Resumo:
Neste artigo, buscamos examinar como a discussão étnico-racial tem sido feita nos espaços de formação e trabalho, e como os(as) assistentes sociais lidam com o racismo no cotidiano. Este estudo, que articula pesquisas bibliográfica, documental e de campo, evidenciou que a ausência desse debate, durante o processo de formação, fragiliza a apreensão da realidade numa perspectiva de totalidade e contribui para a reprodução das desigualdades históricas vivenciadas pelas populações racializadas.
Palavras-chaves: Serviço Social; Questão étnico-racial; Combate ao racismo; Trabalho profissional; Nucress
Abstract:
In this article, we seek to examine how the ethnic-racial discussion has been carried out in training and work spaces and how social workers deal with racism in everyday life. This study, which combines bibliographic, documentary and field research, showed that the absence of this debate, during the training process, weakens the apprehension of reality in a perspective of totality and contributes to the reproduction of historical inequalities experienced by racialized populations.
Keywords: Social Service; Ethnic-racial issue; Combating racism; Professional work; Nucress
Notas introdutórias
Este artigo é fruto de inquietações do percurso formativo e profissional e se justifica pela necessidade da reflexão acerca das relações étnico-raciais, no sentido de apreender como essa discussão tem sido feita nos espaços de formação e trabalho a partir do cotidiano dos(as) assistentes sociais, buscando depreender como estes(as) lidam com a questão étnico-racial no contexto institucional do espaço sócio-ocupacional em que atuam.
Trata-se de um debate fundamental e estruturante para a formação, visto que possibilita compreender a dinâmica do racismo no Brasil, e contribuir com a garantia e a defesa dos direitos sociais da população negra, público majoritário nos diversos espaços sócio-ocupacionais em que a profissão se insere, o qual vivencia permanentemente violações de direito, resultantes de uma sociedade racista com trágicas estatísticas de exclusão e desigualdades.
Ademais, reafirma um compromisso ético-político da categoria, tendo em vista que possuímos um projeto profissional que se coloca contra toda forma de discriminação, opressão, desigualdades e injustiças - conforme explicita nosso Código de Ética (1993). O(a) assistente social vive e lida diariamente com essa realidade no cotidiano, cuja dinâmica contraditória do real também possibilita a construção de uma práxis social coerente,1 o que pressupõe a permanente relação teórico-prática e a construção de competências profissionais efetivamente antirracistas, com base nos conhecimentos teórico-metodológicos, ético-políticos e técnico-operativos construídos pelo Serviço Social renovado.
Nessa assertiva, urge a compreensão sobre como o racismo e também o sexismo se colocam como pilares essenciais da desigualdade capitalista em nosso país e conformam assimetrias históricas às populações negras e indígenas. O professor e pesquisador Silvio Almeida (2020) destaca que apreender a dinâmica dos conflitos raciais e sexuais é absolutamente essencial à compreensão do capitalismo, haja vista que a dominação de classe se realiza nas mais variadas formas de opressão racial e sexual.
No Brasil, solidificou-se o mito da democracia racial2 como estratégia de mistificação da realidade vivenciada pelos grupos socialmente racializados, e há, nessa alternativa, uma tentativa de minimizar o racismo, negar e despolitizar sua existência. Contudo, trata-se de um elemento estruturante da nossa formação sócio-histórica, herança do colonialismo escravocrata, que se desenvolveu sob bases racistas do homem branco europeu e foi perpetuado pela burguesia, pautando as relações sociais e se constituindo como um poder que oprime estruturalmente os grupos racialmente inferiorizados.
Assim, buscamos discutir o racismo como constitutivo e ineliminável da questão social no Brasil, reafirmando a necessidade desse debate no âmbito da formação e do trabalho profissional de assistentes sociais, tendo como pressuposto os princípios éticos e as bandeiras de luta defendidas hegemonicamente pelas entidades da categoria, bem como a trajetória de luta e o protagonismo histórico das mulheres negras assistentes sociais, que foram pioneiras para a abertura desse debate na categoria, finalizando com reflexões sobre o combate ao racismo no cotidiano profissional.
As análises aqui apresentadas resultam da pesquisa3 realizada no âmbito do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Goiás (UFG), campus Goiás, e contou com a participação de seis assistentes sociais vinculados(as) ao Núcleo de Base do Conselho Regional de Serviço Social (Nucress) da região Rio Vermelho, que atuam na Cidade de Goiás (GO).
