes têm sobre o estado de equilíbrio de uma balança. Tendo em vista os limites da presente exposição, pretendo considerar apenas certos aspectos presentes em alguns dos axiomas do tratado de Roberval, os quais estão relacionados com os problemas abordados até agora.

O axioma II afirma: "É preciso tanta força ou potência para empurrar, quanto para puxar, resistir, deter, apoiar, sustentar, ou para reter, contanto que seja pelas mesmas distâncias e pelas mesmas linhas de direção" (Roberval apud Mersenne, 1975 [1636], p. 2).1 1 Este é o primeiro momento em que Roberval utiliza o termo força ( force). Note-se que o termo potência ( puissance) é tomado como sinônimo de força, o que parece ser realmente a intenção do autor, se levarmos em consideração não apenas o contexto em questão, mas também aquilo que Léon Auger afirma, apoiado na carta de Roberval a Fermat, datada de 11 de outubro de 1636: "Ele toma a palavra potência como sinônimo de força" (Auger, 1962, p. 78).

No axioma III encontramos o seguinte: "Em qualquer lugar que empreguemos uma mesma potência na sua linha de direção, ela puxará ou empurrará igualmente. O mesmo ocorrerá com um peso" (Roberval apud Mersenne, 1975 [1636], p. 2).

Mais adiante, no Axioma IV, temos o que segue:

Pesos iguais e potências iguais puxando, ou empurrando por distâncias iguais, puxarão ou empurrarão igualmente, contanto que as linhas de direção dos pesos e das potências estejam semelhantemente inclinadas (isto é, que elas façam ângulos iguais) com as distâncias pelas quais puxam ou empurram os pesos e as potências. E isso é verdadeiro, quer os pesos puxem um contra o outro, quer as potências, uma contra a outra, quer os pesos, contra as forças (Roberval apud Mersenne, 1975 [1636], p. 3).

É importante lembrar que esses três axiomas dependem da definição apresentada no início do Tratado de mecânica, na qual o autor define o que entende por "linha de direção":

A linha de direção de um peso, ou de uma potência, é uma linha reta traçada do centro de gravidade do peso, ou do centro da potência, em direção ao lugar ao qual o peso ou a potência aspira, seja puxando, empurrando ou resistindo, seja movendo livremente, seja escoando e deslizando (Roberval apud Mersenne, 1975 [1636], p. 1).

A partir deste conceito, encontramos, nos axiomas acima referidos, o estabelecimento de três princípios. O axioma II estabelece que a mesma força, potência ou peso realiza ações diferentes (por exemplo, puxar ou empurrar). O axioma III mostra que o efeito produzido por uma potência ou por um peso independe do local de sua aplicação, desde que se respeite a mesma linha de direção (a fim de esclarecer o que está em jogo, Roberval utiliza um exemplo no qual um mesmo peso é disposto em diferentes pontos de uma corda presa a uma balança). O axioma IV, por sua vez, afirma a igualdade dos efeitos produzidos, quando as forças, as distâncias e as linhas de direção são iguais. O estabelecimento desses três princípios é fundamental para o desenvolvimento das três proposições que compõem o restante do tratado, pois nelas Roberval considera as seguintes situações:

(1) Dado um plano inclinado ao horizonte e conhecido o seu ângulo de inclinação, encontrar uma potência, a qual puxando ou empurrando por uma linha de direção paralela ao plano inclinado, sustente um peso dado sobre o mesmo plano;

(2) Encontrar o mesmo quando a linha de direção, pela qual a potência puxa ou empurra, não é paralela ao plano inclinado;

(3) Encontrar duas potências que possam sustentar um peso dado, suspenso por duas cordas dadas (Roberval apud Mersenne, 1975 [1636], p. 7).

