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Não passarão! Ofensiva neoconservadora e Serviço Social* * Palestra realizada em mesa com Michael Löwy, no 8º Seminário anual promovido pela Cortez Editora, em São Paulo, no Teatro da Universidade Católica (Tuca), em maio de 2015.

They will not pass! Neoconservative offensive and Social Work

Resumo:

Este artigo discute o avanço da direita no Brasil para apresentar uma crítica ao ideário conservador e sua atualização no neoconservadorismo, destacando seus valores, suas formas de manifestação, sua moralização da realidade social e suas implicações para a área de Serviço Social, visando a seu enfrentamento teórico e prático.

Palavras-chave:
Ideário conservador; Neoconservadorismo; Irracionalismo; Moral

Abstract:

This article deals with the advance of the right in Brazil. It presents some criticism to the conservative ideas and their updating as neoconservatism. It emphasizes its values, ways of manifestation, moralization of social reality and implications for the Social Work profession, in order to aim at its theoretical and practical coping.

Keywords:
Conservative ideas; Neoconservatism; Irrationalism; Moral

Uma banda verde-amarela está nas ruas. Dissonante, evoca fantasmas, anunciando a volta dos que nunca partiram. Entoando seu canto de passagem, avisa que veio para ficar. Passarão?

Essa palestra foi elaborada ao som desse estardalhaço direitista, objetivado em inúmeras formas de violência contra trabalhadores, de destruição de direitos historicamente conquistados, de modos inéditos de violação de direitos humanos, movidos por fundamentalismos, xenofobias e discriminações. Esse contexto aponta para a necessidade de uma crítica ao conservadorismo - tema desse seminário.

Abordarei a reprodução ideológica do ideário conservador, supondo sua inserção num processo histórico movido por um conjunto de determinações estruturais e conjunturais, por fatores socioeconômicos, político-culturais e pela dinâmica da luta de classes. Darei destaque a uma reivindicação manifesta na ofensiva atual - o apelo à ordem - para demonstrar seu caráter conservador e seu rebatimento no Serviço Social.

Em sua função ideológica, o conservadorismo reproduz um modo de ser fundado em valores historicamente preservados pela tradição e pelos costumes - no caso brasileiro -, um modo de ser mantido pelas nossas elites, com seu racismo, seu preconceito de classe, seu horror ao comunismo.

Sua difusão é facilitada pela reificação, que, no capitalismo tardio, invade todas as esferas e dimensões da vida social, obscurecendo suas determinações, e pelo irracionalismo, que dissemina o pessimismo, o anti-humanismo, o individualismo e desvaloriza a verdade objetiva, dissimulando as contradições sociais e naturalizando suas consequências. O irracionalismo e o conservadorismo encontram condições favoráveis para se desenvolver em momentos de crise social, exercendo a função de enfrentamento das tensões e contradições sociais e contribuindo, direta ou indiretamente, para a apologia do capitalismo (Lukács, 1972LUKÁCS, Gyorgy. El asalto a la razón: la trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. Barcelona/México: Grijalbo, 1972.; Barroco, 2013b______. Lukács e a crítica do irracionalismo; elementos para uma reflexão sobre a barbárie contemporânea. In: DEL ROIO (Org.). Gyorgy Lukács e a emancipação humana. São Paulo: Boitempo; Marília: Editora Oficina Universitária, 2013b.).

Para enfrentar ideologicamente as tensões sociais decorrentes da ofensiva neoliberal, no contexto da crise mundial do capitalismo dos anos 1970, o conservadorismo se reatualizou, incorporando princípios econômicos do neoliberalismo, sem abrir mão do seu ideário e do seu modo específico de compreender a realidade. O neoconservadorismo1 1 A origem do movimento neoconservador norte-americano é situada no pós-guerra, onde se destaca um grupo de intelectuais como Irving Kristol, Daniel Bell, Russell Kirk, entre outros. Nos anos 1960, manifestou sua reação à contracultura, aos movimentos de defesa de direitos das minorias, fortalecendo-se no contexto da implantação das políticas neoliberais, apresentando-se como programa político (a partir do governo Reagan) sustentado pela defesa do neoliberismo, do militarismo e dos valores tradicionais familiares e religiosos. apresenta-se, então, como forma dominante de apologia conservadora da ordem capitalista, combatendo o Estado social e os direitos sociais, almejando uma sociedade sem restrições ao mercado, reservando ao Estado a função coercitiva de reprimir violentamente todas as formas de contestação à ordem social e aos costumes tradicionais.

