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A teoria dos dons e dádivas entre grupos de usuários de crack e outras drogas1 1 Artigo extraído da dissertação - O sentido antropológico de dons e dádivas entre grupos de usuários de crack e outras drogas, apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em 2013.

Resumos

Trata-se de um recorte de dissertação que buscou conhecer o sentido da teoria dos dons e dádivas entre grupos de usuários de crack e outras drogas dentro das cenas de uso. O estudo possui abordagem etnográfica; os participantes foram 13 pessoas que faziam uso de crack ou outras drogas nos cenários de uso no Município de Pelotas-RS e as observações se realizaram no ano de 2013. Os resultados evidenciaram que os usuários são vítimas de preconceito, mas mantêm o dom em suas relações e buscam se ajudar e serem solidários como grupo. Foi possível compartilhar e desmistificar um modo de vida muito particular e invisível dos usuários de crack, no entanto, as mudanças só começarão a aparecer quando se produzirem meios de abordagem mais eficazes, com políticas de saúde para promover a aproximação e vínculo com esta população, proporcionando, sobretudo, acolhimento de suas necessidades, que em muitos momentos apareceram negligenciadas.

Cocaína crack; Usuários de drogas; Antropologia cultural


This is an excerpt from a dissertation which sought to investigate the meaning of gift theory among groups of users of crack and of other drugs within the scenarios of use. The study has an ethnographic approach; participants were 13 persons who made use of crack and other drugs in the scenarios of use in the Municipality of Pelotas in the state of Rio Grande do Sul, and the observations were made in 2013. The results evidenced that the users are victims of prejudice, but maintain the gift in their relationships and seek to help each other and show solidarity as a group. It was possible to share and demystify a highly specific and invisible way of life of the crack users; however, the changes will only begin to appear when more efficacious means of approach are found, with health policies for promoting closeness and links with this population, providing, above all, embracement of their needs, which at many times appeared to be neglected.

Crack cocaine; Drug users; Cultural anthropology


Es un recorte de disertación que buscó conocer el sentido de la teoría de los regalos y donaciones entre grupos de usuarios de crack y otras drogas dentro de cenas de uso. Tiene abordaje etnográfico y ocurrió con 13 personas que usaban crack u otras drogas en los escenarios de uso en Pelotas-RS. Las observaciones fueron realizadas en el año de 2013. Los resultados evidenciaran que los usuarios son víctimas de preconcepto, pero mantienen el don en sus relaciones, y buscan se ayudaren y ser solidarios mientras grupo. Fue posible la cuota y desmitificación del modo de vida, que es muy particular e invisible de los usuarios de crack. Sin embargo, los cambios empezarán a aparecer cuando de producir medios de abordaje más eficaces con políticas públicas de salud para promover la aproximación y vínculo con esta población, proporcionando acogimiento de sus necesidades, que en muchos casos aparecieran descuidadas.

Cocaína crack; Consumidores de drogas; Antropología cultural


INTRODUÇÃO

O ser humano sempre viveu em busca de algo que transcendesse a dimensão do real, pois diversos tipos de cultura desenvolveram formas socialmente aceitas do uso de substâncias psicoativas, sem expor a vida a riscos e até, muitas vezes, sendo divinizadas, havendo registros de que esta prática é comum desde a pré-história também para fins recreativos, curativos e religiosos.1Raupp LM. Circuitos de uso de crack nas cidades de São Paulo e Porto Alegre: cotidiano, práticas e cuidado[tese]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo. Faculdade de Saúde Pública; 2011.

Uma das explicações que revela o motivo pelo qual durante muito tempo o uso de drogas foi aceito pacificamente entre os homens é que essa prática não representava ameaças maiores à sociedade e concentrava-se no núcleo de rituais coletivos que a sociedade reconhecia como expressão de seus próprios valores.2Filho AN, MacRae E, Tavares LA, Rego M. Toxicomanias: incidências clínicas e socioantropológicas [online]. Salvador (BA): Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas, Editora UFBA; 2009; [acesso 2013 Nov 01] Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ufba/183/1/Toxicomanias.pdf .
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O crack (droga proveniente da pasta da cocaína) é um exemplo típico de substância psicoativa que possui características notórias de "ameaça" à sociedade, envolvida em uma série de dúvidas quanto ao entendimento deste fenômeno.3Perrenoud LO, Ribeiro M. Histórico do consumo de crack no Brasil e no mundo. In: Ribeiro M, Laranjeira R, organizadores. O tratamento do usuário de crack. Porto Alegre (RS): Artmed; 2012. p.33-8.

Desde a sua chegada no Brasil, com primeiros relatos de uso em São Paulo-SP em meados da década de 80, até a sua popularização, o crack ocupa cada vez mais espaço na mídia, na sociedade em geral e nas políticas públicas, sejam de saúde ou de segurança. É tratado no meio midiático como "epidemia", representando a ideia de sua extensão como problema de saúde pública e no contexto social.44. Melotto P. Trajetórias e usos de crack: estudo antropológico sobre trajetórias de usuários de crack no contexto de bairros populares de São Leopoldo-RS [dissertação] Porto Alegre(RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; 2009.

