Acessibilidade / Reportar erro

Existia “questão social” na experiência soviética?

Was there “social question” in soviet experience?

Resumo:

A “questão social” está associada ao sistema capitalista. Mas as contradições sociais do sistema soviético tornam o debate sobre a “questão social” mais complexo, uma vez que tal experiência revolucionária destruiu o capitalismo, mas manteve a essência da natureza do sistema do capital, segundo István Mészáros. O artigo pretende contribuir para a reflexão: a “questão social” existe apenas no sistema capitalista ou também existia, por meio de expressões distintas, na experiência soviética?

Palavras-chave:
Questão social; Capital; Experiência soviética

Abstract:

“Social question” is associated with capitalism system. However, the social contradictions of soviet system turn the debate about “social question” more complex. Since this revolutionary experience overthrew capitalism, but preserved the essence of the capital’s system’s nature, according to István Mészáros. The article intends to contribute for the reflection: exists the “social question” only in capitalism system or also was there in soviet experience, through distincts expressions?

Keywords:
Social question; Capital; Soviet experience

Introdução

Na literatura crítica do Serviço Social, vemos que a chamada “questão social” surge na primeira metade do século XIX, quando o capitalismo começa a se consolidar e tem-se início o moderno impacto devastador sobre a vida da classe trabalhadora. O fenômeno social da “questão social” é intrínseco à própria estrutura da natureza do sistema do capital, e, assim, em autores como, por exemplo, Netto, Braz e Pimentel, a “questão social” é fundamentada pela lei geral de acumulação do capital. É um fenômeno social inseparável da forma de produzir e reproduzir a vida em sociedade comandada pelo sistema do capital.

Neste sentido, de acordo com Netto e Braz, na obra Economia política: uma introdução crítica, além da “perdurabilidade do exército industrial de reserva”, os autores argumentam que outro “fato e processo” constitutivo e ineliminável da acumulação do sistema capitalista é a polarização sempre constatável (independente da abrangência) “entre uma riqueza social que pode se expandir exponencialmente e uma pobreza social que não para de produzir uma enorme massa de homens e mulheres cujo acesso aos bens necessários à vida é extremamente restrito” (Braz; Netto, 2011NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2011., p. 149).

Nessa perspectiva, que relaciona a existência da “questão social” com a própria estrutura de produção e reprodução do sistema do capital, esse fenômeno social é insuprimível enquanto existir a estrutura que caracteriza a sociedade dominada pelo modo de produção capitalista. Em outras palavras, Braz e Netto (p. 145)NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2011. argumentam que os processos de pauperização “decorrem necessariamente da essência exploradora da ordem do capital”.

Consequentemente, por sua capacidade de analisar a reprodução da relação-capital de maneira radicalmente crítica, a teoria elaborada por Karl Marx é fundamental para compreender cientificamente a “questão social”, elemento tão importante para a investigação científica na área do Serviço Social. No pensamento de Karl Marx, é da natureza da própria relação-capital separar constante e sistematicamente a força de trabalho das condições de trabalho na era moderna. E esta é a base fundamental da possibilidade de explorar os produtores por meio da grande indústria, acarretando impactos profundos de diversas naturezas na vida deles.

No apêndice à terceira edição da obra Capitalismo monopolista e Serviço Social, intitulado “Cinco notas a propósito da “questão social”, Netto destaca a importância da teoria elaborada por Karl Marx, afirmando que “é apenas com a publicação, em 1867, do primeiro volume d’Ocapital, que a razão teórica acedeu à compreensão do complexo de causalidades da ‘questão social’”. Pois foi a partir das suas investigações profundas sobre o “processo de produção de capital” que Marx “pôde esclarecer com precisão a dinâmica da ‘questão social’, consistente em um complexo problemático muito amplo, irredutível à sua manifestação imediata como pauperismo” (Netto, 2011NETTO, J. P. Apêndice à terceira edição: Cinco notas a propósito da “questão social”. In: NETTO, J. P. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2011., p. 156-157).

Para Netto, a “análise marxiana da ‘lei geral da acumulação capitalista’, contida no vigésimo terceiro capítulo do livro publicado em 1867, revela a anatomia da ‘questão social’”, demonstrando, portanto, “sua complexidade, seu caráter de corolário (necessário) do desenvolvimento capitalista em todos os seus estágios” (Netto, 2011NETTO, J. P. Apêndice à terceira edição: Cinco notas a propósito da “questão social”. In: NETTO, J. P. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2011., p. 157). Ele argumenta que

a análise do conjunto que Marx oferece n’O capital revela, luminosamente, que a “questão social” está elementarmente determinada pelo traço próprio e peculiar da relação capital/trabalho - a exploração. A exploração, todavia, apenas remete à determinação molecular da “questão social”; na sua integralidade, longe de qualquer unicausalidade, ela implica a intercorrência mediada de componentes históricos, políticos, culturais, etc. Sem ferir de morte os dispositivos exploradores do regime do capital, toda luta contra as suas manifestações sociopolíticas e humanas (precisamente o que se designa por “questão social”) está condenada a enfrentar sintomas, consequências e efeitos. (Idem)

Desta forma, enquanto a estrutura da natureza exploradora do sistema do capital continuar operante, independente do estágio em que se encontre no desenvolvimento histórico do capitalismo, a “questão social” irá permanecer latente como consequência necessária dessa forma de reprodução social.