A moral desempenha uma função de destaque no ideário conservador, sendo concebida como base fundante da sociabilidade e da política, como podemos observar nas considerações de Russell Kirk,2 2 Russell Kirk (1918-94) é uma figura de destaque na divulgação do neoconservadorismo, com grande influência no Partido Republicano e no governo Reagan, especialmente a partir da publicação, em 1953, de seu livro The conservative mind: from Burke to Eliot (2001). representante do neoconservadorismo norte-americano:

Uma sociedade onde homens e mulheres forem governados pela crença em uma ordem moral duradoura, por um forte sentido de certo e errado, por convicções pessoais sobre a justiça e a honra, será uma boa sociedade - não importa que mecanismo político se possa usar.3 3 Disponível em: <http://www.kirkcenter.org/kirk/ten-principles.html>. Acesso em: 13 jan. 2015. Tradução de Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior.

Essa visão conduz ao entendimento de que as crises sociais e as expressões da questão social são consequências de uma desagregação moral. As críticas dos neoconservadores ao Welfare State são justificadas em termos morais,4 4 Na origem do Serviço Social, pela influência da Igreja Católica, as expressões da questão social eram tratadas como "problemas" de ordem moral (Barroco, 2014b). ou seja, remetidas à desestruturação da família e dos valores tradicionais.

Portanto, o apelo à ordem é duplamente conservador: primeiro, por evidenciar um dos valores fundamentais do (neo)conservadorismo; segundo, porque sua forma de objetivação é moralista, ou seja, moraliza as expressões da questão social, ao tratá-las como resultantes de "problemas" de ordem moral. Esse apelo moralista é facilitado pela reificação das relações sociais e pelo irracionalismo, contribuindo para o ocultamento de suas determinações socioeconômicas e para sua naturalização.

No Brasil, a disseminação ideológica de apelos à ordem tornou-se mais evidente a partir da consolidação neoliberal dos anos 1990, momento histórico marcado pela crise estrutural do capitalismo, reveladora do esgotamento de suas potencialidades emancipatórias e do avanço do seu caráter destruidor - da vida humana e da natureza (Mészáros, 2009MÉSZÁROS, Istvan. A crise estrutural do capital.São Paulo: Boitempo, 2009. (Col. Mundo do Trabalho.)).

Com sua interferência na estrutura e na regulamentação das relações de trabalho, nas formas de organização política e jurídica do Estado e das instituições, a ofensiva neoliberal do grande capital diversificou e ampliou a degradação do trabalho e da vida social, atingindo duramente as condições de existência da classe trabalhadora e dos setores marginalizados. Ao materializar-se na exploração, na dominação, na desigualdade, na violência objetiva e subjetiva, a acumulação capitalista e o neoliberalismo criaram as bases concretas para a reprodução social da barbárie manifesta em ideias, valores e comportamentos.

Nos anos 1990, a sociabilidade brasileira já estava marcada pela cultura da violência e do medo social. A objetivação de novas formas de violência econômica e extraeconômica, o agravamento das expressões da questão social e da criminalidade, entre outros, criaram um clima social de insegurança generalizada, facilitador de apelos à ordem e à repressão: uma insegurança concreta determinada pelo desemprego e pela degradação da vida social e do trabalho e uma insegurança subjetiva alimentada "pela convicção de que o crime e a brutalidade são inevitáveis" (Costa, 1990______. O medo social. Veja: 25 anos. Reflexões para o futuro, São Paulo, 1990., p. 83-85).

