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Copernicanismo, autonomia científica e autoridade religiosa em Marin Mersenne

Copernicanism, scientific autonomy and religious authority in Marin Mersenne

DOCUMENTOS CIENTÍFICOS

Copernicanismo, autonomia científica e autoridade religiosa em Marin Mersenne

Copernicanism, scientific autonomy and religious authority in Marin Mersenne

Paulo Tadeu da Silva

Professor doutor do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Santa Cruz. plotdsil@usp.br

A publicação em 1543 do tratado astronômico De revolutionibus orbium caelestium (As revoluções dos orbes celestes) de Copérnico certamente inaugurou um novo período na história da ciência. As hipóteses defendidas pelo autor tiveram, nos anos que se seguiram, mais precisamente na primeira metade do século XVII, o seu impacto mais profundo. O debate acerca da centralidade do Sol e do movimento terrestre alcançou um de seus pontos mais altos justamente oitenta e nove anos após a morte de Copérnico, quando Galileu publicou o Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo tolemaico e copernicano (Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano). O subseqüente julgamento e condenação do físico florentino ainda são pontos de grande interesse, recebendo por parte da comunidade especializada a atenção que merecem. A presente exposição não está circunscrita ao papel de Galileu com respeito ao debate em questão, mas visa apresentar algumas observações que podem contribuir significativamente para os estudos de filosofia e história da ciência. Assim, a fim de cumprir tal tarefa, pretendo levar em conta alguns aspectos presentes em Galileu a fim de contrapô-los àqueles que podemos encontrar em Mersenne, no intuito de construir o panorama a partir do qual se constitui o contexto no qual se inserem as duas cartas aqui traduzidas. A primeira delas, redigida em novembro de 1633, é remetida a Antoine de Rebours; a segunda, escrita em julho de 1634, é enviada a Nicolas-Claude Fabri de Peiresc. Como veremos, esses dois documentos revelam alguns indícios interessantes quanto ao posicionamento de Mersenne frente ao copernicanismo. Para tanto, é preciso levar em consideração quais são as condições em torno das quais as duas cartas são redigidas.

Em 1634, Mersenne publica um conjunto de cinco pequenos tratados intitulado Questions inouyes. Os cinco tratados que compõem a obra em questão são os seguintes: Questions inouyes (Questões inauditas), Questions harmoniques (Questões harmônicas), Questions théologiques, morales e mathématiques (Questões teológicas, morais e matemáticas), Les mechaniques de Galilée (As mecânicas de Galileu) e Les préludes de l'harmonie universelle (Os prelúdios da harmonia universal). Os assuntos abordados por Mersenne ao longo dos cinco tratados são bastante variados e, em virtude do problema que pretendo analisar, não podem receber aqui nem mesmo uma síntese grosseira. O que pretendo colocar em destaque é justamente aquilo que o autor diz sobre as hipóteses aventadas por Copérnico e claramente defendidas por Galileu. É precisamente nesse contexto que pretendo inserir a análise de alguns aspectos presentes nas cartas acima referidas.

As duas hipóteses em jogo dizem respeito à centralidade do Sol e ao movimento de rotação terrestre. Como sabemos, essas hipóteses opõem-se claramente ao sistema geocêntrico defendido por Ptolomeu, ao qual corresponde uma concepção cosmológica do mundo, igualmente presente em Aristóteles. Para ambos, assim como para seus posteriores partidários, a Terra encontra-se imóvel no centro do universo e o Sol é dotado de movimentos ao seu redor. Nesse contexto, o que importa considerar diz respeito ao estatuto epistemológico e cosmológico de tais hipóteses. Segundo Évora, Ptolomeu não pretendia tão somente construir um artifício geométrico que pudesse "salvar as aparências":

Freqüentemente se tem interpretado o sistema astronômico de Ptolomeu, exposto no Almagesto, como apenas um algoritmo geométrico bem elaborado por meio do qual pretendia-se dar conta dos fenômenos observados, ou 'salvar as aparências'. Interpretações deste tipo foram defendidas, por exemplo, por Heath e Duhem.

Thomas Kuhn, comentando a astronomia matemática desenvolvida por astrônomos como Hipparchos e Ptolomeu, pertencentes à tradição helenística, afirma que 'os cientistas helenísticos aceitavam sem nenhum mal-estar aparente uma tácita e parcial separação entre astronomia e cosmologia'.