Pimentel, em sua obra Uma “nova questão social”?, também se fundamenta na perspectiva de que a base material da emergência da “questão social” é o próprio sistema do capital, argumentando que o que abriga o fundamento da causalidade da “questão social” são as relações de produção da riqueza social. Para essa autora, a “essência do pauperismo e suas consequências, tanto para o trabalhador quanto para as massas populacionais em geral, encontra-se na base material do sistema do capital”. A raiz desse pauperismo e suas consequências “é fundamentalmente econômica, está no processo de expansão e acumulação do capital” (Pimentel, 2012PIMENTEL, E. Uma “nova questão social”? Raízes materiais e humano-sociais do pauperismo de ontem e de hoje. São Paulo: Instituto Lukács, 2012., p. 160).

Por conta desse vínculo entre a essência do sistema do capital e a “questão social”, Edlene Pimentel argumenta na tese central da sua obra, partindo dessa raiz material e humano-social do pauperismo, que não há como conceber uma “nova questão social” a partir da mudança histórica dos estágios de desenvolvimento do capitalismo, pois em todos esses estágios a essência do próprio sistema do capital continua a mesma.

Sobre essa questão a respeito da inexistência de uma nova “questão social”, Braz e Netto argumentam que a “questão social” apenas “ganha novas dimensões e expressões à medida que avança a acumulação e o próprio capitalismo experimenta mudanças” (Braz; Netto, 2011NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2011., p. 149). Netto, nas “Cinco notas a propósito da questão social”, também reitera que “diferentes estágios capitalistas produzem diferentes manifestações da ‘questão social’”. Além disso, enfatiza que “esta não é uma sequela adjetiva ou transitória do regime do capital: sua existência e suas manifestações são indissociáveis da dinâmica específica do capital tornado potência social dominante” (p. 157). Assim, vemos que a afirmação de que a historicidade do capitalismo produz uma nova “questão social” carrega teoricamente uma relação problemática entre esse fenômeno social e a essência do sistema do capital.

Podemos dizer que as confusões que dificultam a compreensão da chamada “questão social” são provocadas, em grande parte, pela incompreensão de suas causas mais últimas, pelo afastamento das suas bases ontológicas. Nesse sentido, Edlene Pimentel criticou Castel e Rosanvallon, argumentando que “não parece haver, por parte dos autores, a pretensão de desvelar os nexos causais, ou seja, suas determinações, no sentido de ir às raízes do problema”. A consequência disto é que Castel e Rosanvallon defendem “a existência de uma ‘nova questão social’ nos dias atuais, quando, na verdade, são novas formas de expressão de um problema cuja essência permanece inalterada” (Pimentel, 2012PIMENTEL, E. Uma “nova questão social”? Raízes materiais e humano-sociais do pauperismo de ontem e de hoje. São Paulo: Instituto Lukács, 2012., p. 161; grifos nossos). Essência que deve ser buscada na base material do sistema do capital, no processo de expansão e acumulação do capital, na separação entre produtores e as condições de trabalho, em oposição antagônica às genuínas necessidades humanas. Assim, as bases ontológicas da chamada “questão social”, em qualquer forma historicamente determinada de se expressar, deve ser buscada na própria estrutura sociorreprodutiva do sistema do capital.

As obras mencionadas tratam - com razão, devido ao escopo de seus objetos de investigação - capital e capitalismo como sinônimos quando mencionam a possibilidade de superação da “questão social” como fenômeno social. Quando abordam que a superação da “ questão social” está vinculada à superação do sistema do capital, isto quer dizer a superação do sistema capitalista. Mas como situar a investigação do Serviço Social sobre o impacto degradante, na vida da classe trabalhadora, de uma relação de produção antagônica baseada na grande indústria, que existe na situação histórica desconcertante em que o capitalismo é destruído? E que, apesar disso, o sistema do capital permanece como modo de controle do metabolismo social, como potência social que domina a produção e a reprodução social?

Se a discussão acerca de uma “nova questão social” a partir da modificação histórica do estágio do desenvolvimento do capitalismo é um tema polêmico dentro da investigação própria do Serviço Social, abordamos neste texto um desdobramento desse tema tão (ou mais) polêmico quanto, além de menos investigado: como situar as investigações da área do Serviço Social sobre a chamada “questão social” no caso ainda mais complexo da existência de contradições sociais que permanecem após a destruição do capitalismo na experiência soviética?