Essa cultura contou com a colaboração fundamental dos programas sensacionalistas que entraram na TV nos anos 1990, como os dos apresentadores Ratinho e Datena - este curiosamente agraciado com o prêmio Wladimir Herzog. Incentivando medidas de força em nome da ordem, passaram a expor, diariamente, crimes e delitos, escolhendo a dedo aqueles praticados por negros e adolescentes, numa campanha escancarada de defesa da militarização da vida social, do armamento, do rebaixamento da maioridade penal e da pena de morte no Brasil.

Com o avanço da crise capitalista e o aprofundamento das medidas neoliberais, instituem-se novas formas de controle social visando ao enfrentamento das tensões sociais. A gestão da crise e das tensões adotada pelo Estado brasileiro em suas funções de articulação entre consenso e coerção passa a se objetivar através de programas sociais compensatórios e da institucionalização da repressão armada. Nesse sentido, as ações bélicas iniciadas com a ocupação das favelas cariocas, em 2010, sinalizam um processo de militarização da vida cotidiana que transforma a exceção em regra, mantendo um Estado de "exceção" no interior do Estado democrático, segundo análise de Brito, Villar e Blank (2013, p. 238)BRITO, Felipe; VILLAR, André; BLANK, Javier. "Será guerra?". In: BRITO, Felipe; OLIVEIRA, Pedro Rocha (Org.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social.São Paulo: Boitempo, 2013. (Estado de sítio.):

A enxurrada de homicídios no Brasil, manchada pela seletividade econômica, étnica e espacial, aloja-se no andamento do processo democrático. Dado o enredamento crescente da violência com os regimes democráticos, cria-se um problema nesses tempos de "ode à democracia": a manutenção da própria democracia como um persistente estado de exceção sob os influxos das leis férreas da acumulação capitalista. Ocorre um espalhamento da "exceção" [...] em defesa da própria "regra", cuja reprodução, contudo, é cada vez mais envolvida pela "exceção" (e dependente dela).

Nesse contexto, as expressões da questão social voltam a ser tratadas como caso de polícia eenfrentadas com estratégias de guerra permanente, além de ser concebidas como "mal necessário", apontando para "a construção de uma nova hierarquia moral monstruosamente simplificadora do universo social como uma luta entre fortes e fracos" (Costa, 1990______. O medo social. Veja: 25 anos. Reflexões para o futuro, São Paulo, 1990., p. 83-85). A ideologia da guerra, herança da doutrina de segurança nacional da ditadura civil-militar brasileira, é reeditada na guerra ao tráfico, como bem mostrou o filme brasileiro Tropa de Elite 1,5 5 Filme produzido por José Padilha, premiado como melhor filme no Festival de Berlim, em 2008, com o Urso de Ouro. que anunciou o herói nacional desses tempos sombrios: o capitão Nascimento, do Bope (Batalhão de Operações Especiais), treinado para se desumanizar em face da violência por ele praticada (Barroco, 2008______. Bandidos, mitos e bundas: moral e cinema em tempos violentos. Revista SESC Melhores Filmes, São Paulo, 2008.).

Observamos uma articulação entre a ideologia da guerra, os direitos humanos e o Estado de "exceção" nas falas do representante do Bope e do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. O primeiro afirma: "O curso do Bope prepara os policiais para guerra e não adianta dizer que isso é desumano";6 6 Cf. Oliveira, 2013, p. 52. o segundo diz: "Isso é guerra. É uma guerra, e guerra tem que ser enfrentada como guerra. Direitos humanos têm que ser respeitados sempre, é nossa filosofia. Mas isso é uma guerra" (Brito, Villar e Blank, 2013BRITO, Felipe; VILLAR, André; BLANK, Javier. "Será guerra?". In: BRITO, Felipe; OLIVEIRA, Pedro Rocha (Org.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social.São Paulo: Boitempo, 2013. (Estado de sítio.), p. 2015).

