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Produzindo dados e operando sistemas: o trabalhador do SUAS diante dos desastres socioambientais

Producing data and operating systems: the social worker in the face of socio-environmental disasters

Resumo:

O artigo analisa os impactos socioterritoriais provocados por desastres com barragens à luz da Vigilância Socioassistencial. Adotou-se o método qualitativo, por meio de análise documental e técnica, de cidades impactadas por desastres com barragens de mineradoras em Minas Gerais (Brasil). Concluiu-se que as condições objetivas de respostas no campo da Assistência Social estão aquém dos preceitos internacionais de Gestão Integral de Riscos e de Desastres (GIRD), destacando foco para o aprimoramento específico para uma gestão planejada e compartilhada de Redução de Riscos de Desastres (RRD).

Palavras-chave:
Desastres; Proteção social; Vigilância socioassistencial; Redução de Risco de Desastres

Abstract:

The article analyzes the socio-territorial impacts caused by disasters with dams in the light of Social Assistance Surveillance. We adopted the qualitative method based on documental and technical analysis of cities impacted by disasters with mining dams in Minas Gerais/BR. We concluded that the objective conditions of answers in the field of Social Assistance fall short of the international precepts of Disaster Risk Management (DRM), highlighting a focus for specific improvement for a planned and shared management of Disaster Risk Reduction (DRR).

Keywords:
Disasters; Social protection; Social assistance surveillance; Disaster Risk Reduction

Introdução

A história da gestão dos desastres no Brasil passou de uma perspectiva essencialmente ocupada com ações de resposta para o que hoje se compreende por Redução de Riscos de Desastres (RRD), ou seja, um movimento de fortalecimento das ações de prevenção e mitigação ante os riscos de desastres. Estratégias mais econômicas, normalmente, não estruturais, sopradas aos quatro ventos pelos marcos internacionais que orientam normativas de países-membros signatários das Nações Unidas ao compasso do Marco de Sendai para RRD. Máximas endossadas pela ciência, desde a Sociologia dos Desastres, pela lógica da previsibilidade e da proteção da vida humana com produção sustentável.

De acordo com o Inmet (2021INSTITUTO NACIONAL DE METEOROLOGIA (INMET). Danos sociais e econômicos decorrentes de desastres naturais em consequência de fenômenos meteorológicos no Brasil: 2010 - 2019. [2021]. Disponível em: Disponível em: https://portal.inmet.gov.br/uploads/publicacoesDigitais/impactos-clima-2010-20192.pdf . Acesso em: 20 ago. 2021.
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), entre os anos de 2010 e 2019, os desastres oriundos dos efeitos climáticos mataram 1.734 pessoas no Brasil, afetaram 211 milhões e custaram mais de R$ 300 bilhões em prejuízos. Nesse sentido, a premissa é a de que os desastres, tanto os de origem antropogênica quanto os consequentes das mudanças climáticas, são fenômenos líquidos e certos aos quais estaremos todos suscetíveis, em alguma medida. Dessa perspectiva, fundamentada na máxima de que não se pode administrar aquilo que não se conhece, é que o campo da Vigilância Socioassistencial no âmbito do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) deve ser um continuum aprimorado.

Dados do Censo SUAS (Ministério da Cidadania, 2019MINISTÉRIO DA CIDADANIA (MC). Secretaria Nacional de Assistência Social. Censo SUAS 2019: bases e resultados. Brasília, 2019. Vigilância Socioassistencial - Secretaria Nacional de Assistência Social - Ministério do Desenvolvimento Social (mds.gov.br). Disponível em: Disponível em: https://blog.mds.gov.br/redesuas/censo-suas-2021/ Acesso em: 5 dez. 2021.
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) indicam que apenas 31,75% das municipalidades possuíam um setor de Vigilância Socioassistencial constituído. Ao passo que para uma gestão de redução de riscos de desastres efetiva, o desenho de cenários de riscos deve vir a ser conduzido como produto dos setores de Vigilância Socioassistencial e absolvido como instrumento para operadores da Política de Assistência Social nos municípios, nas secretarias de estado e no governo federal.

Dois grandes acidentes ambientais assinados por empresas privadas no Brasil eclodiram em decorrência de ações criminosas colocadas em curso pela mineração de ferro. Em novembro de 2015, mês e ano do primeiro acidente, 19 pessoas morreram, 650 quilômetros do rio Doce foram afetados e 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos de extração de minério de ferro altamente contaminantes passaram sobre 39 cidades (Senado Federal, 2019SENADO FEDERAL. Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI de Brumadinho e outras barragens. Brasília, jul. 2019. Relatório.). Somente em Mariana, dois distritos - Bento Rodrigues e Paracatu - foram completamente devastados pelo rio de lama tóxica da mineradora Samarco S.A. Um contingente de famílias que vivia na área rural do município foi forçado a migrar para o centro da cidade, do dia para a noite - pois somente na zona mais urbanizada seria possível acomodar e prestar alguns serviços emergenciais. Ao SUAS, denominado “serviço de proteção em situação de calamidades públicas e de emergências”, cumpria a oferta de acolhida, alimentação e alojamento provisório, além da articulação do acesso aos benefícios emergenciais diante de perdas e danos deflagrados pelo desastre (MDS, 2014MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME (MDS). Tipificação nacional dos serviços socioassistenciais. Brasília, 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/tipificacao.pdf . Acesso em: jan. 2021.
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).