A escolha por entrevistar os(as) profissionais que compõem o Nucress se deu pelo fato de esse ser um espaço que congrega assistentes sociais que atuam em diversas políticas públicas e, especialmente, por se constituir como um espaço fundamental de articulação político-profissional e de formação continuada - sendo esta, inclusive, um princípio do Código de Ética Profissional (1993) -, e também porque visa discutir os desafios da profissão e construir estratégias no âmbito do Conselho Regional de Serviço Social (Cress).
Os resultados reafirmam que a maioria da população atendida nos espaços sócio-ocupacionais é negra e apontam desafios que ainda precisam ser superados no cotidiano profissional. Isso mostra a necessidade e a urgência de o debate étnico-racial fazer parte da formação e do trabalho dos(as) assistentes sociais brasileiros(as), para que sejam construídas habilidades e competências profissionais efetivamente antirracistas.
1. “Minha voz, uso pra dizer o que se cala”:4 racismo, questão social e Serviço Social
O atual contexto que vivenciamos no Brasil e no mundo nos convoca à rebeldia necessária para seguirmos na luta contra a barbárie, reafirmando a necessidade de construirmos uma sociedade radicalmente livre e humanamente emancipada. Esses tempos hodiernos nos colocam a tarefa histórica e a responsabilidade ético-política de não apenas debater a questão étnico-racial com a devida seriedade e centralidade que ela demanda, mas também de criar estratégias coletivas de enfrentamento ao racismo, haja vista que este é um elemento estrutural e estruturante das relações sociais e, portanto, pilar essencial da exploração capitalista.
O racismo é parte estrutural de uma racionalidade instituída para ser a norma de compreensão e manutenção das relações sociais. Não se trata, portanto, de uma anomalia no interior de um sistema, e sim de um estruturante do modo de funcionamento das sociedades ocidentais contemporâneas, o que implica pensá-lo como fundamento de tais sociedades, o que abrange as dimensões da economia, da política e da cultura. De outra parte, o racismo também é estruturante, então funciona como elemento dinâmico que favorece, condiciona e mantém um tipo específico de racionalidade que impede a erosão das relações de exploração e das condições de opressão presentes em todas as expressões da vida social, e tem seu marco histórico demarcado pelos processos de colonização das Américas e da construção de um novo modelo de espaço/tempo que se espraia mundialmente como padrão de poder (Silva, 2020, p. 164-165).
Nesse sentido, o racismo é peça indispensável para o capitalismo, pois é o elemento que azeita a máquina de exploração e dominação do capital sobre os corpos racializados e também o sustentáculo de profundas iniquidades históricas vivenciadas pela maioria da população no país, que é constituída de negros e negras, representando 55,8% de brasileiros(as), conforme aponta o IBGE (2019). Portanto, a discussão sobre o combate ao racismo é urgente para todo conjunto da sociedade e, sobretudo, para uma profissão como o Serviço Social que tem um projeto emancipatório, que se coloca contra toda forma de exploração e opressão, isto é, uma profissão comprometida com a crítica radical dessa sociabilidade. Essa crítica não se sustenta nem atinge a raiz das desigualdades estruturantes do capitalismo se não estivermos coletivamente compromissados(as) com a luta contra o racismo.
Qualquer análise que se proponha crítica, séria e numa perspectiva de totalidade histórica não pode ser feita descolada das particularidades sócio-históricas brasileiras. Não podemos perder de vista que as desigualdades sociais e de classe, no Brasil, são estruturadas e mediadas pelas desigualdades raciais e de gênero.
O conflito social entre capital e trabalho assalariado não é único conflito existente na sociedade capitalista. Há outros conflitos que se articulam com as relações de dominação e exploração, que não se originam nas relações de classe e tampouco “desapareceriam com ela”: são conflitos raciais, sexuais, religiosos, culturais e regionais que remontam a períodos anteriores ao capitalismo, mas que nele tomam uma forma especificamente capitalista. Portanto, entender a dinâmica dos conflitos raciais e sexuais é absolutamente essencial à compreensão do capitalismo, visto que a dominação de classe se realiza nas mais variadas formas de opressão racial e sexual. A relação entre Estado e sociedade não se resume à troca de produção de mercadorias: as relações de opressão e exploração sexuais e raciais são importantes na definição do modo de intervenção do Estado e na organização dos aspectos gerais da sociedade (Almeida, 2020, grifos do original).
Nessa direção, ser coerente com o método marxiano que sustenta nossas análises no campo do Serviço Social não supõe “recorte” de raça nem gênero na compreensão da classe trabalhadora brasileira e do segmento mais ultraexplorado pelo processo predatório do capital. Até mesmo porque se trata de um país forjado pelo colonialismo, de capitalismo dependente,5 que para se consolidar lançou mão por quase quatro séculos da escravização de africanos(as) e da exploração de todas as suas riquezas, tecnologias e expertises, além da desumanização desses sujeitos e do estupro colonial.
