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CONVIVENDO COM O TRANSTORNO MENTAL NA INFÂNCIA: SENTIMENTOS E REAÇÕES DA FAMÍLIA1 1 Artigo extraído da dissertação - Transtorno mental na infância: vivências familiares, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual de Maringá (UEM), em 2013.

Resumos

Estudo descritivo de abordagem qualitativa, realizado junto a 14 familiares de crianças com transtornos mentais, atendidas no Centro de Atenção Psicossocial Infantil de Maringá, Paraná, tendo como objetivo compreender as vivências, os sentimentos e as reações de famílias de crianças com transtorno mental. Os dados, coletados no período de janeiro a abril de 2013, por meio de entrevista aberta, foram submetidos à análise de conteúdo, modalidade temática, da qual emergiram duas categorias: "Convivendo com o transtorno mental na infância: uma batalha diária" e "O sentir e o reagir: vivenciando o transtorno mental infantil". Conclui-se que a família precisa compreender a doença para aceitá-la e, assim, aprender a conviver com ela, e cabe ao enfermeiro oferecer suporte para o enfrentamento das dificuldades.

Família; Saúde da criança; Saúde mental; Enfermagem


Descriptive study with a qualitative approach, involving 14 families of children with mental disorders assisted at the Psychosocial Child Care Center of Maringá, Paraná, Brazil. The objective was to understand the experiences, feelings and reactions of families of child with mental disorder. Data were collected from January till April 2013 through open interviews and then analyzed using thematic Content Analysis. Two categories emerged "Living with mental disorder in childhood: a daily battle" and "Feeling and reacting: experiencing the mental disorder in childhood". It is concluded that the family needs to understand the disease to accept it and thus learn how to live with it, and it is up to the nurse to provide support in order to face the difficulties.

Family; Child health; Mental health; Nursing


Estudio descriptivo de abordaje cualitativo, realizado junto a 14 familiares de niños con trastornos mentales atendidos en el Centro de Atención Psicosocial Infantil de Maringá, teniendo como objetivo comprender las vivencias, los sentimientos y reacciones de la familia de los niños con trastorno mental. Los datos, recolectados durante el período de enero a abril de 2013, por medio de entrevista abierta, fueron sometidos al análisis de contenido, modalidad temática, de la cual emergieron dos categorías: "Conviviendo con el trastorno mental en la infancia: una batalla diaria" y "El sentir y el reaccionar: viviendo el trastorno mental infantil". Se concluye que la familia necesita comprender la enfermedad para aceptarla y, así, aprender a convivir con ella, y compete al enfermero ofrecer soporte para el enfrentamiento de las dificultades.

Familia; Salud del niño; Salud mental; Enfemería


INTRODUÇÃO

A reforma psiquiátrica, visando à mudança do atendimento público em Saúde Mental, tem por objetivo garantir o acesso da população aos serviços e o respeito aos direitos e liberdade, priorizando o convívio com a família e a comunidade. Atualmente, estima-se que 3% da população seja acometida por transtornos mentais severos e persistentes e, aproximadamente, 12% necessite de algum atendimento em saúde mental, estando inclusos nesses percentuais crianças e adolescentes.11. Assis SG, Avanci JQ, Pesce RP, Ximenes LF. Situação de crianças e adolescentes brasileiros em relação à saúde mental e à violência. Cien Saude Colet. 2009 Mar- Apr; 4(2):349-61.

Com o avanço da tecnologia, as crianças que antes eram expostas ao risco biológico de morrer, vivenciam o estresse provocado pelo aumento da urbanização, violência, mudanças na estrutura familiar, o que as tornam vulneráveis ao surgimento de transtornos mentais precoces.22. Ministério da Saúde (BR). Portal da Saúde. O que é Reforma Psiquiátrica [página na Internet]. Brasília (DF); 2013 [atualizado 2013 Jan 20; acesso 2013 Nov 20]. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=33929
http://portal.saude.gov.br/portal/saude/...
A prevalência de transtornos mentais na infância tem aumentado, e o seu diagnóstico é difícil e duvidoso. Estudo realizado no Sul no Brasil, com essa população, evidencia a maior prevalência de transtornos de déficit de atenção e de comportamentos disruptivos, seguidos por transtornos de ansiedade e de aprendizagem.33. Delvan JDS, Portes JRB, Cunha MP, Menezes M, Legal EJ. Crianças que utilizam os serviços de saúde mental: caracterização da população em uma cidade do sul do Brasil. Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Hum. 2010; 20(2):228-37.