E embora encontremos alguns tratados cosmológicos de autores helenísticos, como é o caso do Hipotheseis tòn Planomenón de Ptolomeu, segundo Kuhn, este e todos os outros astrônomos helenísticos, quando elaboravam seus sistemas matemáticos para predizer as posições planetárias, não se preocupavam com a realidade física de seus artifícios geométricos.

Nós, por outro lado, acreditamos que não se pode dizer que o próprio Ptolomeu pretendesse apenas construir um artifício geométrico[...] (Évora, 1993a, 1, p. 62-3).

A interpretação sustentada por Évora está fundamentada no capítulo 2 do livro 1 do Almagesto, no qual encontramos a seguinte passagem:

Uma visão da relação geral entre toda a Terra e o todo dos Céus dará início a esta composição. [...] e pretendemos encontrar aquilo que é evidente e aquilo que é aparente, a partir das observações feitas pelos antigos e por nós próprios, e aplicar as conseqüências destes conceitos por meio de demonstrações geométricas. E assim, de uma maneira geral, nós temos que afirmar que o Céu é esférico e se move esfericamente; que a Terra, em forma, é sensivelmente esférica; em posição, está exatamente no meio do Universo tal como um centro geométrico; em magnitude e distância, se comporta como um ponto em relação à esfera das estrelas fixas, não tendo qualquer movimento local (Ptolomeu,1 1 Ptolomeu, The almagest. The great books. Chicago, Encyclopaedia Britannica, 1952, p. 6-7. apud Évora, 1993a, 1, p. 63).

A interpretação proposta por Évora indica que Ptolomeu não tinha o objetivo apenas de "salvar as aparências". Nesse sentido, adotando a perspectiva sugerida por ela, não devemos atribuir a esse autor compromissos meramente instrumentalistas. Pelo contrário, o astrônomo teria adotado um posicionamento claramente realista defendendo, nessa medida, que a Terra encontra-se, de fato, imóvel no centro do universo.

O confronto entre o instrumentalismo e o realismo pode ser igualmente detectado no debate entre Galileu e os tradicionalistas partidários de Ptolomeu e Aristóteles. Mariconda (1993) rejeita determinados aspectos da interpretação de Duhem acerca do físico florentino, discutindo justamente o posicionamento adotado pelo último tendo em vista essas duas posturas. Ainda que um dos principais objetivos de Mariconda seja a de se contrapor à interpretação duhemiana, segundo a qual a postura realista não condiz com aquilo que a ciência pode efetivamente realizar, é possível extrair daí alguns elementos interessantes para a presente exposição.

Em primeiro lugar, ainda que Duhem reconheça em Galileu uma interpretação realista das hipóteses copernicanas, é preciso levar em consideração que tal postura não se encontra associada tão somente ao plano da astronomia. Com efeito, o problema não está circunscrito ao modelo matemático que melhor "salva os fenômenos", mas a uma concepção epistemológica e cosmológica em torno da qual se desenrola o debate entre copernicanos e ptolomaicos. Mais do que isso, tal debate não pode ser entendido apenas nesses termos: devemos considerar os aspectos religiosos e teológicos com os quais tais posturas estão, inevitavelmente, envolvidas. A fim de esclarecer tais aspectos, tomemos as seguintes passagens do referido artigo de Mariconda:

Contudo, mais grave é que Duhem não deixa claro que o realismo de Galileu e dos inquisidores, longe de representar uma preferência meramente pessoal, traduzia na verdade uma preferência epistemológica da época, que era uma conseqüência da exigência de superioridade, e conseqüente autoridade, da teologia sobre a metafísica e a astronomia. A adesão ao método de salvar os fenômenos representava assim a expressão metodológica do compromisso que os tradicionalistas estabeleciam, por um lado, com o princípio de autoridade teológica e, por outro lado, servia para compatibilizar a astronomia de Ptolomeu com a cosmologia e a filosofia natural de Aristóteles [...]

Ao apresentar o modo tradicional de definir a tarefa do astrônomo através da distinção entre suposições primeiras (físicas e cosmológicas) e suposições segundas (astronômicas) e ao mostrar que nesse modo tradicional as únicas hipóteses astronômicas legítimas são aquelas que são fisicamente verdadeiras, isto é, aquelas que estão baseadas em princípios físicos e cosmológicos, Galileu explicita também que a diferença entre copernicanos e ptolomaicos não é uma diferença entre dois artifícios matemáticos destinados a salvar os fenômenos celestes, mas antes entre duas cosmologias, ou seja, entre duas filosofias naturais irreconciliáveis em vista de suas próprias suposições primeiras (Mariconda, 1993, p. 153-8).