De formas diferentes, ambos estão afirmando que a "regra" determina o respeito aos direitos humanos, porém o Estado de guerra abre uma exceção: os direitos humanos são suspensos enquanto vigorar a guerra. Logo, a moralidade humanitária também deve ser suspensa: todos os meios são moralmente válidos para vencer o inimigo.

Assim, o Brasil não tem guerras civis oficialmente declaradas. No entanto, segundo Brito, Villar e Blank, "as mortes em massa por homicídio ultrapassam, em termos de média anual, o somatório de mortes dos doze maiores conflitos armados do mundo". Entre 2004 e 2007, "os doze maiores conflitos mundiais foram responsáveis por 169.574 mortes", enquanto o Brasil produziu 192.804 vítimas, aproximando-se da totalidade das mortes provocadas pelos 62 conflitos mundiais, que é de 208.349 (Brito, Villar e Blank, 2013BRITO, Felipe; VILLAR, André; BLANK, Javier. "Será guerra?". In: BRITO, Felipe; OLIVEIRA, Pedro Rocha (Org.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social.São Paulo: Boitempo, 2013. (Estado de sítio.), p. 216-217).

Essa guerra não declarada tem nome e endereço; atinge de formas variadas os jovens da periferia, os negros, as mulheres, os moradores de rua, os trabalhadores pobres, os grupos e sujeitos "fora" da ordem, da lei, dos costumes, do mercado de trabalho, do consumo, do pensamento dominante. Configura-se, assim, o Estado policial dentro do Estado democrático (Brito, Villar e Blank, 2013BRITO, Felipe; VILLAR, André; BLANK, Javier. "Será guerra?". In: BRITO, Felipe; OLIVEIRA, Pedro Rocha (Org.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social.São Paulo: Boitempo, 2013. (Estado de sítio.)), com a colaboração da mídia e a legitimação ou omissão de parte da sociedade, implantando o terror em nome da ordem e fortalecendo o processo de "bopização"7 7 Termo usado por Fabio Salem Daie (2015). da sociedade. Após as manifestações de junho de 2013 no Brasil, o conhecimento importado das agências de segurança norte-americanas no treinamento de militares brasileiros no Haiti e na ocupação das favelas no Rio de Janeiro foi acrescido de novas técnicas e iniciativas: monitoramento das redes sociais pelo Exército, treinamento de agentes pelo FBI (Castelo, 2014CASTELO, Rodrigo. Crise conjuntural e (re)militarização da "questão social" brasileira. Margem Esquerda. Ensaios Marxistas. São Paulo, n. 23, 2014., p. 49-50), enquadramento de manifestantes em leis de segurança nacional, projetos de tipificação das manifestações como atos de terrorismo.

A militarização da vida cotidiana, seja na ocupação de favelas, na desocupação de áreas de moradia no campo e na cidade, no extermínio de indivíduos e grupos sociais, na defesa ideológica do armamento e do aprisionamento em massa, atende a interesses econômicos e políticos das elites nacionais e internacionais. Além de visar o controle social, participa do processo de acumulação capitalista, favorecendo interesses de latifundiários, de indústrias de armamento e de segurança, de investimentos imobiliários, eliminando a população sobrante para o capital, disciplinando a força de trabalho para o mercado informal (Brito, Villar e Blank, 2013BRITO, Felipe; VILLAR, André; BLANK, Javier. "Será guerra?". In: BRITO, Felipe; OLIVEIRA, Pedro Rocha (Org.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social.São Paulo: Boitempo, 2013. (Estado de sítio.)) e aplacando a ira insana das forças neoconservadoras e reacionárias. Essas forças estão atualmente representadas no Congresso Nacional por 251 deputados conservadores e reacionários entre agentes de repressão, ruralistas e fundamentalistas. Não é casual a recente inserção de um ex-integrante da Rota na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo.