Ser dependente de crack pode se tratar de uma intensa e difícil escolha para essas pessoas, comumente estigmatizadas e apontadas como sem valor, não merecendo estar no convívio social. Para a maioria da sociedade, usar crack é um ato repugnante e a tendência é o preconceito tornar-se visível perante estes dependentes.55.Almeida RBF. O caminho das pedras: conhecendo melhor os usuários de crack do município de Recife-PE [dissertação] Recife(PE): Universidade Católica de Pernambuco; 2010.

É possível que, diante deste contexto que demonstra o preconceito vivido por estas pessoas, compreenda-se melhor o ato comum de consumir a droga em grupo, pois esta é uma prática comum desde o surgimento do crack nos Estados Unidos, onde a droga era produzida de forma caseira e consumida em grupos, dentro de casas, com graus variados de abandono e precariedade (conhecidas por crack houses).6Alves HNP, Ribeiro M, Castro DS. Cocaína e crack. In: Diehl A, Cordeiro DC, Laranjeira R. Dependência química: prevenção, tratamento e políticas públicas. Porto Alegre (RS): Artmed; 2011. p.170-9. Estas relações e convívio que acontecem em grupo podem ser mais bem compreendidos por meio da construção do laço social, uma das características mais marcantes na teoria do dom, onde estes laços excedem os valores de mercado ou contrato normalmente impostos dentro da sociedade.7Caillé A. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis (RJ): Vozes; 2002.

Os estudos existentes sobre esta temática, em sua maioria, buscam traçar o perfil do dependente químico, dados epidemiológicos e os danos causados pelo seu consumo. No contexto de espaço de uso e criação de cracolândias, estudos vêm sendo realizados em grande escala, no entanto, o enfoque quase sempre é direcionado ao circuito das drogas, ao uso associado de crack a outras drogas, história de início do uso da pedra e experiências vividas de ser um usuário de crack, havendo uma lacuna na atenção particular ao ser humano que carrega todas estas vivências citadas.44. Melotto P. Trajetórias e usos de crack: estudo antropológico sobre trajetórias de usuários de crack no contexto de bairros populares de São Leopoldo-RS [dissertação] Porto Alegre(RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; 2009. - 55.Almeida RBF. O caminho das pedras: conhecendo melhor os usuários de crack do município de Recife-PE [dissertação] Recife(PE): Universidade Católica de Pernambuco; 2010. , 8Oliveira LG, Nappo AS. Crack na cidade de São Paulo: acessibilidade, estratégias de mercado e formas de uso. Rev Psiquiatr Clin. 2008; 35(6):212-8. - 9Oliveira LG, Nappo AS. Caracterização da cultura de crack na cidade de São Paulo: padrão de uso controlado. Rev Saúde Pública. 2008; 42(4):664-71.

As pesquisas, no âmbito sociocultural e antropológico, sobre o uso do crack procuram descrever esse contexto de vida e os comportamentos típicos dos consumidores, sendo a antropologia uma ferramenta importante para conhecer em profundidade os fenômenos sociais atrelados a pessoas que usam drogas.1010 Ribeiro LA, Nappo SA, Sanchez ZVDM. Aspectos socioculturais do consumo de crack. In: Ribeiro M, Laranjeira R, organizadores. O tratamento do usuário de crack. Porto Alegre (RS): Artmed; 2012. p.50-6.

Nesse aspecto, destaco a justificativa deste estudo, de compreender o sentido da teoria dos dons e das dádivas entre este grupo de pessoas, de dar voz ativa a elas e valorizar suas histórias de vida, de seres humanos pertencentes a uma sociedade a qual possui um leque de culturas e formas diferentes de estilo de vida. O crack, apesar dos danos que causa, continua atraindo as pessoas ao hábito do seu consumo. Por isso, a importância de desenvolver políticas públicas de atenção e prevenção ao uso das drogas baseadas na realidade e na vivência destas pessoas, aumentando as possibilidades de atender o sujeito como um todo.

Diante do exposto, emergiu a seguinte questão investigativa: qual o sentido da teoria dos dons e dádivas entre grupos de usuários de crack e outras drogas dentro das cenas de uso?, e que possui, como objetivo, conhecer o sentido da teoria dos dons e dádivas entre grupos de usuários de crack e outras drogas dentro das cenas de uso.

REFERENCIAL TEÓRICO

Os dados coletados através da observação participante e diálogo, registrados devidamente em diário de campo, foram analisados e discutidos à luz da Teoria dos Dons e Dádivas, e também com base em autores integrantes do Movimento Antiutilitarista das Ciências Sociais.

A teoria dos dons e dádivas tem um posicionamento crítico contra a visão econômica do mundo. O teórico que fundamentou essa teoria empreende a crítica da imagem do homo oeconomicus que se impõe, cada vez mais forte, tanto nas ciências sociais, quanto na vida das sociedades. Essas críticas fundamentam-se nas descobertas feitas por ele nas sociedades selvagens ou tradicionais, ou ainda por ele denominadas como "sociedades primeiras". Nessas sociedades as relações de troca ocorrem à luz do modelo chamado de tripla obrigação (dar, receber e retribuir), contrário ao modelo de mercado, do "toma lá, da cá" vigente até os dias atuais.1111 Caillé A, Graeber D. In: Martins PH. A dádiva entre os modernos: discussão sobre os fundamentos e as regras do social. Petrópolis (RJ): Vozes; 2002. p.17-31.

