Open-access Entrevista com Arlindo Manuel Caldeira: o tráfico de escravizados no Império Português

Interview with Arlindo Manuel Caldeira: the slave trade in the Portuguese Empire

Resumo:

Nesta entrevista, Arlindo Manuel Caldeira aborda a origem do tráfico transatlântico de escravizados, seu interesse pelos estudos de temas relacionados à história da África e da colonização do Império Português. No diálogo com o entrevistador, ganham relevâncias os assuntos sobre as fontes de pesquisa e a importância dos estudos sobre a história da escravidão numa perspectiva de revisar a história do trabalho no Brasil.

Palavras-chave:
Tráfico de escravizados; Império Português; África; Brasil

Abstract:

In this interview, Arlindo Manuel Caldeira discusses the origins of the transatlantic slave trade, his interest in studying topics related to the history of Africa and the colonization of the Portuguese Empire. In the dialogue with the interviewer, issues about research sources and the importance of studies on the history of slavery gain relevance from the perspective of reviewing the history of work in Brazil.

Keywords:
Slave trade; Portuguese Empire; Africa; Brazil

Introdução

A entrevista tem como objetivo abordar temas essenciais para a compreensão da história do trabalho no Brasil, dentre eles, os estudos sobre o tráfico de escravizados do Império Português. O entrevistado é o Professor Arlindo Manuel Caldeira, autor de obras sobre o tráfico transatlântico e as formas de resistência dos escravizados.

Arlindo Manuel Caldeira é licenciado em História e investigador do Centro de Humanidades - CHAM (Universidade Nova de Lisboa/Universidade dos Açores). Foi professor de História na Escola Secundária de Camões (Lisboa). Publicou vários livros e dezenas de artigos em revistas portuguesas e estrangeiras. É autor dos livros: O apelo da liberdade: resistência dos africanos à escravidão nas áreas de influência portuguesa (Lisboa: Casa das Letras, 2024); Escravos e traficantes no Império Português: o comércio negreiro português no Atlântico durante os séculos XV a XIX (Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013); Schiavi e trafficanti attraverso l’Atlantico (Milano: Mimesis Edizioni, 2020); Escravos em Portugal: das origens ao século XIX (Lisboa: A Esfera dos Livros, 2017); Mulheres enclausuradas: as ordens religiosas femininas em Portugal durante os séculos XVI a XVIII (Lisboa: Casa das Letras, 2021).

Ricardo Lara:

Prezado Arlindo, é um grande prazer entrevistá-lo e ainda mais neste espaço, na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, local de inspiração para estudos sobre a história do Brasil e de Portugal. Ao ler suas obras, chamou-me a atenção a maneira como é abordada a história dos escravizados no Império Português. Digo isso, principalmente, em razão de estudar a história do trabalho no Brasil, porque boa parte da história do trabalho no Brasil é a história da escravização. Quando o senhor começou a se interessar pela investigação sobre a escravização, o tráfico e a África?

Arlindo Manuel Caldeira:

O interesse em estudar a África, os escravizados, vem do interesse pela Ilha de São Tomé. Os primeiros trabalhos de pesquisa que realizei foram sobre a Ilha de São Tomé, que é um microcosmo muito interessante, porque, de certa maneira, as coisas aconteceram ali com antecedência de algumas décadas em relação ao que vai acontecer no Brasil. A plantação de cana-de-açúcar e, depois, os modelos de trabalho, de exploração e de produção vão ser realizados nos mesmos moldes no Brasil. Foi para São Tomé que, pela primeira vez, grande número de mão de obra escravizada foi importada, para trabalhar em condições violentas. E isso foi uma questão completamente nova, na época. Porque, antes, tinha havido escravidão em todas as sociedades organizadas, praticamente desde o Neolítico, mas a escravidão que a formação do capitalismo europeu vai implantar, tanto pela escala como pelas condições de trabalho e, sobretudo, por uma situação que é importantíssima, que é a origem, uma origem única, a origem exclusiva da força de trabalho vinda da África, isso era completamente novo, porque nas outras sociedades que tinham escravidão, ela não era exclusiva, não produzia nenhuma forma de racismo. Essa nova escravização dos povos africanos para as plantações coloniais vai introduzir formas de exploração e racismo novas e violentas. Primeiro, para legitimar a própria escravidão, depois para justificar o trabalho imposto aos escravizados. E isso, que é novo e é terrível, é o que é diferente. Portanto, isso me fez interessar pela Ilha de São Tomé. Por outro lado, tinha interesse pelo cotidiano, procurei também investigar a história das mulheres. Escrevi vários artigos sobre São Tomé, Angola e Congo. E quando tive mais tempo, pude dedicar-me a fazer investigações mais desenvolvidas que são as bases dos meus livros.