Compreender criticamente a realidade na qual intervimos como assistentes sociais, pressupõe apreendermos os fundamentos da produção social dessa desigualdade, que assenta raízes no processo de construção social da noção de raça e, a partir disso, instaurou-se uma divisão racial do trabalho, sendo a estratégia utilizada para dinamizar o processo de acumulação e desenvolvimento capitalista na América - com pungentes particularidades no contexto latino-americano, como vai evidenciar o sociólogo peruano Aníbal Quijano (2005).
Toda essa construção social, histórica, vai fazer com que a população negra - não por acaso - esteja na base da pirâmide social brasileira, liderando o ranking de todas as multifacetadas formas de violação e não acesso a direitos, desigualdades e violências. Clóvis Moura (1983) nos chama atenção para o fato de que o modo de produção escravista entrou em decomposição, mas deixou profundos vestígios na sociedade brasileira. Tais vestígios podem ser facilmente identificados quando vemos que a população negra, desde a abolição formal da escravidão, lidera os piores indicadores no mundo do trabalho, as mais brutais e diversas formas de violência e genocídio, violações de direitos etc.
Nesse aspecto, compreendemos que combater o racismo é tarefa imediata e imprescindível para todos(as) aqueles(as) que se colocam, verdadeiramente, na trincheira de luta contra toda forma de exploração, dominação e opressão. É tarefa urgente de todos(as) que acreditam e apostam na construção de outra ordem societária. Portanto, é uma luta que não pode se restringir a negros(as) nem a populações indígenas, haja vista que se trata de uma luta estrutural contra o sistema de exploração/dominação capitalista.
Não podemos perder de vista que nossa profissão, tal como enfatizado nas Diretrizes Curriculares da ABEPSS (1996), exige uma formação que possibilite a apreensão crítica do processo histórico como totalidade, compreensão sobre a formação sócio-histórica e suas particularidades no país e, nesse entorno, apreensão das demandas postas à profissão no contexto das relações sociais. Se isso é fundamental para garantir a formação do perfil profissional crítico que defendemos, será que, sem olhar para a dinâmica das relações étnico-raciais, que é estrutural e estruturante da nossa formação social, é possível mesmo compreender essa realidade em que estamos inseridos(as) e na qual intervimos como assistentes sociais?
O outro elemento é que tendo o Serviço Social como principal objeto de intervenção a “questão social” e suas expressões - visto que essa é a razão de ser da profissão (Netto, 2001) -, não estudar e se debruçar sobre a questão étnico-racial também implica que a própria compreensão sobre esse objeto central para a profissão será deficitária. De acordo com Martins (2013, p. 12), em nossa realidade, “[…] as relações raciais se entrelaçam às suas particularidades histórico-sociais, interferindo, agravando e aprofundando a conformação da ‘questão social’”. Nesse aspecto, pensar a “questão social” e suas expressões em nossa realidade não pode ser desvinculado desses elementos que estruturam nossa formação, pois medeiam e dão contornos particulares à “questão social” brasileira.
Vale evidenciar, ainda, que nessa quadra histórica em que vivenciamos a pandemia da covid-19 e o aprofundamento da crise do capital, articulada a uma política negacionista, antipovo e genocida do governo Bolsonaro, também se agravaram, de forma abismal, as desigualdades seculares vivenciadas pelas populações negras e indígenas. Esse momento trágico da humanidade explicitou que essas mesmas populações, historicamente desapossadas não apenas dos meios de produção, mas também da própria humanidade, foram as que mais sofreram os impactos decorrentes da crise social e política que, associada à crise sanitária, escancarou a violência estrutural e as disparidades sociais, cujas determinações estão profundamente engendradas nas particularidades do nosso processo de formação social, que tem na herança colonialista-escravocrata, bem como no racismo e no sexismo, o sustentáculo necessário para dinamizar e aprofundar o processo de superexploração do capital para a garantia de suas taxas de lucro.
2. “Mulheres do fim do mundo”6 e o protagonismo das assistentes sociais negras na inserção do debate étnico-racial na agenda da categoria profissional
São muitas as assistentes sociais negras, mulheres do fim do mundo, que cantaram e cantam até o fim, abrindo espaço para que futuras gerações de profissionais antirracistas pudessem dar continuidade a esse legado de luta e resistência contra a exploração e a opressão de classe, gênero, raça-etnia, sexualidade, geração.