Em janeiro de 2019, na cidade de Brumadinho, notificaram-se 270 mortes, entre confirmadas e presumidas. Considerado o maior acidente de trabalho registrado no Brasil, o desastre ocorreu à luz do dia, em horário de almoço, nas instalações da Vale S.A., tendo sido constatada a morte de 120 colaboradores no seu espaço de trabalho, sobretudo porque a sede administrativa, o refeitório e o centro administrativo estavam no epicentro do desastre (Senado Federal, 2019SENADO FEDERAL. Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI de Brumadinho e outras barragens. Brasília, jul. 2019. Relatório.). O crime foi classificado como o maior desse tipo no país, tendo afetado 48 municípios ao longo de 546,5 quilômetros da calha do rio Paraopeba, com estimativa de 1,3 milhão de pessoas afetadas somente no trajeto, o que acentuou a insegurança hídrica da capital do estado de Minas Gerais e de outras tantas cidades que vivenciavam a cultura do rio (Senado Federal, 2019SENADO FEDERAL. Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI de Brumadinho e outras barragens. Brasília, jul. 2019. Relatório.).

Por que hoje, diante da circulação planetária do novo coronavírus, devemos nos colocar diante daqueles episódios? Em primeiro lugar, é fundamental romper com os processos de naturalização dos desastres comumente absorvidos pela cultura brasileira; já agora, inclusive, desastres múltiplos. Depois, será preciso reiterar que a complexidade implicada nas circunstâncias demanda respostas igualmente complexas e que perpassam diversas áreas do conhecimento. Por último, e não menos importante, deve-se evidenciar a relevância da coprodução do conhecimento científico, ancorado no chão de quem vive e opera as condições objetivas de respostas públicas de proteção social para a população mais vulnerável nos contextos de desastres.

Desde os impactos ambientais, a morte das vidas humana e animal, passando pelas alterações socioeconômicas, até os novos prognósticos para a gestão pública, chegando ao “desafio da sociedade brasileira diante de o desastre [e o desafio de] reverter a trágica sina do esquecimento e da naturalização” (Lacaz; Porto; Pinheiro, 2017LACAZ, F. A. C.; PORTO, M. F. S; PINHEIRO, T. M. M. Tragédias brasileiras contemporâneas: o caso do rompimento da barragem de rejeitos de Fundão/Samarco. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 42, e9, 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbso/a/5K38Dp8mVGv6jygHLGzPNGG/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 3 out 2021
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, p. 3), vimos a oportunidade de discutir os pontos convergentes entre ambos os crimes, para o aperfeiçoamento das bases do trabalho social em contexto de desastres e calamidades públicas provocados por acidentes com barragens, de caráter tecnológico.

A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) informa que são 22.525 barragens distribuídas entre todos os estados da federação, cuja classificação de segurança pode variar entre baixo, médio e alto risco. Cerca de 10% delas são classificadas como de alto risco (2.488) e estão localizadas, em maior concentração, nos estados da Paraíba (16,52%), Minas Gerais (12,54%), Bahia (10,69%) e Rio Grande do Norte (10,21%) (ANA, 2016AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS (ANA). Encarte especial sobre a Bacia do Rio Doce. Rompimento da Barragem em Mariana/MG. Conjuntura Recursos Hídricos no Brasil, Informe 2015. Brasília: Superintendência de Planejamento de Recursos Hídricos (SPR), 2016. Disponível em: Disponível em: https://arquivos.ana.gov.br/RioDoce/EncarteRioDoce_22_03_2016v2.pdf . Acesso em: 5 dez. 2021.
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).

Tabela 1.
Categorias de risco de barragens no Brasil, 2021

Os impactos socioambientais são incalculáveis e as perdas imateriais e de vidas não têm preço. É muito difícil calcular a compensação adequada aos impactos da poluição das águas em rios e bacias que afetam diretamente a sobrevivência de espécies humana, da fauna e da flora em médio e longo prazos. Os povos ribeirinhos e todos aqueles que, de alguma forma, se relacionam com os rios para a venda ou subsistência de sua produção - já agora tomados por lama e água tóxica - tiveram ceifados seus ofícios e meios seguros de sobreviver; o que não exclui proprietários de terras produtivas mais abastados, que não vêm as propostas de indenização condizentes com seus prejuízos.

Mesmo antes da decretação da pandemia, a Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS) vinha procurando aprimorar conteúdos quanto a “provisões de benefícios eventuais em situações temporárias e de calamidade pública [...] e subsídios para orientação técnica e metodológica para atuação em contextos de desastres (durante e pós-emergência e calamidade pública)” (Sposati, 2020SPOSATI, A. (org.). SUAS e proteção social na pandemia de covid-19: nota técnica do NEPSAS. São Carlos: Pedro & João Editores, 2020., p. 77), por meio de consultorias especializadas que, infelizmente, não tiveram seus conteúdos publicizados mais amplamente até o presente e, agora, estão ainda mais diluídas com as investidas para a crise sociossanitária.

