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Editorial

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Scientiæudia abre o volume 7 com um conjunto de trabalhos de estilos de pesquisa e perspectivas teóricas característicos do estado atual da investigação e do pensamento crítico na sociologia e filosofia da ciência e da tecnologia. De modos diversos, os textos aqui reunidos abordam fenômenos e questões contemporâneos, que redefinem a razão e a cultura, seja explorando as fronteiras do conhecimento no campo da pesquisa na nanoescala, seja analisando as relações entre ciência, tecnologia e sociedade ou, ainda, criticando os fundamentos teóricos do enfoque sociológico externalista. Em consonância com as análises que tratam das dimensões éticas e políticas das formas mais recentes de valorização social do conhecimento, a seção de documentos científicos traz a tradução para o português de "A responsabilidade da ciência", de Herbert Marcuse. No contexto de efervescência da contracultura, ele se interroga acerca do sentido social da tese da neutralidade em uma época em que a razão se identifica com a dominação. Fecha o número a entrevista concedida a Scientiæ udia pelo herdeiro contemporâneo da teoria crítica de Marcuse, Andrew Feenberg, no Fórum Mundial Ciência e Democracia 2009, em Belém do Pará.

Terry Shinn e Anne Marcovich apresentam, em dois artigos, os primeiros resultados das entrevistas com os ganhadores do Prêmio Feynman de Nanotecnologia. Os autores suspendem a distinção entre ciência e tecnologia para mergulhar nas atividades intelectuais e profissionais dos praticantes da pesquisa científica e tecnológica na nanoescala, revelando aspectos distintivos da produção de conhecimento em um campo onde a matéria, exposta, interpretada e explorada por instrumentos, apresenta propriedades singulares. No primeiro artigo, Shinn e Marcovich examinam as dimensões cognitivas das pesquisas dos premiados, além da organização do trabalho e de suas perspectivas acerca da aplicação. Descrevendo a construção de estruturas geométricas e as explorações sobre materiais, propriedades, efeitos ou leis nunca antes observados, eles apontam para um domínio no qual a imaginação, a experimentação e, particularmente, a simulação exploram o mundo nanométrico a partir da pergunta sobre o que não é possível fazer. No que se refere à organização do trabalho, os autores enfatizam, contra o diagnóstico generalizado do recuo da perspectiva disciplinar nas fronteiras do conhecimento, a importância da formação especializada dos pesquisadores da nanoescala, mostrando como a interdisciplinaridade é, ali, coletiva e pós-disciplinar (e não individual e pré-disciplinar). No segundo artigo, Marcovich e Shinn abordam os significados epistemológicos das formas na nanociência e nanotecnologia, nas quais a atenção dirige-se para a morfologia das moléculas, a interação entre elas e a topologia resultante. A análise da fabricação e da exploração das formas contempla, em especial, o trabalho com os cristais, a produção de imagens como meio de expressão dos dados, a importância da simulação, além do uso crescente de materiais biológicos. Para os autores, a centralidade das formas na nanoescala suscita a pergunta sobre seu significado em outros campos da ciência: seria possível considerá-las como um instrumento de transversalidade, sinergia e circulação por meio do qual se constitui uma cultura do procedimento científico em torno da noção de morfologia?

A distinção entre ciência e tecnologia é a tese central de Andrew Feenberg em artigo que propõe esclarecer o âmbito da participação democrática nas sociedades tecnológicas contemporâneas. Os procedimentos de decisão e os papéis da subdeterminação das escolhas na ciência e na tecnologia são os critérios propostos pelo autor para analisar as ligações entre conhecimento e sociedade que se desenvolveram desde meados do século XX. A busca de definições consistentes e distintas de ciência e tecnologia projeta-se na direção contrária ao diagnóstico pós-moderno de sua indistinguibilidade para, desse modo, incorporar a dimensão política na reflexão. Expondo a diferença entre questões cognitivas e regulatórias, Feenberg quer delinear um sentido da participação democrática nas decisões tecnológicas que tem na ciência uma aliada no controle público das atividades dos governos e das corporações. Resguardada a ciência, o autor caracteriza as relações entre tecnologia e sociedade como uma hierarquia entrelaçada de sujeito e objeto. Contra a ideia teológica moderna de uma racionalidade independente da experiência, ele expõe um movimento de retroalimentação entre mudança tecnológica e mudança social que desenvolve a democracia enquanto modo pelo qual o ser humano se reconhece como objeto da própria ação, sem a ilusão de poder, como um deus, alçar-se acima da experiência.