Independentemente do tipo de transtorno mental, esta classe de patologias abala de forma incontestável a estrutura familiar. Ocorrem mudanças na rotina, hábitos e costumes da família, que precisa se adaptar a essa nova situação, em grande parte das vezes, permeada por estigma e preconceito. Essas modificações podem gerar sobrecarga física e emocional para o cuidador familiar.44. Monteiro ARM, Teixeira LA, Silva RSM, Rabelo KPS, Tavares SFV, Távora RCO. Sofrimento psíquico em crianças e adolescentes - a busca pelo tratamento. Esc Anna Nery. 2012 Jul-Set; 16(3):523-29.-55. Dutra VFD. O cuidado oferecido a pessoas que vivenciaram a experiência da desinstitucionalização. Cienc Cuid Saude. 2011 Abr-Jun; 10(2):218-25.

Essas famílias vivenciam um estado de angústia e preocupações constantes e, às vezes, sentem-se culpadas pela doença de seu familiar, ao mesmo tempo em que enfrentam dificuldade moral e social ao se depararem com a necessidade de delegar o cuidado do seu ente para uma instituição de saúde, vivenciando frustrações pelo dever não cumprido e pela expectativa de vida sonhada para ele.66. Galera SAF, Zanetti ACG, Ferreira GCS, Giacon BCC, Cardoso L. Pesquisas com famílias de portadores de transtorno mental. Rev Bras Enferm. 2011 Jul-Ago; 64(4):774-8.

Para atender essa população específica foram instituídos, em 2002, os Centros de Atenção Psicossocial para Infância e Adolescência (CAPS-i), que têm por objetivo atender crianças e adolescentes com transtorno mental e dar suporte psicológico aos familiares.33. Delvan JDS, Portes JRB, Cunha MP, Menezes M, Legal EJ. Crianças que utilizam os serviços de saúde mental: caracterização da população em uma cidade do sul do Brasil. Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Hum. 2010; 20(2):228-37.

O suporte familiar e as competências de cada membro da família influenciam diretamente o modo de a criança lidar com a doença. Nesse cenário, evidencia-se a necessidade de assistir tais famílias que, impotentes diante da situação, carecem do apoio e da atenção dos profissionais de saúde e, em especial, do enfermeiro, de modo que suas atitudes e reações frente à doença visem ajudar a criança a lidar melhor com tal condição.

Apesar de os problemas vivenciados nessas famílias serem comuns, cada uma delas possui suas individualidades e peculiaridades na forma do sentir, reagir e expressar o que experimentam diante das diversas situações. E, ao ouvir e conhecer essas famílias, o enfermeiro torna-se capaz de melhor orientá-las, esclarecendo as dúvidas sobre a doença, contribuindo, assim, para a melhor convivência e aceitação da doença mental. Familiares adequadamente orientados podem ser a base de sustentação da assistência, para que a pessoa com transtorno mental permaneça a maior parte do tempo em contato com o círculo de amizade social e escolar.77. Estevam MC, Marcon SS, Antonio MM, Munari DB, Waidman MAP. Living with mental disorders: family members' perspective have on primary care. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(3):679-86.

Hoje, a atenção centrada na família é a base da assistência em saúde mental. Nessa concepção, os familiares são considerados parceiros e corresponsáveis pelo tratamento de seu ente e, para que haja sucesso nessa parceria, a família precisa igualmente ser cuidada e apoiada no enfrentamento das dificuldades que surgem na convivência diária com o transtorno mental. Portanto, conhecer cada realidade familiar e sua convivência com a criança com transtorno mental torna-se imperativo para a abordagem profissional adequada dessas famílias.

Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi compreender as vivências, os sentimentos e as reações de famílias de crianças com transtorno mental.

MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo, de abordagem qualitativa, realizado em Maringá-PR, tendo como participantes os familiares de crianças em atendimento no CAPS-i desse município.

Os critérios para a seleção dos participantes foram: residir no município de estudo, ser familiar e cuidador preferencial da criança atendida pelo CAPS-i, cujo diagnóstico ou acompanhamento venha sendo realizado há mais de um ano, considerando-se que o diagnóstico ou início de acompanhamento recente poderia interferir no alcance do objetivo do estudo. Utilizou-se a definição de infância estabelecida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de até 12 anos.88. Brasil. Estatuto da Criança e Adolescente. Brasília (DF): Edição 7; 2012.

A pesquisa de campo foi realizada em dois momentos: no primeiro, a pesquisadora participou, na condição de ouvinte e com autorização prévia do serviço, de alguns grupos terapêuticos que são realizados no CAPS-i, a fim de conhecer as famílias e estabelecer vínculos. À época, quatro grupos terapêuticos estavam em atividade no serviço, sendo dois deles destinados exclusivamente aos familiares e cuidadores de crianças com transtorno mental. Esses grupos se reúnem quinzenalmente, e cada sessão tem duração de aproximadamente uma hora. No segundo momento foram realizadas visitas domiciliares para a coleta de dados por meio de entrevista aberta. O domicílio foi eleito como local da pesquisa, por se acreditar que, nesse ambiente, a família se sentiria mais à vontade para contar sua história.

