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O estruturalismo genético de Lucien Goldmann e o estudo da prática do serviço social* * Artigo originalmente publicado na revista Serviço Social & Sociedade, n. 21, ago. 1986.

Lucien Goldmann's genetic structuralism and the study of the Social Work practice** ** As ideias de Lucien Goldmann trabalhadas neste texto se encontram explicitadas principalmente em Dialética e cultura (2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, tradução de Luiz Fernando Cardoso); Ciências humanas e filosofia (8. ed. São Paulo: Difel, 1980, tradução de Lupe Cotrim Garande e José Arthur Gianotti); Epistémologie et philosophie politique (Paris: Denöel/Gonthier, 1978); Dialética e ciências humanas (Lisboa: Presença, 1972, tradução de João Arsênio Nunes); A sociologia do romance (2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, tradução de Álvaro Cabral).

Resumo:

O artigo aborda a prática profissional de assistentes sociais e seu estudo e objetiva refletir sobre a utilização da ideia de estrutura signi­ficativa, desenvolvida por Lucien Goldman, como método de trabalho no Serviço Social, para apreender, a partir de análise sócio-histórica, as relações qualitativas existentes entre "a ambiência externa da prática e suas categorias internas". Enfatiza, nesse processo, a categoria totalidade, que é central no pensamento dialético e base da análise goldmanniana.

Palavras-chave:
Serviço Social; Prática profissional; Estruturalismo genético; Estrutura significativa; Totalidade

Abstract:

The article deals with the social workers' professional practice and its study, and it aims at reflecting over the use of Lucien Goldmann's idea of significant structure as a work method in Social Work in order to apprehend the existing qualitative relations between "the external ambience of the practice and its internal categories", from the social and historical analysis. In this process, it emphasizes the totality category, which is central in the dialectic thinking, as well as the basis for the goldmannian analysis.

Keywords:
Social Work; Professional practice; Genetic structuralism; Significant structure; Totality

Nas discussões mais recentes, a concepção tradicional da prática profissional dos assistentes sociais, que era basicamente normativa, com propostas estáticas sobre "como" o Serviço Social deveria ser, ou sobre "o que" o Serviço Social deveria fazer, vem sendo questionada e substituída por uma concepção dinâmica que considera que a ação profissional se constrói historicamente, inserida no processo mais amplo das relações de sociedade.

Nessa nova perspectiva, há que se pensar a prática a partir de uma metodologia que seja capaz de apreender essa ação em suas articulações e em sua dinâmica, considerando que esse movimento tem como centro o assistente social, tomado como um ser de relações.

Nossa reflexão, neste artigo, parte do suposto de que a sistematização do método dialético realizada por Lucien Goldmann para embasamento de seus estudos sobre a sociologia da cultura - o estruturalismo genético1 1 A expressão estruturalismo genético, utilizada por Goldmann, não se refere à genética, mas à gênese, à história. Esse genético significa historicidade. Essa posição demarca-o de todo estruturalismo antropológico francês, uma vez que Goldmann foi um historicista radical. -, compõe uma metodologia geral para o estudo das relações dos homens na sociedade, no mundo burguês, e que esta seja a vertente metodológica mais fecunda para aquela apreensão.

Procuramos, portanto, verificar as possibilidades de aplicação, no Serviço Social, dos avanços conseguidos por Goldmann, uma vez que a ideia de estrutura significativa,2 2 Estruturas significativas são referências a estruturas de pensamento de grupos sociais que norteiam as respostas que esses grupos encaminham às questões que a eles se apresentam em suas relações, nas relações com os outros grupos, com as instituições e com a sociedade como um todo. por ele desenvolvida, parece ser um instrumento analítico adequado para explicar, não apenas a realidade social macroscópica, mas também fenômenos sociais determinados.

Goldmann, ao estudar as expressões da consciência coletiva de grupos sociais, detectou a possibilidade de estabelecer totalidades significativas e coerentes, no plano ideológico, de estruturas de pensamento - às quais chama de "visões de mundo" daqueles grupos.

A partir daí, Goldmann desenvolveu um instrumental de análise que oferece condições, tanto de apreensão do global, como de interpretação de situações parciais, estabelecendo vínculos, apontando diferenças, enfim, revelando o caráter significativo, estrutural e funcional dos fenômenos.