Por meio da Teoria do Dom, busca-se explicar o sistema de trocas e a constituição de alianças nas relações humanas, sendo assim, umas das principais contribuições para a sociologia foi demonstrar que o valor das coisas não pode ser superior ao valor das relações.1212 Martins PH. A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação. Rev Crít de Ciênc Soc. 2005; (73):45-66.

O sistema de trocas, denominado potlatch, remete à "prestação total de tipo agonístico", ou seja, aquilo que provoca a rivalidade, a competição entre pessoas, famílias ou clãs. Tal prática era comum entre os índios da costa noroeste da América do Norte, na qual cada chefe oferecia seus bens, competindo entre si para ver quem oferecia maior quantidade de bens (geralmente brasões de cobre esculpidos e peles de animais), quem era o mais generoso.1313 Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo (SP): Cosac Naify; 2003.

Havia também o chamado kula, uma outra forma de troca intertribal, com trocas circulares de bens úteis (braceletes e colares) entre diferentes ilhas melanésias. O teórico explica o kula como sendo o potlatch da população trobriandense e que foi visto por ele como o melhor exemplo de doação. Já, na Polinésia (em Samoa), os sistemas contratuais envolviam eventos como casamento, nascimento de filho, circuncisão, puberdade de menina, comércio e ritos funerários.1212 Martins PH. A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação. Rev Crít de Ciênc Soc. 2005; (73):45-66. - 1313 Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo (SP): Cosac Naify; 2003.

Concluiu-se que, na verdade, nenhuma sociedade baseava-se no escambo, e sim, que os objetos circulavam apoiados em princípios bem opostos aos princípios econômicos, circulavam sob a forma de dons, havendo manifestação de generosidade e distanciando-se do ato preciso de calcular (receber o mesmo que doou).1111 Caillé A, Graeber D. In: Martins PH. A dádiva entre os modernos: discussão sobre os fundamentos e as regras do social. Petrópolis (RJ): Vozes; 2002. p.17-31.

METODOLOGIA

A presente pesquisa é um recorte de dissertação vinculada ao projeto "Perfil dos usuários de crack e padrões de uso na cidade de Pelotas-RS". Este estudo é qualitativo, desenvolvido de acordo com a perspectiva etnográfica.

O propósito fundamental da investigação de tipo etnográfico é a descrição cultural, possibilitada primordialmente pela observação participante de atividades desenvolvidas pelos membros de um determinado grupo durante um longo período de tempo.14 14 Neves T. A etnografia no estudo do desvio. In: Anais do V Congresso Português de Sociologia - Sociedades Contemporâneas - Reflexividade e Acção, 2006; Portugal. p.96-101.Dessa forma, o presente estudo empregou as técnicas da observação participante e diálogo com pessoas que estivessem fazendo uso de crack e outras drogas, sendo, posteriormente, todos os dados registrados em um diário de campo digitalizado.

A coleta dos dados ocorreu no Município de Pelotas-RS, com a ajuda da Estratégia de Redução de Danos (ERD). Teve como ponto de partida a observação direta, evoluindo para observação participante, sempre que as condições do campo permitiram. As observações foram realizadas em ambientes urbanos, públicos e particulares, em que pessoas faziam uso de crack e outras drogas. O período de observação compreendeu oito meses consecutivos, de janeiro a agosto de 2013, com aproximadamente 90 dias e 360 horas de observação.

Os participantes do estudo foram pessoas que faziam uso de crack ou outras drogas no cenário de uso de drogas (urbano, público ou privado) e que aceitaram que se realizasse a observação. Acompanharam-se continuamente 13 participantes, selecionados a partir dos critérios de inclusão: maiores de 18 anos de idade; estarem fazendo uso de alguma droga ilícita no momento da observação; quando a observação acontecesse em ambiente privado, a etnografia começaria pelo(a) morador(a) da casa selecionada como cena de uso.

A análise dos dados obtidos apresenta-se embasada no interpretativismo.1515 Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro (RJ): LTC; 2008. O interpretativismo é descrito como uma análise que penetra o corpo do objeto de estudo, ou seja, inicia-se com as interpretações do pesquisador a respeito do que pretendem os informantes ou pesquisados, ou o que o pesquisador acredita que eles pretendem, posteriormente sistematizando essas ideias e interpretações.1515 Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro (RJ): LTC; 2008.

O projeto "Perfil dos usuários de crack e padrões de uso" foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa na Área da Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e teve aprovação sob o Parecer n. 301/2011. Aos sujeitos do estudo foi entregue o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido apresentando o objetivo da pesquisa, e garantido o anonimato sobre as informações fornecidas por eles, o livre acesso aos dados e resultados alcançados, também como a resposta a qualquer pergunta ou dúvida e o direito de desistir em qualquer momento da investigação. Todos os sujeitos foram identificados com nomes fictícios, assim como os nomes dos locais observados, respeitando os preceitos éticos da Resolução 196/96.1616 Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Resolução n. 196, de 10 de outubro de 1996. Brasília; 1996.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os grupos observados eram rotativos. Na maioria das vezes, o número era incontável devido à grande rotatividade de pessoas, mas, ao longo do tempo, estabeleceu-se contato com algumas pessoas devido à criação de uma aliança e vínculo mais estreito, o que possibilitou conhecê-las de forma mais intensa.

