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Visita amigável entre os pobres: um manual para trabalhadores da caridade, de Mary Ellen Richmond

Friendly visiting among the poor: a handbook for charity workers, by Mary Ellen Richmond

Diante do avanço de ideias e práticas conservadoras e reacionárias que impactam o cotidiano de assistentes sociais brasileiros hoje, resgatar a história da profissão a partir de uma leitura crítica pode ser um bom exercício para encontrar pistas de forma a entendermos os desafios contemporâneos.

A obra de Mary Ellen Richmond é sem dúvidas uma das que mais influenciaram o Serviço Social no mundo. Produzida a partir dos vetores teóricos e ideológicos que fizeram parte do caldo cultural estadunidense na virada do século XIX para o XX, seus livros Diagnóstico social [Social Diagnosis] e O que é Serviço Social de Caso [What is Social Casework] foram traduzidos para vários idiomas - principalmente o primeiro, no qual a autora faz um esforço de apresentar a sua proposta metodológica para o Serviço Social.

Muitas coisas que foram imputadas à autora são méritos dela; outras, nem tanto. O fato é que é impossível falar de Serviço Social no século XX sem falar da perspectiva construída nos EUA, acompanhando o próprio processo de difusão da cultura e dos valores estadunidenses a partir da consolidação daquele país como a principal potência imperialista mundial. E para o Serviço Social as construções de Richmond foram centrais nesse processo.

O livro ora apresentado é pouco conhecido no Brasil, e por isso as citações aqui realizadas são de nossa livre tradução. As referências a esse texto já foram feitas por alguns estudiosos que se debruçaram sobre o processo de emergência do Serviço Social nos EUA e que reconhecem nele um momento central da trajetória de Richmond. Mas ele também expressa as disputas que estavam colocadas sobre o papel das ações de assistência e socorro aos pobres no estágio da “questão social” vivenciada naquele país na virada do século XIX para o XX.

Richmond foi assistente de tesouraria e depois eleita secretária-geral da COS (Charity Organization Society) de Baltimore, em 1891. As COS’s, que se espalharam nos EUA, eram instituições de caridade que chegaram àquele país através da experiência inglesa, como um esforço de cooperação entre Estado (especialmente prefeituras) e Igreja (sobretudo protestante) para assistir às necessidades de famílias pobres, a partir de práticas de auxílio material e educação moral com uma abordagem individualizada.

Acontece que outras experiências de assistência aos pobres também ganharam notoriedade. Os Settlement Movements, liderados por Jane Addams, inspiraram-se nas experiências do Toynbee Hall da Inglaterra e criaram as Hull Houses. Diferente das COS’s, sua proposta era a de promover um espírito de cooperação e solidariedade em bairros pobres, de modo que seus moradores pudessem, em um processo coletivo e orientado pelas residentes, aprender a importância do espírito de grupo, de forma a superar as próprias dificuldades, e a importância da organização coletiva para reivindicar melhorias em suas condições de vida. Jane Addams se tornou internacionalmente conhecida como uma ferrenha militante da reforma social e crítica de todas as práticas que ela caracterizava como “antidemocráticas”: a de desqualificar o modo de vida dos pobres e tentar impor-lhes um padrão de comportamento dominante.

O palco para esses e outros debates era a Conferência Nacional sobre Caridade e Correção [National Conference of Charity and Correction], que reunia anualmente instituições, filantropos, religiosos, políticos e todos aqueles que viam nas ações de caridade uma importante ferramenta de intervenção sobre a vida dos pobres com vistas à mudança social. Todavia, que tipo de mudança, mudança para quê, como mudar, o que era a “caridade”, e o que precisava ser “corrigido” passavam a fazer parte das polêmicas debatidas nas conferências.

Mesmo que nem as COS’s e nem as Hull Houses tivessem alguma pretensão revolucionária, eram nítidas suas diferenças de concepção, tanto de projeto como de abordagem. Pelo impacto que os Settlement Movements passaram a ter em várias metrópoles nos EUA, Jane Addams foi convidada para apresentar a experiência na reunião da Conferência realizada em 1897. Não por acaso, a publicação de “Friendly visiting among the poors” ocorre dois anos depois; ousamos dizer que o livro é um esforço de Richmond para afirmar o projeto das COS’s.