Ricardo Lara:

Por que o interesse pela Ilha de São Tomé?

Arlindo Manuel Caldeira:

O caso de São Tomé tem a ver com relações pessoais. Na minha infância, havia um amigo dos meus pais que frequentava nossa casa e que depois se tornou meu amigo também. Era um rapaz muito mais novo que os meus pais e mais velho que nós (eu e meu irmão). Sempre trocávamos cartas, era muito bom receber cartas desse amigo, cheias de postais ilustrados. Entretanto, infelizmente, ele morreu afogado em São Tomé, em condições dramáticas. Então, passados 40 anos, fui à Ilha de São Tomé e perguntei para um motorista da Embaixada de Portugal se ele se lembrava de alguém que era empregado de comércio e que tinha morrido afogado. Para o meu espanto, ele disse que sim, e, mais, que fora ele que o tirara da água. Portanto, veja as coincidências e os encontros. Primeiramente, comecei a estudar a África e a escravidão por razões pessoais e depois nunca mais parei.

Ricardo Lara:

Quando e como se inicia o tráfico de escravizados pelo Império Português?

Arlindo Manuel Caldeira:

A colonização atlântica e a escravização compõem toda a vida do Império Português, seja em São Tomé, seja em Cabo Verde, ou mesmo nos arquipélagos europeus mais a norte, Açores e Madeira. Nessas ilhas, o apresamento de escravizados africanos era mesclado com escravizados de outras origens, o que resultou em poucas consequências étnico-raciais e culturais, enquanto na América, no Brasil em particular, a população escravizada acaba por ser a população majoritária, que vive, muitas vezes, até hoje, em condições de grande precariedade. Embora seja quase certo terem sido feitas experiências de cultura de cana-de-açúcar em todas as ilhas, foi em São Tomé que se iniciou a colonização, a partir de 1485. A iniciativa fazia parte de um projeto mais vasto de exploração econômica do golfo da Guiné, que tinha como polo central a feitoria fortificada de São Jorge de Mina. A ilha de São Tomé, e mais tarde a do Príncipe, teve um papel importante no complexo comercial que Lisboa tentou organizar na região. Atendendo à localização da ilha, à abundância de água e madeira e à fertilidade do solo, esperava-se criar em São Tomé uma próspera colônia de povoamento, em que, em curto ou médio prazo, a mão de obra importada de África seria substituída por população mestiça, por isso os incentivos à miscigenação foram uma constante desde o início. A ilha devia passar a ser uma escala segura para os navios que da Mina regressavam à Europa e, eventualmente, também para os que rumavam à África Austral e à Índia. Nessa perspectiva, foi a ilha de São Tomé que recebeu maiores investimentos, e onde se instalou uma economia de plantação baseada na exploração do trabalho escravo e centrada, essencialmente, no cultivo de cana-de-açúcar e na sua transformação industrial. Cerca de 1540, há em São Tomé mais de 60 engenhos em laboração e a ilha era, naquela época, a maior produtora mundial de açúcar, dispondo das principais roças de cana e plantéis de escravizados que podiam ir dos 150 aos 300.

Ricardo Lara:

Qual a importância geográfica e comercial da ilha de São Tomé para o Império Português?