Das mulheres, as mais presentes foram Valesca (27 anos), Sandra (28 anos), Nara (44 anos) e Daniela (31 anos), e apresentavam características semelhantes entre si. Eram sorridentes, extrovertidas, carismáticas e comunicativas, sempre dispostas a contar histórias excêntricas e colaborar com o estudo. Além de Bela (36 anos), que era uma mulher com feições tristes, depressiva e introvertida.

Entre as pessoas do sexo feminino, uma delas foi acompanhada todo o tempo, mas apresentava-se de forma distante e fria, Bárbara (30 anos). Mostrou-se arredia e agressiva por vários momentos, mas, das vezes em que foi possível uma aproximação, descobriram-se histórias alegres de vida e também tristes. Nara (25 anos) e Adriana (30 anos) eram pessoas discretas, de aparência sofrida e com receptividade limitada, não demonstrando abertura e flexibilidade para diálogos em vários momentos.

Dos homens, com Josué (30 anos), Zilmar (31 anos) e Jerônimo (18 anos) houve aproximação intensa durante todo o tempo de campo. Já Rubens (60 anos) e João (25 anos) eram pessoas mais introspectivas, de difícil comunicação, mas que se sentiam-se bem em contribuir ao estudo, dividindo suas histórias.

Assim, as cenas de uso de crack e outras drogas são compostas por pessoas das mais diversas personalidades e sentimentos, que convivem entre si, dividindo o espaço e criando grupos que variavam de acordo com as pessoas que estavam presentes.

As observações mais intensas aconteceram em quatro locais da cidade, sendo um deles uma residência particular (casa do Pedro) e os demais, espaços públicos (Rua da Cidadania, o Beco e o Cemitério Recanto da Saudade), todos situados em diferentes bairros de periferia da cidade. Apesar de os locais apresentarem-se distantes geograficamente um do outro, todos possuíam algo em comum: pobreza, presença intensa de lixo, falta de saneamento básico, energia elétrica precária ou ausente. A etnografia concentrou-se nestes ambientes devido à facilidade de se encontrar grupos formados por pessoas fazendo uso de crack e outras substâncias psicoativas.

A literatura mostra que os lugares de uso de crack observados podem ocupar os mais diversos espaços, podendo acontecer de forma mais isolada ou de forma coletiva. Esses espaços podem ser a própria residência, casa de amigos ou parentes, e isso vem para quebrar a ideia de que cracolândias criam-se somente em espaços públicos e em áreas centrais, como apontado pelas grandes mídias.1717 Jorge MSB, Quinderé PHD, Yasui S, Albuquerque RA. Ritual de consumo do crack: aspectos socioantropológicos e repercussões para a saúde dos usuários. Rev Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(10):2909-18.

Os usuários de crack, a partir de seus modos de vida, podem estar rompendo com estas relações impostas pela sociedade capitalista, mas, em contrapartida, estabelecendo vivências geridas a favor de interesses relacionados ao crack. Passam a incorporar outros interesses, como as diversas formas de conseguir dinheiro para comprar a pedra, envolvimento em dívidas, trabalhos informais, entre outros, que envolvem suas relações.1111 Caillé A, Graeber D. In: Martins PH. A dádiva entre os modernos: discussão sobre os fundamentos e as regras do social. Petrópolis (RJ): Vozes; 2002. p.17-31. Nesses grupos é evidente a existência de trocas capitalistas e trocas não comerciais, havendo rompimento de um único modelo de troca entre eles. Os tipos de relações vão ao encontro de seus interesses de acordo com o momento que estão vivendo. Na sociedade geral são predominantes as relações de trocas comerciais, as trocas pautadas no capital, sendo o dinheiro o mediador das relações. No entanto, existem outras relações de trocas, mostradas através de estudos com povos primitivos, apontando tipos baseados no dar/receber/retribuir não estabelecidos pelo valor do bem.1313 Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo (SP): Cosac Naify; 2003. Nas cenas de uso de drogas também existem eventos/relações que não se enquadram em relações comerciais/capitalistas, mas sim nas trocas e alianças, como o abrigo oferecido nestes locais aos desabrigados, a amizade, a ajuda coletiva contra adversidades encontradas nas ruas e o próprio compartilhamento da droga, além de comidas e roupas.

Os locais que esta população elege para viver acabam por transformarem-se nas populares "cracolândias". No entanto, a ideia que há desse local é de ser apenas para o consumo de drogas, o que de fato é, mas para outros acaba sendo o único lugar para viver.