Enxergamos dois caminhos principais para abordar essa problemática: 1) a destruição do capitalismo na experiência soviética significou a criação de um sistema social socialista e que, apesar de todos os problemas que possam ser identificados, as contradições sociais desse sistema possuíam uma essência distinta da que emerge da relação capital-trabalho como fundamento da produção e da reprodução social. Consequentemente, nessa forma de pensar a questão, as reflexões mais profundas acerca da “questão social” no sistema do capital não teriam nenhuma validade para as contradições sociais soviéticas, já que não seriam consequência do antagonismo entre capital e trabalho. Ou 2) aquele sistema social que emergiu da empreitada revolucionária não era socialismo. Era uma forma metamorfoseada de controle do capital, que se distingue do capitalismo, mas que possui pontos em comum em sua essência, a partir do antagonismo capital-trabalho que continuou existente. Essa segunda alternativa para pensar tal problemática tem como fundamentação teórica o pensamento de István Mészáros, contido em sua principal obra intitulada Para além do capital.1 1 Conferir o capítulo 17, intitulado “Formas mutantes de controle do capital”. Nesse capítulo, o autor aborda diretamente essa questão da metamorfose da forma de controle do capital, o significado mais abrangente de capital na concepção de Marx, a distinção entre capital e capitalismo e trata de alguns problemas internos importantes da experiência soviética até sua passagem de volta ao capitalismo; mas o leitor pode encontrar diferentes pontos de sua argumentação sobre a permanência do capital na experiência soviética em todas as partes do Para além do capital. Vejamos um pouco melhor esta argumentação.

A permanência do sistema do capital na experiência soviética, apesar da destruição revolucionária do capitalismo

A permanência do capital na experiência soviética é uma das teses fundamentais presentes na obra Para além do capital. Para tal argumentação, Mészáros realiza uma apropriação da concepção de capital de Marx, uma vez que este último não poderia imaginar as formas concretas nas quais o sistema do capital se desenvolveria no século XX. Essas formas inéditas são muito desconcertantes, sobretudo se restringirmos a crítica de Marx ao capital apenas à forma capitalista de produção do capital.

Para Marx (em O capital), estava claro que o “capital” é uma relação social de produção. Nas palavras do autor: “capital não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas intermediada por coisas”. Ou seja, “o capital é uma relação social de produção. É uma relação histórica de produção” (Marx, 1984MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1984. v. II., p. 296). Portanto, ainda que Marx, ao analisar cientificamente o capital, tivesse em mente a forma de produção capitalista, considerava que capital não era uma “coisa” que poderia simplesmente ser expropriada.

Com o desenvolvimento da relação-capital no processo de produção, tornando-se o comando sobre o trabalho, o “capital” se torna uma relação social coercitiva. Sua finalidade é obrigar os produtores a produzir uma riqueza superior ao necessário para garantir a sobrevivência deles como produtores. Desta maneira, é caracterizado como “produtor de laboriosidade alheia, extrator de mais-trabalho e explorador da força de trabalho”,constituindo-se como um sistema de produção e reprodução social (Marx, 1983MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983. v. I., p. 244; grifos nossos).

Mészáros, portanto, enfatiza que para a emancipação da humanidade em relação ao capital, “as mudanças exigidas na produção e na distribuição equivalem à total erradicação do capital, como comando sobre o trabalho, do sociometabolismo” (Mészáros, 2009MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 722). Se a relação-capital continuar a realizar o comando sobre o trabalho, dominando a forma como os indivíduos realizam o metabolismo social, essa relação de produção está destinada a permanecer, a despeito das mudanças históricas mais significativas na forma como esse comando sobre o trabalho é realizado.

Em Para além do capital encontramos quatro condições que são consideradas necessárias em todas as formas concebíveis da relação-capital desenvolvida, caracterizadas de tal maneira que não se restringem ao capitalismo. Elas são:

  1. a separação e a alienação das condições objetivas do processo de trabalho do próprio trabalho;

  2. a imposição de tais condições objetivadas e alienadas sobre os trabalhadores como um poder separado que exerce comando sobre o trabalho;

  3. a personificação do capital como “valor egoísta” - com sua subjetividade usurpada e sua pseudopersonalidade - que persegue sua própria autoexpansão, com uma vontade própria (sem a qual não poder ser “capital-para-si” como controlador do sociometabolismo); uma vontade, não no sentido do “capricho individual”, mas no de definir como sua finalidade internalizada a realização dos imperativos expansionistas do capital em si (daqui a noção grotesca de “acumulação socialista”, a ser realizada sob o comando inquestionável do burocrata de tipo soviético; também é importante sublinhar aqui que não é o burocrata que produz o perverso sistema do capital de tipo soviético, por mais que ele esteja implicado em sua desastrosa condução, mas, antes, a forma de capital pós-capitalista herdada e reconstituída faz emergir sua própria personificação na forma do burocrata como o equivalente pós-capitalista do antigo sistema do capital orientado-para-a-expansão-econômica que deu origem ao capitalista privado); e

  4. a equivalente personificação do trabalho (isto é, a personificação dos trabalhadores como “trabalho” destinado a entrar numa relação de dependência ou contratual/econômica ou politicamente regulada com o tipo historicamente prevalecente de capital), confinando a identidade do sujeito deste “trabalho” às suas funções produtivas fragmentárias - o que ocorre quando pensamos na categoria de “trabalho” como o trabalhador assalariado sob o capitalismo ou ainda como o “trabalhador socialista” cumpridor e supercumpridor de normas sob o sistema do capital pós-capitalista, com sua forma própria de divisão horizontal e vertical de trabalho. (Mészáros, 2009MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 720-721)

Diante dessas quatro condições essenciais, podemos dizer que, na concepção de Mészáros, o trabalhador soviético ainda estava separado e alienado das condições objetivas do seu processo de trabalho. No sistema soviético, ainda havia uma imposição das condições objetivadas e alienadas sobre os trabalhadores através de um poder separado em relação a eles e que exerce o devido comando sobre o trabalho. O trabalhador soviético, portanto, continuou uma personificação do trabalho.