Nesse sentido, o artigo se concentra em analisar as transformações socioterritoriais em municípios impactados por desastres ambientais, sob a perspectiva da Vigilância Socioassistencial, procurando associar a experiência ao convívio das calamidades múltiplas dado o contexto da pandemia, que tende a acirrar ainda mais as adversidades socioterritoriais a partir de contextos de exploração mineral depredatórios e aparentemente não controlados, como se veem diante das barragens de alto risco e impactos.

1. Do contexto político-organizacional

As condições particulares em que a normalidade social acena para a necessidade de ações socioassistenciais reconstrutivas, a exemplo da reparação de vínculos familiares (1), comunitários (2) e entre os sujeitos atingidos, direta ou indiretamente e (3) o território afetado. Isso quer dizer, de modo breve, que os programas e os projetos sociais prestados pelos governos devem orbitar ao redor das demandas das famílias; o que, na ocasião de eventos desastrosos, significa atenção aos protocolos e às reivindicações - tanto as anunciadas pelos sujeitos de direitos quanto aquelas intuídas pelos trabalhadores sociais.

Conhecer a cultura daqueles que passaram ou estão passando por uma situação de emergência ou de desastre é fundamental para que não sejam invadidos ou desqualificados em seus valores por pura ignorância que, junto à crença de saber o que é melhor para o outro, pode criar situações insuperáveis que agravam determinadas relações já tão delicadas (Viana et al., 2014VIANA, A. S. et al. Saúde humana e saúde ambiental em contexto de desastre. In: CARMO, R.; VALENCIO, N. (org.). Segurança humana no contexto dos desastres. São Carlos: RiMa Editora, 2014. p. 109-126., p. 111).

O desastre cunha o estigma de “desalojado” ou “desabrigado”. Desalojados assim nomeados os qualificados pela perda temporária ou permanente de sua residência, mas com a presença de um membro familiar a quem possam recorrer. Desabrigados os vitimados duas vezes - perdem sua casa e não têm a quem recorrer senão a um abrigo temporário. Os atendidos “precisam tentar recriar as práticas associadas ao mundo privado da casa num outro território forjado pelos órgãos públicos para a suposta segurança das mesmas: os abrigos temporários” (Marchezini, 2009MARCHEZINI, V. Dos desastres da natureza à natureza dos desastres. In: VALENCIO, N. et al. (org.). Sociologia dos desastres: construção, interfaces e perspectivas no Brasil. São Carlos: RiMa Editora, 2009. p. 48-57., p. 53).

A afirmativa assertiva do autor traz elementos acerca da instabilidade da segurança, da precariedade e insuficiência que os abrigos, ditos temporários, ofertam aos usuários. Características que afligem os trabalhadores sociais por princípio, pois se configuram precários espaços para morar, cuja morosidade, atrelada aos processos burocráticos, ultrapassa o significado de temporário.

Portanto, há uma oferta do possível cunhado na incerteza das instituições, a que o autor denominou “solução-problema”, ou seja, ofertas pautadas nas condições objetivas de resposta e não de proteção ou de direito (Marchezini, 2009MARCHEZINI, V. Dos desastres da natureza à natureza dos desastres. In: VALENCIO, N. et al. (org.). Sociologia dos desastres: construção, interfaces e perspectivas no Brasil. São Carlos: RiMa Editora, 2009. p. 48-57., p. 51).

A ação preventiva, cara ao planejamento das políticas públicas mais modernas, perfaz o caminho estratégico em que deve ancorar a tomada de decisão. No âmbito do SUAS, essa atividade ocorre no campo da Vigilância Socioassistencial. Embora nem sempre um setor estruturado nas esferas municipais, sobretudo, em municípios de pequeno porte, seja a área estratégica do SUAS que opera a gestão da informação desde o campo, com demandas da população, passando pelas capacidades objetivas de resposta, até a observância da qualidade dos dados e informes interentes federados. Mas consumado o fato, como orientar famílias devastadas por desastres, com respostas ancoradas em inquéritos que registram em texto literalidades como: “A Vale já havia estimado, com grande precisão, que cerca de trezentas pessoas morreriam em caso de rompimento da barragem” (Senado Federal, 2019SENADO FEDERAL. Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI de Brumadinho e outras barragens. Brasília, jul. 2019. Relatório., p. 281)?

Os desastres nunca são naturais. Se, por um lado, a noção de risco existe, por outro, sua comunicação também deve ser reconhecida por parte daqueles que se afetariam. Assim, não bastaria identificar, mas qualificar e caracterizar a potência e o tipo de risco com certa previsibilidade, conforme preconizado pela Gestão de Riscos de Desastres (GRD).