Nesses termos, podemos afirmar que a contenda entre copernicanos e ptolomaicos não leva em conta simplesmente compromissos instrumentalistas. O que está em jogo, e este é certamente o cerne de todo o debate, diz respeito ao estatuto cosmológico e epistemológico das hipóteses presentes nos dois sistemas. É inevitável reconhecer que o esforço tradicionalista em defender o geocentrismo está fundamentado em um forte compromisso realista a partir do qual pretende-se afirmar que a Terra se encontra imóvel no centro do universo, o que nos dirige mais uma vez para a linha interpretativa proposta por Évora. Além disso, como afirma Mariconda, a utilização do método de salvar os fenômenos comparece, no interior da estratégia tradicionalista, como uma garantia da autoridade teológica. Por esse motivo, a suposição do movimento terrestre deveria estar circunscrita ao expediente de salvar os fenômenos, ou seja, a hipótese não deve ser tomada como uma descrição real do universo. Galileu, por seu turno, não abre mão de uma visão realista. Entretanto, o problema consiste precisamente na utilização desse expediente na defesa de uma cosmologia contrária àquela advogada pela tradição. Nesse contexto, a questão diz respeito às suposições primeiras segundo as quais a Terra não se encontra no centro do universo e, além disso, se move.

O debate protagonizado por Galileu e os tradicionalistas nos obriga a levar em consideração outro aspecto fundamental. Trata-se do período polêmico no qual o autor se dedica à defesa do copernicanismo:

O período de 22 anos que o Diálogo encerra pode ser claramente caracterizado como polêmico em torno da temática copernicana do movimento da Terra e da centralidade do Sol. Ele representa, com efeito, um deslocamento do eixo da atuação de Galileu que passa das investigações mecânicas, dominantes no período anterior – dito paduano (1592-1610) – e ainda presentes nesse início do período polêmico com a publicação em 1612 do Discorso intorno alle cose que stano in su l'acqua o che in quella si muovono (Discurso em torno às coisas que estão sobre a água ou que nela se movem), para um programa mais amplo que, do ponto de vista científico, combina uma investigação astronômica de cunho eminentemente observacional com a preocupação teórica de alcançar uma explicação mecânica capaz de sustentar o sistema copernicano e de provar o movimento da Terra. Esse programa é a expressão clara do afastamento de Galileu com relação à cosmologia e filosofia natural tradicionais e da sua consciência da necessidade de uma nova cosmologia e de uma nova teoria do movimento adequadas à concepção astronômica do movimento da Terra e de sua natureza planetária (Mariconda, 2001, p. 15-6).

As investigações realizadas por Galileu tendo em vista a comprovação do movimento terrestre não apontam apenas para uma tomada de posição com respeito à astronomia ou, como atesta a passagem acima, em direção à construção de uma nova cosmologia. Mais do que isso, elas indicam uma postura intimamente voltada para a defesa de um valor cognitivo extremamente caro a Galileu: a autonomia científica. Ao defender a autonomia científica, o autor reclama a obediência a dois componentes importantíssimos, a saber: as experiências sensíveis e as demonstrações necessárias. É com base neles que Galileu defende a independência da filosofia natural em relação aos dogmas presentes na teologia. Nessa perspectiva, a seguinte passagem de Mariconda é bastante esclarecedora:

Com efeito, o pleito de autonomia formulado por Galileu possui basicamente dois componentes. De uma parte, uma defesa vigorosa da liberdade de pesquisa científica, baseada na idéia da suficiência do método científico: as experiências sensíveis e as demonstrações necessárias são suficientes para decidir acerca das questões naturais, em particular, para determinar a escolha de uma entre várias explicações astronômicas rivais. De outra parte, a afirmação da universalidade da razão científica: os intérpretes da Bíblia devem esforçar-se para adequar o comentário ao conhecimento obtido pela via racional por meio de experiências sensíveis e demonstrações necessárias, ou seja, ao conhecimento científico obtido pela razão natural. Com base nesse binômio, liberdade de pesquisa e universalidade da razão, Galileu afirma a autonomia da ciência matemática com relação à teologia, o que tem um impacto na hierarquia das disciplinas universitárias, que se assentava no princípio de autoridade da teologia sobre a filosofia e no princípio da autoridade de Aristóteles na filosofia natural. A posição de Galileu colidia, assim, frontalmente com o núcleo conservador do ensino universitário oficial e com a questão teológica da interpretação que convinha dar ao texto bíblico, o que caía sob a jurisdição da Inquisição (Mariconda, 2001, p. 32).

