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Violência, sob o olhar de jovens, na perspectiva da corporeidade e da vulnerabilidade

Resumos

Objetivou-se entender de que modo a violência é compreendida pelos jovens, no seu vivido, na perspectiva da corporeidade e da vulnerabilidade. Pesquisa qualitativa, realizada com 21 jovens, acadêmicos de enfermagem de uma universidade do Oeste catarinense. As informações foram produzidas a partir do genograma e ecomapa e das dinâmicas de criatividade e sensibilidade, sendo interpretadas à luz da Hermenêutica. Os jovens entendem a violência como ausência de felicidade, como algo que fere a sua integridade; compreendem por violência a negligência existente na relação entre pais e filhos e nas relações conflituosas vivenciadas na família. A pesquisa trouxe elementos importantes para entender a violência pela ótica do jovem, revelando a necessidade de traçar ações de cuidado de enfermagem que diminuam as situações de vulnerabilidade a esse fenômeno que interfere no seu modo de ser no mundo.

Violência; Jovens; Vulnerabilidade em saúde; Enfermagem


The aim was to understand how violence is understood by the young, in their experience, in the perspective of corporeality and vulnerability. Qualitative research was undertaken with 21 young people, students of nursing at a university in the West of the Brazilian state of Santa Catarina. The information was produced based on a genogram and ecomap, and on the dynamics of creativity and sensitivity, these being interpreted in the light of Hermeneutics. The young understand violence as an absence of happiness, as something which harms their integrity; by violence, they understand the negligence existing in the relationship between parents and children and in the conflictual relationships experienced in the family. The study raised important elements for understanding the violence from the viewpoint of the young person, revealing the need to outline actions of nursing care which reduce the situations of vulnerability to this phenomenon which interferes in their way of being in the world.

Violence; Young people; Vulnerability in health; Nursing


Se busco entender de qué modo la violencia es comprendida por los jóvenes en sus experiencias en la perspectiva de la corporeidad y de la vulnerabilidad. Investigación cualitativa, realizada con 21 jóvenes, académicos de enfermería de una universidad del Oeste catarinense. Las informaciones fueron producidas a partir del genograma y ecomapay de las dinámicas de creatividady sensibilidad, siendo interpretadas a la luz de la Hermenéutica. Los jóvenes entienden a la violencia como ausencia de felicidad, como algo que hiere su integridad; comprenden por violencia la negligencia existente en la relación entre padres e hijosyen las relacionesconflictivasvividasen la familia. La investigación trajo elementos importantes para entender la violencia en la óptica del joven, revelando la necesidad de trazar acciones de cuidado de enfermería que disminuyanlas situaciones de vulnerabilidad a ese fenómeno que interfiere ensu modo de ser en el mundo.

Violencia; Jóvenes; Vulnerabilidad en salud; Enfermería


INTRODUÇÃO

A violência observada e vivenciada na conjuntura atual, no Brasil, não é algo novo; ela acompanha o ser humano ao longo da sua existência, causando impactos negativos no âmbito individual e coletivo. Entretanto, é interpretada sob diferentes olhares em cada país, cultura, sociedade. A violência é inerente à sociedade; é multidimensional, considerada grave problema de saúde pública, é resultante das relações de comunicação, conflitos e poder; não existe sociedade sem violência, existe sociedade mais violenta e menos violenta, cada uma com sua história e formas particulares de violência.1Reichenheim ME, Souza ER, Moraes CL, Jorge MHPM, Silva CMFP, Minayo MCS. Violence and injuries in Brazil: the effect, progress made, and challenges ahead. Lancet, [online]. 2011 [acesso 2014 Nov 27]; Disponível em: http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736%2811%2960053-6/fulltext#article_upsell
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No contexto contemporâneo, destaca-se a estreita relação entre juventude e violência, evidenciada nas estatísticas que desenham o seu panorama. As taxas de mortalidade mais elevadas por causas externas estão no grupo com idade entre 15 e 24 anos.2 Waiselfisz JJ. Mapa da violência 2012: crianças e adolescentes do Brasil. Rio de Janeiro (RJ); [online]. 2012 [acesso 2013 Nov 11]; Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_Criancas_e_Adolescentes.pdf
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Esses dados sustentam o que os estudiosos da área da epidemiologia chamam de transição epidemiológica ‒ as enfermidades infecciosas cedem lugar às doenças crônicas, degenerativas e aos agravos provocados pelos acidentes e violência.1Reichenheim ME, Souza ER, Moraes CL, Jorge MHPM, Silva CMFP, Minayo MCS. Violence and injuries in Brazil: the effect, progress made, and challenges ahead. Lancet, [online]. 2011 [acesso 2014 Nov 27]; Disponível em: http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736%2811%2960053-6/fulltext#article_upsell
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Diante desse quadro pode-se dizer que pelo fato de a juventude estar exposta a diferentes tipos de violências externas "fruto da desigualdade socioeconômica, ou inserida em uma realidade permeada por riscos impostos ou autoinfligidos, configura-se como um período da vida de extrema vulnerabilidade".3:463