Todo acúmulo que temos hoje é caudatário desse legado construído coletivamente por essas profissionais negras, uma vez que esse movimento se constituiu como fator decisivo para trazer o debate para o interior do Serviço Social. O VI CBAS, ocorrido dez anos após o “Congresso da Virada” de 1979 e no bojo do processo de redemocratização no país, se tornou, portanto, essa referência na história profissional, cujo pioneirismo advém da inquietação e tensionamento dessas Assistentes Sociais que identificavam a ausência dessa discussão na profissão (Moreira, 2021, p. 84).
É importante destacar que o protagonismo dessas assistentes sociais negras, pioneiras no debate, foi fundamental para a abertura dessa pauta na agenda profissional, contribuindo também com o processo de redemocratização em sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos progressistas e na própria renovação da profissão (Almeida; Rocha; Branco, 2019). Desse modo,
Nos espaços sócio-ocupacionais por onde passaram, o ativismo dessas assistentes sociais deixou registro da necessidade de enfrentamento da violência racial e sexista. Suas proposições de enfrentamento às discriminações de raça e gênero produziram fissuras que desestabilizaram a pretensa “ordem social” (des)organizada pelo racismo. O enfrentamento do racismo é central para desvelar os processos sócio-histórico-políticos que configuram a desigualdade social e racial, bem como a lógica que articula raça e classe no capitalismo nas sociedades de herança escravista (Almeida; Rocha; Branco, 2019, p. 170).
Em que pese o marco público, coletivo e emblemático do VI Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS) de 1989 na trajetória do debate étnico-racial na profissão, tendo em vista ser o momento no qual as assistentes sociais negras se organizam para apresentar teses sobre a temática no maior evento da categoria profissional, há na história pregressa do Serviço Social mulheres negras que se tornaram referências na luta e na resistência contra o racismo e o sexismo, mas que também sofreram com a invisibilidade histórica na profissão.
Maria de Lourdes Vale do Nascimento, assistente social e jornalista, é uma dessas mulheres que tiveram um papel importantíssimo nas diversas lutas antirracistas, especialmente no que se refere às lutas pelos direitos das mulheres negras. Xavier (2020) destaca que ela, ao lado de Abdias do Nascimento, teve espaço de protagonismo na fundação do Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, e se destacou como intelectual e liderança feminina.
Maria de Lourdes, que tem sua trajetória marcada por resistências, também foi escritora do Jornal Quilombo, no qual denunciava a realidade da população negra marginalizada pelo sistema. Ao lado de Abdias, construiu lutas e sonhos em prol das aspirações do povo negro. Acerca dessa trajetória, Xavier (2020, p. 45-45) salienta:
O fato de muito provavelmente ter sido a primeira colunista negra da cidade do Rio de Janeiro e uma das primeiras do Brasil e de ter um projeto de ativismo ligado à escrita é relevante para compreendermos características específicas do trabalho de intelectuais negras. Mulheres que como Maria adotaram “uma espécie de política identitária, uma visão de mundo que enxerga as experiências de vida das pessoas negras como um elemento fundamental para o desenvolvimento de uma consciência crítica e de estratégias políticas”.
A militância de Maria de Lourdes não pode ser esquecida, pois ela foi fundamental para as diversas lutas do movimento negro e de mulheres, visto que a partir da sua inserção política nos espaços da imprensa, como também era jornalista, conseguiu dar visibilidade às desigualdades brutais vivenciadas por negros e negras.
Igualmente, destacamos o protagonismo icônico de Dona Ivone Lara, renomada sambista que antes de receber esse título atuava como assistente social, sendo uma das primeiras profissionais de Serviço Social do país e uma das primeiras mulheres negras a conquistar o terceiro grau. Ivone Lara, que tem seu legado cravado no Serviço Social, aposentou-se no Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, deixando uma trajetória de muita luta.
Dona de letras que trazem a realidade do povo negro, da opressão e das mazelas, Ivone Lara compunha para dar acalanto e resistência aos seus. Oriunda de família pobre e detentora de uma força ancestral inconteste, sua trajetória abriu caminhos para a valorização da cultura negra e a religiosidade dos povos de matrizes africana e afro-brasileira. Assim, “consideramos nossa pioneira herdeira do legado ancestral da resistência das mulheres negras em suas manifestações africanas no Rio - o samba, a capoeira, as danças de roda, a religiosidade da umbanda” (Scheffer, 2016, p. 486).
3. Combate ao racismo no cotidiano do trabalho profissional do(a) assistente social
Com o objetivo de apreendermos como os(as) assistentes sociais visualizam a questão étnico-racial e constroem estratégias em seu cotidiano de trabalho perante as desigualdades sociais, que são agravadas pela condição racial e de gênero, buscamos conhecer o olhar dos(as) profissionais7 da região do Rio Vermelho, que atuam na Cidade de Goiás, sobre a existência do racismo no cotidiano profissional, bem como as estratégias de enfrentamento.