Arlindo Manuel Caldeira:

A ilha de São Tomé se tornara também, desde o fim do século XV, uma plataforma na distribuição atlântica de escravizados. No princípio do século XVI, calculava-se em 5 mil a 6 mil os escravos concentrados na ilha, ou em trânsito para outros destinos, que nessa altura eram ainda só Lisboa (de onde uma parte deles era reexportada para a bacia mediterrânea) e São Jorge de Mina, de que São Tomé passará a ter abastecimento exclusivo a partir de 1519. Desde cerca de 1520, os navios são-tomenses passaram a rumar também ao porto de Santo Domingo, tornando-se, com os do arquipélago de Cabo Verde, os principais fornecedores de pessoas escravizadas para as Antilhas e para outros pontos das Índias Espanholas. A partir de São Tomé viria a ser também enviada, já na segunda metade do século XVI, mão de obra servil para o Brasil (Pernambuco primeiro, Bahia depois), à medida que aí crescia a produção açucareira.

Ricardo Lara:

Qual a origem desses primeiros escravizados?

Arlindo Manuel Caldeira:

Os primeiros escravizados provinham essencialmente, numa primeira fase, do delta do Níger, em particular do reino do Benim; mas, à medida que se intensificou, quer a procura interna, quer a exportação de mão de obra, os navios são-tomenses passaram a demandar também o reino do Congo e, em seguida, a baía de Luanda. Portanto, com toda essa história, ainda não é possível fazer comparações com o que aconteceu em Cabo Verde, São Tomé, Angola, pois são casos totalmente diferentes do que se processou no Brasil e no restante da América.

Ricardo Lara:

Certo, mas, pensando na formação histórica do Brasil e de Angola, para quem estuda através da história dos nossos tempos, não conseguimos entender o Brasil sem entender a história de Angola.

Arlindo Manuel Caldeira:

Absolutamente! Aliás, há vários ditos do padre Antônio Vieira de que o Brasil não viveria sem a mão de obra da Angola. Não só de Angola, como também de várias outras regiões do continente africano. Toda a economia do Brasil colônia se baseou na mão de obra escravizada, seja o açúcar, a mineração, o café, o algodão. O comércio de escravos e as relações de trabalho são violências excessivas e comuns. Porém, existem algumas diferenças. Em Angola, os escravizados viviam na sua própria terra, isso não é pouco. Quando escravizados e traficados para a América, iam viver em outro mundo.

Ricardo Lara:

No Brasil, por exemplo, a chegada como escravizado da África era uma situação muito singular. Diferentemente da escravização indígena, pois estes se afastaram da costa para o interior, eram filhos da terra. Enquanto o africano, que era traficado para a América, encontrava um verdadeiro mundo novo em todas as suas dimensões (idioma, cultura, valores, religião), estavam enclausurados, a bem dizer, no trabalho e na exploração.

Arlindo Manuel Caldeira:

Muitos deles viviam numa grande solidão, mesmo quando conviviam no mesmo espaço e grupo de trabalho, pois cada um tinha a sua origem étnica. Cada um falava seu idioma, e, quando escravizados, precisavam encontrar formas de comunicação com os demais, sendo que em muitos casos eram até rivais no continente africano. Uma questão importante, que tem sido pouco estudada, é a origem étnico-racial e social dos escravizados. Alguns eram camponeses na África, outros pertenciam às elites guerreiras, outros às elites comerciais e econômicas. Existiam aqueles condenados por delitos graves e existiam os condenados por crimes que, muitas vezes, nem sequer tinham ocorrido, as provas desses crimes eram insuficientes. O sistema de justiça implantado em muitas das sociedades africanas acabava também atuando a favor do comércio de escravos. As elites, através desses tribunais, podiam produzir escravos para o comércio. Às vezes, até o roubo de um cachimbo podia dar origem à prisão e à escravização. Questões que eram resolvidas anteriormente, através de compensações em bens ou em trabalho, passaram a ser objecto de condenações à escravização. E mais, muitas vezes, era toda a família, pois existia a ideia de que o crime cometido por um indivíduo não era apenas pessoal, era também social, familiar. As generalizações desse tipo de medidas foram formas de produzir escravizados.

Ricardo Lara:

Quando Luanda se torna um dos principais portos exportadores de escravizados?