Ora, se levarmos em consideração a distinção entre suposições primeiras (concernentes à cosmologia e à filosofia natural) e suposições secundas (relativas à astronomia), podemos concluir, tendo em vista a passagem acima, que a decisão entre as hipóteses astronômicas rivais deve estar fundamentada em uma cosmologia e em uma filosofia natural construídas a partir dos critérios sustentados por Galileu, isto é, a experiência e a razão natural, os únicos capazes de garantir a autonomia e a imparcialidade científicas. Há, nesse sentido, uma clara inversão da hierarquia advogada pelos tradicionalistas. Com efeito, não se trata mais de afirmar que a cosmologia e a astronomia devem adequar-se à teologia (como desejavam os tradicionalistas), mas de defender que a ciência não pode estar subordinada a uma determinada interpretação da Sagrada escritura. Tudo isso nos indica que a contenda entre copernicanos e ptolomaicos não se desenrola em uma arena estritamente científica. Pelo contrário, a defesa da autonomia científica desloca o arsenal galileano para o terreno da teologia. A adoção de uma perspectiva realista ou instrumentalista da ciência conta agora com um componente esclarecedor. O realismo de Galileu está assentado em critérios inteiramente científicos, a saber: experiências sensíveis e demonstrações necessárias. O realismo dos tradicionalistas, por seu turno, fundamenta-se na força da autoridade teológica e nos escritos de Aristóteles e Ptolomeu, que concordam com a Sagrada escritura. A estratégia instrumentalista comparece, portanto, como uma estratégia de reforçar tal compatibilidade defendendo a tese de que cabe aos sistemas astronômicos apenas "salvar as aparências". Desse modo, a cosmologia aristotélica representa a real estrutura do universo, ao passo que os artifícios matemáticos de Ptolomeu salvam as aparências. Ora, o problema presente em Galileu consiste precisamente na defesa de que o sistema copernicano não cumpre apenas esse requisito, mas descreve o universo tal como ele é: o que significa conferir ao copernicanismo uma interpretação realista. Assim, ao defender a verdade dos compromissos cosmológicos que subjazem ao sistema copernicano, Galileu estabelece uma tensão entre duas cosmologias que, nas palavras de Mariconda, são irreconciliáveis.

Os aspectos apresentados até aqui indicam o panorama no qual se inserem as cartas de Mersenne a Peiresc e Rebours. Em primeiro lugar, porque as mesmas, de modo direto ou indireto, levam em conta a adoção de uma postura instrumentalista ou realista frente às hipóteses astronômicas e cosmológicas em jogo. Em segundo lugar, porque elas colocam em evidência a relação entre ciência e fé em termos bastante distantes daqueles advogados por Galileu. Em terceiro lugar, porque elas nos indicam a força que a autoridade teológica exerce sobre o pensamento de Mersenne.

As duas cartas, ainda que mantenham uma estreita relação, contém um caráter bastante distinto. A carta enviada a Rebours está notadamente voltada para o julgamento que o correspondente faz dos argumentos em prol da tese copernicana acerca do movimento terrestre. A carta remetida a Peiresc nos coloca diante da situação delicada na qual Mersenne se encontrava, tendo em vista o seu vínculo direto com a hierarquia religiosa. A partir desse contexto, podemos compreender a opção do autor em expurgar, de alguns exemplares dos tratados de 1634, as questões diretamente relacionadas com a defesa do copernicanismo.

Os argumentos indicados por Mersenne na carta a Rebours relacionam-se ao princípio de ordem e harmonia do universo, ao problema da velocidade do movimento das estrelas, ao princípio de participação e relatividade dos movimentos e, finalmente, ao princípio de simplicidade da natureza. O princípio de ordem e harmonia tem em vista a duração dos circuitos de cada um dos astros celestes e afirma que o tempo gasto para percorrer esses circuitos aumenta na mesma proporção das grandezas dos circuitos. O segundo ponto leva em conta a velocidade incompreensível do movimento das estrelas se sustentarmos que a Terra não se move. Em terceiro lugar, o princípio de relatividade está associado aos tiros de artilharia, igualmente considerados por Galileu na segunda jornada do Diálogo. Finalmente, o último princípio está vinculado à idéia de que a natureza opera segundo o caminho mais simples possível, portanto, é mais simples que a Terra se mova do que fazer todo o universo mover-se em torno dela.