O conhecimento do risco envolve ainda compartilhar esse conhecimento para que seja apropriado por toda a sociedade, pelos tomadores de decisão e pelos agentes públicos, setor privado e comunidades responsáveis pela GRD. Envolve, portanto, mecanismos e estratégias de transferência de informação com base em processos de educação e comunicação que apoiem os eixos de redução dos riscos e manejo dos desastres (MDR, 2021MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL (MDR). Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil. GIRD + 10: caderno técnico de gestão integrada de riscos e desastres. Coordenação: Samia Nascimento Sulaiman. Brasília, 2021., p. 20).

De acordo com Londe et al. (2020LONDE, L. et al. Saúde, vulnerabilidade e desastres em ambientes rurais e urbanos de Santa Catarina. In: REDUÇÃO do risco de desastres e a resiliência no meio rural e urbano. 2. ed. São Paulo: CPS, 2020. p. 61-75.), há uma herança da abordagem circunscrita ao compartilhamento de informações exclusivamente entre o corpo técnico da operação dos desastres, desconsiderando a população na formulação de planos e da operacionalização das estratégias de resposta. “Os ‘leigos’ que vivenciam as ameaças, as vulnerabilidades e os desastres não são representados como possuidores de informação, conhecimento e sabedoria. As pessoas somente são incorporadas no sistema como receptoras do alerta [...]” (Londe et al., 2020LONDE, L. et al. Saúde, vulnerabilidade e desastres em ambientes rurais e urbanos de Santa Catarina. In: REDUÇÃO do risco de desastres e a resiliência no meio rural e urbano. 2. ed. São Paulo: CPS, 2020. p. 61-75., p. 69). Com o povoado de Bento Rodrigues, situado no município de Mariana, foi assim. Localizado cerca de três quilômetros do local do acidente, teve rejeitos de mineração que cumpriram um trajeto de 100 quilômetros (ANA, 2016AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS (ANA). Encarte especial sobre a Bacia do Rio Doce. Rompimento da Barragem em Mariana/MG. Conjuntura Recursos Hídricos no Brasil, Informe 2015. Brasília: Superintendência de Planejamento de Recursos Hídricos (SPR), 2016. Disponível em: Disponível em: https://arquivos.ana.gov.br/RioDoce/EncarteRioDoce_22_03_2016v2.pdf . Acesso em: 5 dez. 2021.
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), o que significa que a tragédia foi, em algum nível, previsível, de tal modo que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), por meio da Comissão Extraordinária de Barragens, fez incluir no Projeto de Lei (PL) n. 3.676/2016 a proibição de instalação de barragens: “[...] em cuja área jusante seja identificada alguma forma de povoamento ou comunidade”. A extensão mínima entre a barragem e a jusante foi estipulada em mínimos dez quilômetros de distância (ALMG, 2016ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DE MINAS GERAIS (ALMG). Projeto de Lei n. 3.676/2016. Dispõe sobre o licenciamento ambiental e a fiscalização de barragens no estado. Belo Horizonte, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUKEwjMm62gjbT2AhXKqJUCHcXKCVMQFnoECAMQAQ&url=https%3A%2F%2Fpolitica.estadao.com.br%2Fblogs%2Ffausto-macedo%2Fwp-content%2Fuploads%2Fsites%2F41%2F2019%2F01%2FMAR-DE-LAMA-NUNCA-MAIS.pdf&usg=AOvVaw0vEvEA2gWVJFHPNUlGWI2F . Acesso em: 20 ago. 2021.
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). Destaca-se, portanto, a relevância de ações de redução de riscos de desastres, de competência dos entes federativos, por meio de políticas e interveniência nacionais para a redução desses riscos (UNDRR, [2015]UNITED NATIONS FOR DISASTER RISK REDUCTION (UNDRR). Sendai framework: 2015-2030. [2021] Disponível em: Disponível em: https://www.undrr.org/publication/sendai-framework-disaster-risk-reduction-2015-2030 . Acesso em: 1o set. 2021.
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). Mais ainda, o destaque para órgãos de controle e fiscalização, que oficialmente agem em nome da proteção da coletividade e devem se valer de painéis de monitoramento de dados para fazê-lo com presteza.

2. A experiência de Brumadinho

O trajeto entre a provisão (pelo Estado) e o afetado (pelo desastre) esteve cunhado pelas ações dos burocratas de nível de rua que, conforme traduz Lotta (2012LOTTA, G. S. O papel das burocracias de nível da rua na implementação de políticas públicas: entre o controle e a discricionariedade. In: Faria, C. A. P. (org.). Implementação de políticas públicas: teoria e prática. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2012.), transita por regras, muitas vezes, dispostas pelos instrumentais de campo, mas também por fatores individuais, como valores e entendimentos particulares aos operadores das políticas públicas na ponta.

Indo além, tem influência nas especialidades que se encontram no chão da prática profissional, a qual pode ser mesclada de disciplinas diversas, a depender dos encontros que se sucedem, mais por coincidência do que por premissa.