O que se pretende com este estudo é encontrar um método de trabalho que permita apreender, em maior nível de integração, através de uma análise sócio-histórica, as relações qualitativas entre a ambiência externa da prática e suas categorias internas.

Adotando a perspectiva goldmanniana, nosso objeto de análise - a prática profissional dos assistentes sociais - será visto como uma tentativa de oferecer respostas significativas e coerentes às questões que emergem das relações dos profissionais com os homens e as instituições, com o propósito de modificar uma situação existente. E mais, a importância e a coerência dessa prática estão relacionadas a uma percepção de mundo que se apresenta totalizada por um sentido, por um movimento radical que lhes dá significação.

A análise estruturalista genética toma como categoria central a totalidade. Nessa perspectiva, trabalha os fatos sociais como totalidades estruturadas, procurando detectar a dialética que existe na relação entre o todo e as partes, entendendo que é impossível apreender o todo sem compreender a articulação entre as suas partes, e sem perceber o lugar que elas ocupam nas relações que constituem a estrutura total.

O fenômeno social é tomado como uma estrutura parcial, imbricada em um contexto maior de estruturas (ou totalidades relativas) dinâmicas e de equilíbrio precário, de níveis diferentes, contendo, cada uma delas, uma significação particular, e delas recebendo, em escalas diversas de importância, as determinações que constituem a sua própria gênese.

O entendimento goldmanniano de estrutura está relacionado, portanto, à noção de totalidade, que centraliza o pensamento dialético: a relação que se estabelece entre o todo e as partes, ainda que nunca se possa chegar a uma totalidade que não seja, ela mesma, elemento ou parte.

Dessa percepção, de que a gênese da prática se encontra no processo sócio-histórico, decorre que, para se analisar uma determinada prática profissional, e para apreender sua dinâmica, deve-se procurar relacioná-la aos problemas que se colocavam aos assistentes sociais na época estudada e aos fatores que configuravam aquele momento. Assim, é indispensável investigar a dinâmica pregressa dos principais parâmetros significativos, procurando correlacionar as transformações da sociedade com as visões de mundo da categoria profissional e dos grupos sociais com os quais ela interage.

É, por exemplo, na medida que se a considera inserida em um sistema de relações de dominação que podem ser explicitadas certas especificidades da prática do Serviço Social do Brasil. Da mesma forma, seu processo de transformação, e seus diferentes estados de transição, só podem ser explicitados satisfatoriamente quando inscritos na totalidade estrutural das transformações que foram acontecendo no nível da sociedade.

A prática se apresenta, portanto, como um processo dinâmico de estruturação, cuja especificidade é estabelecida, tanto pelo tipo de articulação de seus elementos componentes, como pelas relações que ela mantém com as estruturas que a englobam.

A estrutura significativa do pensamento que informa a prática nem sempre é evidente, mas pode ser desvelada pela investigação. E é só à medida que o significado do todo for se evidenciando, que irão se delinear os traços gerais de sua estrutura parcial, que só será explicada ao ser inserida em uma estrutura maior, que poderá elucidar a sua gênese e a maior parte dos problemas que a constituem.

Quando se aborda uma prática concreta, o que se vai perceber é a existência de um conjunto que não é uniforme, mas abrange a ação simultânea de diferentes modos de prática que interagem, chegando mesmo a parecer que o Serviço Social se dispersa em muitas direções. Isso ocorre porque o contexto da prática profissional não é uma simples justaposição de modos de prática, mas uma estrutura complexa,3 3 O conceito de estruturas complexas com dominantes é trabalhado por Charles Bettelheim no estudo que ele faz sobre estruturas econômicas complexas em A transição para a economia socialista (Rio de Janeiro: Zahar, 1969, tradução de Sergio Goes de Paula). resultante do conjunto das relações e do modo de domínio que se estabelece entre elas, bem como de suas contradições. Nessas relações se percebe uma prática dominante, que permeia e impregna todo o sistema, modificando as condições de funcionamento e de desenvolvimento das demais.