No contexto atual, a moralização das expressões da questão social,típica do (neo)conservadorismo, não é dirigida prioritariamente ao ajustamento dos indivíduos, mas à sua punição. Juízes, jornalistas, intelectuais, comentadores midiáticos definem o que é delito, dando lições de moral e indicando soluções punitivas. O documentário Juízo é exemplar.8 8 O documentário de Maria Augusta Ramos aborda as audiências de uma juíza com adolescentes infratores. Foi premiado em diversos festivais e exibido durante o Human Rights Watch International Film. Também é exemplar o pronunciamento fascista da jornalista Rachel Sheherazade,9 9 Rachel Sheherazade. Folha de S.Paulo, 11 fev. 2014. apoiando a ação bárbara dos "justiceiros": jovens motoqueiros que amarram um adolescente nu a um poste, no Rio de Janeiro, em 2014.

A colaboração dos meios virtuais é fundamental. Atualmente existem 5 mil páginas especializadas na exploração da violência, em geral dirigidas por ex-policiais. As chamadas de "Datena’s" têm 20 milhões de seguidores. Uma delas, a do "Guarujá Alerta", publicou um boato sobre uma falsa sequestradora, gerando o linchamento da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos.10 10 Folha de S.Paulo, caderno Cotidiano, 11 maio 2014.

A moralização punitiva supõe uma visão simplista que divide o mundo entre bons e maus, entre corruptíveis e incorruptíveis, identificados socialmente em personagens promovidos pela mídia, a exemplo dos "incorruptíveis" capitão Nascimento e Joaquim Barbosa, ex-ministro do Superior Tribunal Federal (Daie, 2015DAIE, Fabio Salem. Corrupção e a "bopização" brasileira. Le Monde Diplomatique, São Paulo, n. 93, 2015.). Ambos, o homem de farda e o homem da capa preta, são aplaudidos como arautos da justiça e da ordem social.

O pronunciamento da jornalista Sheherazade, além de reforçar a moralidade punitiva, revela também uma estratégia presente na ofensiva direitista atual: o combate ideológico a um bloco no qual foram inseridos os direitos sociais e suas legislações, como o ECA; os direitos humanos; o comunismo, remetido ao bolivarianismo; os partidos de esquerda; os movimentos sociais, especialmente o MST; as reivindicações dos movimentos de feministas, negros, LGBT e estudantes; o marxismo; o PT, o governo, nas figuras de Lula, Dilma e suas políticas compensatórias, como o Bolsa Família, e outras inciativas, como os programas de cotas para negros e o Mais Médicos, referido apenas aos médicos cubanos.

Esse conjunto eclético de bandeiras está presente nas manifestações que aglutinam a direita e a extrema-direita nas ruas, mas principalmente na inculcação ideológica promovida por seus representantes midiáticos, na TV, no rádio, nas revistas de grande circulação e na atuação de seus intelectuais orgânicos. Trata-se, portanto, de uma campanha direitista escancarada que conta com as corporações que detêm o poder dos meios de comunicação no Brasil e que uivam quando ouvem falar em algum tipo de restrição à livre manifestação de sua dominação ideológica: as corporações que envolvem as Organizações Globo, o SBT, a Record, os jornais Folha de S.Paulo e O Estado deS. Paulo, o Grupo Abril, que edita a revista Veja - todos alocados no Instituto Millenium,11 11 Disponível em: <www.institutomillenium.org.br>. Acesso em: 2 maio 2015. com a manutenção financeira de grupos empresariais como Gerdau, Ultra, Petropar, Odebrecht, com a gestão patrimonial de Armínio Fraga e o apoio da Opus Dei e do Clube Militar. Também não é casual que Pedro Bial, apresentador do programa sensacionalista Big Brother, seja membro fundador.12 12 Segundo Lucas Patschiki, que pesquisa o portal de extrema-direita Mídia Sem Máscara e o InstitutoMillenium, "esses setores são financiados abertamente pelo grande capital, como é o Tea Party dos Estados Unidos" (Caros Amigos, n. 212, 2014, p. 26).