A vulnerabilidade está relacionada à chance que o indivíduo possui de expor-se a determinado evento e adoecer, é o resultado de um conjunto de aspectos de ordem individual, coletivo, contextual, que acarreta maior ou menor susceptibilidade à infecção e ao adoecimento e, simultaneamente à possibilidade de recursos para o seu enfrentamento. A vulnerabilidade pode ser, então, definida como uma síntese conceitual das dimensões individuais, sociais e programáticas, relevantes para a prevenção ou redução dos agravos ou carecimentos em saúde.4Ayres JR. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saúde Soc [online]. 2009 [acesso 2014 Nov 27]; 18(supl2) Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v18s2/03.pdf .
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Os termos agravos ou carecimentos, presentes no conceito, podem ser especificados como situações de violência, podendo, então, serem abordadas como "um conjunto articulado de aspectos individuais, sociais e programáticos que expõe ao problema e, ao mesmo tempo, às possibilidades concretas para se defender dele".5:63 Ou seja, determinadas situações de violência a que os jovens estão expostos ou se expõem, podem gerar situações de vulnerabilidade visualizadas em três dimensões - individual, social e programática.4Ayres JR. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saúde Soc [online]. 2009 [acesso 2014 Nov 27]; 18(supl2) Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v18s2/03.pdf .
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O componente individual considera o conhecimento do jovem sobre determinado agravo, sua capacidade de elaborar informações e incorporá-las às suas preocupações e ao interesse de transformar essas preocupações em práticas protetoras. O componente social integra a dimensão social, diz respeito ao acesso às informações, capacidade de compreendê-las para, então, incorporá-las às mudanças práticas da vida cotidiana.4Ayres JR. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saúde Soc [online]. 2009 [acesso 2014 Nov 27]; 18(supl2) Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v18s2/03.pdf .
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O jovem, ao ter acesso à informação, poderá entender que algumas vivências do seu cotidiano podem expô-lo a situações de violência em diferentes âmbitos: na família, nas ruas, escola e espaços de lazer.

O componente programático contempla o grau e a qualidade do compromisso do Governo no planejamento, implantação, implementação e monitoramento de políticas, programas, ações preventivas, educativas e de cuidado. Está relacionado, ainda, com o acesso aos serviços de saúde, vínculo entre profissionais e usuários e com os recursos existentes para a continuidade e sustentabilidade das ações.6 Bertolozzi MR, Nichiata LYI, Takahashi RF, Ciosak SI, Hino P, Val LF, et al. Os conceitos de vulnerabilidade e adesão na saúde coletiva. Rev Esc Enferm USP. 2009 Dez; 43(Esp2):1326-30.A vulnerabilidade percebida, nesses três planos, indissociadamente, torna-se ainda maior quando a violência está presente no mundo vivido do jovem, interferindo em sua corporeidade e em seu modo de ser.

A corporeidade é expressa pelo corpo que sente e é sentido, vê e é visto, é tocado e também tocante. É o modo de ser do homem.7 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 3ª ed. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2006.Enquanto ser corpóreo, o jovem constrói suas experiências no mundo, especialmente, por estar vivenciando rápidas e inúmeras modificações que marcam sua existência. Entretanto, em determinados momentos ele pode enfrentar situações conflituosas de afirmação consigo mesmo, com sua família e com a sociedade, as quais podem colocá-lo diante de situações de vulnerabilidade à violência.

Além de identificar a violência em suas múltiplas faces, entende-se ser importante compreender esse fenômeno pela concepção do jovem, pois isso pode ajudar na abordagem de cada situação, auxiliando os profissionais de enfermagem e saúde a reconhecerem os sinais de violência, sejam eles visíveis ou mascarados por comportamentos rebeldes ou de isolamento.

Com esse intuito buscou-se, na literatura nacional e internacional, elementos que pudessem ajudar a entender esse fenômeno pela ótica do jovem. Entretanto, destaca-se que, nas bases de dados pesquisadas e nos estudos selecionados, não foram encontradas pesquisas realizadas com o objetivo de entender a violência sob a ótica dos jovens ou com resultados que permitam entender como eles percebem e o que pensam sobre a violência presente em seu cotidiano e de que modo ela pode interferir no seu modo de ser no mundo.

Os resultados dos estudos selecionados permitiram inferir que pensar a violência sob o prisma dos jovens é tarefa difícil. Talvez, por isso, pouco estudada. Esta situação justificou a realização dessa pesquisa, que objetivou entender de que modo a violência é compreendida pelos jovens, no seu vivido, na perspectiva da corporeidade e da vulnerabilidade.

MÉTODOS

Pesquisa exploratória, descritiva, com abordagem qualitativa de investigação, realizada em 2013, com 21 acadêmicos de enfermagem, em uma universidade localizada no município de Chapecó, Santa Catarina. Os critérios de inclusão foram: ter idade entre 15 e 24 anos e estar cursando a 1ª fase e/ou a 8ª fase do Curso de Graduação em Enfermagem na universidade eleita como cenário da pesquisa, no momento da coleta das informações. Após a aprovação do projeto pelos órgãos competentes foi realizada uma reunião com a turma da 1ª fase e outra com a turma da 8ª fase do Curso de Graduação em Enfermagem, para falar sobre a pesquisa, seus objetivos, a metodologia para a coleta das informações, e estender o convite a quem tivesse interesse em participar.

Nesse momento, a turma da 1ª fase era composta por 30 jovens, e da 8ª fase, por 18. De um total de 48 jovens, 21 manifestaram interesse em participar. Os demais justificaram que estavam em um período de provas e trabalhos, situação que dificultaria a participação em todos os momentos. Assim, participaram da pesquisa 21 jovens, com idade entre 17 e 23 anos, oriundos de diversas regiões do Estado de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, sendo constituídos dois grupos: um grupo com 10 jovens que estavam cursando a 1ª fase e o outro com 11 jovens da 8ª fase.