Arlindo Manuel Caldeira:

À medida que o século XVII avançava, Luanda se tornou o principal porto de exportação de escravizados do mundo atlântico, partindo de Angola, nesse período, grande parte de mão de obra dirigida ao Brasil e às Índias Espanholas. A média anual de escravizados saídos de Angola se manteve durante todo o século XVII com certa regularidade, não devendo andar longe de valores que oscilam entre as 10 mil e as 15 mil pessoas, considerando já uma margem para saídas ilegais. Os valores mais elevados foram atingidos entre 1620 e 1640, iniciando-se, a partir de 1660 e 1670, uma marcada desaceleração. O crescimento ao longo das primeiras décadas do século XVII tem a ver não só com o aumento da procura de braços para os engenhos do Brasil, mas também com a união das Coroas de Portugal e Espanha, que possibilitou que fossem mercadores portugueses a administrar, a partir de 1595, os asientos, por meio dos quais se abastecia de mão de obra escrava a América espanhola. Com o fim da união dinástica, em 1640, os mercados da América espanhola fecharam-se definitivamente aos portugueses e foi desarticulada a rede de mercadores lusos, quase todos os cristãos-novos, que até então controlava os principais portos. Nesse contexto, os holandeses que, desde 1630, tinham ocupado Olinda e Recife, na capitania de Pernambuco, passaram a dominar também, entre 1641 e 1648, os portos do litoral congo-angolano (Mpinda, Luanda, Benguela...), obrigando os portugueses a procurar refúgio na fortaleza de Massangano, entre os rios Lucala e Cuanza. Os engenhos de açúcar da Bahia não demoraram a sentir a falta de mão de obra e o preço de um escravo subiu de 30 mil para 80 mil réis. Com a saída dos holandeses de Angola em 1648 e a posterior recuperação de Pernambuco em 1654, os valores globais das exportações de mão de obra escrava voltaram aos índices dos anos de 1630. É certo que estava perdido o mercado da América Central, mas isso era compensado por uma maior procura no Brasil, nomeadamente no Rio de Janeiro, e pelo contrabando com o Rio da Prata. Seja qual for o destino americano, centenas de milhares de africanos vão fazer o caminho sem regresso que os leva do sertão ao bojo dos navios negreiros e daí às plantações e às minas. Esse fluxo contínuo de escravizados destinados à exportação tinha três fontes de alimentação: a guerra, a tributação e o comércio.

Ricardo Lara:

O Senhor pode abordar mais detidamente essas três fontes do tráfico de escravizados, no caso, a guerra, a tributação e o comércio?

Arlindo Manuel Caldeira:

Os reinos locais africanos usavam frequentemente a declaração de guerra, tendo como objetivo único a obtenção do efetivo de suplementos de escravos. Para a criação desse clima de guerra favorável à captura de escravizados, os portugueses contaram muitas vezes com o serviço de auxiliares africanos (a chamada “guerra preta”) e com a colaboração de grupos de jaga/mbangala, guerreiros destemidos e cruéis, que vendiam suas presas, nas feiras ou fora delas, aos mercadores negreiros. Os conflitos militares, que, do ponto de vista daqueles que os promoviam, tinham resultados positivos imediatos, revelavam-se catastróficos em médio prazo, pela destruição das culturas e desaparecimento ou deslocação das populações, interrompendo circuitos comerciais estabelecidos. Embora, em conjunturas pontuais, os valores pudessem ser mais significativos e, em qualquer caso, sempre compensadores para os captores, o número de escravos obtidos como despojos de guerra devia constituir parte relativamente pequena do total dos escravos exportados no século XVII. A tributação era a segunda forma de obtenção de escravizados. Era uma forma de pagamento de tributos com escravos. A terceira forma de aquisição de escravos, a compra, era, apesar de tudo, a mais praticada e aquela por meio da qual se obtinham os efetivos mais numerosos. Essa compra podia ser negociada diretamente com chefes locais ou, o que era mais corrente, feita em feiras especializadas, os pumbos (generalização a partir do topónimo Mpundu, uma das feiras do Congo). A forte sangria que um século de tráfico de escravos e guerra exercera sobre a demografia do Ndongo vai fazer com que a afluência às feiras mais próximas de Luanda diminuísse, obrigando os “pumbeiros” (intermediários neste tipo de negócios) a percorrer distâncias cada vez maiores, por vezes até a Matamba e a Cassanje, ou ainda mais longe, com gasto de tempo e aumento das despesas. E quando falamos em tráfico de escravizados, temos de distinguir três tipos de comércio, que podem ser, ou não, três momentos do mesmo processo. Primeiro, a compra direta, por meio de intermediários nos mercados africanos. Segundo, a compra e venda no interior de Angola, para uso interno ou para exportação. Terceiro, a venda e o transporte para o exterior, nomeadamente para o Brasil e a América Espanhola.