Os participantes da pesquisa foram indicados pelos funcionários do serviço, que intermediaram o primeiro contato. Em momento oportuno os sujeitos foram esclarecidos quanto aos objetivos da pesquisa e convidados a participar do estudo. Mediante os aceites, foram agendadas as visitas domiciliares para a realização das entrevistas. Participaram do estudo 11 famílias, totalizando 14 entrevistados, pois não se havia estabelecido qualquer impedimento para a participação de mais de um cuidador por família.

Os dados foram coletados no período de janeiro a abril de 2013, e as entrevistas tiveram duração de aproximadamente 40 minutos. O processo de entrevista teve como questão norteadora: "Fale-nos sobre a doença de seu familiar (nome da criança), desde o diagnóstico/inicio do acompanhamento até hoje".

As entrevistas foram gravadas e complementadas com informações do diário de campo, as quais eram registradas logo após o término das entrevistas, antes mesmo de sua transcrição. Nesse diário foram registrados, além de algumas impressões pessoais, observações do pesquisador referentes aos aspectos não captados na gravação: a linguagem não verbal, gestual, expressões faciais.

Para a análise dos dados, as informações relacionadas à caracterização da amostra foram descritas e os dados das entrevistas foram analisados por meio da técnica de análise de conteúdo, na modalidade temática. As entrevistas foram transcritas na íntegra para a análise que ocorreu em três fases: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos dados.99. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo (SP): Edições 70; 2011.

Na pré-análise foi realizada a leitura flutuante, a escolha dos relatos, a formulação de hipóteses, a escolha dos índices e a elaboração de indicadores para fundamentar a interpretação. Na fase de exploração do material foram encontrados grupamentos e associações que responderam aos objetivos do estudo, emergindo as categorias. Já, na fase de tratamento dos resultados foram realizadas as inferências e a interpretação dos resultados encontrados.99. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo (SP): Edições 70; 2011.

O desenvolvimento do estudo obedeceu às diretrizes disciplinadas pela Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Para tanto, o projeto de pesquisa foi submetido à apreciação e aprovação pela Secretaria de Saúde de Maringá e pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá (Parecer nº 162.598/2012). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias, e, para garantir-lhes o anonimato, seus relatos foram identificados por nomes de flores, em alusão à delicadeza e beleza das histórias relatadas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dos 14 familiares participantes do estudo, 13 eram mulheres, sendo dez mães e três avós. O único homem participante era pai da criança com transtorno mental. Cabe destacar que apenas três crianças já tinham diagnóstico definido (Hiperatividade, Déficit de Atenção, Transtorno Bipolar), embora todas estivessem em tratamento há mais de um ano (média de um ano e sete meses), o que evidencia a grande dificuldade em diagnosticar o transtorno mental infantil.

Os participantes tinham idade entre 25 e 74 anos (média de 39 anos), sendo seis casados, seis divorciados e dois viúvos. De modo geral, tinham baixa escolaridade, um deles não era alfabetizado e seis não completaram o ensino fundamental. Dentre os demais, um completou o ensino fundamental, quatro completaram o ensino médio e dois não completaram o ensino médio.

A renda mensal das famílias variou de R$300,00 até R$3.000,00 (média de R$1.255,00), sendo que uma das famílias não possuía renda, contando apenas com a ajuda da família paterna. Em oito famílias, apenas uma pessoa era responsável pela renda familiar; e nas demais, duas pessoas. As atividades profissionais referidas foram: do lar (quatro), diarista (três), pensionista (duas), costureira, zeladora, auxiliar administrativa, salgadeira, autônomo. Destaca-se que seis entrevistados relataram terem deixado o emprego para se dedicarem exclusivamente ao cuidado da criança.

Da análise dos dados configuraram-se duas categorias: "Convivendo com o transtorno mental na infância: uma batalha diária", e "O sentir e o reagir: vivenciando o transtorno mental infantil".

Convivendo com o transtorno mental na infância: uma batalha diária

A família é considerada, pelos profissionais de saúde, uma aliada nos cuidados.1010. Martins RV, Rossetto M, Sartori QDN, Pinto EC, Van Der Sand ICP, Hildebrandt LM. Ações de saúde mental na região norte do Rio Grande do Sul, Brasil. Rev Gaúcha Enferm. 2012 Mar; 33(1):11-8.Porém, para que ela possa atuar de forma adequada, e se constituir em uma base para a implementação do cuidado em saúde mental, é importante, em primeiro lugar, identificar as dificuldades advindas da convivência com a criança com transtorno mental.