Para se analisar a estrutura complexa da prática do Serviço Social e, principalmente, perceber suas tendências, é importante assinalar que esse seu caráter complexo não é "interno" ao Serviço Social, mas é próprio das práticas sociais mais amplas. Da mesma maneira, as contradições que ocorrem em determinadas situações não são inerentes à profissão, mas resultam também do modo de inserção dessas situações em um complexo político, econômico e social. A leitura dessa realidade, portanto, precisa se ampliar, partir do microuni­verso e perceber que a análise das contradições não se esgotam na visualização do mais próximo.

Focalizando o Serviço Social em sua relação com a sociedade e com o meio ambiente, vemos que, na busca de oferecer respostas significativas às situações e às questões com que se defrontam em determinadas condições históricas, os profissionais vão desenvolvendo e incorporando um conjunto de procedimentos que tende a criar equilíbrios extremamente transitórios entre a sua prática e a conjuntura, em um processo que Goldmann chama de equilibração.4 4 O sentido dessa equilibração nada tem a ver com aquele equilíbrio no qual todas as funções se cumprem e se realizam e no qual todos os componentes se desenvolvem simultaneamente, sem que nenhum deles tenha uma determinação maior, que é próprio do estrutural-funcionalismo. Seu entendimento está relacionado à ideia de movimento que envolve “todas as mudanças e todos os processos que se produzem no universo” (Engels), se relaciona também à ideia de que o caráter humanista do mundo está na ação transformadora do homem. Esses procedimentos, no entanto, transformam o meio ambiente e criam condições novas, que tornam o equilíbrio alcançado contraditório e insuficiente, gerando a tendência para um novo movimento, em busca de um novo equilíbrio, que tenderá, por sua vez, a ser superado, em um processo de desestruturação de antigas estruturas e de estruturação de novas, que satisfaçam às exigências dos grupos sociais que as elaboraram.

Portanto, para se compreender e explicar a prática do Serviço Social, há necessidade de se explicitar esse processo de equilibração, de desestruturação de sua antiga totalidade e de estruturação de nova, assinalando os equilíbrios que se desfazem e percebendo aqueles em cujo sentido a prática se orienta.

Deve-se ter em conta, ainda, que a cada nível de análise o dinamismo da estrutura do pensamento dos assistentes sociais resulta não somente de suas contradições internas, mas também do dinamismo das estruturas mais vastas que o englobam e que tendem também para a equilibração.

Assim, as relações que se concretizam na prática profissional detêm o sentido de uma estrutura de significados, na qual permanentemente existe uma renovação de seus elementos, com a desestruturação daqueles que foram perdendo historicamente significação e a produção contínua de novos significados.

O estudo dessas tendências deverá, então, permitir perceber as condições de ação inovadora que vão se configurando no interior da prática tradicional, as relações que estão se transformando, as práticas que estão emergindo, e relacioná-las às contradições internas do Serviço Social e às conjunturas onde elas se desenvolvem.

Compreende-se que é no interior da prática do Serviço Social, nas relações que ele estabelece com a sociedade, que vão se formando as condições de sua própria superação.

Porém, a sua transição não é linear, é um processo complexo que acontece com a ruptura da antiga unidade estruturada. Os diferentes níveis reagem uns aos outros e, nas relações contraditórias que estabelecem, percebe-se um estado concreto de tensão entre o impulso crítico das forças dinâmicas de equilibração orientadas para o futuro, e o seu bloqueamento por forças conservadoras que atuam no sentido contrário, que tendem a impedir o seu desenvolvimento. É quando esse confronto resulta em uma reestruturação, ou melhor, na substituição de uma prática por outra, que se configura um período de transição.

Importa lembrar, no entanto, que a desestruturação de um modo de prática só cria condições para o domínio de outro modo mais avançado de ação quando existem as condições materiais, políticas e ideológicas para isso, o que vai depender da estrutura das conjunturas por que passa cada formação histórica. Portanto, o processo de construção da prática do Serviço Social, de cada prática, é qualitativamente diferente em cada país, em cada região, em cada momento de sua história. Isso não ocorre somente por razões internas das diferentes situações, ou seja, em razão do nível particular de desenvolvimento cultural, político ou ideológico, da consciência possível de seus profissionais, mas também por razões ligadas à situação social, política e econômica de cada país.