Assim, as cracolândias assumem cenários diversificados de acordo com a necessidade de cada pessoa. A maioria usufrui desse local para consumo de drogas junto com os demais que o frequentam. É também local de passagem para outros, pois muitos perambulam por toda a cidade sozinhos e nesses ambientes reencontram suas parcerias e amizades de tempos em tempos, ou é de hospedagem, para aqueles que não têm aonde ficar e viver, pessoas que são levadas para lá por conhecidos como forma de abrigo, por não terem casa ou local seguro para passar a noite ou até dias. Ainda existe quem frequente o local apenas para acompanhar namorados ou amigos e, também, como local de proteção de policiais e de pessoas inimigas. Enfim, as cracolândias são lugares, sobretudo, de relações humanas e trocas, sejam comerciais ou não, que mantêm as pessoas nestes espaços para satisfazer suas necessidades.

Diante da necessidade de cada pessoa que frequenta estas diferentes cenas de uso, pode-se pensar que, nesses ambientes, por mais hostis e insalubres que sejam aos olhos de alguns de nós, existem relações que se apresentam norteadas pelo uso de drogas, mas também há a solidariedade entre eles, a proteção, as companhias, entre outros. São locais de trocas materiais e não materiais e de relações entre indivíduos que sustentam o grupo nesses espaços. O paradigma do dom tenta explicar essas relações, busca explanar o sistema de trocas e a constituição de alianças nas relações humanas, demonstra que o valor das coisas não pode ser superior ao valor da relação, na qual, sobretudo, o simbolismo é fundamental, permeando essas relações.1212 Martins PH. A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação. Rev Crít de Ciênc Soc. 2005; (73):45-66.

Os grupos observados eram compostos por várias pessoas, homens e mulheres, que misturavam-se na convivência ou preferiam organizar-se em pequenos grupos, formando duplas ou trios, para dessa forma compartilharem o consumo de substâncias psicoativas.

A Rua da Cidadania, mais especificamente, o muro, é o espaço no qual as pessoas reúnem-se para consumir droga. Neste muro haviam seis pessoas [três homens e três mulheres]. Uma das mulheres tinha no máximo 18 anos e fazia uso de crack com um homem. Eles estavam organizados em duplas, dois homens fumavam tabaco e maconha e compartilhavam os cigarros; estavam sentados muito próximos e um de frente para o outro, e conversavam muito na hora em que chegamos. Duas mulheres estavam escondidas atrás de uma madeira que calçaram junto ao muro, simulando um abrigo, uma cabana, porém muito próximo à parede, o que causava grande dificuldade de enxergá-las (Diário de campo).

Daniela, umas das participantes, se referiu ao grupo como uma família em que todos se ajudavam, dividiam as coisas entre si, mas todos do bem. Se alguém fizesse algo que não fosse do bem, era prontamente excluído do grupo, pois ela ainda relatou que todos ali já haviam feito loucuras pela droga, mas que não era mais permitido roubar, matar ou qualquer coisa que ameaçasse alguém. Todos daquele grupo conheciam quem já havia matado, homens que faziam sexo anal em troca de droga e mulheres que faziam sexo por dinheiro.

Nestas experiências antigas do grupo, como referido por Daniela, o paradigma do individualismo superava o paradigma do dom, pois a busca interessada por algo se mostra meramente pela satisfação própria, sendo aliança e vínculo social não prevalentes nestas ações.

Além do clima familiar nesses grupos, como referenciado por Daniela, com a inserção do pesquisador neste meio, foi possível observar que o ritual que eles possuíam de uso de droga assemelhava-se muito ao ritual realizado por muitas pessoas que gostam de se reunir em grupo para tomar o chimarrão. Na maioria das vezes havia somente um cachimbo para o grupo todo, alguém era o responsável por prepará-lo e ir repassando ao grupo em movimento circular. As pedras eram fornecidas por quem as tinha naquele momento, não ficando de fora do uso as pessoas que não forneceram a droga naquele momento. Quando tinham, dividiam com o grupo. De forma voluntária e espontânea as pessoas prontificavam-se a ir buscar dinheiro ou mais pedras quando percebiam que já estavam no final.

Os rituais podem ser compreendidos como eventos presentes na vida contemporânea, sejam eles sagrados ou profanos, banais (como as saudações cotidianas) ou ainda cultos religiosos, políticos e cívicos, enfim, eventos que constroem e expressam a vida tanto individual quanto social.1818 Langdon EJ. Rito como conceito-chave para a compreensão de processos sociais. In: Antropologia em primeira mão [online]. Florianópolis (SC): CFH; 2007 [acesso 2013 Nov 13] Disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/~antropos/97.pdf.
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Assim, o fumar crack em grupo torna-se um rito que caracteriza fortemente algumas das atividades que mais representam o grupo.

No entanto, neste cenário do "grupo/roda de chimarrão", a Teoria do Dom pode explicar o valor intrínseco existente nessa relação. A aliança e o vínculo criados entre estas pessoas é o que subsidia a confiança e relação de solidariedade para que a pessoa que hoje não tem a pedra possa desfrutar do fumo de forma igualitária àquele que fornece a pedra na roda, na garantia e certeza fornecida ao grupo de que, assim que possuir a pedra, irá compartilhar da mesma forma com os que estão compartilhando com ela. Discutindo mais a fundo os conceitos da teoria do dom, essa ação pode ser justificada pela força que existe na coisa dada/doada (hau), de que tudo o que é doado sempre tende a voltar ao doador na forma do próprio bem ou algo similar que o substitua.1313 Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo (SP): Cosac Naify; 2003.