A respeito da nossa discussão sobre a “questão social” e sua relação intrínseca com a essência do sistema do capital, vemos que, para o autor, “essas quatro condições básicas são constitutivas do ‘sistema orgânico’ do capital e compatíveis com todos os tipos de transformações parciais sem que isso altere sua substância” (Mészáros, 2009MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 721; grifos nossos). Assim, em vez de criar um sistema orgânico alternativo verdadeiramente socialista, “a ordem pós-revolucionária de tipo soviético” funcionou “dentro dos parâmetros estruturais do sistema do capital” (Mészáros, 2009MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 178).

Portanto, para Mészáros, a obra de Marx é fundamental para entender as profundas contradições da experiência soviética, uma vez que não faz sentido conceber a obra do pensador alemão como uma crítica meramente ao sistema capitalista, enquanto o comando do trabalho continuar imposto aos trabalhadores por uma “vontade alheia”, um poder separado dos produtores. A crítica de Marx, em O capital, é muito mais abrangente do que uma crítica ao sistema capitalista de produção do capital. E, por isso, para o pensador húngaro:

Marx escreveu O capital a serviço do rompimento do domínio do capital, não apenas do capitalismo. No entanto, estranhamente, é sobre a avaliação desta mais íntima natureza do seu projeto que os desentendimentos são maiores e mais danosos. O título do livro I de O capital foi traduzido pela primeira vez para o inglês, sob a supervisão de Engels, como “Uma análise crítica da produção capitalista”, enquanto o original é “O processo de produção do capital” (Der Produktionsprozess des Kapitals), o que é algo radicalmente diferente. O projeto de Marx se ocupa das condições de produção e reprodução do capital em si - de sua gênese e sua expansão, assim como das condições inerentes que prenunciam a sua supressão por meio de um “longo e doloroso processo de desenvolvimento” -, enquanto a mal traduzida versão fala apenas de uma dada fase da produção do capital, confundindo problematicamente os conceitos de “produção capitalista” e “produção do capital”. (Mészáros, 2009MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 1028-1029).

Na perspectiva desse autor, o resultado da empreitada revolucionária não foi a superação da relação de produção que, baseada na indústria moderna, estava fundamentada na expropriação do trabalho excedente do produtor. Na verdade, em 1917 o Partido Bolchevique conquista o poder estatal e se torna o “controlador das funções estatais diretas”. Além disso, supervisionava “em sua totalidade e em cada um dos detalhes - o processo reprodutivo material e cultural” (Mészáros, 2009MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 780). Desta forma, depois que o poder estatal foi tomado e os capitalistas foram expropriados, a relação de produção que emergiu para dar continuidade à vida social soviética era uma relação social profundamente antagônica no que se refere ao controle e à produção, e isso “criou uma relação capital-trabalho sem igual na sociedade pós-revolucionária” (Idem). Ou seja, como a relação-capital (o sistema do capital), até então, significava apenas o sistema capitalista de produção, a nova relação que emergiu da sociedade soviética criou uma relação entre o capital e o trabalho considerada inédita na história da humanidade.

O Estado, controlado pelo Partido Bolchevique, depois da expropriação da classe capitalista, tinha a função de determinar “diretamente a alocação de recursos sociais, as condições e a intensidade do trabalho, a taxa de extração do excedente e da acumulação, além da participação de cada indivíduo naquela parcela do produto social disponível para o consumo” (Mészáros, 2009MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 1027). Portanto, “A partir daí, confrontamo-nos com um sistema de produção no qual a extração do trabalho excedente é determinada politicamente da forma mais sumária, utilizando-se critérios extraeconômicos (em última instância, a própria sobrevivência do Estado)” (Idem).

Diante disso, na concepção do autor, não se pode confundir esse sistema social soviético com algo radicalmente diferente do sistema capitalista. Nas suas palavras:

Presume-se que o novo modo de reprodução social funcione com base nas decisões verdadeiramente democráticas e conscientemente planejadas de todos os indivíduos, embora estes na realidade estejam tão à mercê da “força das coisas” quanto no passado. A sociedade é administrada pelo novo tipo de “personificações do capital”, os burocratas do partido do sistema pós-capitalista do capital, cuja função primordial é impor ao novo tipo de “personificações do trabalho” (os “trabalhadores socialistas”, de quem se extrai, não de modo economicamente controlado, o trabalho excedente) os imperativos de um sistema reificado e fatalmente alienador de reprodução sociometabólica. (Mészáros, 2009MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 206)

A partir dessa abordagem meszariana da concepção de capital, podemos momentaneamente focar em algumas caracterizações de Marx que são válidas para além do sistema capitalista de produção do capital (ainda que o próprio Marx não vislumbrasse essa possibilidade), para refletir sobre a chamada “questão social”.