Essa característica vai exigir que na reflexão sobre a prática se faça, a todo tempo, um esforço sistemático e consciente no sentido de - além dos traços gerais de sua estrutura parcial, de constelação de elementos que apontam respostas às questões com as quais se relacionam diretamente - perceber a totalidade das estruturas que a englobam, as quais irão elucidar a sua gênese e seu direcionamento.

Isso significa que uma análise mais profunda do Serviço Social deverá ter um caráter compreensivo, no que diz respeito às relações sociais internas que estabelece, e um caráter explicativo em relação às estruturas que as constituíram - processo este que veremos mais adiante.

Do mesmo modo, as respostas que o assistente social dá às questões da profissão são, ao mesmo tempo, um ato individual e um ato social, pois se relacionam tanto com a estrutura de sua personalidade, quanto com as categorias mentais (a visão de mundo) de seu grupo social.

Essa perspectiva tem como apoio a hipótese de que as estruturas do pensamento e da ação dos indivíduos são homólogas às estruturas mentais do grupo social que as gerou, o que possibilita a emergência de uma expressão coletiva, concretizada na ação, sobre um objeto social.

Essa concepção ressalta uma questão fundamental para o estudo da prática: o caráter coletivo de seu sujeito. Cada prática é vista como uma síntese elaborada pelo profissional, do pensamento historicamente construído pelos seus membros, ao qual ele atribui significação e intencionalidade. É essa síntese que vai nortear seu comportamento frente aos problemas que se colocam à sua ação, e sua maneira de incorporar as transformações das estruturas dos fenômenos com os quais se defronta e, ainda, a sua predisposição para a reprodução ou a criação de novos tipos de prática.

Isso não significa que exista homogeneidade de pensamento entre os profissionais ao nível dos indivíduos, na medida em que cada profissional faz parte, simultaneamente, de diferentes grupos sociais. Esse conjunto múltiplo e complexo de relações, com suas mediações e variedade de situações concretas, interfere nas tendências afetivas, intelectuais e práticas determinantes da consciência, criando frequentemente uma ruptura entre a vida cotidiana e o pensamento conceitual efetivo.

É no nível do sujeito coletivo que essas diferenças individuais se anulam e possibilitam a emergência e o desenvolvimento de uma visão de mundo que ilumina, ao mesmo tempo, os fins a que a prática deve se propor e os meios para alcançá-los, isto é, fornecem o "modelo" da ação "legítima", que vai sendo permanentemente renovado e proposto à atuação comum dos profissionais.

Essa criação e legitimação de objetivos, sentimentos e ideias, aliados à produção de conhecimentos e procedimentos transmissíveis, vai conformando a identidade profissional, as linhas gerais de sua organização e as atividades peculiares à profissão.

As relações que se concretizam na prática determinadas por esse "modo de pensar" se reproduzem as mais das vezes de maneira inconsciente em seus profissionais, na proclamação de princípios essenciais, de evidências incontestáveis, a partir das quais os atos particulares tomam sentido e se justificam, permitindo definir o que é certo e o que é errado, possibilitando apontar e condenar desvios, frequentemente face a evidências que se apresentam imediatamente à consciência, sem levar em conta as mediações que vedam a percepção concreta dos fatos sociais.

Procedimentos de pesquisa

Aplicando-se ao estudo das práticas do Serviço Social os princípios metodológicos desenvolvidos por Goldmann, vemos que este estudo deve se fazer em único processo de apreensão da realidade, em dois níveis que se reforçam - o estrutural e o funcional -, levando o pesquisador a transitar ­continuamente entre um e outro, de modo a desvelar seu caráter significativo.

Este estudo é feito através:

  1. da conjugação da dimensão analítica interna, que procura compreender a estrutura interna dessa prática e detectar o processo pelo qual um sujeito coletivo - os assistentes sociais - elabora e procura dar coerência às suas respostas, às questões que lhe são colocadas em suas relações com a sociedade, em termos de ação; e

  2. da investigação da dimensão analítica externa, de vinculação daquelas práticas à revolução sócio-histórica das conjunturas, no sentido de uma explicação de sua gênese e de sua dinâmica.