A produção das informações efetivou-se em três encontros com cada grupo. Inicialmente, os encontros foram realizados com os jovens da 1ª fase (Grupo 1) e, após, com os da 8ª fase (Grupo 2), mantendo-se o mesmo roteiro de cada encontro para ambos. No primeiro encontro ocorreu a construção do genograma e ecomapa, componentes do Modelo Calgary de Avaliação da Família8Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e Famílias: um guia para avaliação e intervenção na família. 5ª ed. São Paulo (SP): Roca; 2012.. Essa estratégia foi utilizada com o intuito de conhecer cada jovem, seu contexto familiar e social e os atravessamentos da violência em seu mundo vivido. Esses instrumentos têm sido "utilizados pela enfermagem brasileira como ferramentas complementares na coleta de dados em pesquisa",9:218 pois favorecem a identificação de vulnerabilidades, auxiliando no planejamento de ações de cuidado à saúde.9Nascimento LC, Dantas IRO, Andrade RD, Mello DF. Genograma e ecomapa: contribuições da enfermagem brasileira. Texto Contexto Enferm [online]. 2014 [acesso 2014 Mai 30]; 23(1): Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v23n1/pt_0104-0707-tce-23-01-00211.pdf .
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No segundo e terceiro encontros foram realizadas as dinâmicas de criatividade e sensibilidade (DCSs), preconizadas pelo Método Criativo e Sensível (MCS).1010 Cabral IE. Uma abordagem criativo-sensível de pesquisar a família. In: Althoff CR, Ingrid E, Nitschke RG. Pesquisando a família: olhares contemporâneos. Florianópolis (SC): Papa-livros; 2004. p.127-139. Cada encontro teve duração média de 90 minutos. Esse método busca desvelar uma questão de pesquisa que é definida pelo pesquisador e, posteriormente, reorientada pelas discussões coletivas no grupo. Para isso, privilegia a participação coletiva e valoriza tudo o que emerge do pensamento e da percepção dos participantes.1010 Cabral IE. Uma abordagem criativo-sensível de pesquisar a família. In: Althoff CR, Ingrid E, Nitschke RG. Pesquisando a família: olhares contemporâneos. Florianópolis (SC): Papa-livros; 2004. p.127-139.

Para concretizar cada encontro são necessários cinco momentos: "preparação do ambiente e acolhimento do grupo; apresentação dos participantes do grupo; explicação da dinâmica e trabalho individual ou coletivo; apresentação das produções; análise coletiva e validação dos dados".10:132 Salienta-se que nesta pesquisa o MCS foi utilizado somente como estratégia para a coleta de informações, não sendo utilizado, portanto, a etapa de análise e validação coletiva.

As informações foram interpretadas à luz da Hermenêutica de Paul Ricoeur,11 11 Ricoeur P. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro (RJ): Imago; 1978.em quatro etapas: 1) Leitura inicial: ao transcrever as falas dos participantes o texto falado transformou-se em texto escrito, sendo necessário organizá-lo. Para isso foram realizadas inúmeras leituras, sem julgamentos, com o intuito de apreender os significados que emergiram das falas para, então, organizá-las.1111 Ricoeur P. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro (RJ): Imago; 1978. - 1212 Terra MG, Gonçalvez LHT, Santos EKA, Erdmann AL. Fenomenologia-hermenêutica de Paul Ricoeur como referencial metodológico numa pesquisa de ensino em enfermagem. Acta Paul Enferm. [online]. 2009 [acesso 2014 Nov 27]; 22(1):93-9 Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ape/v22n1/a16v22n1.pdf .
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2) Leitura reflexiva: nessa etapa realizou-se uma releitura profunda do texto.1111 Ricoeur P. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro (RJ): Imago; 1978.Para isso, iniciou-se a leitura pela frase, seguida do parágrafo e após do texto na íntegra com o intuito de interpretar e compreender os prováveis significados presentes no texto, ou seja, identificar neles o significado manifesto e oculto.1111 Ricoeur P. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro (RJ): Imago; 1978. - 1212 Terra MG, Gonçalvez LHT, Santos EKA, Erdmann AL. Fenomenologia-hermenêutica de Paul Ricoeur como referencial metodológico numa pesquisa de ensino em enfermagem. Acta Paul Enferm. [online]. 2009 [acesso 2014 Nov 27]; 22(1):93-9 Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ape/v22n1/a16v22n1.pdf .
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3) Identificação da metáfora: nessa etapa ocorreu a interpretação hermenêutica, ou seja, o momento em que o pesquisador conseguiu compreender a essência do vivido dos jovens em relação à violência.1111 Ricoeur P. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro (RJ): Imago; 1978. 4) Apropriação: ocorreu quando o pesquisador conseguiu compreender e assimilar os significados de cada mensagem, permitindo tornar conhecido o que até o momento era desconhecido.1111 Ricoeur P. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro (RJ): Imago; 1978. Esse é o momento em que os sentidos dos discursos tornaram-se mais visíveis para responder a questão de pesquisa: de que modo os jovens compreendem as situações de vulnerabilidade à violência no seu vivido e quais as repercussões desse fenômeno em sua corporeidade?