O estudo contou com a participação de seis profissionais cuja faixa etária variava entre 20 e 50 anos, sendo cinco (83,3%) do sexo feminino e um (16,7%) do sexo masculino. Esses dados evidenciam a feminização da profissão, desde sua gênese, e isso guarda relação com a construção histórica do papel da mulher vinculado ao âmbito doméstico e a profissões destinadas ao cuidado.
Intelectualmente o homem é empreendedor, combativo, tende para a dominação. Seu temperamento prepara-o para a vida exterior, para a organização e para a concorrência. A mulher é feita para compreender e ajudar. Dotada de grande paciência, ocupa-se eficazmente de seres fracos, das crianças, dos doentes. A sensibilidade torna-a amável e compassiva. É, por isso, particularmente indicada a servir de intermediária, a estabelecer e manter relações (Iamamoto; Carvalho, 2005, p. 171-172).
A respeito da autodeclaração étnico-racial, cinco (83,3%) afirmam ser negros(as) e um (16,7%) se reconhece como branco(a). Tal dado, ainda que circunscrito a uma dada particularidade regional, evidencia que, além de atendermos majoritariamente à população negra nos diversos espaços sócio-ocupacionais, a própria categoria tem enegrecido significativamente - o que contribui, de forma inconteste, para o avanço do debate no interior profissional. Destarte, concordamos que:
[...] um dos principais fatores que contribuem para o avanço da discussão étnico-racial na atualidade e sua expressiva incorporação pelas entidades profissionais é o enegrecimento da categoria: cada vez mais temos observado o ingresso de estudantes negros/as, indígenas e quilombolas nos cursos de graduação e pós-graduação em Serviço Social - e aqui destacamos a importância das cotas raciais nesse processo, enquanto fruto da luta histórica do movimento negro (Moreira, 2021, p. 85, grifo do original).
Acerca da orientação sexual, cinco participantes (83,3%) identificaram-se como heterossexuais e um (16,7%) se declarou bissexual. Além disso, todos(as) informaram ter concluído a graduação após os anos 2000, o que evidencia que se formaram após a construção das novas Diretrizes Curriculares (1996), cuja formação pressupõe capacitação teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa que possibilite a apreensão crítica do processo histórico, como totalidade, compreensão sobre a formação sócio-histórica e suas particularidades no país e, nesse entorno, apreensão das demandas postas à profissão no contexto das relações sociais (ABEPSS, 1996).
A despeito da natureza da instituição formadora, quatro (66,7%) mencionaram que se formaram em universidades federais e dois (33,3%), em universidades comunitárias. Vale ressaltar também que todos(as) os(as) participantes se graduaram em ensino presencial, o que coaduna com a direção sociopolítica estratégica defendida hegemonicamente pelas entidades da categoria, as quais assumem posição na defesa da educação como um direito público, laico, e com o compromisso com as demandas da classe trabalhadora.
No que diz respeito à formação continuada, quatro (66,7%) possuem pós-graduação, sendo dois (33,3%) em nível de mestrado e dois (33,3%) em especialização. Essas informações reafirmam o compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população, haja vista a importância do aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional, como menciona o 10. Princípio do Código de Ética Profissional (1993).
Concernente à inserção no Nucress Rio Vermelho, os(as) participantes ingressaram em tempos históricos diversos, mas destacamos o ano de 2021 como um marco, visto que houve a entrada de dois(duas) (33,3%) novos(as) assistentes sociais. Esse dado é significativo, sobretudo numa conjuntura de ataques a direitos conquistados historicamente, o que tem nos exigido cada vez mais organização política, dentro e fora da profissão, para fazermos frente ao conjunto de destruição de direitos em curso no país. Ademais, também evidencia que o Cress tem conseguido capilarizar suas ações nas regiões do interior, com a entrada desses(as) profissionais nos núcleos de base.
No que diz respeito à participação em alguma gestão das entidades da categoria, quatro (66,7%) nunca participaram e dois(duas) (33,3%) afirmam já terem participado de gestões da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) e da Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social (Enesso). Ainda sobre a dimensão político-organizativa, cinco (83,3%) disseram ter histórico de participação em outras instâncias organizativas, com destaque para sindicatos, e um(a) (16,7%) informou nunca ter participado de outros espaços.