A ofensiva (neo)conservadora atinge diferentes dimensões da realidade, contando com grande chance de incorporação por atividades sociais que prescindem da razão em decorrência da crença em dogmas, a exemplo das religiões. Nesse sentido, quando se trata de avaliar questões que remetem a valores morais, os (neo)conservadores são moralistas, ou seja, intolerantes, preconceituosos e, no limite, fundamentalistas.

Atualmente, representantes de grupos evangélicos13 13 Uma força que aumentou 61,45% em dez anos, somando 42,3% milhões de evangélicos de diferentes vertentes, segundo dados do IBGE de 2014. têm manifestado abertamente esse moralismo, contando com a presença de 82 deputados no Parlamento, comandada pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que já explanou seu objetivo de barrar toda legislação que vise à descriminalização do aborto e a criminalização da homofobia, numa sua cruzada fundamentalista de combate moral a todas as lutas e conquistas progressistas.

Sinal dos tempos, o beijo entre Nathália Timberg e Fernanda Montenegro, mostrado na novela global Babilônia, foi repudiado pela representação evangélica do Congresso Nacional e por inúmeras manifestações nas redes sociais, repúdios dirigidos não somente a um beijo entre mulheres, mas a um beijo entre mulheres de oitenta anos. Onde já se viu? O mais interessante é que no mesmo capítulo ocorreram dois crimes praticados por outras mulheres (protagonistas principais), em função de interesses materiais. Uma pagou a um vendedor ambulante para quebrar literalmente as pernas de sua amiga; a outra matou seu motorista, negro por sinal. Nenhuma manifestação de repúdio. A lei de Gérson marca presença.

O mais assustador dessa invasão conservadora e reacionária é sua adesão por parte dos jovens. Ser de direita virou moda. Dois jovens, de 23 e 26 anos, criaram a marca de camisetas Vista Direita apelando para os jovens "com ideologia de direita e amantes da liberdade".14 14 Disponível em: <www.vistadireita.com.br>. Acesso em: 5 maio 2015. Comercializada virtualmente com grande sucesso de vendas, suas estampas repudiam o bloco selecionado pela direita e pela extrema-direita - o comunismo, os médicos cubanos, o marxismo etc. -, acrescidos de figuras emblemáticas como Thatcher e Reagan. Parte dos manifestantes que reeditaram a Marcha pela Família, de 1964, é de jovens, assim como os que, frequentando escolas de segundo grau e universidades, se recusam a participar de debates e a elaborar trabalhos sobre as religiões de matriz afro-brasileiras, acusando-as de pacto com o demônio, ou, ainda, os que cometem atos de justiçamento. A herança conservadora da cultura brasileira não pode ser desprezada na busca de compreensão das inúmeras determinações desse fenômeno. É oportuna a referência de Wladimir Safatle aos jovens justiceiros:

Seus pais já apoiavam, com lágrimas de felicidade nos olhos, os assassinatos perpetrados pelo esquadrão da morte. Seus avós louvaram as virtudes do golpe militar de 1964, que colocaria de vez a ordem no lugar da baderna. Seus bisavós gostavam de ver a polícia da República Velha atirando contra grevistas com aquele horrível sotaque italiano. Seus tataravós costumavam ver cenas de negros amarrados a postes com um certo prazer incontido. Afinal, já se dizia à época, alguém tinha que pôr ordem em um país tão violento.15 15 Folha de S.Paulo, 11 fev. 2014.

As profissões não são imunes a essa invasão. A intolerância e o racismo institucional perpassam pela formação e pelo exercício profissional. O irracionalismo penetra nas universidades através do dogmatismo16 16 A intolerância não é privilégio de nenhuma religião em especial. Como exemplo, citamos a recente proibição, ocorrida na PUC-SP, da criação da cátedra Michel Foucault, com a alegação de que o pensamento desse importante filósofo não condiz com o pensamento da Igreja Católica. e do pensamento pós-moderno. Este contribui, ao lado do neopositivismo, para o empobrecimento da crítica, para a subjetivação da história e a naturalização das desigualdades, facilitando a transferência dos conflitos para o imaginário, fortalecendo a resignação e o pessimismo em face da realidade. Mas a incorporação do irracionalismo não decorre somente de opções ideológicas. São oriundas também da reprodução do senso comum, favorecida pela precarização das condições objetivas de trabalho, de aprendizado e de existência dos alunos e professores.