Um outro membro do grupo, do Beco, foi questionado sobre a existência de coisas boas de viver neste modo que ele escolheu. Adriana respondeu enfaticamente: eu adoro usar crack, gosto mesmo, conheço e sei todos os malefícios que causa socialmente a mim. Acabo ficando aqui, junto com este grupo pra usar minha droga e gosto de cachaça também, sou viciada. Quando eu uso crack tenho a necessidade de usar cachaça também, então isso potencializa a ação do crack e eu fico extremamente alterada, choro e fica agressiva, xingando todo mundo, e o melhor, eles me entendem e me aguentam (Adriana).

O gosto por fazer parte desses grupos, de estar na rua com os demais usuários e por vezes fazer referência a eles como família pode ser justificado a partir do convívio que eles possuem ou possuíam com seus familiares em suas casas. A família é considerada uma instituição que normatiza, legaliza e legitima os comportamentos do indivíduo na sociedade. Dessa forma, o núcleo familiar cria regras e práticas de comportamentos e pensamentos permitidos ou não ao indivíduo pertencente a esta família.1919 Ramos DM, Nascimento VG. A família como instituição moderna. Fractal: Rev Psicol. 2008; 20(2):461-72. Os usuários de crack muitas vezes acabam por romper com estas regras impostas devido ao fato de consumir crack ser um comportamento e prática reprimidos no seio familiar. Assim, escolhem por fragilizar ou romper os laços familiares e viver nas ruas de forma a criar suas próprias normas e regras.

O ato de catar lixo, para alguns, significa questão de sobrevivência nas ruas. Na Rua da Cidadania pode-se perceber e acompanhar ao longo do tempo a construção de "barracos" erguidos junto ao muro como forma de abrigo, moradia e proteção. Esses barracos eram construídos somente com materiais do lixo ou encontrados pela rua. Dentro de um mês havia cerca de cinco barracos e foi possível acompanhar a evolução das construções, que aconteciam de forma muito rápida a cada semana.

Nara, em uma de suas conversas, explicou que estava sempre atenta ao lixo, pois dali conseguia coisas muito boas para construir seu barraco, não podendo perder muito tempo, pois o inverno estava chegando e o frio castigava com eles que viviam nas ruas. Acompanhado de Nara sempre estava seu namorado, que a ajudava nesta trabalhosa tarefa.

Assim, fica evidente o trabalho em grupo dessas pessoas para construir um local de abrigo, e isso era feito e usufruído em conjunto. Várias noites, observaram-se as pessoas usando crack nesses barracos de forma mais reservada e em pequenos grupos, de acordo com o tamanho do espaço interno.

No cemitério também se presenciaram cenas de adaptação e formas de proteção em grupo em preparação para a chegada do inverno. Sofás, colchões e cobertores foram encontrados em algumas das visitas, além da criação de uma cortina amarrada com cordas para proteção do vento e papelões improvisados simulando a existência de paredes.

Percebeu-se que existe uma forma de adaptação e cuidados entre esta população, principalmente frente a transformações climáticas, uma vez que o inverno é muito rigoroso nesta região. Há entre eles uma tentativa de manter o grupo confortável, dentro do possível, e a necessidade de uns cuidarem dos outros.

No que tange à organização em grupo destas pessoas, em quase todas as cenas, mostrou-se de forma muito marcante a presença forte de um líder. Líder que, além de manter o grupo organizado e em ordem, decidia questões referentes à preparação do crack e consumo da droga. Em alguns grupos o líder era o responsável pela preparação do cachimbo e por estabelecer a ordem de consumo, cabendo aos demais integrantes obedecer as ordens e aguardar a sua vez para dar a sua "tragada".

Em meio a esse cenário, percebeu-se que o líder também compartilhava a sua droga, mas a maioria era doada por integrantes do grupo que compartilhavam sua pedra com todos os que estavam presentes na roda. Aparecia de forma clara nesse ritual a força da coisa dada que tende sempre a retornar para seu doador (hau), pois, a partir da doação de pedra, pelo líder do grupo, mais pedras tendiam a retornar a ele, completando o ciclo do dar, receber e retribuir, alimentado pela relação de aliança e solidariedade no grupo, caracterizando a obrigatoriedade intrínseca na ação do dar, receber e retribuir.1313 Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo (SP): Cosac Naify; 2003.