O ineditismo da situação colocou aos trabalhadores sociais de cidade de Mariana alguns desafios e escolhas que, três anos mais tarde, puderam ser analisados com ponderações - impossível no momento da resposta ao desastre. Em Brumadinho, sucedeu-se o mesmo: compreendeu-se que cada desastre encontra-se como fato inédito, mas cuja proximidade e semelhança com Mariana permitiram novos arranjos, sobretudo trazendo para a arena pública o centro de tomadas de decisão, escanteados nas mãos de uma fundação privada, em Mariana (a Fundação RenovaFUNDAÇÃO RENOVA. Programas de infraestrutura e reassentamento. [2021]. Reassentamento e Infraestrutura: Fundação Renova (fundacaorenova.org). Disponível em: Disponível em: https://www.fundacaorenova.org/dadosdareparacao/reassentamento-e-infraestrutura/ Acesso em: 20 ago. 2021.
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).

O desastre da Vale foi um elemento propulsor para a implementação do setor de Vigilância Socioassistencial no âmbito da Secretaria de Desenvolvimento Humano de Brumadinho. Os trabalhadores do SUAS, entre técnicos e gestores, ganharam a oportunidade de “Reconstruir Melhor” junto à população, nos pressupostos de Sendai (UNDRR, [2015]UNITED NATIONS FOR DISASTER RISK REDUCTION (UNDRR). Sendai framework: 2015-2030. [2021] Disponível em: Disponível em: https://www.undrr.org/publication/sendai-framework-disaster-risk-reduction-2015-2030 . Acesso em: 1o set. 2021.
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). Inovaram na criação de um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) especializado em calamidades e que ofertasse atenções da saúde, já que a comunidade demonstrava demanda pelos dois serviços simultaneamente. Desenharam e implementaram pela primeira vez um Centro de Referência de Assistência Social Especializado em Calamidades, o CRASEC-Saúde, equipamento que foi estruturado em prédio da prefeitura, na região central da cidade.

Em um ano, a população residente de Brumadinho saltou de 39.520 habitantes, em janeiro de 2019, para 40.666, em 2020 (IBGE, 2021INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). População estimada. Dados censitários, 2020/21. Rio de Janeiro: IBGE, 2020/2021. Disponível em: Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/mg/brumadinho.html . Acesso em: 20 fev. 2021.
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), e o número não foi maior devido à elevação do custo de vida consequente da injeção de recursos governamentais e privados, no âmbito da reconstrução e das indenizações para todos os moradores que vivem até um quilômetro da calha do rio Paraopeba. Assim, Brumadinho passa a lidar com um contingente de prestadores de serviço da Vale e um boom econômico incompatível com o modo de vida dos brumadinhenses. Em entrevista, o prefeito estimou que são: “[...] mais de 4,5 mil pessoas que estão morando em Brumadinho e são uma população flutuante. Você não conhece quase ninguém. Virou uma cidade perigosa, não é qualquer lugar que você pode caminhar à noite sozinho. Muito do nosso sossego, em várias áreas, acabou” (Itatiaia, 2020ITATIAIA. Brumadinho convive com adoecimento mental e caos gerado por indenizações e auxílios. 24 jan. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.itatiaia.com.br/noticia/brumadinho-convive-com-adoecimento-mental-e-c . Acesso em: 25 ago. 2021.
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).

A reprodução da vida não se faz da mesma forma também com a terra. Problemas mais complexos vêm sendo relatados pelos trabalhadores sociais, a exemplo do êxodo para a cidade, o aumento do custo de vida, a especulação imobiliária, entre outros fatores que apontam para um prognóstico perene de insegurança alimentar e da vida humana (Gomes, 2021GOMES, S. Os impactos sociais vivenciados pela pessoa idosa após o rompimento da barragem de Fundão, no município de Mariana-MG. 2021. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Economia Doméstica, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 2021.). Sem dúvida, nasce um novo campo de intervenção dos trabalhadores do SUAS - qual seja, a atuação em resposta a desastres e calamidades públicas - que, na sua formação e nas suas diretrizes, estava circunscrito à resposta, além de se presumir temporários.

Dessa maneira, evidencia-se continuado estigma que atinge o ponto de referência de cidadania e, na data do desastre, a fundação de uma nova pólis. Talvez desse modo, todos - atingidos, servidores públicos, moradores e forasteiros - possam reificar o sentido de pertença ao novo território, possibilitado por rituais de passagem. Silva (2017SILVA, T. C. As celebrações, a memória traumática e os rituais de aniversário. Revista UFG, v. 9, n. 1, 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/revistaufg/article/view/48157 . Acesso em: fev. 2021.
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) afirma que os rituais criados e celebrados coletivamente são fonte de força e importante artifício para superação do desastre, assim como se vê no festejo dos aniversários do desastre. Elaborados coletivamente, unificam aquilo que há de comum, de perdas e luto passados, oferecendo um sentido de futuro possível engendrado pela força e coragem mútuas, cujos bens compensatórios são requeridos por um somatório de desejos individuais que em nada se parecem com um bem coletivo.