Vale destacar que, acerca das condições do trabalho, a Resolução do CFESS n. 493/2006, de 21 de agosto de 2006, estabelece requisições éticas e técnicas para o exercício profissional do(a) assistente social, apontando questões correlatas ao espaço físico, evidenciando especialmente a necessidade de garantia do sigilo profissional durante os atendimentos e espaço adequado para armazenar material técnico. No que se refere a essa dimensão, algumas falas sinalizam fragilidades vivenciadas no cotidiano, em dissonância com a referida Resolução, como pode ser observado na fala do(a) participante G3 ao relatar que: “O meu espaço de trabalho atualmente não atende às minhas necessidades, há poucos equipamentos e não há sigilo”. Certamente, essas são questões desafiadoras para o(a) profissional de Serviço Social, que trabalha sob condições determinadas, alheias à sua vontade, haja vista estar submetido(a) a toda precarização, constrangimentos e rebatimentos do mundo do trabalho, considerando sua condição de trabalhador(a) assalariado(a) (Raichelis, 2011).
No que concerne aos instrumentais utilizados no cotidiano profissional, três (50%) dos(as) participantes informam que utilizam o estudo social como principal instrumento, um (16,7%), o parecer social e dois (33,3%), o relatório social, os quais são instrumentos técnico-operativos que, juntamente à dimensão teórico-metodológica e à ético-política, possibilitam articular e materializar respostas profissionais às diversas expressões da questão social que se colocam no cotidiano do trabalho dos(as) assistentes sociais.
Sobre o perfil dos(as) usuários(as) atendidos(as) pelo Serviço Social, cinco (83,3%) dos(as) participantes afirmaram que são, em sua maioria, negros(as), e o(a) profissional G2 destaca que a “maioria são de pessoas negras, principalmente mulheres”. Tal realidade evidencia o processo histórico de iniquidades vivenciadas por negros(as) da classe trabalhadora do país, denotando que as relações de dominação e exploração, na nossa particularidade sócio-histórica, são mediadas e atravessadas pelo racismo e também pelo sexismo, uma vez que são as populações negras, em especial as mulheres negras, que estão na base da pirâmide social e lideram o ranking dos maiores índices de desemprego, subemprego, contratos precarizados e violências.
Diante do quadro de grande desigualdade social de nosso país, em que está subjacente a discriminação racial, o profissional que foi educado no seio de uma sociedade cuja cultura, ainda hegemônica, é a do mito da democracia racial e que não obteve no período de sua formação instrumentos de análises criticas das relações raciais constituintes de seu país, poderá ter dificuldades em intervir de forma competente e comprometida com restituições de direitos violados da população historicamente discriminada por condições étnico-raciais (Rocha, 2009, p. 544).
Nesse sentido, reafirmamos a urgência no debate sobre as relações étnico-raciais no âmbito da formação e do trabalho, com vista a qualificar a intervenção profissional e, por conseguinte, o serviço ofertado à população, tendo em vista que não captar o nexo estruturante entre gênero-raça-classe na conformação das desigualdades sociais implica contribuirmos não apenas com a reprodução do racismo institucional, mas também com a manutenção e a reprodução das relações profundamente assimétricas vivenciadas por negros e negras. Por isso, compreendemos que “a apropriação da categoria raça/etnia pelos profissionais de Serviço Social contribuirá como importante ferramenta para a apreensão crítica das relações sociais e suas múltiplas determinações” (Rocha, 2009, p. 541).
Os(as) profissionais entrevistados(as) também se posicionaram em relação à conduta profissional ante um(a) usuário(a) que sofreu racismo, e destacamos o posicionamento do(a) assistente social G1, o(a) qual elucida que são necessários:
Uso de uma linguagem acessível na escuta/diálogo, acolhimento, orientação e encaminhamento de acordo com a necessidade, porém, em caso de injúria racial tipificado como crime, a orientação é de denúncia; proposição de roda de conversas acerca da temática - já que o racismo se dá em várias dimensões. Assim, não pode ser entendido e combatido apenas no aspecto individual dos(as) sujeitos(as). Portanto, individualizar a prática do racismo sem levar em conta sua configuração estrutural/estruturante/institucional/capitalista - as ações antirracistas - são falhas e/ou inexistentes.
Construir respostas profissionais nesta coerência pressupõe a construção de habilidades e competências antirracistas, e para isso é necessário conhecimento teórico, ético-político e leitura crítica do racismo em suas diversas expressões. Tais conhecimentos, articulados ao projeto ético-político profissional, possibilitam ao(à) assistente social ultrapassar a aparência do fenômeno, desenvolver uma escuta qualificada e construir estratégias profissionais condizentes com a realidade e com a demanda do(a) usuário(a) do serviço.