O impacto da economia na biotecnologia é a base do exame de José Luís Garcia e Hermínio Martins das profundas transformações na orientação normativa da ciência e das profissões liberais provocadas pelo modo assimétrico de ligação entre indústria e conhecimento, promovido especialmente a partir da década de 1980, responsável pela expansão da nova tecnociência empresarializada. A história moderna da relação entre universidade e empresa localiza a especificidade das orientações atuais, em intensa implementação, que aprofundam a interdependência entre o conhecimento e a lógica privatista. Para além das razões econômicas, os autores discutem as concepções de conhecimento e de educação que estão no cerne das mudanças, orientando as políticas governamentais e as posições de cientistas e pesquisadores motivados para a prática da ciência pós-acadêmica. Baseada em extensa literatura, a ampla exposição de Garcia e Martins mostra como a nova configuração substitui a formulação clássica da ética do trabalho científico, além de explorar suas repercussões nos campos da sociologia e da filosofia da ciência e da tecnologia.

Encerra a seção o artigo de Alberto Oliva que escrutina os fundamentos, de longa tradição nas ciências sociais, da versão extrema do relativismo na sociologia da ciência pós-moderna. Durkheim, Marx, Malinowski, Manheim e Merton são as referências para a concepção básica acerca da ação social da sociologia cognitiva da ciência: as razões apresentadas pelos cientistas para suas escolhas são justificações irracionais, baseadas na ilusão da autoimagem internalista da ciência; na verdade, sua ação explica-se por fatores sociais, entre os quais o interesse figura centralmente. A questão do estatuto cognitivo das representações dos sujeitos sociais está no centro da análise, que discute os limites e as inconsistências da isonomia epistemológica entre teorias científicas e crenças do senso comum, enfatizando a posição paradoxal na qual o enfoque sociologista coloca a sociologia da ciência, que resta como o único reduto da razão, capaz de denunciar a irracionalidade de todas as (outras) práticas de conhecimento do mundo.

A responsabilidade dos cientistas em relação aos usos sociais de seu trabalho é o tema de Herbert Marcuse em conferência na Universidade da Califórnia em 1966. Tomando como ponto de partida a posição de poder ocupada pela ciência, como força política e econômica, ele questiona a formulação da neutralidade, então ainda amplamente predominante, que concebe a aplicação do conhecimento como um fenômeno social posterior a sua produção e independente dela, com o qual o cientista não tem ligação. Ao contrário, Marcuse argumenta que a aplicação exerce influência sobre o desenvolvimento posterior da ciência, enviesando-o em direções políticas específicas. A razão científica e a razão política são assim historicamente interligadas, determinando o sentido regressivo do progresso científico moderno. Face ao conflito entre a prática moderna da ciência e o telos interno à razão, Marcuse conclama os cientistas a tomarem posição pelo sentido libertário da cultura, realizando assim a própria razão de ser da ciência. Essa perspectiva ampla, pela qual a crítica da ciência e da tecnologia de Marcuse sugere a possibilidade de desenvolvimento histórico de uma razão alternativa, é a questão central da introdução de Marilia Mello Pisani ao texto, reconstruindo os fundamentos, as proposições e as implicações da recusa marcuseana da neutralidade da racionalidade cognitivo-instrumental e de sua formulação de um ethos estético para a ciência e a cultura.

Fecha este número de Scientiæ udia entrevista com Andrew Feenberg, na qual o filósofo da tecnologia fala de sua formação, da atualidade do legado de Marcuse, do processo atual de constituição de uma esfera pública técnica e das perspectivas contemporâneas da democracia e da teoria crítica.

No conjunto de contribuições aqui reunidas, que põe lado a lado perspectivas distintas e mesmo concorrentes, o leitor poderá acompanhar o trabalho de vertentes promissoras da pesquisa contemporânea em sociologia e filosofia da ciência e da tecnologia que, voltadas para o enfrentamento dos impasses do relativismo pós-moderno, retomam, de maneiras diferentes, a investigação das condições de possibilidade do desenvolvimento histórico da razão.

Sylvia Gemignani Garcia

editora convidada

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Nov 2009
  • Data do Fascículo
    Mar 2009
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