Isso fica claro já no Prefácio escrito por Richmond, quando exalta o pioneirismo de Bernard Bonsanquet, Charles Loch e Octavia Hill com as COS’s na Inglaterra e o quanto ela aprendeu ao conhecer o trabalho na primeira COS dos EUA, a de Nova York, fundada por Josephine Shaw Lowell. E que, apesar de reconhecer o trabalho de Jane Addams, a autora diz o livro que ora escreve é uma forma de pagar uma dívida com todos aqueles que há muito investem no trabalho das associações de caridade com base na “visita amigável”.

Logo no início, ela já dirige sua crítica às demais perspectivas, fazendo um alerta:

Visitantes amigáveis ​​e todos os que estão tentando melhorar as condições nos lares pobres devem acolher a experiência daqueles que estão estudando as condições do ofício e outros aspectos mais gerais das questões que afetam o bem-estar dos pobres. Mas não devem se permitir ser varridos por defensores entusiastas da reforma social daquela posição intermediária segura, que reconhece que o caráter está no centro desse complicado problema; caráter nos ricos, que devem aos pobres justiça, bem como misericórdia, e caráter nos pobres, que são senhores de seu destino em um grau maior do que eles reconhecerão. Ignorar a importância do caráter, e da disciplina que produz um caráter, é uma falha comum da filantropia moderna. Tanto os ricos quanto os pobres são retratados como vítimas de circunstâncias de uma ordem social errada. Um escritor político disse que, antigamente, quando nossos antepassados ​​ficavam insatisfeitos, eles iam mais adiante no deserto, mas agora, quando alguma coisa que dá errado, corremos gritando para Washington, pedindo uma legislação especial para nossos problemas. (RICHMOND, 1899RICHMOND, Mary Ellen. Friendly visiting among the poor: a handbook for charity workers. Nova York, Londres: Macmillan & CO, 1899., p. 8-9)

Após dar esse claro recado político sobre movimentos reivindicatórios, a autora fala da importância de se remover as causas das necessidades dos pobres, a partir da paciência e da simpatia indispensáveis no trabalho de visita amigável.

É interessante notar a divisão dos capítulos do livro. Por tratar-se de uma visita amigável ao “lar”, há um capítulo dedicado a cada um dos “membros”: o provedor [breadwinner], a dona de casa [homemaker] e os filhos [children], reproduzindo o modelo de família nuclear burguesa como sua base. O texto é recheado de exemplos e conselhos de como é importante que esses papéis sejam fielmente cumpridos para o bem-estar da família e de como são determinantes para superar suas necessidades. A autora apresenta exceções, claro (por exemplo, chega a defender que em alguns lares a separação do casal será mais produtiva do que se eles se mantiverem juntos), mas reforça que os papéis de provedor e dona de casa são imprescindíveis para o alcance dos objetivos da caridade.

Isso se revela no fato de ela dedicar dois capítulos ao homem: o primeiro discute a sua condição de trabalhador no espaço público, o que o faz provedor do sustento; e o segundo, a sua função como provedor dentro do lar [The breadwinner at home], o que o faz chefe de família. E é nesse momento que ela aponta quais as grandes dificuldades que os visitadores amigáveis encontram quando se deparam com chefes de família “vagabundos” - vale lembrar que Richmond fala de visitas a pobres, de quem o “caráter” deve ser observado pelos visitadores.

A tradicional visão do papel do “feminino” como mantenedor da moral, dos bons costumes, da educação das crianças, de sua alimentação, da limpeza da casa e das responsabilidades religiosas é naturalmente reproduzida pela autora como um dos focos de atuação dos visitadores amigáveis para ajudar a família a resolver as causas de suas necessidades.