Em face dos conflitos e das contradições que permeiam a vida profissional e por várias determinações que não se restringem às escolhas ideológicas dos profissionais, parte da categoria é envolvida em apelos irracionalistas que apontam para soluções pragmáticas: modelos de ação, técnicas de autoajuda, regras de comportamento que prometem resolver imediatamente "problemas" individualizados, abstraídos da história e de suas determinações objetivas.

No exercício profissional, o Serviço Social é chamado a desempenhar tarefas policialescas, nas desocupações truculentas de áreas de moradia, no deslocamento de moradores de rua e usuários de droga para lugar nenhum, na censura e no controle dos usuários, em especial nas instituições tradicionalmente conservadoras que envolvem de forma direta a moral e a família.

Não é à toa que as pressões sofridas por assistentes sociais venham majoritariamente do campo sociojurídico e que seus assediadores sejam juízes, promotores, diretores de presídios etc. São formas de assédio moral que visam à quebra do sigilo ou à execução de tarefas de responsabilidade da justiça, como oferecer provas à justiça por meio de depoimentos e práticas de mediação; entregar prontuários à justiça, denunciar ou elaborar relatórios sobre os usuários, fornecendo detalhes a respeito de sua vida pessoal que podem ser usados para diversas formas de punição: desde a criminalização até a discriminação alimentada por preconceitos.

Ora, o interesse maior, oculto no assédio moral exercido sobre a profissão para que ela execute tarefas contrárias ao Código de Ética Profissional e às suas atribuições legais, é o de que ela seja coadjuvante desse moralismo punitivo no enfrentamento das expressões da questão social, como já foi em outros tempos; que mais uma vez o Serviço Social se adeque a essa missão restauradora da lei e da ordem social.

Mas, muitas vezes, o comportamento policialesco do assistente social não é demandado pela instituição. Parte dele mesmo em função de sua orientação conservadora, objetivando o controle da vida dos usuários, o cerceamento de suas escolhas, o impedimento dos seus direitos baseado em avaliações moralistas, na adoção de critérios de elegibilidade pautados em preconceitos e discriminações. Isso é bastante comum nos espaços em que o assistente social participa de decisões relativas à família e em situações que expõem comportamentos que fogem aos padrões tradicionais, a exemplo da adoção de crianças por casais homoafetivos.

O conservadorismo percorre nossa trajetória profissional. A questão é saber em que medida ele está sendo superado no processo de construção do projeto ético-político profissional direcionado à ruptura com o conservadorismo, construção que já dura mais de trinta anos. A profissão não é uma ilha. Ela reflete as contradições sociais, suas tendências e, como tal, a luta pela hegemonia entre ideias e projetos profissionais e societários.

A hegemonia do projeto ético-político do Serviço Social brasileiro depende do fortalecimento e do alargamento dos avanços e conquistas democráticas da categoria e da base social que orienta a direção política da nossa intervenção: as forças sociais que lutam pela emancipação articuladas aos trabalhadores e às lutas sociais. Trata-se, assim, de enfrentamentos em busca de um acúmulo de forças que caminham no interior da profissão e na sociedade.

Não podemos eliminar o conservadorismo de forma absoluta porque suas raízes estão além da profissão. Mas, profissionalmente, podemos aprofundar a sua crítica, criar formas de enfrentamento que enfraqueçam a sua permanência; recusar seus apelos moralistas, denunciar suas ingerências, alargando as bases democráticas e emancipatórias do nosso projeto, na luta pela hegemonia. Essas ações só ganham densidade se forem coletivamente discutidas e organizadas, se forem conscientemente objetivadas como ações políticas.