Obteve-se aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em cumprimento à Resolução 466/2012, CAAE: 02870012.8.0000.5347. Para os jovens maiores de 18 anos foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), para os menores de 18 anos o TCLE foi assinado pelos pais, e os jovens assinaram o Termo de Assentimento.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise do genograma e ecomapa dos participantes permitiu evidenciar que um número significativo de jovens vivencia relacionamentos conflituosos no contexto familiar, especialmente dos pais entre si, do jovem com o pai e/ou padrasto e madrasta.

Na maioria das famílias reconstituídas por um dos pais após o processo de separação, são destacados pelos jovens vínculos conflituosos com o padrasto. Nas famílias em que o pai é alcoolista, a mãe geralmente, estabelece vínculo forte com o trabalho, ocasionando em algumas famílias, vínculo moderado com o jovem. Com isso, observam-se ambientes familiares fragilizados, especialmente pela falta de diálogo entre pais e filhos, potencializando a vulnerabilidade do jovem, especialmente nos planos individual e social.

Nas DCSs os jovens reproduziram, por meio de desenhos, recortes, colagens e produção textual, suas compreensões sobre a violência e, posteriormente, socializaram sua produção com os demais participantes. Ao serem indagados sobre os tipos de violência que conheciam e em que locais eles percebiam a sua ocorrência, destacaram, em primeiro lugar, as violências de natureza física e psicológica (verbal e relações de poder) e, na sequência, a violência sexual, a negligência, a discriminação, a violência social, moral e a superproteção. Fazem menção ao trabalho infantil, ao preconceito, racismo e à violência de gênero. Afirmam que esses tipos de violência ocorrem, principalmente, nos espaços de lazer, no meio familiar, na escola e no trabalho.

A partir da produção, explicação e discussão dos jovens em cada DCS foram extraídos discursos que permitiram identificar de que modo os jovens compreendem a violência, os quais foram agrupados em três temas e, após, discutidos e explorados a partir do referencial da vulnerabilidade e da corporeidade.

Violência [...]; caminho inverso da felicidade

Em seus discursos, os jovens declaram que a violência acompanha o seu existir em todos os contextos e lugares que frequentam. Faz parte do seu cotidiano. Entretanto, observa-se que cada um a compreende de maneira diferente, a partir das suas vivências, da sua cultura, da sua história e do seu modo de ser e viver. Contudo, a maioria relaciona a violência com a ausência de felicidade. Violência para nós seria o caminho inverso da felicidade[...]. A felicidade seria a busca desses sonhos e a violência interrompe essa busca (Jovem 11 e 16).

A palavra felicidade, em um sentido amplo, frequentemente está associada às expressões de bem-estar e qualidade de vida. Tem relação direta com as oportunidades que a pessoa tem para desfrutar uma vida boa, e isso envolve elementos internos, inerentes a cada um, e externos, relacionados à natureza.1313 Veenhovem R. Medidas de la felicidad nacional bruta. Intervención Psicosocial. 2009 Dez; 18(3):279-99.

A conquista da felicidade é diferente para cada um. Cada jovem tem uma percepção do que precisa para atingir a felicidade, pois o ato de perceber ocorre sempre a partir de certa perspectiva, de um ponto de vista específico. Cada um percebe o mundo com um sentido, pois ele não é um objeto do pensamento abstrato e, sim, o lugar onde cada um vive, move-se, reage emocionalmente a determinadas situações, visando modificá-lo. Todas essas interações com o mundo dão origem à sua significação.7Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 3ª ed. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2006.

A felicidade tem significado específico para cada jovem, dependendo do interesse e do envolvimento de cada um com o mundo e com as pessoas com quem convive. O significado atribuído pelo jovem ao seu mundo é baseado a partir de suas perspectivas, pois a percepção está relacionada à atitude corpórea, uma experiência da existência; está relacionada ao corpo em movimento.7Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 3ª ed. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2006.

Os discursos a seguir reforçam o entendimento de que a violência interfere ou impede o jovem de ser feliz, de lutar pela sua felicidade. Eu risquei aqui o que seria um sorriso, pois a violência interfere na felicidade das pessoas, impede-as de serem felizes (Jovem 6); Violência é qualquer coisa que venha a prejudicar a pessoa, pois atinge seu bem-estar, deixa a pessoa triste (Jovem 19); [...] a violência levaria à tristeza, ela traz um monte de sentimentos que vão desembocar na tristeza, vai trazer a raiva, a culpa, as frustrações, a irritação, que são os sentimentos que emergem dependendo do tipo de violência (Jovem 16).

A violência fere a integralidade do jovem, por vezes, impedindo-os de buscarem seus sonhos para atingir a felicidade. Pode, também, constituir-se em ciclo vicioso permeado de frustrações, tristeza, dor e medo.

Na concepção de outros jovens, a violência também impede a felicidade ao provocar danos físicos, morais e psíquicos. Violência seria toda ação que cause danos tanto morais, quanto físicos, como psíquicos causando infelicidade a terceiras pessoas ou a si mesmo. (Jovem 17 e 21); Violência é tudo o que agride a integridade física, mental e social do ser humano, deixa as pessoas infelizes (Jovem 20).