Daniela, namorada do dono de umas das casas particulares de consumo, mostrava-se naturalmente líder do grupo, por sua postura firme e por ser considerada uma das donas da casa:

[...] no centro deste grupo, e aqui me refiro a centro como liderança do grupo, estava Daniela. Quando cheguei, ela que estava no comando do preparo do crack em cachimbos para serem fumados. Foi ela quem preparou para todos no grupo. Possuía um prato no colo com uma vela acesa, um pedaço de papelão que servia como colher, o cachimbo e as pedras [...]. Enquanto conversávamos, todos sentados no chão [inclusive eu e o ERD] em forma de roda, ela preparou cachimbos o tempo todo e fumava quando chegava a sua vez [...]. Um senhor, o mais idoso do grupo, morador de rua, estava inquieto, querendo dar uma tragada. Ela o xingou, disse que chegaria a vez dele e que ele soubesse esperar. E ele prontamente a obedeceu. Após fumar, foi para rua em busca de dinheiro, para conseguir mais droga e retornar para fumar no grupo (Diário de campo).

No entanto, a liderança, apesar de ser forte em alguns grupos, não está presente em todos eles. Na ausência dela, os usuários se organizam entre si no ritual de preparo do cachimbo, de modo que todos sejam contemplados com o ato de fumar. Muitas vezes o trabalho é em equipe, no qual cada um desempenha uma tarefa, de forma que o cachimbo seja bem preparado sem sobrecarregar ninguém.

Quando nos aproximamos de um grupo na Rua da Cidadania, entendi o porquê de estarem silenciosos e com a cabeça baixa. Todos estavam com um cachimbo na mão e manipulando-os, pareciam estar em transe com aqueles objetos. Um deles raspava uma lata e os demais acomodavam as cinzas e preparavam o fogo para acender a pedra (Diário de campo).

Corroborando com outros trabalhos, as formas de uso de crack encontradas neste estudo eram também de maneira a serem fumadas em cachimbos e em latas, assim como relatado em estudo realizado no Estado de São Paulo e nos Estados Unidos. Os cachimbos podem ser de madeira, mas também confeccionados manualmente pelos usuários, sendo utilizados materiais resgatados principalmente do lixo, como tampas de garrafas pet, antenas, canetas, latas de alumínio (de cerveja e refrigerantes), isqueiros, entre outros, possuindo também as cinzas de tabaco como elemento essencial para serem acesos.8Oliveira LG, Nappo AS. Crack na cidade de São Paulo: acessibilidade, estratégias de mercado e formas de uso. Rev Psiquiatr Clin. 2008; 35(6):212-8. , 1717 Jorge MSB, Quinderé PHD, Yasui S, Albuquerque RA. Ritual de consumo do crack: aspectos socioantropológicos e repercussões para a saúde dos usuários. Rev Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(10):2909-18.

Além desta troca e ajuda mútua no preparo de cachimbos para fumar, encontradas em todos os grupos de pessoas que usam crack, há também outra relação de troca e solidariedade entre eles. Existe uma preocupação muito grande entre eles referente à saúde do próximo. Preocupação com as gestantes que não fazem pré-natal, pessoas que possam ter problemas de saúde, como tuberculose e outras necessidades e fragilidades, às quais os usuários ficam expostos em decorrência do uso de crack e outras drogas.

A dádiva, pôde-se perceber, é algo que permeia a relação entre estas pessoas, e, neste caso, de forma a estabelecer vínculos de ajuda, afeto e solidariedade.1111 Caillé A, Graeber D. In: Martins PH. A dádiva entre os modernos: discussão sobre os fundamentos e as regras do social. Petrópolis (RJ): Vozes; 2002. p.17-31.

Uma das moças presente no grupo na casa de consumo de Pedro, que além de ser usuária compulsiva apresentava deficiência mental, após fumar quatro pedras consecutivas já não tinha noção plena do que estava fazendo, pois tentava acender um cachimbo e não conseguia. Neste momento, outra moça que fumava junto a ajudou de forma caridosa, pediu que ela tivesse calma e acendeu o fogo, queimou a pedra e mandou tragar no momento certo. Percebi neste ato uma gentileza, pois, diante da fraqueza da colega, ela mostrou-se solidária (Diário de campo).

O grupo do cemitério mostrava-se como um grupo acolhedor a pessoas de fora, sem abrigo. Foi presenciado, em três visitas, que homens de outras localidades que estavam de passagem pela cidade foram acolhidos naquele ambiente para passar a noite e fazer o uso da sua droga.

Em uma etnografia realizada em São Paulo, esta característica acolhedora mostrava-se de forma similar, duas pessoas relataram encontrar no grupo companhias que não possuíam fora desse meio. Eram pessoas sozinhas, sem familiares e aparentemente com poucas perspectivas de futuro. Em um dos casos, o sujeito encontrava-se doente, sem condições de trabalhar, fumar, e negando-se a receber ajuda de saúde, alegando sentir-se melhor próximo aos "seus", mesmo sem poder fumar, só pela parceria e "agito".2020 Gomes BR, Adorno RCF. Tornar-se "noia": trajetória e sofrimento social nos "usos de crack" no centro de São Paulo. Rev Etnográfica. 2011; 15(3):569-86.

Existe também a solidariedade das pessoas que possuem residência própria em ceder esse espaço aos desabrigados que não têm aonde fumar e não querem se expor na rua. Foram presenciadas cenas assim na casa do Pedro, da Marina, e, alguns meses atrás, na casa da Sandra, que também era uma casa onde se realizava o consumo. Seus donos as ofereciam e deixavam de portas abertas a quem quisesse fumar ou necessitasse de abrigo, transformando-se assim em verdadeiros aglomerados de gente e formando as cracolândias em locais privados e mais discretos.