Em “Lei geral da acumulação capitalista”, capítulo importante para os pensadores marxistas da área do Serviço Social na abordagem dessa temática, vemos que a lei da acumulação do capital tem como resultado uma situação válida para o capital pós-capitalista soviético, apesar das outras caracterizações próprias do sistema capitalista, na medida em que ela resulta numa miséria que se acumula numa relação correspondente à acumulação do próprio capital: “a acumulação da riqueza num polo é, portanto, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravidão, ignorância, brutalização e degradação moral no polo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como capital” (Marx, 1984MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1984. v. II., p. 210).

Em “A assim chamada acumulação primitiva”,outro capítulo muito importante para se abordar a relação do sistema do capital com a “questão social”, após uma caracterização que diz respeito essencialmente ao modo de produção capitalista, Marx formula a questão da acumulação primitiva de uma forma que nos ajuda a refletir sobre a permanência do capital para além do modo de produção capitalista de capital. O autor argumenta que

A relação-capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho. Tão logo a produção capitalista se apoie sobre seus próprios pés, não apenas conserva aquela separação, mas a reproduz em escala sempre crescente. Portanto, o processo que cria a relação-capital não pode ser outra coisa que o processo de separação de trabalhador da propriedade das condições de seu trabalho, um processo que transforma, por um lado, os meios sociais de subsistência e de produção em capital, por outro, os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A assim chamada acumulação primitiva é, portanto, nada mais que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ele aparece como “primitivo” porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde. (Marx, 1984MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1984. v. II., p. 262; grifos nossos)

Vemos, nesta passagem, a ênfase de Marx na caracterização da relação-capital enquanto uma relação que se estrutura na separação dos trabalhadores da propriedade das condições para realizar seu próprio trabalho, no contexto da grande indústria. O segredo da chamada acumulação primitiva é justamente o processo histórico que configura essa separação moderna do produtor dos meios de produção. A partir da análise de Mészáros, essa caracterização certamente é válida para o capitalismo - sistema em que isto se configurou pela primeira vez na era moderna - e para a experiência soviética, sistema inédito no qual o capital demonstrou a capacidade de metamorfosear sua forma de controle. Assim sendo, continuariam existindo as consequências devastadoras, na vida dos produtores, dessa forma de produção e reprodução social?

Existia “questão social” na experiência soviética?

Apesar das diferenças muito significativas entre o sistema capitalista e o sistema soviético, vemos que, a partir da perspectiva de Mészáros, continuam válidas caracterizações científicas importantes de Marx a respeito da relação-capital. Um texto que nos dá um testemunho das contradições sociais existentes no capital pós-capitalista soviético é a coletânea de entrevistas de David Mandel com trabalhadores soviéticos intitulada “Rabotyagi - uma visão dos de baixo, após a Perestroika . As entrevistas foram realizadas durante os cinco anos de 1988 até 1993, ou seja, nos anos finais da experiência que começou em 1917. No entanto, os testemunhos dos trabalhadores soviéticos permitem uma aproximação com períodos em que a experiência estava ainda no meio do seu processo, com a existência de gritantes contradições.

É importante mencionar que o próprio título já sinaliza a existência do antagonismo social, na medida em que oferece ao leitor uma “visão dos de baixo” em contraposição aos “de cima”, com o termo rabotyagi significando aqueles indivíduos que exerciam um trabalho fatigante no suposto “socialismo”. Além disso, a ênfase no gozo de direitos sociais importantes (e até avançados para a parte capitalista do mundo daquela época) que os trabalhadores soviéticos puderam experimentar não pode obscurecer que “a qualidade desses direitos deixava sempre a desejar” e que, além disso, eram conseguidos ao preço da privação dos “direitos políticos” (Mandel, 2017MANDEL, D. Rabotyagi - uma visão dos de baixo, após a Perestroika (Introdução e capítulo I). In: PANIAGO, Maria Cristina Soares (org.). Mészáros e a crítica à experiência soviética. São Paulo: Instituto Lukács, 2017., p. 285).

No capítulo 1, David Mandel entrevista Petr Siuda. O título do capítulo é “Sobrevivência e resistência: a história de uma família soviética - Petr Siuda [verão de 1988]”. Para Mandel, a vida de Petr Siuda, moldada pela repressão política, “foi uma expressão concentrada do destino da classe trabalhadora soviética - cuja causa Petr, assim como seu pai antes dele, dedicou-se até o fim” (Mandel, 2017MANDEL, D. Rabotyagi - uma visão dos de baixo, após a Perestroika (Introdução e capítulo I). In: PANIAGO, Maria Cristina Soares (org.). Mészáros e a crítica à experiência soviética. São Paulo: Instituto Lukács, 2017., p. 293).