Ao considerarem que a violência deixa danos nas dimensões físicas e psíquicas do ser humano, os jovens fazem distinção entre o corpo físico e mental, fragmentam o corpo, não o concebem em sua totalidade. Para Merleau-Ponty, o ser humano precisa ser entendido em sua integralidade - corpo, mente, interioridade e exterioridade, com sua constituição biológica, psíquica e histórica, pois o corpo expressa a totalidade da existência humana, constitui-se em um conjunto de significações vividas. O corpo tem que ser visualizado nas suas interconexões, que ocorrem no organismo, internamente, enquanto sistema, e externamente, nas relações com o ambiente, com a cultura e com a história de cada um e não dicotomizá-lo em partes.7Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 3ª ed. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2006.

Entretanto, as compreensões dicotomizadas desses jovens, podem ser melhor compreendidas, quando entende-se que a cultura da qual fazem parte esses jovens, o meio onde vivem, suas experiências e oportunidades de acesso à educação, à cultura e a formação profissional vinculada à área biológica, podem, possibilitar que pensem o ser humano como um ser dicotômico: corpo-mente. Favorece-lhes considerarem o corpo em partes com ou sem interferências entre si, entretanto, mesmo assim, entendem que a violência ao provocar danos físicos e psíquicos leva à infelicidade que, consequentemente, interfere em sua corporeidade.

A violência pode, também, ser considerada um obstáculo para a conquista dos projetos de felicidade idealizados pelos jovens. Todavia, conquistar tais projetos, requer que cada um se posicione frente a si e ao mundo, pois os projetos de felicidade de cada um, não é algo acabado, planejado, requer um constante acomodar-se, desacomodar-se e reacomodar-se, pois isso faz parte da condição de se estar vivo e interagir com o mundo.4Ayres JR. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saúde Soc [online]. 2009 [acesso 2014 Nov 27]; 18(supl2) Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v18s2/03.pdf .
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O encontro do jovem com situações de violência o conduz ao processo de reflexão acerca desse fenômeno, visando, contudo, buscar elementos de caráter individual e coletivo que possam instrumentalizá-lo para reagir. Entretanto, para isso, o jovem precisa, em primeiro lugar, ter conhecimento acerca da violência, sua tipologia e natureza, para ter possibilidade de reconhecê-la em seu contexto de vida e, então, criar mecanismos de defesa e proteção que viabilizem a construção dos seus projetos de felicidade. Nesse contexto, os pais e os profissionais de enfermagem e saúde, nos momentos de encontro com os jovens, possuem a tarefa de ajudá-los a construírem seus projetos de felicidade, por meio da abertura para o diálogo, da escuta ativa, sem julgamentos, mas também sem perder os preceitos éticos.4Ayres JR. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saúde Soc [online]. 2009 [acesso 2014 Nov 27]; 18(supl2) Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v18s2/03.pdf .
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Sendo assim, é fundamental planejar e discutir com o jovem, em todos os momentos de encontro, os caminhos a serem percorridos e as escolhas a serem feitas ao longo da sua caminhada, visando conhecer as situações de vulnerabilidade à violência no âmbito individual, social e programático e, consequentemente, auxiliá-lo a ver-se como um cidadão de direitos, mas também de deveres.

Negligência na relação entre pais e filhos - uma forma de violência

O jovem é um ser vivenciando uma etapa do desenvolvimento humano que se caracteriza por transformações biológicas, pela sua construção social, intelectual, psíquica, conquistas, independência da família, autonomia e afirmação, que resultam em tomadas de decisões. Condição que requer, ainda mais, apoio, cuidado e suporte dos pais. Se os pais não oferecerem esse aporte poderão estar sendo negligentes e, talvez, tornando o jovem mais suscetível à ação do mundo violento que o cerca.

Ao discorrerem sobre o tema violência, os jovens destacam a negligência, observada na falta de cuidado e de limites de alguns pais, constatada na seguinte manifestação: violência é o que os pais estão fazendo com a educação dos filhos [...]. O problema é que os pais estão educando os filhos para usarem drogas. Se deixam o jovem fazer tudo o que tem vontade, como faltar a aula para ir à balada e dirigir sem ter carteira, por que ele não vai fumar maconha quando quer? Acho que isso também é violência, acontece justamente porque os pais não sabem educar o filho a não fazer aquilo ali. É justamente assim: alguns pais evitam a confrontação do problema. Para os pais acho que o maior problema é eles fingirem que não enxergam o que está acontecendo com o jovem (Jovem 5).

A negligência é considerada como um dos tipos mais graves de violência, por interferir, de forma devastadora, na saúde das crianças e dos jovens. Esse tipo de violência é de difícil definição por envolver aspectos culturais, sociais e situacionais que podem dificultar a sua identificação. Envolve situações que vão desde não suprir as necessidades básicas (alimentação, vestuário) até a falta de carinho, proteção e cuidado.1414 Lobato GR, Moraes CL, Nascimento MC. Desafios da atenção à violência doméstica contra crianças e adolescentes no Programa Saúde da Família em cidade de médio porte do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública [online]. 2012 [acesso 2014 Set 23]; 28(9):1749-58 Disponível em: http://www.scielosp.org/pdf/csp/v28n9/v28n9a13.pdf .
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Considerando-se o discurso do Jovem 5 pode-se dizer que a falta de diálogo entre pais e filhos compromete a dinâmica familiar e fragiliza seus vínculos, configurando-se como um elemento vulnerabilizante, principalmente no âmbito individual que está "relacionado a aspectos de cognição, valores, experiências, coerção".5:65 Contudo, salienta-se que nessa etapa do curso da vida o jovem ainda não tem elementos suficientes para processar todas as informações que recebe, pode ter dificuldade de julgar os convites e as oportunidades que se apresentam e que exigem uma tomada de decisão, pois está vulnerável no plano individual, por isso precisa de suporte e orientação da família.