Na Rua da Cidadania há uma circulação maior de pessoas dependentes de crack e em situação de rua, e, em decorrência disso, há um maior número de pessoas com maiores fragilidades e problemas de saúde. No decorrer de todo o estudo, foi muito comum a ação das pessoas que se apresentavam com saúde mais íntegra pedirem ajuda para os mais debilitados.

Estas orientações de saúde solicitadas pelos próprios usuários demonstram a noção que eles possuem acerca dos riscos de transmissão de doenças por uso do cachimbo compartilhado, aos quais estão sujeitos. O metal aquecido causa lesão no tecido cutâneo, levando ao aparecimento de bolhas e feridas na língua, nos lábios, rosto e dedos. Uma vez que o cachimbo é compartilhado, o contato com o sangue de outros usuários pode aumentar o risco de transmissão de doenças infectocontagiosas. Entre a população feminina, os agravos podem ser ainda maiores, visto que algumas usuárias relataram a prática de sexo por crack, que, quando realizado sem proteção, aumenta os riscos de contágio por doenças sexualmente transmissíveis, dentre elas o HIV.1717 Jorge MSB, Quinderé PHD, Yasui S, Albuquerque RA. Ritual de consumo do crack: aspectos socioantropológicos e repercussões para a saúde dos usuários. Rev Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(10):2909-18. , 2121 Cruz VD, Oliveira MM, Pinho LB, Coimbra VCC, Kantorski LP, Oliveira JF. Condições sociodemográficas e padrões de consumo de crack entre mulheres. Texto Contexto Enferm [online]. 2014 [acesso 2014 Mar 06]; 23(3):1068-76 Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v23n4/pt_0104-0707-tce-23-04-01068.pdf .
http://www.scielo.br/pdf/tce/v23n4/pt_01...

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a realização deste estudo foi possível compartilhar e desmistificar um modo de vida tão particular e invisível dos usuários de crack e outras drogas aos olhos da grande população. Sem a intenção de generalizar, buscou-se valorizar a singularidade de cada pessoa acompanhada mais de perto e a organização como grupo, mostrando as diferentes trocas e alianças constituídas.

Ao longo deste caminho e tempo de observação, constatou-se que, em diferentes situações, as relações de troca/doação são o que mantém o grupo como grupo. O grupo assume papel acolhedor na ausência de laços familiares e amigáveis e, nestes locais de uso, as pessoas sentem-se de fato em condições de igualdade e longe de recriminações e julgamentos.

Fica evidente, dentro da sociedade paralela criada por eles, também a busca por interesses. Ao mesmo tempo em que buscam desprender-se da sociedade capitalista, da moral e das regras que regem nossa sociedade, organizam-se de forma particular, encapsulados em um grupo que cria suas próprias regras, normas e moral. Buscam seus interesses, envolvem-se num capitalismo forte regido pela comercialização ilegal das drogas, acordos financeiros entre traficante e usuário, atividades ilícitas, e assim alcançam seus objetivos.

No entanto, diante de tantos achados impactantes, de vidas sofridas, de outras nem tanto, de ajuda, solidariedade e também interesses, respeitar o ser humano e tentar compreender diferentes formas de vida talvez sejam alguns dos grandes desafios a se vencer na luta contra o preconceito e estigma criados acerca dos usuários de droga.

As mudanças só começarão a aparecer no contexto dessas pessoas, no momento em que as políticas de atenção e assistência que envolvem esta população passarem a ser prioridades dos gestores. Para isso faz-se necessário valorizar estudos de contexto social e cultural dos cenários de uso de forma integrada a dados epidemiológicos e estatísticos, na intenção de compreender o fenômeno do uso de drogas, facilitar a imersão de diferentes atores nesse contexto, a aproximação de diferentes áreas do conhecimento, para que se produzam meios mais eficazes de abordagem, aproximação e vínculo com esta população, proporcionando, sobretudo, acolhimento de suas necessidades, que em muitos momentos apareceram negligenciadas.

Como limitações deste estudo, aponta-se a dificuldade de locomoção até os locais observados, pois o serviço de ERD encontrava-se sem veículo próprio para transportar os agentes e os pesquisadores, sendo necessário, várias vezes, utilizar transporte particular ou público, o que demandava mais tempo e gastos de locomoção. Além disso, a alta rotatividade dos usuários nas cenas de uso impossibilitou contato contínuo com eles, sendo possível a aproximação mais intensa com apenas 13 pessoas ao longo de oito meses de trabalho de campo. Como sugestão para trabalhos futuros, ressalta-se a importância do trabalho inter e multidisciplinar, em especial a aproximação com os agentes redutores de danos, que foram a principal porta de entrada e responsáveis pela formação de vínculo com esta população, pois os usuários ao sentirem-se acolhidos e assistidos, através desta relação de confiança possibilitam a intervenção de outros profissionais.

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    Artigo extraído da dissertação - O sentido antropológico de dons e dádivas entre grupos de usuários de crack e outras drogas, apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2014
  • Aceito
    11 Set 2014
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