Ricardo Lara:

Em suas obras, o senhor apresenta os escravizados como pessoas, não apenas como instrumentos de trabalho ou mercadorias humanas. Quais as principais dificuldades de investigação para esse tipo de abordagem sobre a escravidão? Quais são as fontes históricas de sua pesquisa?

Arlindo Manuel Caldeira:

As fontes são os materiais todos disponíveis. É tudo! E esse tudo é muito pouco. Os documentos da Inquisição são algumas das fontes, porque expressam, nos processos, o cotidiano da vida. As perguntas são detalhadas e dirigidas ao cotidiano, o que os tornam particularmente ricos. Podemos dizer que as fontes judiciais são as únicas em que há informação social. Há fontes judiciais que não são só as da Inquisição, têm também essa parte social. Nesses documentos, nós nunca sabemos se o que o escrivão registrou é de fato o que aconteceu, mas, de toda maneira, há um envolvimento, há um ambiente social que se desenvolve no processo. Temos de confiar nas fontes e saber lê-las.

Ricardo Lara:

Investigar essas fontes documentais, com o olhar sobre a pessoa do escravizado, é uma metodologia que diferencia as análises suas sobre a escravização?

Arlindo Manuel Caldeira:

É aí que está a diferença.

Ricardo Lara:

Sim, pois se pode fazer uma história que oculta a história do escravizado.

Arlindo Manuel Caldeira:

A historiografia durante muito tempo foi assim. O escravizado era visto só como mão de obra, e como um número no comércio e na economia em geral.

Ricardo Lara:

No Brasil, falando da questão do escravizado enquanto números da economia, principalmente a partir de 1850, o fim do tráfico internacional gerou uma crise na aristocracia agrária, porque o grande investimento era em escravizados. Até 1850, a terra tinha um valor pequeno. Depois, com a Lei de Terras, começa a ter mais valor comercial. Agora, em relação ao estudo sobre a escravização na historiografia portuguesa, nas ciências sociais portuguesas, depois de 25 de abril, ficou mais fácil estudar esse assunto? Antes era quase proibido?

Arlindo Manuel Caldeira:

Praticamente os únicos estudos científicos que foram feitos antes de 25 de abril são realizados por estrangeiros ou por portugueses que viviam fora do país, o caso de Vitorino Magalhães Godinho. No seu livro Os descobrimentos e a economia mundial, tem um capítulo sobre os escravizados, que merece sempre ser lido. O 25 de abril de 1974 é um marco, porque desperta o interesse pelo social. E é esse interesse que leva muitos a investigar a escravidão, mas mesmo assim é uma produção pequena. Não sei o porquê, mas a universidade produziu e continua a produzir pouco sobre a escravidão. Hoje já observamos algumas teses de doutoramento sobre o tema. Mas a universidade tem obrigação de realizar estudos sobre o comércio de escravos e a escravização.

Ricardo Lara:

A violência é uma potência econômica do colonialismo e a escravização é uma das formas de violência?

Arlindo Manuel Caldeira:

Sim, o trabalho escravizado é uma violência. Temos de considerá-lo como uma forma de violência. As formas de trabalho eram diversificadas, havia o trabalho doméstico, o trabalho nas plantações, o trabalho na mineração, mas o traço em comum, principalmente nesses dois últimos, era a violência. O cálculo da expectativa de vida do escravizado era feito com a maior frieza. Existem as mais diferentes formas de castigos corporais com os variados instrumentos de tortura. As ilustrações de obras dos séculos XVII, XVIII ou XIX são ilustrações dos castigos, dos chicotes.

Ricardo Lara:

Pensando na resistência dos escravizados, a sua obra trata isso de forma muito singular. Quais as formas de resistência? Negar-se a trabalhar era uma das formas? O suicídio era uma forma de resistência?