Assim, compreendemos que a práxis profissional pode contribuir para materializar ações emancipatórias, mas isso supõe a relação da teoria e da prática com base nos conhecimentos teórico-metodológicos, ético-políticos e técnico-operativos, tanto para conhecer as particularidades que envolvem a questão do racismo no Brasil e a vida da população negra como para reconhecer a necessidade de lutar contra as desigualdades sociorraciais - sendo essa uma tarefa e responsabilidade de todas as pessoas que se colocam na luta por uma sociedade livre de explorações, opressões e desigualdades.
Todos(as) os(as) assistentes sociais entrevistados(as) apontaram que a condição étnico-racial aprofunda as desigualdades sociais e as violações de direitos da população atendida, o que se explica pelo fato de que:
Historicamente foi negado aos(às) negros(as) e indígenas igualdade de oportunidade. Assim, sem igualdade de oportunidade o(a) sujeito(a) não terá as mesmas condições de acesso aos seus direitos - corroborando para as mais diversas formas de desigualdades sociais e violações de direitos (participante G3).
No que se refere ao racismo institucional no espaço sócio-ocupacional em que atuam, quatro (66,7%) participantes destacam que visualizam sua existência. Por isso, é fundamental que os(as) profissionais construam no seu cotidiano ações de combate ao racismo. Afinal, o compromisso ético dos(as) assistentes sociais passa pelo combate a todas as formas de preconceitos e às múltiplas expressões do racismo estrutural, conforme explicita o princípio VI do Código de Ética Profissional de 1993, que traz: “Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, a participação de grupos socialmente discriminados e a discussão das diferenças” (CFESS, 2011, p 23). Até mesmo porque:
Os conflitos raciais também são parte das instituições. Assim, a desigualdade racial é uma característica da sociedade não apenas por causa da ação isolada de grupos ou indivíduos racistas, mas fundamentalmente porque as instituições são hegemonizadas por determinados grupos raciais que utilizam mecanismos institucionais para impor seus interesses políticos e econômicos (Almeida, 2018, p. 30).
Destaca-se ainda que todos(as) os(as) entrevistados(as) reconhecem a relevância da temática étnico-racial para a profissão, reafirmando a necessidade dessa discussão no âmbito da formação e do trabalho, à guisa de contribuir para a construção de mediações profissionais que possibilitem apreender a dinâmica do real numa perspectiva, de fato, crítica e de totalidade. Evidencia-se, nesse contexto, a importância do quesito raça-cor como estratégia necessária para a apreensão da realidade; conhecer o perfil da população atendida; construir dados estatísticos no âmbito das políticas sociais e, ainda, como uma possibilidade político-pedagógica que pode contribuir para o processo de valorização e pertença da identidade racial dos(as) usuários(as). O(a) participante G3 aponta que essa discussão deve ocorrer:
Tanto no âmbito da formação acadêmico-profissional quanto no trabalho profissional nos diversos espaços sócio-ocupacionais. Por exemplo, na ficha social de atendimento onde eu trabalho, não havia o quesito raça/cor, acrescentei e percebi que esse é um momento essencial tanto para conhecimento e apreensão da realidade social como para efetivar a dimensão pedagógica do trabalho enquanto assistente social. Por diversas vezes, já dialoguei sobre o processo de formação brasileira, as relações raciais, as legislações de combate ao racismo, dentre outras. Acredito que as mediações cotidianas no trabalho profissional precisam levar em consideração a dimensão racial, tendo em vista que ela não está descolada da realidade e que a luta antirracista é inerente à efetivação do projeto ético-político da nossa profissão.
Por isso, dentro desse espaço sócio-ocupacional que é marcado por contradições, desafios e possibilidades, destaca-se a importância do debate étnico-racial para a profissão como forma de combater o racismo, o preconceito e a violência institucional. Até mesmo porque: “A ignorância sobre as reais condições de vida da população negra acaba por contribuir com a manutenção das desigualdades e discriminações raciais” (Rocha, 2009, p. 556).
Algumas considerações preliminares
Conforme evidenciado, o racismo e o sexismo são nexos estruturantes das desigualdades de classe no Brasil, haja vista nossa formação sócio-histórica calcada no escravismo colonial,8 no racismo e no heteropatriarcado. São as populações socialmente racializadas, em especial as mulheres, que sofrem diretamente os rebatimentos de todas essas assimetrias, que são próprias da particularidade brasileira de capitalismo dependente.
Nesse sentido, são essas mesmas populações que engrossam as fileiras dos diversos espaços sócio-ocupacionais em que atuam os(as) assistentes sociais. Essa realidade cada vez mais tem desafiado a profissão para qualificar a formação e o trabalho, com vista a construir respostas profissionais coerentes com as diversas expressões da questão social que se colocam no cotidiano, que são atravessadas medularmente pelas desigualdades raciais e de gênero.