Em 2021, na cidade de Brumadinho, foi entregue um enorme centro de educação integrado com serviço de saúde, no bairro Parque da Cachoeira. Fortemente atingido pelo desastre, o bairro ainda com ares de abandono deixa dúvida quanto à sua capacidade de preencher as vagas e manter o gigantismo da estrutura. Todo um centro de educação que, por ora, descansa solitário, diante de enormes caixas-d’água abastecidas por caminhões-pipa ou do prenúncio do dissenso entre os interesses público, privado e comunitários, quanto a prioridades do acesso à água e ao saneamento básico, por exemplo.

3. Esteiras e fronteiras do trabalho social na reparação

Em Mariana, classificar a população entre “atingidos” e “não atingidos” levou à prática consciente do estigma social. Há escolas separadas, missas separadas, entre outras situações estigmatizantes. A mais agravante, do ponto de vista do trabalhador social, fundamenta-se no que tendemos a qualificar como “crise rica”, um processo de esgarçamento do tecido social provocado pela desestruturação abrupta da economia local. Por um lado, as indenizações pagas pelas empresas são valores maiores e absolutamente desproporcionais aos auxílios emergenciais ou aos benefícios eventuais possibilitados pelo governo para situações de calamidade. Por outro, a paralisação das operações das empresas leva ao desemprego de quadros, aumentando a taxa de desocupados no local. As definições de alcance, complexidade e morosidade para os processos de reconstrução colocam as cidades num processo de latência especulativa, que acabam elevando em demasiado o custo de vida.

A reparação oferecida pela Vale, em Brumadinho, inclui o auxílio emergencial para 100% da população no valor de R$ 1.000,00; R$ 500,00 e R$ 250,00 (por adulto, por adolescente e por criança, respectivamente), auxílio estendido para dois anos da data do desastre; ao passo que trabalhadores do SUAS operam auxílios do Programa Bolsa Família, por exemplo, estimado em R$ 180,00 mensais por família e, desde a referência do ano de 2020, valores estimados antes da pandemia (Gambardella; Brandão; Ferreira, 2020GAMBARDELLA, A. D.; BRANDÃO, F. S.; FERREIRA, R. A. Desenvolvimento sustentável, calamidades e os desafios para proteção social: a experiência de Brumadinho. In: CONSERVA, M. S.; SILVA, E. L. P.; MENEZES, H. (org.). Desenvolvimento sustentável, territórios e políticas públicas. João Pessoa: Editora UFPB, 2020. p. 86-114.). Nasce, assim, a “crise rica”. Uma nova crise, agora provocada pelas injeções de recursos de alta monta pelas empresas signatárias do desastre, em vários níveis da estrutura política, por meio das ações de compensação e reparação, e que perpassa todo o tecido social local e regional.

A crise rica traz consigo o interesse e a oportunidade para a vida nessas cidades, sobretudo para os forasteiros. Foi assim que os trabalhadores sociais viram nascer novas cidades da noite para o dia. Ocorreu uma complexidade de problemas para o trabalhador social que se via numa cidade pacata e travestida de ruralidades e, como susto, se viu diante da gravidade e da complexidade de problemas dos centros urbanos: gravidez precoce, drogadição juvenil, automutilação, população de rua, depressão, entre outros casos.

Os atores públicos não se relacionam com território a contento. Embora a intersetorialidade seja uma chave-mestra para a resolução mais eficiente de problemas sociais, ainda é refratária na sua implementação. Chegam ao campo para dar conta de seus objetivos e cumprir sua tarefa. Segundo Lotta (2012LOTTA, G. S. O papel das burocracias de nível da rua na implementação de políticas públicas: entre o controle e a discricionariedade. In: Faria, C. A. P. (org.). Implementação de políticas públicas: teoria e prática. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2012.), um comportamento esperado de operadores de políticas públicas de nível de rua, que podem contribuir ou dificultar a integração entre as políticas setoriais na ponta, já que o contexto exige, por um lado, avançar para o cumprimento das políticas instituídas e, por outro, absorver demandas para problemas instituintes que não oficialmente discriminados.

A desarticulação e o desprezo pelo servidor público da ponta são constantes. Somente o chamamento por órgãos de controle, como o Ministério Público, parece ter sido capaz de colocá-los como peças no tabuleiro - sem os quais as empresas fariam a gestão completa e exclusiva dos desastres.

4. O nascimento de “novas cidades”, a reconstrução

Nas cidades em questão, a população tem sido severamente punida pela minero-dependência e pela especulação do capital de maneira indecente e, infelizmente, também por aqueles que lhe devem a garantia do direito de proteção. A título de exemplificação, poderíamos trazer o decreto que autoriza o reajuste dos valores dos jazigos do Cemitério Público Municipal, três meses depois do desastre, que entre os considerandos traz “o elevado aumento da demanda” (PMB, 2019PREFEITURA MUNICIPAL DE BRUMADINHO (PMB). Decreto n. 56, de 21 de março de 2019. Brumadinho, 2019.). Atitudes que atingem todos e expõem os burocratas do nível de rua a situações com muito baixa margem de manobra perante possíveis respostas e para assegurar direitos sociais. Uma sinuca de bico entre poderes e deveres, inclusive éticos, do trabalhador do SUAS, que tende a ser rebatido com o adoecimento dos servidores públicos e da sociedade em sua totalidade.