O jovem é um ser de relações que pode, no seu cotidiano, expor-se à violência ou proteger-se dela. Esse confronto requer um posicionamento que será influenciado pelo conhecimento que o jovem possui sobre a violência, suas consequências e sua capacidade para elaborar essas informações e transformá-las em práticas que lhe assegurem proteção. Contudo, seja qual for sua decisão, ela acompanhará a construção da sua trajetória pessoal, com consequências para sua vida presente e futura, fazendo parte da sua história.

Sendo assim, ao longo do curso da vida e, especialmente nessa etapa, os pais precisam encontrar meios para superar a falta de tempo que a vida impõe e dialogar com os filhos, visando dar-lhes o suporte que necessitam para as escolhas que irão fazer, evitando negligenciar seu papel frente à educação e ao cuidado com os filhos. Os jovens, por sua vez, precisam de limites para se sentirem seguros, necessitam estabelecer uma relação de confiança para se certificarem de que podem contar com os pais em todos os momentos, que não estão sozinhos e desamparados diante das decisões que a vida exige.

Outro jovem considera violência a falta de amor, carinho e cuidado. Nesse caso, a negligência pode ser definida como a omissão dos pais ou responsáveis em prover as necessidades emocionais de carinho, atenção, cuidado e as necessidades básicas de que o jovem precisa para crescer e desenvolver-se de modo saudável. A violência [...] pode ser falta de amor, falta de carinho, falta de atenção, falta de cuidado, de dinheiro. São as relações de poder entre pais filhos (Jovem 4).

A privação de carinho, amor, atenção e também de condições econômicas, além de ser entendida como uma forma de violência que agride a integralidade do jovem pode torná-lo um ser triste. Pode dificultar-lhe a buscar seus sonhos e sua felicidade, interferindo em sua corporeidade, em seu modo de ser no mundo, levando-o a tomar decisões que podem conduzi-lo ao crime, talvez para chamar a atenção dos pais ou para suprir uma necessidade básica.

No contexto familiar atual observa-se que o mundo do trabalho conduz os pais a permanecerem por muito mais tempo longe dos filhos, circunstância que os leva, muitas vezes, a se culparem por essa situação e, para tentar suprir essa lacuna, muitos pais acabam cedendo, deixam os filhos fazer o que quiserem, dando-lhes um tipo de liberdade com a qual os jovens, muitas vezes, não sabem conviver nem o que fazer com ela.

Por outro lado, pode-se pensar sobre a conduta dos pais, não como uma forma de negligência, mas, talvez, como uma atitude, mesmo que inconsciente, de não reproduzir as relações de poder conduzidas por seus pais no passado. Talvez, essa postura dos pais seja um modo de manifestar sua atenção e amor pelos filhos, ou de não reproduzir o ciclo de violência observada ao longo da história nas relações de poder entre pais e filhos.1515 Souza MKB, Santana JSS. Atenção ao adolescente vítima de violência: participação de gestores municipais de saúde. Ciênc Saúde Coletiva [online]. 2009 [acesso 2014 Nov 27]; 14(2):547-55 Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v14n2/a23v14n2.pdf .
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Contudo, não se pode deixar de refletir a respeito da responsabilidade que os pais têm para com os filhos, pois a responsabilidade é uma estrutura essencial, fundamental a ser construída na família para facilitar a tomada de decisão dos jovens frente a situações de violência e vulnerabilidade.

Entretanto, se os pais são os responsáveis por conduzir os jovens a terem responsabilidade, ressalta-se, mais uma vez, a necessidade de que estabeleçam o diálogo com o jovem, para que ele tenha consciência da sua responsabilidade pela sua vida e pela vida das pessoas que o amam e convivem com ele. O jovem precisa pensar na construção de um futuro diferente do que o presente revela, com limites, com responsabilidades e sem violência. Pais e filhos precisam encontrar um ponto de equilíbrio entre a liberdade excessiva - que pode transformar-se em negligência - e na diluição das relações de poder, que podem transformar-se em relações de confiança, zelo, cuidado e responsabilização.

Violência nas relações familiares - situações de vulnerabilidade

A família é uma unidade social, um espaço de relacionamento e convivência de pessoas com vínculos biológicos, emocionais e afetivos que influencia significativamente o cotidiano e o processo formativo dos jovens, suscitando situações, protetoras ou não, referentes ao campo da saúde e da doença.1616 Cocco M, Lopes MJM. Violência entre jovens: dinâmicas sociais e situações de vulnerabilidade. Rev Gaúcha Enferm. 2010 Mar; 31(1):151-9.

Entretanto, na atualidade, é possível constatar, nos meios de comunicação e no cotidiano da sociedade, que a maioria dos casos de violência, envolvendo crianças, adolescentes e jovens, acontece no âmbito familiar, o que dificulta, muitas vezes, a identificação e a tomada de atitudes imediatas que evitem uma nova exposição ao trauma.