Todos esses argumentos são discutidos pelas questões 34 e 37 das Questions theologiques, sendo que Mersenne indica no segundo corolário da questão 34 que ele ainda tratará do movimento terrestre nas questões 44 e 45, nas quais encontramos um brevíssimo resumo das duas primeiras jornadas do Diálogo de Galileu. São justamente essas as questões que serão expurgadas de alguns exemplares dos tratados de 1634. Ora, o que importa compreender diz respeito, em primeiro lugar, ao posicionamento epistemológico de Mersenne frente a tais argumentos e, conseqüentemente, frente à hipótese do movimento terrestre; em segundo lugar, requer-se alguma justificativa para o expurgo das questões diretamente envolvidas com o copernicanismo.

Consideremos inicialmente a postura de Mersenne diante das hipóteses copernicanas. Os argumentos expostos pelo autor, quer nos tratados de 1634, quer na carta endereçada a Rebours, parecem dirigir-nos para uma interpretação realista do sistema copernicano. Todavia, não é isto que ocorre. Com efeito, como procuro indicar nas notas à carta remetida a Rebours, o posicionamento de Mersenne é bastante reticente. De fato, não estamos diante de uma clara e aberta defesa do copernicanismo mas, talvez, de uma tentativa de preservar a teoria de um ponto de vista instrumentalista fortemente vinculado ao expediente de "salvar os fenômenos". Nesse sentido, tendo em vista a distinção entre suposições primeiras e suposições segundas, podemos afirmar que Mersenne não se compromete com a cosmologia que fundamenta uma visão realista das hipóteses astronômicas copernicanas. Pelo contrário, como indicam as seguintes passagens das Questions theologiques, Mersenne não vê qualquer argumento conclusivo em prol seja da mobilidade, seja da estabilidade da Terra:

Visto que não podemos saber as verdadeiras razões, ou a ciência do que acontece na natureza, uma vez que sempre existem certas circunstâncias ou instâncias que nos fazem duvidar se as causas que nós imaginamos são verdadeiras e, se não há qualquer uma, ou se não pode haver outras, eu não vejo que outra coisa eu poderia exigir dos mais sábios do que suas observações, e aquelas que eles fazem dos diferentes efeitos ou fenômenos da natureza. Por exemplo, uma vez que não podemos demonstrar que a Terra está parada ou em movimento, devemos contentar-nos em saber todas as observações que os astrônomos têm feito do céu, e de tudo aquilo que parece ter algum tipo de movimento regular (Mersenne, 1985 [1634], p. 224).

[...] pela qual não vemos qualquer demonstração natural que nos obrigue a abraçar a estabilidade ou a mobilidade da Terra (Mersenne, 1985 [1634], p. 344).

Os trechos transcritos acima são claríssimos: não há, aos olhos de Mersenne, qualquer argumento conclusivo para a defesa do movimento terrestre ou para a estabilidade da Terra. Logo, devemos restringir a astronomia ao âmbito meramente observacional sem qualquer compromisso mais forte com a verdade das hipóteses em jogo. O esclarecimento desse compromisso instrumentalista não se esgota, entretanto, no plano exclusivamente científico. Aos motivos de ordem epistemológica devem ser acrescentadas as razões de cunho teológico e religioso. A ausência de uma defesa explícita do copernicanismo não se deve apenas à inexistência de argumentos conclusivos, mas a entraves de outra natureza.

[...] isto porque é necessário cumprir aquilo que a Igreja ordenará, ou aquilo que os prelados dirão. Eu sei que os hereges tomam a liberdade de examinar essa mobilidade, ainda que um dos mais sábios entre eles, a saber, Tycho Brahe, tenha sido consciente em segui-la em virtude das passagens da Sagrada Escritura, que falam da estabilidade e da imobilidade; e que vários outros têm se esforçado para mostrar que os textos sagrados podem ser explicados fazendo a Terra móvel (Mersenne, 1985 [1634], p. 423).

Mas aqueles que têm considerado as diferentes faces das aparências do mundo, não têm essa opinião, e não se pode, ou não se deve jamais tirar conseqüências das obras da natureza, que possam conter algum prejuízo à Escritura infalível (Mersenne, 1985 [1634], p. 424).