Para que esses níveis de análise se apliquem, o investigador tem que ter, necessariamente, um trabalho prévio de contato com a realidade, para obter um conhecimento, na medida do possível, sistemático, dos fatos empíricos que configuram a ação profissional, tomados como índices da realidade concreta.

Porém, essa aproximação descritiva, que dá acesso a dados básicos para o desencadeamento da pesquisa, detecta uma representação caótica do real - que ao mesmo tempo que evidencia, esconde suas relações concretas -, não permitindo, imediatamente, a percepção de sua racionalidade. Esse fato leva à exigência de uma postura que, simultaneamente à afirmação da importância dos dados obtidos, nega-os, em busca de sua superação.

Esses fatos irão se concretizando, se revelando significativos, à medida que forem sendo seguidamente integrados em conjuntos mais abrangentes. Esse processo de aproximações progressivas irá permitir ultrapassar a sua abstração e chegar à sua essência concreta.

O caráter empírico dessa primeira aproximação investigativa do método traz uma dificuldade preliminar: como agrupar e ordenar os dados de modo a constituir totalidades suficientemente autônomas que possam servir de apoio a uma investigação? Essa esquematização do objeto é bastante difícil, uma vez que isso não pode ser feito sem que se tenha bem claro o conjunto de dados empíricos que o compõe. Isso só poderá ser feito se tivermos uma hipótese, mais ou menos elaborada, da estrutura que lhes dá unidade.

Assim, a convicção de que se pode reunir um certo número de fatos em unidades estruturais e tentar estabelecer, entre eles, o máximo de relações compreensivas e explicativas, pressupõe a formulação de hipóteses de estrutura do objeto e de suas determinações essenciais (o concreto idealizado).

Essas pressuposições se apoiam, basicamente, em uma teoria do ser social e no conhecimento já constituído da realidade - o qual será tanto mais abstrato quanto mais imediata for a apreensão do objeto.

Essas hipóteses não serão tomadas como um direcionamento para uma objetividade dada, mas como ponto de partida para, em uma dinâmica de aproximações reflexivas, ir apreendendo, passo a passo, o conjunto de determinações que se dão no plano real, através da história, em diferentes momentos de gênese, de estrutura e de funcionamento do objeto. Nessas aproximações, se procuram englobar fatos que pareçam estranhos à primeira vista, eliminar outros que não se mostrarem significativos no decorrer da análise, até chegar a uma proposição estrutural que permita a compreensão e a explicação de um conjunto coerente de fatos, de modo a que se possa identificar, conhecer e transformar o objeto.

Uma outra dificuldade que se coloca, nesse momento da investigação, é que o que se pretende não é quantificar os dados empíricos, mas organizá-los, a partir de um processo compreensivo, em estruturas tão significativas quanto possível. Nesse sentido, as questões que se colocam são: como delimitar aqueles dados empíricos que tendem a constituir a totalidade relativa do fato social estudado? Como distinguir o que é essencial do que é acidental dentre os inúmeros fatos ligados à realidade imediata que se apresentam à nossa consciência sensível?

Nem todos esses elementos têm a mesma importância para a compreensão de uma prática: há elementos essenciais sem os quais não é possível compreendê-la e outros cujas ocorrências se explicam pelos "acasos particulares do cotidiano" e, como tal, não apresentam interesse para o estudo.

Há necessidade, portanto, de se criarem critérios objetivos que permitam não apenas julgar a importância desses dados empíricos imediatos e sua significação no conjunto, como também evitar a criação de analogias artificiais entre fatos semelhantes, sem levar em conta o contexto em que eles ocorrem, o que pode dar a esses elementos uma significação diferente ou até mesmo oposta à verdadeira.

Esses fatos, considerados como respostas significativas de um grupo às questões que se colocam pelas relações com a sociedade, refletem o tipo de vinculação de sua consciência real com a realidade, a qual não se dá ­diretamente, é mediatizada, entre outras coisas, por ideologias, que deformam a percepção do sentido dos fatos e das relações. Deve-se ter presente que o conteúdo expressivo de representação de um grupo social sobre a realidade é demarcado pelos limites de sua consciência possível e só muito raramente atingirá esses limites.5 5 Consciência real é aquela que existe nas representações imediatas dos grupos e das classes sendo, por isso mesmo, imediatamente verificável. A consciência possível se refere ao máximo de possibilidade histórica que a consciência de um grupo possa ter em um determinado momento. Seu conteúdo, ainda que inexistente, é uma possibilidade histórica, por ser de interesse do grupo. Seu conteúdo não é verificável diretamente, mas tem um máximo de vinculação com a realidade.