A autora ainda aponta a importância do trabalho dos visitadores no campo da saúde e da recreação familiar, dedicando um capítulo para cada uma dessas frentes. Como último campo - e o capítulo mais denso do livro -, ela desenvolve a proposta da ação da visita amigável no campo do socorro e da ajuda [relief]. Fiel à defesa do trabalho que as COS’s vinham desenvolvendo desde a Inglaterra, apresenta o que seriam os princípios da ajuda:

  • [1] O socorro deve ser dado individual e privadamente no lar, e que o chefe da família deve ser consultado com todas as questões ao socorro relacionadas. (p. 149)

  • [2] Devemos buscar as fontes de socorro mais naturais e menos oficiais, tendo em mente os laços de parentesco, amizade e vizinhança, e devemos evitar a multiplicação de fontes. (p. 153)

  • [3] O socorro não apenas para aliviar o sofrimento presente, mas para promover o bem-estar futuro de quem o recebe. (p. 157)

  • [4] Em vez de dar um pouco a muitos, devemos ajudar adequadamente àqueles que ajudamos. (p. 159)

  • [5] Devemos ajudar os pobres a entender as relações corretas das coisas, declarando claramente nossas razões para dar ou reter o socorro e exigindo sua sincera cooperação em todos os esforços para sua melhoria. (p. 160)

  • [6] Devemos encontrar a forma de socorro que melhor se ajuste à necessidade específica. (p. 162)

Richmond ainda dedica um capítulo à Igreja e seu papel no processo de caridade e de socorro aos pobres - e faz referências tanto às ações tradicionalmente desenvolvidas pela Igreja católica romana e seus clérigos, como pela Igreja protestante e seus ministros.

Por fim, ela termina o livro exaltando as virtudes e as competências de um visitador amigável: que investiga com cautela a história da família, que coleta dados necessários para o benefício a ser dado, que constrói um plano de tratamento familiar e o executa com um “um precioso fardo de simpatia humana e ternura” (p. 194). Percebe-se claramente que Richmond, ao falar do papel do visitador amigável, já delineia aqui o primeiro esboço daquilo que ela apresentará em Diagnóstico social, em 1917: a metodologia do estudo, diagnóstico e tratamento (direto e indireto) sociais.

É impossível não reconhecer as preocupações humanistas presentes nas ações dos agentes da caridade. Mas uma análise apurada demonstra que elas estão intrinsecamente associadas ao projeto burguês de controle da “questão social” através de uma intervenção considerada “amigável” sobre a classe trabalhadora pobre (que Jane Addams vai criticar duramente). E que, no marco das disputas e das alianças políticas nos EUA, sairá vitorioso após a ida de Richmond para a Fundação Russel Sage e o surgimento das primeiras escolas de Serviço Social nos EUA.

Os valores familiares, definitivamente patriarcais, dão o tom da visita amigável. Para enfrentar as situações vivenciadas pelas famílias pobres, o reforço dos papéis da criança obediente, do homem como provedor, da mulher recatada e cuidadora do lar são para Richmond primordiais. Seu cumprimento, associados a ações socioassistenciais em diversos campos, permitiriam assim uma mudança social na medida em que indivíduos desajustados, por serem pobres, que não exercem devidamente tais papéis, poderiam novamente integrar-se a uma ordem social que se pretendia harmônica e equilibrada. E todo esse trabalho é realizado diretamente no espaço cotidiano de vida dessas famílias: seus domicílios. Eis o manual da visita amigável.

Em suma: conservar a ordem e evitar os perigos da subversão econômica, política, moral, por meio de ações de ajuda aos pobres, entendidos como responsáveis por suas próprias mazelas por não cumprirem devidamente seus papéis sociofamiliares. Impressiona-nos, 130 anos depois da publicação do livro de Richmond, como esse discurso e essas práticas se atualizam no Brasil a partir de uma ofensiva ideológica que levou ao poder um governo de características fascistas e com forte apelo religioso. E que, mesmo com os então questionamentos de Jane Addams (e de outros protagonistas dos Settlement ­Movements), bem como toda a crítica ao conservadorismo construída pelo Serviço Social latino-americano ao longo das últimas décadas, especialmente o brasileiro, esses discursos e práticas ainda sejam reproduzidos e por vezes até defendidos por muitos assistentes sociais em diversos momentos na vida profissional.

Referência

  • RICHMOND, Mary Ellen. Friendly visiting among the poor: a handbook for charity workers. Nova York, Londres: Macmillan & CO, 1899.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2019
  • Aceito
    27 Maio 2019
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