O pai de Petr Siuda envolveu-se em episódios importantes da história revolucionária da Rússia, como ter dirigido o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores Russos na revolução de 1905 e ser presidente do comitê do partido da indústria de óleo no distrito de Bibo-Eibatsk quando aconteceu a Revolução de Fevereiro de 1917 (cf. Mandel, 2017MANDEL, D. Rabotyagi - uma visão dos de baixo, após a Perestroika (Introdução e capítulo I). In: PANIAGO, Maria Cristina Soares (org.). Mészáros e a crítica à experiência soviética. São Paulo: Instituto Lukács, 2017. p. 294). Mas, segundo Petr, nas memórias do pai se podia perceber que, na reconstrução soviética pós-guerra civil, a revolução já sofria um processo de decadência “quando todo tipo de entulho carreirista encontrou seu caminho para dentro do partido” (p. 296). Seu pai, mantendo os princípios revolucionários, foi preso em 29 de dezembro de 1937 (quando Petr tinha 22 dias de idade) e morreu em 7 de janeiro de 1938 “sob tortura” (Mandel, 2017MANDEL, D. Rabotyagi - uma visão dos de baixo, após a Perestroika (Introdução e capítulo I). In: PANIAGO, Maria Cristina Soares (org.). Mészáros e a crítica à experiência soviética. São Paulo: Instituto Lukács, 2017., p. 297) por defender um camarada do partido que tinha sido falsamente acusado e preso.

Após a prisão do seu pai, sua mãe começa então a ter uma vida de muita dificuldade, não conseguindo “encontrar trabalho por vários meses, e quando encontrava, era sempre temporário” (Idem). Após o nome do pai de Petr ficar limpo para as instituições soviéticas (apesar de sua posição no partido não ter sido restaurada), sua mãe conseguiu um trabalho “como diretora da creche da montadora de navios a vapor Don River” (Idem). Mas em agosto de 1943 sua mãe foi presa. O fato foi que ela demitiu a tesoureira da creche que “era uma ladra”, e, “por vingança, a mulher acusou falsamente minha mãe de agitação antissoviética”. Ela então “pegou sete anos, uma sentença relativamente branda naquela época” (Mandel, 2017MANDEL, D. Rabotyagi - uma visão dos de baixo, após a Perestroika (Introdução e capítulo I). In: PANIAGO, Maria Cristina Soares (org.). Mészáros e a crítica à experiência soviética. São Paulo: Instituto Lukács, 2017., p. 298).

Sua mãe foi solta em 1950 e encontrou trabalho “como operária em uma construção em Gornyatsk” (p. 299). Isto não foi bem uma situação feliz para uma rabotyagi, no suposto sistema “socialista”, pois “não havia guindastes nos locais de construção naqueles dias”. Ou seja, sua mãe “carregava tijolos, oito ou dez de cada vez. Ela estava desmaiando de fome, seu nariz e suas orelhas sangravam. Ela trabalhou até a exaustão e deixou sua família quase faminta para conseguir juntar algum dinheiro para viajar para Moscou” (p. 299-300).

Ela precisava viajar para Moscou para chegar até Voroshilov, um amigo da família, e pedir sua ajuda para libertar o irmão mais velho de Petr, que tinha sido “sentenciado em 1947 a 22 anos por roubo à mão armada em Novocheskassk” (Mandel, 2017MANDEL, D. Rabotyagi - uma visão dos de baixo, após a Perestroika (Introdução e capítulo I). In: PANIAGO, Maria Cristina Soares (org.). Mészáros e a crítica à experiência soviética. São Paulo: Instituto Lukács, 2017., p. 300; grifos nossos). Segundo o testemunho de Petr, “um dia ela sentou comigo e disse: ‘Nós temos a chance de comprar uma máquina de costura por quinhentos rublos. Se comprarmos, teremos que passar fome por um tempo. Mas eu conseguirei costurar e ganhar um bom dinheiro’” (Idem; grifos nossos).

Petr também começou sua jornada de trabalhador fatigante bem cedo. Ainda menor de idade, entrou numa escola técnica de mineração e foi para as novas minas quando se formou. A descrição das minas revela um trabalho realmente inadequado para um jovem pobre laborioso: “Era úmido, com um poço inclinado. As condições de vida eram um pesadelo. Vivíamos em abrigos de ferro, cobrindo-nos com cobertores no inverno. Os canos congelavam”. Como tais trabalhadores não tinham, de fato, controle sobre o processo de trabalho e os meios de produção, não poderiam mudar a forma de trabalho ou simplesmente ir embora, “já que os formados eram obrigados a trabalhar por certo período” (Mandel, 2017MANDEL, D. Rabotyagi - uma visão dos de baixo, após a Perestroika (Introdução e capítulo I). In: PANIAGO, Maria Cristina Soares (org.). Mészáros e a crítica à experiência soviética. São Paulo: Instituto Lukács, 2017., p. 302).

Mais tarde, na década de 1960, ele relata que, depois de fugir de uma relação de trabalho degradante nas minas, em uma categoria considerada a “mais baixa e degradada de trabalho assalariado” (p. 307), foi para Novocerkassk. Lá, matriculou-se “como aluno por correspondência no instituto técnico”, conseguindo “um emprego na linha de montagem da Fábrica de Locomotivas Elétricas de Novocherkassk (NELF)” (Idem). Em Novocherkassk, as contradições sociais da vida de um trabalhador soviético não cessaram, pois testemunha que

em 1962, a cidade ainda era classificada como “estudantil” por objetivos de fornecimento de alimentos, mesmo tendo dezenas de fábricas, incluindo as maiores fábricas de locomotivas do mundo, com cerca de 12 mil trabalhadores. E, é claro, as autoridades consideravam que estudantes não precisavam comer tão bem. A situação da comida era horrível. (Mandel, 2017MANDEL, D. Rabotyagi - uma visão dos de baixo, após a Perestroika (Introdução e capítulo I). In: PANIAGO, Maria Cristina Soares (org.). Mészáros e a crítica à experiência soviética. São Paulo: Instituto Lukács, 2017. p. 308; grifos nossos).