Em seus discursos, os jovens declaram que, em alguns momentos, a família pode configurar-se em um local de castigo, de tristeza, de sofrimento e de promoção de práticas violentas. Violência é um castigo, principalmente quando ocorre em casa, que é o primeiro contato que tu tem. Se tu vive numa família que está sempre em conflito ou tu se fecha ou tu acaba se tornando uma pessoa violenta. Nesse caso, a violência é um castigo (Jovem 10).

A violência intrafamiliar contribui para criar situações de vulnerabilidade ao provocar uma desorganização no modo da família cuidar e proteger o jovem. Situações de violência no meio familiar deixam o jovem desamparado, vulnerável no plano individual, pois a violência pode causar sentimentos de medo, de inferioridade, levando-o ao isolamento, tornando-o uma vítima ainda mais suscetível ou um ser violento.

Atos de violência quando presente no contexto familiar, pode tornar o jovem vulnerável, também, no âmbito social. Esta situação deve-se ao fato de que a violência intrafamiliar é difícil de ser notificada, pois a família é considerada pela sociedade um núcleo sagrado, que não deve ser ferido, nem sofrer algum tipo de deslealdade pelas pessoas que a compõem. Além disso, a violência intrafamiliar envolve muitas pessoas, seja na condição de agressores ou cúmplices, tornando difícil a intervenção dos serviços de proteção e impedindo que atos violentos sejam descobertos e solucionados, o que contribui para o crescimento de uma realidade que não deveria existir no meio familiar.1515 Souza MKB, Santana JSS. Atenção ao adolescente vítima de violência: participação de gestores municipais de saúde. Ciênc Saúde Coletiva [online]. 2009 [acesso 2014 Nov 27]; 14(2):547-55 Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v14n2/a23v14n2.pdf .
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Outros jovens compreendem a violência presente no contexto familiar como morte, no sentido simbólico, subjetivo. Eu relacionei a violência com a morte. A morte é ruim, a violência também. Não somente a morte física, mas também como uma forma de perder o amor, o carinho e o respeito, principalmente na família (Jovem 8).

Morte significa o fim, o encerramento do "percurso vital de um ser [...], o encerramento de qualquer percurso que pudesse ser interpretado como um processo dotado de um começo, meio e fim".17:220 A morte, na concepção desse jovem, pode ser interpretada como algo que anula a pessoa, significa perder carinho, atenção, cuidado, respeito; morte no sentido de negar ao jovem o prazer de viver e conviver em família. A violência, entendida como morte, é o caminho oposto do prazer, desarmoniza a corporeidade, impede o jovem de perceber as alegrias e belezas do mundo, deixando-o desequilibrado. Nessas condições, o jovem perde o amor, o carinho e talvez, a vontade de viver e se relacionar com as pessoas que o rodeiam, especialmente a família, transformando-o em um ser triste.

Destaca-se que os principais tipos de violência que se estabelecem no meio familiar são a física, psicológica, sexual e a negligência. Tipos de violência que provocam danos, por vezes, difíceis de serem revertidos. A violência física pode tornar uma criança significativamente mais agressiva; quando vítimas de abuso sexual e de negligência apresentam muitos problemas psicossociais. Crianças expostas à violência dos pais têm eventos depressivos, comportamento suicida e dificuldade para se relacionar com amigos e namorados.1818 Peltonen K, Ellonen N, LarsenHB, Helweg-Larsen K. Parental violence and adolescent mental health. Child Adolesc. Psychiatry. 2010 Nov; 19 (11):813-22.

A violência vivenciada pela criança e adolescente ao longo do seu processo de crescimento e desenvolvimento pode influenciar comportamentos violentos em suas relações amorosas na juventude e na idade adulta. Além disso, crianças e adolescentes, vítimas de violência familiar, podem tornar-se mais susceptíveis à violência em outros ambientes - escola, comunidade e nas relações amorosas.1919 Abranches CD, Assis SG. (In)visibilidade da violência psicológica na infância e adolescência. Cad Saúde Pública. 2011 Mai; 27(5):843-54.

Mesmo sem ter uma dimensão precisa desse fenômeno no âmbito familiar, não se pode negar que a violência, no espaço privativo da família provoca danos devastadores e, por vezes, irreversíveis na corporeidade de cada jovem, o qual reage de diferentes maneiras para se proteger dessa realidade brutal.

Considerando os inúmeros aspectos que tentam explicar e/ou entender a violência presente nas relações familiares busca-se aspectos da teoria da vulnerabilidade,5Ayres JRCM. Vulnerabilidade e violência: a resposta social como origem e solução do problema. In: Westphal M, Bydlowski CR. Violência e juventude. São Paulo (SP): Hucitec; 2010. p. 59-71. no plano individual, para ressaltar que o jovem não tem todas as condições necessárias para elaborar estratégias que o ajudem a libertar-se e/ou proteger-se dela, pois ainda possui capacidade limitada para identificá-la, porque a violência, muitas vezes, encontra-se mascarada no contexto familiar.