Arlindo Manuel Caldeira:

Existiam várias maneiras de resistência. Por exemplo, uma forma de resistência é, digamos, a falsa integração. O chamado ladino brasileiro aprendia o idioma, um indivíduo que procura ser simpático e se adequar ao trabalho, para assim escapar dos castigos físicos e tentar estabelecer uma boa relação com o seu senhor. Se é que é possível falar em boas relações no escravismo. Outra forma, muitas vezes complementar da anterior, é utilizar o seu tempo livre para manifestar suas crenças e cultura nos terreiros, frequentar seus cultos religiosos, jogar capoeira, dançar e realizar bandas. Isso eram formas de resistência e maneiras de recuperar a história do sujeito escravizado. Mas as duas formas mais comuns de resistência eram os suicídios e as fugas. Provavelmente a fuga era a mais comum, porque a fuga era fácil. O que não era fácil era manter a fuga e sobreviver. Já a revolta exigia muita organização coletiva, era mais difícil, não que isso não acontecesse, mas exigia tempo de convivência entre os escravizados para ações coletivas. No caso, confiança no parceiro, confiança de segredos e ações. Isso não era simples. Talvez, por isso, muitas revoltas eram relativamente espontâneas. Por exemplo, quando havia a morte de feitores, não havia outras possibilidades senão organizar-se e tentar fugir. Outra questão é a revolta no Brasil do século XIX, no caso, é outro momento histórico em que existiam organização e forma de resistências coletivas. Já existiam o movimento abolicionista e suas influências e também notícias do que tinha acontecido no Haiti.

Ricardo Lara:

Qual o papel dos jesuítas na escravização? Por exemplo, no Brasil, a Companhia de Jesus precisou da escravização indígena da América e depois dos escravizados da África para manter as suas feitorias. A escravização foi o salvamento dos aldeamentos jesuítas?

Arlindo Manuel Caldeira:

Absolutamente! A Igreja só tem vozes isoladas contra os maus-tratos, ou contra a violência do tráfico. Eles próprios, os jesuítas, e não só, têm escravos, e os tratavam, se calhar, da mesma maneira. As vozes são isoladas e não ouvidas. Quando nos recordamos de Bartolomeu de las Casas, ele é muito incisivo nas suas posições, mas o escrito que condenava a escravização só foi publicado e popularizado muito tardiamente. A obra não causou o impacto imediato como podia ser esperado. Só no século XIX ela ganha proporções de denúncia, quase no fim da escravização colonial. Em todos os espaços do Império Português, entre os séculos XVI e XVIII, não há praticamente nenhuma ordem religiosa que não tenha estado comprometida, de uma forma ou de outra, com o tráfico de cativos. Em Angola, os próprios franciscanos compravam e vendiam escravos. Em Cabo Verde, do início do século XVII, os padres da Companhia de Jesus enviavam escravos para Cartagena das Índias como forma de angariarem receitas para o seu trabalho evangélico no arquipélago, que procuravam alargar ao continente africano. Vejamos, porém, com um pouco mais de detalhe, o que acontecia com os padres da Companhia de Jesus em Angola. Em 1575, os jesuítas chegaram a Angola e se instalaram tal como o restante dos portugueses na ilha de Luanda e depois foram transferidos para terra firme no ano seguinte, quando se formou a nova cidade. Quando chegaram, fixaram-se no morro de São Paulo, mas desde 1584 iniciaram diligências para a construção de uma igreja e de um novo colégio, que estavam prontos, ou quase prontos, em 1623, na praça que então se chamava “da Feira”. No “colégio novo” da Companhia de Jesus sempre estiveram escravos ao seu serviço. Nada que nos deva espantar, pois nos outros cantos do mundo, quer na América do Sul, quer na Índia ou na própria Europa, a situação não era muito diferente, sendo uma constante a presença de cativos no cotidiano dos jesuítas. Os escravizados, que eram a principal mercadoria em circulação em Angola, funcionando mesmo como moeda na ausência de outra, afluíam às residências dos jesuítas por variadas formas, seja por doações oficiais, seja por privadas, deixados em testamentos por particulares, recebidos dos sobas1 a títulos de imposto e, também, pelo menos numa segunda fase, por meio da compra.

Ricardo Lara:

Os jesuítas participavam do tráfico de escravizados?