Este trecho do seu testemunho demonstra a parte da contradição social referente à alimentação dos trabalhadores na cidade que tinha uma das maiores fábricas do mundo. E, além disto, também temos contato com o problema da moradia dos trabalhadores:

[...] a escassez de moradias também era aguda. A cidade dos trabalhadores era constituída de construções pré-guerra antigas, barracos que datavam, provavelmente, da época da construção da fábrica de locomotivas. Vários outros prédios foram construídos desde 1962, mas em geral o setor de moradias era negligenciado. As pessoas tinham que alugar no setor privado. [...]. Depois desses eventos, a construção de casas foi imediatamente acelerada. Hoje poucas pessoas alugam no setor privado. É claro, pode-se ver como são esses prédios: você congela no inverno e no verão é como uma sauna. Não dá para respirar. (Mandel, 2017MANDEL, D. Rabotyagi - uma visão dos de baixo, após a Perestroika (Introdução e capítulo I). In: PANIAGO, Maria Cristina Soares (org.). Mészáros e a crítica à experiência soviética. São Paulo: Instituto Lukács, 2017., p. 308-309; grifos nossos)

Contra contradições sociais, em 1962 houve manifestações em Novocherkassk e, segundo Petr, nesse episódio, muitos trabalhadores “experimentaram um despertar espiritual, abriram os olhos. A máscara do regime que se dizia popular e afirmava que as empresas pertenciam ao povo foi retirada” (Mandel, 2017MANDEL, D. Rabotyagi - uma visão dos de baixo, após a Perestroika (Introdução e capítulo I). In: PANIAGO, Maria Cristina Soares (org.). Mészáros e a crítica à experiência soviética. São Paulo: Instituto Lukács, 2017., p. 316). O povo não tinha controle social das empresas nas quais eles produziam toda aquela riqueza social. O que existia, como mencionamos por meio da perspectiva de Mészáros, era um profundo antagonismo social de uma forma parcialmente diferente de como acontecia no capitalismo.

Esse trabalhador soviético testemunhou, a partir desses eventos em Novocherkassck, que “os acontecimentos mostraram que a nossa sociedade é, de fato, antagônica, que o Estado está acima do povo. Não se trata do Estado do povo. Ele existe para proteger a classe dos exploradores - os burocratas do partido-Estado cuja plataforma é o stalinismo”. Ou seja, o Estado existia para proteger a classe dos exploradores, enquanto a classe trabalhadora permanecia apenas com a sua própria força de trabalho e, além disso, essa “classe dos explorados diante deles fica com nada mais que os ideais da revolução, como uma espécie de efeito apaziguador” (Mandel, 2017MANDEL, D. Rabotyagi - uma visão dos de baixo, após a Perestroika (Introdução e capítulo I). In: PANIAGO, Maria Cristina Soares (org.). Mészáros e a crítica à experiência soviética. São Paulo: Instituto Lukács, 2017., p. 316). O envolvimento nessas manifestações obviamente custou, no partido e na KGB, uma mancha política em seu nome.

Na década de 1980, ele começou a tentar a sua própria reabilitação junto às autoridades soviéticas, em relação ao seu nome manchado por envolvimento nos protestos de trabalhadores em Novocherkassk. Depois de passar o prazo máximo de três meses para que uma resposta sobre sua reabilitação fosse dada, ele relata: “Eu deixei meu trabalho em março [de 1988] para dedicar minhas energias a essa causa”. Mandel então pergunta, tendo abandonado o trabalho: “Como você se vira?”. Petr Siuda responde: “Bem, nós somos pobres” (Mandel, 2017MANDEL, D. Rabotyagi - uma visão dos de baixo, após a Perestroika (Introdução e capítulo I). In: PANIAGO, Maria Cristina Soares (org.). Mészáros e a crítica à experiência soviética. São Paulo: Instituto Lukács, 2017., p. 327; grifos nossos).

Diante desses trechos do relato de um único trabalhador sobre sua história e de sua família, vemos alguns temas que carregam contradições sociais profundas: a existência dos “de baixo”, o trabalho fatigante que degradam física e moralmente os trabalhadores, crises familiares, assalto, fome, dependência para com a relação de trabalho estabelecida, além da alimentação e moradia inadequadas para os produtores da riqueza social. Um testemunho de um “pobre laborioso” soviético, ainda que com diferenças significativas do “pobre laborioso” capitalista.

Apesar das diferenças entre as duas formas de controle do sistema do capital (pós-capitalista soviético e capitalista), a similitude desses temas com o que Engels aborda na obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra não é de se espantar, partindo da análise meszariana da permanência do capital na experiência soviética. O estudo de Engels é também uma visão dos “de baixo”, sem ser na forma de entrevistas, demonstrando o trabalho fatigante em diversas áreas da produção capitalista que degrada o trabalhador física e moralmente; crises familiares, assaltos e a fome, bem como a alimentação e as moradias inadequadas para o bem-estar também são temas que tocam a vida dos “pobres laboriosos” da Inglaterra. Desta forma, essas contradições sociais soviéticas possuem uma similitude significativa com o relato de Engels, que se configurou como um importante estudo dos primeiros momentos da chamada “questão social”.