Podemos notar nos três axiomas o uso de um elemento cujas indicações comparecem de três formas: peso, potência ou força. Esse elemento desempenha um papel fundamental nas três proposições do Tratado de mecânica de Roberval. É preciso lembrar ainda que o mesmo elemento possui um papel importantíssimo nas duas proposições de Mersenne anteriormente discutidas. Como vimos, é a partir dos pesos ou das forças aplicadas às cordas vibrantes que Mersenne estabelece a lei que regula a relação entre peso, tensão e som resultante. Dentre os três axiomas apresentados por Roberval, o quarto é provavelmente o mais importante para os casos investigados por Mersenne. Isso porque, garantidas as condições estabelecidas pelo axioma (isto é, forças, distâncias e linhas de direção iguais), obtemos exatamente os mesmos efeitos. Se, de um lado, isso é aplicado, em Roberval, aos casos contemplados pelas três proposições, por outro, em Mersenne, isso significa que pesos ou forças iguais, aplicadas a cordas de mesmo tamanho e espessura, determinam efeitos iguais. Ao que parece, esse é o princípio mecânico que fundamenta as relações concernentes não somente ao uníssono, mas a todos os intervalos sonoros. É fácil concluir, por exemplo, que se as distâncias são diferentes, os pesos ou as forças aplicadas devem ser evidentemente diferentes, a fim de que se possa garantir o mesmo efeito. Desse modo, se a observância desses axiomas contribui para a compreensão das situações mecânicas discutidas por Roberval, é possível dizer o mesmo com respeito aos sons produzidos pelas cordas vibrantes.

É importante notar ainda outro aspecto que está relacionado com o problema considerado por Mersenne na proposição XV, a saber, a igualdade da tensão. Ao que parece, é nesse momento que encontramos uma contribuição da acústica para os estudos sobre a mecânica. De fato, a garantia da igualdade da tensão não repousa de modo absolutamente seguro naquilo que se observa pela visão, mas naquilo que percebemos pelo ouvido. Pois, como vimos, nem a dureza nem a resistência são indícios suficientes para que se possa concluir a mesma tensão. É somente a partir do som produzido que podemos concluir necessariamente a igualdade ou desigualdade da tensão à qual uma corda está submetida. Portanto, se considerarmos a uniformidade dos efeitos sonoros produzidos por duas cordas teremos, de acordo com aquilo que encontramos em Mersenne, a uniformidade das causas que produzem tais efeitos.

Diante do exposto, talvez seja oportuno lembrar a seguinte afirmação de Peter Dear:

Mersenne realizou a harmonização da mecânica através da mecanização da música. Para ele, a música não era apenas uma das disciplinas do quadrivium, ela foi central para as investigações matemáticas de Mersenne porque forneceu o paradigma de harmonia pelo qual o restante poderia ser desenvolvido e avaliado (Dear, 1988, p. 139).

Se a mecânica de Roberval apresenta contribuições relevantes para os estudos desenvolvidos por Mersenne no campo da acústica, não parece fora de lugar sustentar a importância desses mesmos estudos para a mecânica.

AGRADECIMENTOS. Versões preliminares deste texto foram apresentadas no vi Encontro da AFHIC, em maio de 2008, e no III Seminário de História e Filosofia da Ciência, em agosto de 2008. O presente trabalho contou com o apoio da FAPESB.

  • AUGER, L. Un savant meconnu : Gilles Personne de Roberval, 1602-1675 Paris: Albert Blanchard, 1962.
  • COHEN, H. F. Music as a test-case. Studies in History and Philosophy of Science, 16, 14, p. 351-78, 1985.
  • DEAR, P. Mersenne and the learning of the schools New York: Cornel University Press, 1988.
  • DUHEM, P. M. M. The origins of statics Boston: Kluwer Academic Publishers, 1991.
  • LENOBLE, R. Mersenne ou la naissance du mécanisme Paris: Vrin, 1943.
  • MERSENNE, M. Harmonie universelle Paris: CNRS, 1975 [1636]
  • ROBERVAL, G. P. Divers ouvrages de M. de Roberval Paris: Académie Royale des Sciences, 1693.
  • SILVA, P. T. Mersenne e a teoria da vibração das cordas. Cadernos Espinosanos, 5, p. 65-96, 1999.
  • ______. A harmonia mecanicista de Mersenne. Discurso, 37, p. 75-101, 2007.
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    Este é o primeiro momento em que Roberval utiliza o termo força (
    force). Note-se que o termo potência (
    puissance) é tomado como sinônimo de força, o que parece ser realmente a intenção do autor, se levarmos em consideração não apenas o contexto em questão, mas também aquilo que Léon Auger afirma, apoiado na carta de Roberval a Fermat, datada de 11 de outubro de 1636: "Ele toma a palavra potência como sinônimo de força" (Auger, 1962, p. 78).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Set 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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