Arlindo Manuel Caldeira:

Em 1548, pouco tempo depois da chegada ao Congo, um dos padres missionários pioneiros, Jorge Vaz, foi visto despachar 60 ou 70 escravizados e a protestar com veemência por não conseguir transporte para eles. Não sabemos se procedia individualmente, ou por conta da Companhia, nem de onde provinham os escravos ou para onde eram remetidos. De qualquer forma, é a primeira vez que temos notícia de padres jesuítas envolvidos no negócio de escravos na África, a sul do Equador. Com a fixação em Luanda, vão aumentar as solicitações e as oportunidades. A cidade tinha se tornado o principal porto de exportação do tráfico negreiro atlântico, que era praticamente a única atividade econômica da população europeia, e a única fonte de receitas para o Estado. O escravizado tornara-se, na ausência de moeda metálica, a riqueza móvel quase exclusiva e, praticamente, a única capaz de mediar a troca de mercadorias e realizar pagamentos de valor significativo. Desde cedo, os jesuítas passaram a ter um superávit de escravos. As doações e as heranças, e o pagamento dos sobas, forneciam um número de escravizados que ultrapassava as necessidades. Esse excedente de escravizados, em muitos casos, era vendido pelos jesuítas para particulares e mercadores, ou mesmo exportados para Lisboa para receber em troca as mercadorias europeias, mas principalmente exportados para as Américas, mercado em constante crescimento, para obter em troca o açúcar e a prata. Portanto, os jesuítas não deixaram de participar na primeira fase do tráfico de escravizados.

Ricardo Lara:

Qual a diferença da escravização no Brasil (América do Sul) e em Portugal (Europa)? Há uma diferença muito grande da escravização na Europa e na América, certo? Mas no Império Português, na Colônia, você tinha uma escravização para a grande produção. Aqui (Portugal) tinha a escravização doméstica.

Arlindo Manuel Caldeira:

Em Portugal, era praticamente só doméstica. Pode haver casos isolados em que não, mas a maioria dos escravizados em Portugal são escravizados domésticos. Desses escravizados, boa porcentagem são africanos da região de onde existia o tráfico organizado e constante, mas também havia escravizados do norte do continente, da região do Magrebe, e com variadas cores de pele branca até o século XVIII, incluindo escravos brancos. Isso devido a circunstâncias diversas. No século XIX, praticamente, o negro desaparece da sociedade portuguesa. No começo do século XX, os africanos na sociedade portuguesa eram muito poucos. Hoje, sim, o número de africanos aumentou, sobretudo depois do 25 de abril de 1974. É resultado do movimento democrático, da descolonização e de novas circunstâncias socioeconômicas.

Ricardo Lara:

Portugal foi pioneiro na abolição do tráfico de escravos? Ou é um mito do período salazarista? Qual a força do abolicionismo em Portugal? Portugal foi o primeiro Estado do mundo a fazer comércio global de escravos vindos de África. Foi também, segundo a historiografia nacionalista, o primeiro país do mundo a abolir a escravatura, mas o decreto publicado em 1761 pelo Marquês de Pombal não acabou, de facto, com os escravos, proibiu a entrada de novos escravos. Como o senhor observa esses acontecimentos? O que estava em causa no momento não era o abolicionismo nas colônias?

Arlindo Manuel Caldeira:

