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Editorial

Editorial

Este terceiro número de Scientiæ udia publica, em grande parte, trabalhos apresentados no IV Colóquio de Filosofia e História da Ciência, ocorrido em agosto de 2010 na Universidade Estadual de Santa Cruz em Ilhéus. Os artigos estão organizados em dois grupos. No primeiro grupo, são tratados o desaparecimento do intelectual público e as modificações no éthos da ciência, as responsabilidades dos cientistas em decorrência da imparcialidade da ciência, a vigência do ideal da objetividade científica, as diferentes formas de manifestação do ideal de autonomia da ciência, concluindo esta parte uma reflexão sobre a sociologia da técnica de Max Weber. O segundo grupo inicia com uma discussão epistemológica estrutural de três estratégias científicas de pesquisa, as baseadas em modelagem, aquelas que utilizam analogias e as que se vinculam ao princípio de correspondência; passa, a seguir, para dois trabalhos de epistemologia histórica, dedicados à recusa por parte de Kirchhoff de uma fundamentação metafísica da mecânica e a uma polêmica que se desenrolou nos anos 1960 acerca da medição quântica, concluindo esta parte uma reflexão sobre obstáculo e ruptura epistemológicos na matemática e o papel da intuição. Fecha o número, na seção de documentos científicos, um relatório empresarial da Scientists for Global Responsability que repõe, de certo modo, as questões levantadas no início sobre as responsabilidades dos cientistas diante dos impactos e desvios causados sobre a própria atividade científica pela chamada "ciência no interesse privado" ou "ciência comercial".

O primeiro grupo de artigos trata de questões vinculadas aos grandes valores da atividade acadêmica, científica e intelectual e explora aspectos do éthos da ciência e sua transformação. Ivan Domingues, no artigo que abre o número, traça um quadro do aparecimento, ascensão e declínio do intelectual público no decorrer da modernidade, apresentando, por um lado, como a caracterização mertoniana do éthos da ciência moderna mostrava-se compatível com a atuação intelectual na esfera pública e, por outro lado, como o papel dominante dos negócios e o crescimento da esfera privada conduziu a conflitos entre as ciências, as corporações e as nações. Diante desse quadro em que os intelectuais veem o espaço público de sua atuação cada vez mais reduzido, primeiro, pelo avanço dos interesses comerciais privados, depois, pela própria racionalização burocrática das instituições, que reduzem a atuação pública dos intelectuais à expertise, à emissão de pareceres, laudos, relatórios, avaliações etc., Domingues adianta a proposta de reinvenção do intelectual público e de relançamento da ética republicana como modo de ampliação do espaço público para a zona mais ampla da cultura e do social. Hugh Lacey, em seu artigo, mostra que o processo de certificação do conhecimento científico é amplo, já que pode conduzir desde a aceitação (com base estritamente em valores cognitivos) até o endossamento (em vista de certos valores sociais e da urgência de agir) de conhecimentos e aplicações. Com efeito, as políticas de inovação tecnológica criam essa necessidade de agir seja na formulação de políticas, seja na regulamentação de práticas e produtos. O ponto chave é, assim, o dos endossamentos e sobre eles incide a responsabilidade dos cientistas de submeter aquilo que se endossa a mais investigação imparcial contextualizada, isto é, a mais pesquisa que produza, ao mesmo tempo, melhor certificação científica e melhor avaliação, no contexto de aplicação, do leque de valores sociais e éticos envolvidos, de modo a contribuir para a deliberação democrática sobre a política tecnológica e de inovação atualmente praticadas. Alberto Cupani, por sua vez, discorre sobre o ideal da objetividade científica, caracterizada de modo amplo como correspondência ao objeto da investigação, obtida por procedimentos coletivamente aceitos, nos quais se evitam a influência de fatores subjetivos. O autor examina, então, visões críticas da objetividade em três grandes áreas da pesquisa científica - a das ciências naturais, a das ciências sociais e a da história -, para concluir que, por um lado, a vigência do ideal de objetividade depende de conceber a ciência como um empreendimento cognitivo que busca entender o mundo tal qual ele é, e que, por outro lado, ele é secundário quando a ciência visa propósitos não cognitivos (valorativos), para os quais a imparcialidade pode servir até mesmo de obstáculo. De todo modo, a elucidação do ideal de objetividade e as dificuldades ligadas a sua realização continuam centrais na discussão contemporânea sobre a ciência e a tecnologia. De sua parte, Marcos Barbosa de Oliveira volta-se para o ideal da autonomia, distinguindo, na primeira parte de seu artigo, três formas de autonomia que se manifestaram ao longo do desenvolvimento da ciência moderna. A primeira forma é a autonomia reivindicada por Galileu no conflito com a Igreja, liberdade de pensamento que assenta em um éthos fundado na imparcialidade do método; a segunda forma é a autonomia implicada no relatório encomendado por Roosevelt a Vannevar Bush e que propõe que os rumos da pesquisa científica sejam determinados, independentemente de outros interesses, pela comunidade científica; e a terceira é a autonomia neoliberal que consiste na liberdade individual de cientistas financiarem suas pesquisas segundo seus próprios interesses (intelectuais e/ou econômicos). Segundo o autor, é preciso preservar a autonomia disciplinar galileana, restringir a autonomia de segundo tipo e descartar a autonomia neoliberal. Carlos Eduardo Sell fecha este grupo dedicando-se a expor a posição de Weber sobre a técnica. Parte do esclarecimento de conceitos centrais para a reflexão weberiana, a saber, os conceitos de "técnica", "ação técnica" e "racionalidade técnica", procurando mostrar que a articulação desses conceitos permite primeiramente compreender a especificidade da técnica enquanto fenômeno social e, em segundo lugar, avançar na direção do entendimento do papel da tecnociência enquanto processo de tecnificação da ação pelo qual a racionalidade técnica vem a predominar sobre o conjunto da sociedade.

