Acessibilidade / Reportar erro

O deciframento de uma realidade em movimento: os caminhos de uma pujante investigação

Interpreting a moving reality: the paths of a vigorous investigation

RESENHA

O deciframento de uma realidade em movimento: os caminhos de uma pujante investigação

Interpreting a moving reality: the paths of a vigorous investigation

Beatriz Augusto de Paiva

Assistente social e professora do Departamento de Serviço Social da UFSC, nos cursos de Graduação e de Pós-graduação. Fez sua graduação e mestrado na UFRJ e o doutorado na PUC-SP. É pesquisadora-fundadora do Instituto de Estudos Latino-Americanos - IELA/UFSC - Florianópolis/SC, Brasil. (www.iela.ufsc.br). E-mail: biapaiva@cse.ufsc.br

É tempo de Suas Esta é uma proposição que traduz muito do sonho e do investimento de militantes e pesquisadores da área da assistência social no Brasil. Todavia, para a grande maioria dos sujeitos que hoje se acercam desta política pública, esta complexa processualidade é repleta de mistérios, como para seus novos trabalhadores, os sujeitos de direitos, os gestores e os estudantes das diferentes profi ssões requisitadas agora a contribuir na construção do Sistema Único da Assistência Social - SUAS.

O que é produto de uma disputa política de décadas parece algo inusitado e de fato desconhecido. Mas a tridimensionalidade do tempo e a práxis dos seus sujeitos políticos fazem do passado ignorado, do presente nebuloso e do futuro desafi ador uma história a ser construída, o que oportuniza uma aposta decisiva: está em curso um processo importante mas contraditório, que devemos conhecer - seja para fortalecer e/ou para transformar.

Este pode ter sido um dos impulsos que levou expoentes intelectuais do Serviço Social, sob a coordenação de Maria Ozanira Silva e Silva, Maria Carmelita Yazbek, Raquel Raichelis e Berenice Rojas Couto, a empreenderem uma prospecção ampla e multifacetada do processo de implantação do SUAS, enriquecida não só pela diversidade da realidade pesquisada mas pela densidade de saberes fecundados. Desde a coordenação compartilhada, reuniram ainda o trabalho de pesquisadores de três fundamentais Programas de Pós-Graduação em Serviço Social, em especial cooperação e intercâmbio.

O livro em tela O Sistema Único de Assistência Social no Brasil: uma realida de em movimento é uma produção intelectual instigante. Com uma única temática transversal, os capítulos combinam diferentes observatórios e perspectivas, alcançando porém uma necessária organicidade, sobretudo pela estrutura teórico-metodológica comum, mas também pela unidade político-acadêmica construída coletivamente. Esta foi sistematizada após a detalhada apresentação dos referenciais metodológicos da investigação, assumida pelas diferentes equipes que cobriram as regiões, estados e municípios selecionados na amostragem. Estes referenciais foram descritos no Capítulo 1, de autoria de Silva e Silva, M. O., demarcando um percurso rico de informações para futuros pesquisadores, evidenciando as possibilidades do conhecimento crítico apoiado em metodologias mistas quali/quantitativas corretamente desenhadas e implementadas. É, portanto, uma marca notável desta obra o rigor teórico-metodológico na construção investigativa, propiciando o deciframento minucioso dos dados, de forma a alcançarem uma cuidadosa reconstrução dialética da processualidade do SUAS em sua implementação.

Assim, com a arquitetura metodológica desenhada, as autoras Couto, Yazbek e Raichelis organizam o ponto de partida teórico-conceitual no capítulo 2. Recuperando o contexto da formulação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS/SUAS), seus termos e conteúdos, sinalizam questões instigantes para o debate, desde a problematização da herança conservadora até a irrupção, por exemplo, da inusitada esterilização dos antagonismos de classe que demarcam a pobreza, a exploração e a desigualdade no conteúdo mesmo do campo da assistência social que a Política Nacional formata para o SUAS. Ali ficam claros os contraditórios processos de expropriação de classe próprios do campo das necessidades sociais sobre o qual a política de assistência social se detém, que todavia são apenas tangenciados nas reflexões sustentadas pela PNAS/SUAS.

O próximo capítulo trata do dimensionamento do suas, em termos das características, estruturas, equipes, financiamento, enfim, com grande nitidez, as autoras apresentam um desenho rico, com dados coletados em forma de questionário via Internetaos sujeitos envolvidos, especialmente trabalhadores, num total de 208 informantes, junto a outros municípios e estados, para além da amostra inicial que deu sustentação à pesquisa qualitativa. Enriquecem de informação um mosaico de aspectos do sistema, cuja heterogeneidade e incompletude revelam o longo caminho para consolidação desta estrutura em todo o país. O Capítulo 3 inaugura com detalhes, a empreitada de análise dos dados obtidos na longa investigação, cujas sutilezas do processo de implantação do Suas será problema tizada no capítulo seguinte.