O estabelecimento desses critérios objetivos de análise se apoia na hipótese da existência, nos grupos e nas classes sociais, de estruturas de visão de mundo, enquanto fenômenos culturais e ideológicos que evidenciam os principais aspectos de sua consciência coletiva.

Deste modo, pode-se construir, a partir de um estudo amplo das condições objetivas, um instrumento conceitual de pesquisa que configure a visão de mundo de um grupo social determinado, a qual deve permitir estabelecer os marcos de coerência entre os diferentes elementos de suas ações, ainda que se tenha presente que o conteúdo e a força de suas categorias significativas têm valores transitórios, relacionados a momentos históricos específicos.

Esse nos parece ser o maior desafio do método ao Serviço Social que, até o momento, não se pensou em termos estruturais. Ainda não se forjou um instrumento conceitual de análise que permita separar o que é essencial daquilo que é acidental em sua prática: a visão de mundo que expressa a consciência coletiva da categoria.

A formulação de hipóteses de visões de mundo, explicitando o conteúdo essencial do pensamento, do sentimento e da ação dos assistentes sociais, deve permitir a identificação clara de suas categorias centrais e das vinculações desses elementos com a situação sócio-histórica. Isso vai exigir um mergulho nas práticas profissionais, e o estudo de como os assistentes sociais desenvolvem, expressam, codificam e decodificam seu leque de respostas (e de projeções) às questões consideradas significativas para a profissão.

Deve haver uma preocupação em se trabalhar rigorosamente o dado e fazer o possível para apreender não apenas as determinações que situam a prática no tempo e no conjunto do universo das práticas sociais, mas apreender a prática mesma, o seu significado nesse contexto e para a construção do ser do Serviço Social.

O conteúdo dessas práticas será tanto mais importante quanto mais se aproximar de uma coerência, em termos de uma visão de mundo, que permita estabelecer o máximo de relações entre o vetor externo (a análise sócio-histórica da prática) e a apreensão de suas estruturas internas, identificando as suas inconsequências e os seus desvios em relação ao pensamento coletivo.

No estruturalismo genético, a compreensão é a elucidação do caráter significativo, do sentido imanente do dado, de sua dependência da experiência e da consciência possível. É a descrição do essencial e do específico em uma estrutura significativa, no interior de um fato social. Envolve a percepção da vida intelectual e consciente dos homens que realizam o fato social e a correlação entre as suas transformações e as transformações dos diferentes setores da vida social, naquele momento histórico.

Chega-se à compreensão através do estudo intensivo do objeto, até se evidenciar uma estrutura que dê conta, satisfatoriamente, de uma quantidade significativa de fatos empíricos. Para tanto, no estudo da prática, é preciso que se faça a identificação de seu eixo essencial, e se perceba como ele se desdobra, tendo presente que muitas das atitudes analisadas têm seu eixo fora da prática, em decisões cotidianas de instituições, de grupos políticos etc. Procurar compreender como se realiza o desempenho profissional, qual o instrumental metodológico, de procedimentos e de técnicas de que se utiliza em sua intervenção.

Por outro lado, não é suficiente conhecer a estrutura interna do fato social, é preciso conhecê-lo geneticamente, em seu processo de formação e em seu direcionamento. A busca da gênese, relacionada às estruturas mais amplas que determinam o fato social, se faz no momento da explicação, quando se procura fazer o mapeamento totalizante da contextualidade histórica estudada, procurando determinar as linhas de força que se entrecruzam.

Esta perspectiva de análise parte do pressuposto de que a gênese da prática é exterior a ela e pode ser percebida na inserção daquela estrutura significativa em estruturas englobantes, entendendo sua gênese enquanto função daquelas estruturas.

São muitas as totalidades que atuam sobre a consciência e sobre o comportamento dos grupos, porém, apenas certas totalidades estão em condições de interferir na estruturação da prática. Isso faz com que seja particularmente importante determinar essas totalidades para saber em que direção orientar a investigação.