Durante a pesquisa realizada, foi possível depreender o esforço por parte dos(as) assistentes sociais em desenvolver um trabalho articulado ao projeto ético-político, tanto no que tange ao estabelecimento de mediações na ampliação do acesso da população aos direitos sociais, materializados em bens e serviços, na qualidade dos serviços prestados, como no combate ao racismo e a toda forma de preconceito. Contudo, as reflexões aqui presentes também apontam lacunas que precisam ser superadas no âmbito da formação e do trabalho, reafirmando a urgência dessa discussão para que sejam construídas habilidades e competências profissionais efetivamente antirracistas, nos marcos da direção emancipatória do nosso projeto profissional.
Referências
- ALMEIDA, S. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
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1
Conforme alude Clóvis Moura (1983), conhecer a particularidade da realidade sócio-histórica brasileira, em especial como se deu a dinâmica dos quase quatrocentos anos de escravismo colonial na plasmação do éthos do nosso país, é pressuposto para a construção de uma práxis social coerente, visto que nossa herança escravista traz resquícios no tempo presente, cinicamente falseada pela famigerada perspectiva da democracia racial.
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2
O mito da democracia racial foi construído estrategicamente como componente ideológico essencial da dominação racista no Brasil. Trata-se de uma falácia que advoga não existir racismo no país, sob o argumento de que todos(as) são iguais e têm as mesmas oportunidades no interior da ordem burguesa, reforçando um ideário de harmonia racial e, ao mesmo tempo, responsabilizando moralmente as populações racializadas pelas desigualdades que vivenciam, como se estas fossem decorrentes da falta de esforço ou de uma suposta baixa moralidade entre esses grupos. Autores como Gilberto Freyre, Monteiro Lobato, Silvio Romero, entre outros, tiveram papel central na sustentação dessa tese racista. Importante destacar que a desmistificação do mito da democracia racial é uma das pautas históricas do movimento negro, como pode ser observado no Programa de Ação do Movimento Negro Unificado (MNU) de 1982, por exemplo, haja vista que esse mito se coloca ainda hoje como um dos principais desafios para o efetivo enfrentamento ao racismo. Para mais aprofundamento, ver Domingues (2003).
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Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Goiás, através do Parecer n. 4.605.285 (2021).
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Referência à música “O que se cala”, de Elza Soares (2018).
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5
“A subordinação ao imperialismo, na qual nasce o capitalismo dependente, define as necessidades de composição da oferta de força de trabalho, no Brasil. No capitalismo dependente, a massa de trabalhadores é composta por uma população muito acima das necessidades produtivas, a qual os mecanismos do capitalismo dependente não podem incluir como partícipe qualitativa na dinâmica da valorização do capital, sequer como consumidor; pois essa é a ‘franja marginal capaz de forçar os baixos salários dos trabalhadores engajados no processo de trabalho. Essa franja foi ocupada pelos negros, gerando isto uma contradição suplementar’” (Souza, 2020, p. 154). Nesse sentido, compreendemos fundamental a análise sobre o racismo no bojo das relações sociais erigidas sob o capitalismo dependente, visto que sua dinâmica neste território é atravessada por particularidades oriundas da nossa formação social, assentadas no colonialismo e no escravismo, bem como pela subordinação e pela dependência a que estão submetidas as economias no contexto latino-americano, o que coloca o racismo e a superexploração da força de trabalho como totalidade indissociável. Ver mais em Souza (2020).
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Em alusão à música “Mulher do fim do mundo”, de Elza Soares (2015).
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Considerando os preceitos éticos em pesquisa com seres humanos e para preservar o anonimato dos(as) participantes, estes(as) serão identificados(as) pela letra G, recorrendo a numerais conforme ordem cronológica das entrevistas.
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Para Clóvis Moura, o escravismo colonial foi utilizado como fator decisivo e necessário para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. “Enquanto já se questionava na Europa o sistema capitalista no seu sentido global, os traficantes brasileiros lutavam, ainda, no nosso Parlamento para que a lei que extinguiu o tráfico de africanos não fosse aprovada. Isto surge da incapacidade histórica de o Brasil acumular capitais para entrar na senda das nações capitalistas desenvolvidas [...] O escravismo colonial cria, portanto, as premissas econômicas, sociais e culturais para o modelo do capitalismo dependente que o substitui” (MOURA, 1983, p. 23). Ver mais em: MOURA, C. Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. Afro-Ásia, Bahia, n.14, p. 124-137, 1983.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
03 Fev 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023
Histórico
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Recebido
19 Ago 2022 -
Aceito
10 Out 2022