Além disso, os comportamentos individuais estão relacionados aos aspectos de cognição, aos valores e às experiências, os quais influenciam ou definem as decisões do jovem frente à violência sofrida. Nessa situação também se observa a vulnerabilidade no plano social a partir do momento em que a sociedade, mesmo sendo conhecedora da presença de violência pouco, ou nada faz, além de julgar.5Ayres JRCM. Vulnerabilidade e violência: a resposta social como origem e solução do problema. In: Westphal M, Bydlowski CR. Violência e juventude. São Paulo (SP): Hucitec; 2010. p. 59-71. Sendo assim, torna-se importante o uso do conceito da vulnerabilidade para compreender a violência que permeia a vida dos jovens, pois esse conceito busca entender o fenômeno para além dos determinantes biológicos, preocupa-se em entender a dimensão das situações geradoras de violências, considerando a multicausalidade e seus diversos significados.2020 Ruotti C, Massa VC, Peres MFT. Vulnerabilidade e violência: uma nova concepção de risco para estudo dos homicídios de jovens. Interface - Comunic, Saúde, Educ. 2011 Abri-Jun; 15(37):377-89.

Destaca-se, ainda, a relevância de olhar a problemática da violência de forma ampliada, analisando os diversos atores. Deste modo, é necessário que os profissionais de enfermagem e saúde conhecerem o contexto familiar para pensar em estratégias de apoio apropriadas à cada situação,21 21 Angelo M, Prado SI, Cruz AC, Ribeiro MO. Vivências de enfermeiros no cuidado de crianças vítimas de violência intrafamiliar: uma análise fenomenológica. Texto Contexto Enferm. [online]. 2013. [acesso 2014 Jan 12]. 22(3): Disponível em http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n3/v22n3a03.pdf .
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pois qualquer tipo de violência provoca danos à saúde dos jovens, com repercussões no curto e no longo prazo, com consequências difíceis de serem mensuradas. Para tanto, é imprescindível pensar em ações intersetoriais e interdisciplinares que busquem identificar aspectos culturais, sociais, econômicos e ambientais que possam suscitar ou perpetuar situações de violência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A violência está presente em todos os lugares, faz parte da construção das sociedades, é um fenômeno que acompanha o existir dos jovens, constituindo-se como parte da sua trajetória de vida. Com isso, essa temática é cada vez mais significativa, ganhando importância em diversas áreas do conhecimento, dentre essas, a saúde e a enfermagem, pela sua magnitude e consequências devastadoras que provoca na vida dos seres humanos, especialmente dos jovens.

Os resultados revelam que as compreensões dos jovens acerca da violência são influenciadas pelo seu mundo vivido, suas percepções, significações e compreensões do mundo. O mundo vivido dos jovens é atravessado, em alguns momentos, por situações de violência presente nas relações familiares e sociais.

As compreensões sobre violência, manifestadas pelos jovens, quando contextualizadas com o referencial da corporeidade e da vulnerabilidade, possibilitaram uma amplitude de significações, permitindo afirmar que eles são seres corpóreos vulneráveis à violência, especialmente, nas dimensões individual e social, expandindo dessa forma o leque de interpretação e de ações possíveis de serem pensadas para tentar combater esse fenômeno que interfere no seu modo de ser no mundo.

Outro ponto fundamental a ser destacado, é a criação de ambientes saudáveis, no âmbito familiar e social, para que o jovem encontre espaços adequados para se desenvolver. Esses ambientes precisam ser permeados de carinho, atenção, amor, proteção e cuidado, elementos que favorecem o desenvolvimento da capacidade do jovem para interpretar cada situação que se apresenta e tomar decisões apropriadas visando superar e conviver com as facticidades da vida.

Pais, profissionais de enfermagem e de saúde possuem a tarefa de ajudar os jovens a construírem seus projetos de felicidade. Para isso, é imprescindível apreender os determinantes sociais da violência e os significados dessa exposição para os jovens, a fim de planejar estratégias centradas na promoção da saúde, na proteção e na reabilitação dos jovens vítimas das diferentes tipologias de violência, desencadeadas no contexto familiar e social, visando à redução de situações de vulnerabilidade à violência.

Essa pesquisa apresenta limitações, seus resultados não podem ser generalizados, pois trata da violência vivida e percebida pelos jovens estudados a partir do seu mundo vivido. Entretanto, apresenta subsídios para se pensar na violência no mundo dos jovens, seus determinantes, suas inter-relações com o seu modo de ser no mundo, seus recursos culturais, educacionais e econômicos, bem como os agravos dela decorrentes.

Acredita-se que os resultados dessa pesquisa possam acrescentar conhecimentos nos diversos campos de atuação dos profissionais de enfermagem e saúde: no ensino, na pesquisa e nos cenários de práticas do cuidado. Considera-se que a pesquisa revelou elementos que permitem avançar no conhecimento ao desvelar a compreensão qualitativa e subjetiva do que pensam, de como percebem e quais as vivências dos jovens em relação à violência presente em seu vivido. Revelou informações essenciais para entender o jovem como corporeidade, como um ser que pode vivenciar situações de vulnerabilidade à violência nas dimensões individual, social e programática, que precisa ser e sentir-se cuidado pela família e pelos profissionais de saúde para ter condições de tomar decisões e viver uma vida mais saudável.

Salienta-se que as inquietações não se encerram aqui. Os resultados apresentados e discutidos, nesta pesquisa, permitem observar um leque de investigações que podem ser realizadas para aprofundar a compreensão da complexidade que envolve a violência nas suas diferentes dimensões do mundo vivido pela família, docentes, profissionais de saúde e jovens que vivenciam outros cenários. Contudo, os resultados reforçam a necessidade de olhar para o jovem nos diferentes espaços que circula e faz história, cuidar dele, dar-lhe voz, propor ações e políticas de saúde que o visualizem e entendam como corporeidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2014
  • Aceito
    11 Set 2014
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