O segundo grupo de artigos, dedicado às ciências particulares, começa com o artigo de Valter Alnis Bezerra que se dedica ao exame de um grupo de estratégias de pesquisa científica que satisfazem as condições de depender da noção de "modelo" e de realizar um contraponto (explorar as semelhanças e diferenças) entre duas ou mais estruturas. A discussão realizada aprofunda um aspecto importante da imparcialidade, pois é sob a luz do valor cognitivo da adequação empírica que Bezerra analisa três estratégias de pesquisa: a modelagem, na qual apresenta a distinção entre a noção lógica (formal) e a noção representacional (que satisfaz a adequação empírica) de modelo; a analogia, considerada em termos de modelos e isomorfismos parciais e como meio de tradução (e transposição) de problemas e soluções em diferentes domínios (disciplinas, especialidades); e o princípio de correspondência, para esclarecimento do qual (como modo de contextualizar e exemplificar a característica de prototeoria que podem adquirir os modelos representacionais) Bezerra realiza o estudo do caso histórico do modelo atômico de Bohr-Sommerfeld. Seguem-se dois estudos de caso histórico que mostram significativamente como são cambiantes as fronteiras entre a física e a filosofia. Antonio Augusto Passos Videira examina o silêncio de Kirchhoff acerca da concepção da mecânica subjacente a seu famoso tratado de mecânica publicado em 1876. Propõe a interpretação segundo a qual esse silêncio representa uma recusa da discussão filosófica (metafísica) sobre os fundamentos da ciência da mecânica. Frederick Moreira dos Santos e Osvaldo Pessoa Júnior examinam o debate entre dois físicos, Henry Margenau e Eugene Wigner, e o filósofo Hilary Putnam a respeito dos fundamentos da mecânica quântica. Os autores mostram significativamente que o debate não está guiado segundo a imparcialidade, mas que valores não cognitivos estão presentes no debate e que ele representa também a ascensão de um estilo filosófico de fazer filosofia da física, sugerindo, assim, que a disputa era muito mais por predomínio em uma especialidade, a da filosofia da física, limítrofe entre duas disciplinas, a filosofia e a física. Por fim, no artigo que encerra este segundo grupo, José Carlos Cifuentes, em assunto ligado à imparcialidade da matemática, introduz o conceito de "salto arquimediano" na tentativa de caracterizar certo procedimento de argumentação não dedutiva (um procedimento que seria heurístico e avaliativo), que produz, na matemática, rupturas epistemológicas qualitativas em vista da determinação objetiva de fatos matemáticos. Cifuentes limita-se, então, a apresentar o que seriam, segundo ele, três exemplos de rupturas epistemológicas produzidas por saltos arquimedeanos, a saber, a propriedade arquimediana da reta real, o princípio de indução completa e o procedimento de passagem do infinito potencial ao infinito atual.

Neste número, Scientiæ udia apresenta como documento científico o Sumário Executivo de um relatório, publicado em 2009 pelo Scientists for Global Responsibility (SGR), que trata dos problemas e consequências causados pelo avanço da comercialização sobre a ciência e a tecnologia em cinco setores industriais que utilizam em grande escala ciência e tecnologia e mantêm vínculos estreitos com as universidades, a saber, os setores farmacêutico, do tabaco, militar, petrolífero e biotecnológico O sumário elenca a seguir as consequências nefastas da influência empresarial, apontando desvios (1) nos padrões científicos de imparcialidade, de direcionamento das pesquisas individuais, (3) nas prioridades e direcionamento da chamada Pesquisa & Desenvolvimento (P&D), (4) na comunicação entre os formuladores de políticas e o público. O sumário finaliza, bem ao estilo executivo, com uma série de 16 recomendações consideradas principais. Em sua introdução, Marcos Barbosa de Oliveira, após tratar do relatório explicando-o no contexto do Reino Unido, põe em questão a tendência inovacionista presente em propostas das universidades e órgãos de financiamento públicos do Brasil. O relatório serve, assim, para tratar do conceito de "sistema nacional de inovação", proposto por Christopher Freedman nos anos 1980, sob a inspiração do qual se inserem, desde 1999, os diversos programas de inovação científica e tecnológica. Oliveira faz um apanhado do rápido desenvolvimento do "programa nacional de inovação", para apresentar o contraponto dos dados estatísticos sobre os resultados alcançados em uma década, bem como dos críticos oriundos da chamada tecnologia social.

Pablo Rubén Mariconda

editor responsável

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2012
  • Data do Fascículo
    2011
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