O tecido social se esgarça, a minero-dependência continua e os lucros das mineradoras nas bolsas de valores crescem, a portas abertas ou fechadas. Mesmo a Vale tendo parado suas operações por um tempo e as retomado parcialmente, a demanda pelo produto no mercado acabou elevando a sua cotação de R$ 36,64 (em janeiro de 2019) para R$ 108,30 (em agosto de 2021). Uma valorização que não se reflete para a massa de atingidos (Statusinvest, [2021]STATUSINVEST. Ações, VALE3. [2021]. Disponível em: Disponível em: https://statusinvest.com.br/acoes/vale3 . Acesso em: 10 ago. 2021.
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).

O precedente da Samarco em Mariana recheou de exemplos aquilo que não deveria se repetir com a Vale em Brumadinho, e foi a troca de experiências entre trabalhadores um ponto expressivo, mas não suficiente, para mudar a relação entre atingidos, empresa e governo. Felizmente, a égide do “somos todos atingidos pela Samarco” contribuiu para que todos os moradores da cidade de Brumadinho fossem indenizados pela Vale - cerca de 37.000 habitantes, à época, receberam indenizações por dois anos e, ainda hoje, há uma pauta de repactuações acaloradas entre a população, Defensoria Pública, Ministério Público e governos (municipal e estadual), diante de deliberações que movimentam recursos de reparação da empresa, a exemplo do Programa de Transferência de Renda de Brumadinho. Assim como em Mariana, a gestão das grandes operações de reparação no território do município teve de ser delegada a uma fundação privada de representação (Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social - AEDAS), o que distancia ainda mais a interveniência da prefeitura e da gestão local da sua capacidade de resposta e de tomada de decisão.

A crise expõe as condições objetivas de resposta dos trabalhadores sociais. No que se pode observar, são parcos e ineficientes serviços focados na resposta, sobretudo abrigo temporário. Nota-se mais dispêndio para oferta de benefícios e auxílios emergenciais do que para serviços de proteção social, dificultando a atuação do trabalhador social no campo.

À primeira vista, as ofertas prestadas pelas empresas são infinitamente superiores, em valores e qualidade, do que as ofertadas pelo Estado: são modernas instalações de resposta, com um quadro multidisciplinar de profissionais, psicólogos, assistentes sociais, advogados, médicos, enfermeiros, educadores, engenheiros etc., levantadas muito rapidamente; são repasses financeiros mais elevados e rápidos de se obter do que os do governo; são ações que concorrem com as respostas dos trabalhadores sociais em patamares muito desiguais.

Isso fragiliza a força das ações coletivas e reduz montantes indenizatórios a valores acordados em entendimentos individuais, muitas vezes cunhados pelo descrédito de órgãos de proteção, órgãos de justiça, desde a urgência e o desespero, entre outros, dificultando a orientação do trabalhador social na sua função de garantidor de direitos.

Se esta premissa é verdadeira - como é na pandemia -, trabalhadores sociais que advogam em causa própria são igualmente afetados. Assim, são também vítimas da toxicidade socioambiental que se instaurou no seu território de vivência. A diferença central é que não conseguem se abastecer dos serviços ampliados de proteção social nos quais trabalham, que elaboram, operam e pelos quais respondem. Os servidores e os trabalhadores sociais são afetados em todos esses prismas, cabendo talvez uma releitura dos fundamentos da sua prática profissional, conduta e código de ética na perspectiva protetiva do cuidar de quem cuida.

Por enquanto, nota-se um traço de confiança que parece se estabelecer entre aqueles trabalhadores que vivenciaram contextos de desastres de um modo particular. Desde então, redes sociais e grupos de WhatsApp têm sido canais de suporte e troca para sua intervenção cotidiana; até porque não se conheceram documentos orientadores nem capacitações específicas no tema de desastres, nem amplamente, para trabalhadores do SUAS.

Considerações finais

A vigilância socioassistencial é fundamental para responder assertivamente e com certa precisão aos fenômenos previsíveis de observação no território. São respostas fundamentadas nas características das demandas de determinado espaço, alimentado pelos relatórios mensais de atendimento, Censos CRAS e CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), entre outros instrumentos da política pública.

A gestão dos desastres socioambientais demandou atuação de profissionais dos diferentes entes federados, enfatizando não apenas a especialidade dos campos de conhecimento, mas também a interoperatividade dos diferentes níveis de gestão governamental. Os trabalhadores do SUAS destacaram a importância do recurso tecnológico (o Cadastro Único da Assistência Social) para que o usuário não fosse obrigado a “repetir a própria história” para cada novo profissional que parasse no caso - fosse um agente da defesa civil, um agente de saúde, assistente social, um bem-intencionado voluntário ou algum emissário da empresa. Assim, o Cadastro Único da Assistência Social configurou a ferramenta oficial mais completa sobre a população e o crivo pelo qual cidadãos desprovidos de registros civis levados pela lama tiveram endossadas sua origem e cidadania.