Assim, o enfrentamento do conservadorismo é parte de um enfrentamento maior, de combate a todas as formas de opressão, de alienação e exploração, no sentido da superação da barbárie, da emancipação humana e do socialismo. Somente com esse enfrentamento terá sentido afirmar: NÃO PASSARÃO!

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    Palestra realizada em mesa com Michael Löwy, no 8º Seminário anual promovido pela Cortez Editora, em São Paulo, no Teatro da Universidade Católica (Tuca), em maio de 2015.
  • 1
    A origem do movimento neoconservador norte-americano é situada no pós-guerra, onde se destaca um grupo de intelectuais como Irving Kristol, Daniel Bell, Russell Kirk, entre outros. Nos anos 1960, manifestou sua reação à contracultura, aos movimentos de defesa de direitos das minorias, fortalecendo-se no contexto da implantação das políticas neoliberais, apresentando-se como programa político (a partir do governo Reagan) sustentado pela defesa do neoliberismo, do militarismo e dos valores tradicionais familiares e religiosos.
  • 2
    Russell Kirk (1918-94) é uma figura de destaque na divulgação do neoconservadorismo, com grande influência no Partido Republicano e no governo Reagan, especialmente a partir da publicação, em 1953, de seu livro The conservative mind: from Burke to Eliot (2001).
  • 3
    Disponível em: <http://www.kirkcenter.org/kirk/ten-principles.html>. Acesso em: 13 jan. 2015. Tradução de Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior.
  • 4
    Na origem do Serviço Social, pela influência da Igreja Católica, as expressões da questão social eram tratadas como "problemas" de ordem moral (Barroco, 2014bBARROCO, M. Lucia S. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2014.).
  • 5
    Filme produzido por José Padilha, premiado como melhor filme no Festival de Berlim, em 2008, com o Urso de Ouro.
  • 6
    Cf. Oliveira, 2013, p. 52.
  • 7
    Termo usado por Fabio Salem Daie (2015)DAIE, Fabio Salem. Corrupção e a "bopização" brasileira. Le Monde Diplomatique, São Paulo, n. 93, 2015..
  • 8
    O documentário de Maria Augusta Ramos aborda as audiências de uma juíza com adolescentes infratores. Foi premiado em diversos festivais e exibido durante o Human Rights Watch International Film.
  • 9
    Rachel Sheherazade. Folha de S.Paulo, 11 fev. 2014.
  • 10
    Folha de S.Paulo, caderno Cotidiano, 11 maio 2014.
  • 11
    Disponível em: <www.institutomillenium.org.br>. Acesso em: 2 maio 2015.
  • 12
    Segundo Lucas Patschiki, que pesquisa o portal de extrema-direita Mídia Sem Máscara e o InstitutoMillenium, "esses setores são financiados abertamente pelo grande capital, como é o Tea Party dos Estados Unidos" (Caros Amigos, n. 212, 2014, p. 26).
  • 13
    Uma força que aumentou 61,45% em dez anos, somando 42,3% milhões de evangélicos de diferentes vertentes, segundo dados do IBGE de 2014.
  • 14
    Disponível em: <www.vistadireita.com.br>. Acesso em: 5 maio 2015.
  • 15
    Folha de S.Paulo, 11 fev. 2014.
  • 16
    A intolerância não é privilégio de nenhuma religião em especial. Como exemplo, citamos a recente proibição, ocorrida na PUC-SP, da criação da cátedra Michel Foucault, com a alegação de que o pensamento desse importante filósofo não condiz com o pensamento da Igreja Católica.

Referências bibliográficas

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  • ______. Ética: fundamentos sócio-históricos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2014. (Biblioteca Básica para o Serviço Social, v. 4.)
  • ______. Direitos humanos ou emancipação humana? Inscrita, Brasília, 2013a.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2015
  • Aceito
    23 Jul 2015
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