Portugal ser pioneiro na abolição do tráfico de escravos é, na realidade, uma propaganda salazarista. Em Portugal, em 1761, a escravatura não foi proibida; foi proibida a entrada de novos escravos. Isso não se traduziu no fim da escravatura, uma vez que, além dos escravizados já existentes, havia também os que nasciam de mãe escrava e por isso continuavam escravos. Em 1773, o Marquês de Pombal aprovou a lei do ventre livre, que determinava que os filhos de escravos passassem a ser homens livres e que todos os escravos cuja bisavó já era escrava podiam ser libertados de imediato. Portanto, restava apenas uma geração de escravizados, mas o seu desaparecimento total não aconteceu por razões fraudulentas: a entrada ilegal de escravos vindos das colônias. Volto a dizer, embora não formalmente, a escravização não terminou em nenhum dos territórios depois da lei de 1773. Nas colônias, manteve-se legal durante muito tempo. Então, a decisão do Marquês de Pombal tem sido muitas vezes usada como propaganda, porque se partia apenas da realidade europeia, quando o que estava em causa era, principalmente, a abolição nas colônias. Pombal era um mercantilista e iluminista, ele aboliu o estatuto do cristão-novo, como também conhecia a importância do escravizado na metrópole e nas colônias. Portugal é um dos primeiros países a abolir a entrada de escravizados na Europa, mas também não podemos esquecer que somos quase os últimos a abolir a escravidão nos territórios coloniais. Entretanto, tornou-se clássica, entre os historiadores, a discussão se se trata ou não de medidas de caráter abolicionista, uma vez que, por um lado, limitam a escravatura no espaço português da Europa; mas, por outro, deixam intacto e até pretendem reforçar o trabalho escravo nos territórios ultramarinos, particularmente na América do Sul. E não nos esqueçamos, essas medidas foram contemporâneas da criação de companhias monopolistas de comércio, que tinham como fim principal o reforço do abastecimento de mão de obra escrava no Brasil. A primeira peça do corpo legal legislativo, já referido, é o alvará de 18 de setembro 1761, que determinava a proibição da entrada de escravos em Portugal, o que, de certo modo, constituiu uma surpresa, pois a crítica do sistema escravagista era um assunto que estava então praticamente ausente de debate na opinião pública portuguesa. A própria lei esclarece as motivações: “os grandes inconvenientes que resultam do excesso e devassidão com que, contra as leis e costumes de outras cortes polidas, se transporta anualmente da África, América e Ásia para estes reinos um tão extraordinário número de escravos pretos, que, fazendo seus domínios ultramarinos uma sensível falta para a cultura das terras e das minas, só vêm a este continente ocupar os lugares de busca de servir, que, ficando sem cómodo, se entregam à ociosidade e se precipitam nos vícios”.2 A legislação de 1761 não se aplicava inicialmente aos Açores e à Madeira. Em 1773, alvará de 16 de janeiro, determina-se a extensão aos arquipélagos norte-atlânticos da proibição da entrada de novos escravos.

Ricardo Lara:

Para finalizar, a escravidão é um tema importante para a historiografia contemporânea?

Arlindo Manuel Caldeira:

No Brasil, é absolutamente um dos mais importantes. Podemos dizer que talvez em Portugal não seja, ou seja menos, pode haver outros assuntos mais importantes, mas, no Brasil, é fundamental para entender a origem da população, a economia, as relações de trabalho, o tipo de propriedade, o cotidiano como o samba e, de certa forma, o futebol. Veja que até a culinária do Brasil mais original é de origem africana.

Referências

  • CALDEIRA, A. M. Escravos e traficantes no Império Português: o comércio negreiro português no atlântico durante os séculos XV a XIX. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013.
  • CALDEIRA, A. M. O apelo da liberdade: resistência dos africanos à escravidão nas áreas de influência portuguesa. Lisboa: Casa das Letras, 2024.
  • CALDEIRA, A. M. Escravos em Portugal: das origens ao século XIX. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2017.
  • CALDEIRA, A. M. Mulheres enclausuradas: as ordens religiosas femininas em Portugal durante os séculos XVI a XVIII. Lisboa: Casa das Letras, 2021.
  • CALDEIRA, A. M. Escravos e traficantes no Império Português: o comércio negreiro no Atlântico durante os séculos XV a XIX. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2016.
  • CARVALHO, F. M. Sobas rebeldes de Angola. Impressões Rebeldes, Niterói: UFF, ano 4, n. 2, jul./dez. 2016.
  • 1
    Os sobas eram os chefes de aldeias que permitiam aos estrangeiros o comércio de escravizados em seus domínios. Os sobas exerceram papel relevante nos processos de conquistas dos portugueses nos sertões de Angola, sendo esses chefes responsáveis tanto pelo fornecimento de escravos destinados ao lucrativo mercado atlântico quanto pela abertura de caminhos rumo ao interior de reinos da África Centro-Ocidental (Carvalho, 2016).
  • 2
    Lei de 18 de setembro 1761, citado por Caldeira (2016, p. 230).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2024
  • Aceito
    05 Set 2024
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