Considerações finais

A partir dessas problemáticas, como a análise dos pesquisadores da área do Serviço Social podem conceber a relação entre as expressões da miséria social existente na experiência soviética e a chamada “questão social”, se esta for restrita ao capitalismo?

Esta é uma investigação importante para ser aprofundada nas pesquisas do Serviço Social. Pensamos que a perspectiva teórica de Mészáros sobre a permanência do capital na experiência soviética proporciona uma significativa contribuição para enriquecer a investigação sobre a “questão social”, na medida em que não restringe, ao sistema capitalista, as reflexões mais profundas sobre a crítica à essência do capital, expandindo-as para a experiência pós-capitalista do sistema social soviético. Partindo da perspectiva do pensador húngaro, as investigações do Serviço Social sobre essa temática têm, nas contradições sociais da experiência soviética, um campo aberto para se desenvolver.

Ainda que se supere o capitalismo, se permanecer uma polarização entre a riqueza social e a pobreza social, a existência de dois sujeitos históricos em antagonismo na relação de produção (exploradores e explorados), se permanecer um processo de produção que reproduz a separação entre os produtores e as condições do seu próprio trabalho, que são explorados e por isso vivenciam determinado processo de pauperização que emerge da essência exploradora desse sistema, a validade teórica da reflexão da chamada “questão social” não pode se restringir ao capitalismo.

A importância da teoria elaborada por Karl Marx para compreender o complexo de determinações que caracterizam a “questão social” ganha ainda mais relevância com o desenvolvimento teórico empreendido por Mészáros, uma vez que ele amplia a compreensão do processo de produção do capital, chave para refletir sobre a “questão social”.

Diante disso, podemos dizer que nem as transformações dos diferentes estágios do capitalismo, nem as contradições sociais da experiência soviética produzem uma nova questão social (ou, o que é pior, a inexistência das contradições sociais que poderiam ser caracterizadas como questão social) pois em ambos os casos a essência subjugadora do sistema do capital continua a mesma. Isto certamente provoca novas dimensões e expressões da “questão social”, mas nada que se distancie de sua substância, da essência que caracteriza a relação-capital.

Por isso, faz-se importante agarrar as causas mais essenciais que constituem a base da emergência da “questão social”, sua base ontológica, tanto nas transformações dos diferentes estágios do capitalismo, quanto nas transformações da forma de controle capitalista para a pós-capitalista soviética.

Se, de fato, a chamada “questão social” está fundamentalmente determinada pela natureza própria da relação entre capital e trabalho, uma relação de exploração do trabalho excedente dos produtores, a perspectiva de Mészáros a respeito da relação-capital coloca novas reflexões dentro deste debate, uma vez que tanto não se pode superar a chamada “questão social” enfrentando determinados aspectos do capitalismo, quanto enfrentando apenas determinada forma de controle que o sistema do capital pode desenvolver. Pois, assim, as contradições sociais que são caracterizadas como “questão social” continuariam sustentadas por sua raiz, por sua base material, ainda que não as denominemos dessa forma que ficou conhecida no decorrer do século XIX.

A supressão da chamada “questão social”, a partir desta análise, só se realizará com a superação da exploração do trabalho pelo capital. Não no sentido que confere o tratamento de capital e capitalismo como sinônimos. Mas em toda a abrangência que o “sistema do capital” significa. E não só em relação à experiência passada, mas também em relação ao futuro.

  • 1
    Conferir o capítulo 17, intitulado “Formas mutantes de controle do capital”. Nesse capítulo, o autor aborda diretamente essa questão da metamorfose da forma de controle do capital, o significado mais abrangente de capital na concepção de Marx, a distinção entre capital e capitalismo e trata de alguns problemas internos importantes da experiência soviética até sua passagem de volta ao capitalismo; mas o leitor pode encontrar diferentes pontos de sua argumentação sobre a permanência do capital na experiência soviética em todas as partes do Para além do capital.

Referências

  • ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra São Paulo: Boitempo, 2010.
  • MANDEL, D. Rabotyagi - uma visão dos de baixo, após a Perestroika (Introdução e capítulo I). In: PANIAGO, Maria Cristina Soares (org.). Mészáros e a crítica à experiência soviética São Paulo: Instituto Lukács, 2017.
  • MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983. v. I.
  • MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1984. v. II.
  • MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2009.
  • NETTO, J. P. Apêndice à terceira edição: Cinco notas a propósito da “questão social”. In: NETTO, J. P. Capitalismo monopolista e Serviço Social São Paulo: Cortez, 2011.
  • NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2011.
  • PIMENTEL, E. Uma “nova questão social”? Raízes materiais e humano-sociais do pauperismo de ontem e de hoje. São Paulo: Instituto Lukács, 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    02 Dez 2019
  • Aceito
    20 Fev 2020
Cortez Editora Ltda Rua Monte Alegre, 1074, 05014-001 - São Paulo - SP, Tel: (55 11) 3864-0111 , Fax: (55 11) 3864-4290 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: servicosocial@cortezeditora.com.br