Essa determinação pode ser buscada pelo pesquisador:

  1. realizando uma reflexão que faça ponte entre as questões cruciais com as quais se debatem os assistentes sociais e o contexto sócio-histórico e os pressupostos filosóficos que aí incidem. O que vai exigir uma remissão às análises sócio-históricas e às ciências sociais. A preocupação do estudo deve se centrar na determinação daqueles aspectos que, de uma forma ou de outra, vêm balizar mediata ou imediatamente o conjunto de noções que afetam a prática;

  2. reiniciando o processo com a busca das vinculações que possam ser feitas com a inserção do fato social, seguidamente, em estruturas mais vastas, de maneira a possibilitar o entendimento da gênese da primeira em função da segunda, chegando à eliminação de alguns elementos com os quais se partiu, à admissão de outros e à modificação da hipótese inicial. Determina-se, então, os elementos que se tornaram "permanentes", isto é, que foram assumidos como pensamento próprio, diverso do que lhe serviu de estímulo;

  3. considerando a estrutura significativa como um elemento constitutivo e funcional de estruturas englobantes, que só interessam ao pesquisador por sua função explicativa em relação ao objeto analisado, não há necessidade de explorá-lo detalhadamente, só o suficiente para ressaltar a relação entre a estrutura parcial enfocada e a estrutura englobante e possibilitar o entendimento da primeira em função da segunda.

Convém lembrar, finalmente, que é central não se confundir a forma expositiva com a maneira de apreensão. Na exposição do trabalho o método difere do utilizado na investigação. O método de exposição já tem como ponto de partida o ponto final da investigação. Quando se começa a expor, a explicitar o caminho percorrido, já se o percorreu.

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    Artigo originalmente publicado na revista Serviço Social & Sociedade, n. 21, ago. 1986.
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    As ideias de Lucien Goldmann trabalhadas neste texto se encontram explicitadas principalmente em Dialética e cultura (2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, tradução de Luiz Fernando Cardoso); Ciências humanas e filosofia (8. ed. São Paulo: Difel, 1980, tradução de Lupe Cotrim Garande e José Arthur Gianotti); Epistémologie et philosophie politique (Paris: Denöel/Gonthier, 1978); Dialética e ciências humanas (Lisboa: Presença, 1972, tradução de João Arsênio Nunes); A sociologia do romance (2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, tradução de Álvaro Cabral).
  • 1
    A expressão estruturalismo genético, utilizada por Goldmann, não se refere à genética, mas à gênese, à história. Esse genético significa historicidade. Essa posição demarca-o de todo estruturalismo antropológico francês, uma vez que Goldmann foi um historicista radical.
  • 2
    Estruturas significativas são referências a estruturas de pensamento de grupos sociais que norteiam as respostas que esses grupos encaminham às questões que a eles se apresentam em suas relações, nas relações com os outros grupos, com as instituições e com a sociedade como um todo.
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    O conceito de estruturas complexas com dominantes é trabalhado por Charles Bettelheim no estudo que ele faz sobre estruturas econômicas complexas em A transição para a economia socialista (Rio de Janeiro: Zahar, 1969, tradução de Sergio Goes de Paula).
  • 4
    O sentido dessa equilibração nada tem a ver com aquele equilíbrio no qual todas as funções se cumprem e se realizam e no qual todos os componentes se desenvolvem simultaneamente, sem que nenhum deles tenha uma determinação maior, que é próprio do estrutural-funcionalismo. Seu entendimento está relacionado à ideia de movimento que envolve “todas as mudanças e todos os processos que se produzem no universo” (Engels), se relaciona também à ideia de que o caráter humanista do mundo está na ação transformadora do homem.
  • 5
    Consciência real é aquela que existe nas representações imediatas dos grupos e das classes sendo, por isso mesmo, imediatamente verificável. A consciência possível se refere ao máximo de possibilidade histórica que a consciência de um grupo possa ter em um determinado momento. Seu conteúdo, ainda que inexistente, é uma possibilidade histórica, por ser de interesse do grupo. Seu conteúdo não é verificável diretamente, mas tem um máximo de vinculação com a realidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016
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