Mas é preciso enfatizar que não é intenção da censura impedir o cálculo dos eclipses e dos astros pelo método de Copérnico, visto que esta operação não causa qualquer dano à Escritura, e que ela não se opõe a seu julgamento (Mersenne, 1985 [1634], p. 425).

As três passagens acima se encontram na questão que substitui a de número 45, dedicada à segunda jornada do Diálogo de Galileu. Em seu enunciado lemos o seguinte: "É permitido ensinar nas escolas que a Terra é imóvel?" Nelas podemos detectar o forte envolvimento de Mersenne com uma interpretação instrumentalista da astronomia e, por outro lado, os motivos que o levam a adotar tal postura. É em virtude da evidente aceitação dos dogmas religiosos que Mersenne não se compromete com a tese cosmológica segundo a qual o movimento terrestre é real. Nessa situação, resta-lhe tão somente a defesa de que o copernicanismo seja concebido e ensinado como um expediente útil para o cálculo. A obediência à autoridade religiosa tem, em Mersenne, uma conseqüência fortíssima: a Sagrada escritura é infalível e nada pode causar-lhe qualquer prejuízo. Nesses termos, a relação entre fé e ciência não se apresenta em Mersenne da mesma maneira como ela comparece em Galileu. Com efeito, não há no primeiro uma distinção entre esses dois planos de tal forma que os mesmos sejam tratados de modo independente. Em virtude disso, é forçoso concluir que o instrumentalismo mersenniano é tributário de seus compromissos religiosos.

Tendo em vista os elementos discutidos até aqui, cabe agora colocar em destaque o terceiro aspecto indicado anteriormente: a autonomia científica. Ora, dados os compromissos religiosos de Mersenne, em virtude dos quais notamos uma clara obediência à autoridade religiosa e o respeito aos dogmas da teologia, a exigência da autonomia da ciência não tem no autor o mesmo caráter que podemos encontrar em Galileu. De fato, ao invés de sustentar tal autonomia, Mersenne se coloca sob o jugo da autoridade eclesiástica. Ainda que o autor reconheça o papel fundamental da razão e da experiência na construção do conhecimento científico – o que pode ser notado em outras passagens de suas obras (cf. Silva, 2003), tais compromissos não são suficientemente fortes para abalar seu vínculo com a hierarquia religiosa.

As cartas aqui traduzidas são, a meu ver, dois notáveis documentos que corroboram as impressões expressas nesta breve exposição. Se a carta a Rebours permite, juntamente com outras passagens dos tratados de 1634, detectar o compromisso instrumentalista de Mersenne na avaliação do copernicanismo, a carta a Peiresc possibilita entender um pouco melhor os motivos que levaram o autor a adotar tal posicionamento. Se há, como atesta o argumento teológico presente na primeira carta (a saber, de que nos é vedado o conhecimento do modo segundo o qual Deus regulou o mundo e quais as razões que o levaram a manter a Terra imóvel), motivações diretamente relacionadas com os dogmas da teologia, por outro lado, cumpre notar, a partir dos elementos contidos na segunda carta, que a prudência mersenniana não pode ser desvinculada da hierarquia religiosa à qual ele está submetido.

Tudo isso permite afirmar que o estudo do debate entre copernicanos e ptolomaicos não pode estar circunscrito ao terreno estritamente científico, mas deve levar em consideração os aspectos culturais, políticos e religiosos com os quais a contenda esteve inevitavelmente envolvida.

Quanto a Mersenne, reconhecendo seu imenso trabalho a serviço da ciência e da cooperação científica, parece-me que podemos concordar com Pierre Humbert:

No fundo, como muitos de sua época, ele hesita: muito abalado por certos argumentos de Galileu, repelidos por outros, ele não vem a se declarar: nós podemos classificá-lo entre os copernicanos simpatizantes, mas não confessos (Humbert, 1948, p. 32).

Tal posicionamento é, com efeito, resultado dos aspectos apontados acima e, de certo modo, pode ser definido como o faz William Hine:

Assim, ele não rejeita a teoria copernicana completamente nem a aceita inequivocamente. Antes, ele toma como guia a Igreja, preferindo abster-se de se comprometer até que uma prova totalmente satisfatória seja encontrada. Ele estava livre, entretanto, para fazer uso da teoria hipoteticamente, e ele o faz (Hine, 1973, p. 32).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    Ptolomeu, The almagest.
    The great books. Chicago, Encyclopaedia Britannica, 1952, p. 6-7.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
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