A pesquisa obrigatoriamente - pela amplitude e extensão, corroborada também pela opção para o tratamento dos dados - produz sem dúvida um livro híbrido. Ao mesmo tempo em que se assemelha a uma coletânea de artigos autônomos, reúne capítulos e sub-itens com múltiplos autores, agrupados distintamente, a recuperarem e aprofundarem os dados obtidos, iluminados pelas distintas realidades estudadas. Porém, a multiplicidade de pesquisadores e autores é antes uma riqueza. Permite conhecer ângulos inusitados, que não só revelam os dados comuns e específicos, mas se valem de arsenal teórico-político obrigatoriamente singulares para as análises, a conferirem uma abordagem distinta para fenômenos aparentemente comuns, ressaltando as inflexões do processo histórico em cada localidade, região e cultura política.

O Capítulo 5 oferece um desfecho para a síntese. Coteja os aspectos fundamentais desta construção coletiva, que é a afirmação de um direito social incompreendido, ao tempo em que não renuncia em revelar os desafios e contradições que intencional ou involuntariamente hoje sobredeterminam a implantação do Suas no país.

Vale registrar que a obra em tela está a altura da ambição teórica e política que a moveu. Apoiada pela Capes em linha de financiamento para fomentar a cooperação acadêmica entre centros de pesquisa e pós-graduação, combina estratégias metodológicas distintas e complementares, conferindo profundidade no manuseio dos dados empíricos, sejam quantitativos ou qualitativos. Recebe e estimula diversos pesquisadores que estão em doutoramento ou mestrado, preparando-os para o artesanato da pesquisa científica tão cara para o Serviço Social como área de conhecimento. Permite um amplo panorama, desde a realidade esmiuçada de mais de duas centenas de municípios, cujas informações compiladas oferecem um panóptico valoroso da dinâmica de construção de um direito social, no contexto de uma ambígua percepção sobre sua relevância e de sua notória inadequação aos tempos de ajuste fiscal e restrição orçamentária, impostas pela ofensiva neoconservadora que inspira o capitalismo desde os anos 1980.

A pesquisa que dá conteúdo ao livro organizado por Silva e Silva; Yazbek; Raichelis; Couto, além de descortinar um processo real e contraditório do novo desenho da política de assistência social com o Suas, instiga muitos novos temas, dentre eles a contextualização da conjuntura política e econômica do Estado brasileiro, que teoricamente se propõe a assumir sua responsabilidade republicana e a protagonizar a garantia de um direito social para universalizar a seguridade social no país.

Esta contextualização, deixada para estudos futuros, conta agora com um aporte fundamental. As contradições e limites problematizados com a pesquisa permite-nos reconhecer que o direito socioassistencial não avançará como estratégia central para universalização da seguridade social sem que os elementos que atam o trabalho superexplorado aos direitos sociais sejam reconhecidos e legitimados como especificidade própria dos países latino-americanos. Dada a nossa condição de países dependentes, decorrente do destino periférico das nações do sul (político) do mundo na dinâmica imperialista de dominação do capital, a assistência social e todas as políticas sociais encontram-se num porvir: inscreverem-se - como contributos inalienáveis da democratização social e econômica - em um lugar novo e decisivo para a disputa do excedente e para a construção de um pujante sistema único, efetivamente universal e público, não só da assistência social, mas da educação e de toda a seguridade social em nosso país e continente.

Por fim, vale assinalar, "o sistema único de assistência social no Brasil: uma realidade em movimento" é produto de um tempo e espaço genuínos da pesquisa, mas não aquela que tangencia a vida social, encastelando a universidade no monólogo academicista. Esta obra nos oferece um conhecimento autônomo e coletivo ao mesmo tempo, e esclarecedor dos imensos desafios que a área comporta. Conhecimento este que não pode prescindir de fundamentos teóricos fecundos, mas que não abre mão da testagem e da descoberta das nuances empíricas, numa perspectiva crítica e comprometida com o projeto de sociedade emancipada.

Por meio de investigação conduzida com destreza pelas pesquisadoras e suas equipes, temos acesso a uma análise essencialmente crítica e generosa da recente e ousada arquitetura institucional para a garantia do direito socioassistencial em nosso país. O tempo da construção do Suas está, portanto, mais iluminado.

Recebido em mar/2011

Aprovado em abr/2011

  • COUTO, Berenice Rojas; YASBEK, Carmelita; SILVA E SILVA, Maria Ozanira da; RAICHELIS, Raquel. O Sistema Único de Assistência Social no Brasil: uma reali dade em movimento. São Paulo: Cortez, 2010.301p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jul 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 2011
Cortez Editora Ltda Rua Monte Alegre, 1074, 05014-001 - São Paulo - SP, Tel: (55 11) 3864-0111 , Fax: (55 11) 3864-4290 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: servicosocial@cortezeditora.com.br