No campo do Direito dos Desastres, Damacena (2019DAMACENA, F. D. L. Limites e potencialidades do Seguro frente os eventos climáticos extremos. Revista de Direito da Cidade, 38-75, 2019. Disponível em: Limites e potencialidades do seguro frente os eventos climáticos extremos | Damacena | Revista de Direito da Cidade (uerj.br)) vem se debruçando sobre possíveis alternativas de resposta para os atores públicos, privados, pessoas físicas e jurídicas acessarem alguma forma de reparo e/ou indenização, inclusive por meio de seguros, já que a premissa é a de que os desastres, tanto os de origem antropogênica quanto os consequentes das mudanças climáticas, são fenômenos líquidos e certos aos quais estaremos todos suscetíveis, em alguma medida.

Passadas a crise e a fase de resposta, observa-se que o impacto dos desastres não pode ser absorvido pelos profissionais disponíveis, absolutamente insuficientes em quantidade e em especialidade, já que desastres dessas magnitudes revelam a necessidade de conhecimentos de outras naturezas, que não essencialmente as praticadas pelos trabalhadores sociais do SUAS no seu trabalho cotidiano. Assim, além de assistentes sociais e psicólogos, se incluíram outros atores e diferentes áreas do conhecimento na operação de respostas de proteção social: antropólogos, enfermeiros, psiquiatras, advogados, administradores, economistas etc.

Consideradas as falas dos trabalhadores do SUAS, bem como as seguranças básicas afiançadas pela Política Nacional de Assistência Social (PNAS), faz-se necessário estabelecer o diálogo entre os serviços públicos de base territorial e as possibilidades prognosticáveis desde uma observação multidisciplinar e minuciosa do território, especialmente para captar a população mais vulnerável aos desastres. Nesse sentido, extrapolando as zonas de autossalvamento indicadas nos planos de contingência das empresas, quando estão disponíveis e atualizados, mas incluindo áreas suscetíveis à ocorrência de desastres de quaisquer naturezas.

Os sistemas de cadastros são insuficientes para responder às demandas e levam os servidores ao preenchimento compulsório, reincidente, insistente. No fim das contas, é o próprio trabalhador social que opera o assédio que, ao mesmo tempo, viola a si e o atingido. Reforçando a obviedade de que não possuir setor de Vigilância Socioassistencial estruturado reflete a estatura da gestão e do corpo técnico, que merece ser absorvido pelos cursos de capacitação mais especializados para a gestão e a manipulação de dados.

No caso dos desastres socioambientais, são dois os fatores para serem acrescidos: por se tratar de um cadastro setorial, o Cadastro Único da Assistência Social não traz previsibilidade de monitoramento de desastres, nem de ordem natural, nem antropogênicos, mas tão somente um campo fechado de anotação onde se marca presença ou não de calamidade e tipo para todo o município. Além de configurar outra área do saber (próprio da geografia, urbanismo, sensoriamento remoto e áreas afins) que não de proteção social, mas de proteção a desastres. Duas faces de uma mesma moeda em que se tem a proteção à vida como máxima.

O esforço para a inclusão de campos específicos para desastres, como ocorreu a muitas mãos no processo consequente de Brumadinho, é inconsistente do ponto de vista responsivo e discricionário, porque se presta a responder demandas da burocracia institucional para repasses e orçamentação, e não a demandas sociais dos trabalhadores sociais para afiançar ações de proteção social.

Noutra perspectiva, demandas por benefícios eventuais, inicialmente desencadeados pela situação de calamidade pública decorrente do desastre, pouco a pouco vão tomando os contornos da vida cotidiana, passando para demandas normalmente caracterizadas por cestas básicas, nascimento, funeral, passagens intermunicipais, entre outras pontuais e definidas pela municipalidade.

Assim, trabalhadores do SUAS vão operando respostas possíveis de proteção e de direito à população, num trânsito entre aquilo que remete às especificidades de técnicas que nem sempre se sabe se circunscritas à decretação de calamidade ou não. Tampouco o limite do direito, quando o demandante de um benefício eventual, uma cesta básica, por exemplo, pode ser uma vítima do desastre que recebe ou já recebeu indenização.

Isso significa que novos processos de cadastramento devem ser aprimorados, assim como os próprios instrumentos de registro. A estrutura compartimentada na implementação das políticas públicas parece estar ocasionando essa disfunção dos instrumentos de coleta de dados, tão caros na sua qualidade e na precisão no momento do desastre e da resposta. Nota-se, portanto, a relevância da investida nos setores da Vigilância Socioassistencial como esfera de inteligência estratégica não apenas de resposta, mas também de planejamento, para uma direção e resposta mais precisas e preventivas CRAS a CRAS, orientados pela prevenção de riscos de desastres e munidos de estratégias de segurança e “autossalvamento coletivo” para trabalhadores em um campo arriscado e famílias que convivem com riscos de desastres eminentes - e dispõem de saberes e estratégias protetivas que os sistemas de informação ainda não conseguiram captar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2021
  • Aceito
    08 Fev 2022
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