Na presença de uma doença crônica na infância, a família precisa reorganizar seu cotidiano, cabendo à equipe de saúde reconhecer as dificuldades enfrentadas pela família e dispor de recursos que a auxiliem no processo de enfrentamento e adaptação a tal situação.1111. Silva MDAS, Collete N, Silva KDL, Moura FMD. Cotidiano da família no enfrentamento da condição crônica na infância. Acta Paul Enferm. 2010; 23(3):359-65.

Dentre as dificuldades usualmente enfrentadas nesse cotidiano, destaca-se o relacionamento conflituoso entre a criança com transtorno mental e seus pais, irmãos e colegas da escola, permeado, em grande parte, por agressividade.

Ele convive bem comigo, mas ele dá tapa na cara do pai dele, ele fala assim: 'eu vou te matar!' Sabe?...Essas coisas assim... e eu falo: 'Filho, vai brincar um pouco com as crianças'. E se vem outra criança, ele toca [manda embora], ele não quer que as crianças venham brincar com ele. E geralmente, criança quer brincar, e ele não, ou ele vai na televisão, ou ele vai no computador, ele gosta de ficar sozinho (Azaléa, mãe).

Percebe-se, na fala de Azaléa, a preocupação em relação às atitudes agressivas do filho junto ao pai. No momento do relato, o semblante da colaboradora demonstrava tristeza e o tom de sua voz evidenciava o medo frente à situação, ou seja, o universo desconhecido que é o transtorno mental. Ao mesmo tempo, a mãe demonstrava genuíno interesse e expectativa em relação à socialização do filho, estimulando-o a se relacionar com outras crianças, e frustrando-se a cada recusa.

O comportamento agressivo é a principal causa de atendimento psiquiátrico emergencial na infância e na adolescência, porém, nem sempre está relacionado à presença de transtorno mental, podendo ser reativo a situações de crise familiar, social ou pessoal.1212. Scivoletto S, Borati MA, Turkiewicz G. Emergências psiquiátricas na infância e adolescência. Rev Bras Psiquiatr. 2010; 32(supl II):112-20.

A agressividade da criança costuma assustar os cuidadores, pois, normalmente, eles não possuem o adequado preparo para lidar com esse tipo de comportamento, principalmente no que tange às suas repercussões no âmbito da dinâmica familiar. A doença é causa de conflitos e limita o convívio social, e a família é o núcleo possível de troca de conhecimento, no qual se identificam as reais necessidades de cuidado.77. Estevam MC, Marcon SS, Antonio MM, Munari DB, Waidman MAP. Living with mental disorders: family members' perspective have on primary care. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(3):679-86.O enfermeiro deve ser agente transformador desses contextos, empoderando essas famílias de conhecimento a respeito do transtorno mental, e, assim, contribuindo para aliviar o sofrimento advindo das dificuldades cotidianas.

Não pode deixar ele perto do meu filho caçula, e na hora que ele chega da escola, o pequeno já está em casa [...]. Ele chega perto do pequeno e o pequeno começa a gritar de um jeito, de um jeito que dá medo [...] e o pequeno vai com a boca aberta para morder ele! Ele já pegou uma meia e tampou o nariz do menino, eu peguei ele tampando! Não pode deixar ele sozinho, ele não se dá bem com os irmãos, vixeee! (Rosa, mãe).

No depoimento de Rosa, fica evidente o medo diante das atitudes agressivas do filho, o que gera um clima de tensão constante para a cuidadora, além da necessidade de se manter sempre vigilante a qualquer atitude da criança, com receio que esta possa vir a ferir os irmãos.

A violência entre irmãos é a forma mais comum de violência familiar e vários são os fatores de ordem individual, familiar e contextual que contribuem para sua ocorrência e manutenção. A elevada frequência com que ocorrem esses comportamentos evidencia que essa realidade carece de mais atenção, pois o relacionamento entre irmãos é um dos mais duradouros e de extrema importância ao longo da vida do indivíduo.1313. Relva IC, Fernandes OM, Alarcão M. Violência entre irmãos: uma realidade desconhecida. Rev Interam Psicol. 2012 Set-Dez; 46(3):375-84.

O comportamento agressivo da criança dificulta-lhe o relacionamento interpessoal, fazendo com que passe a não mais ser aceita em seu círculo social, como demonstra a fala de Acácia.

Ele brigava muito com a irmã, com os coleguinhas, com os priminhos. Com nós, os mais velhos, ele respondia tudo, mas não chegava a agredir não. Na escola, ele batia nas crianças, muito! Agora ele ta tendo amigo, porque ano passado ele não teve, porque o pessoal tinha medo de se aproximar dele (Acácia, mãe).

A agressividade da criança é causa de grande preocupação familiar e, não raramente, constitui o principal motivo para a busca de ajuda nos serviços de saúde. O cuidador passa a lidar diariamente com comportamentos imprevisíveis da criança, fato este que abate suas expectativas sociais, gera incertezas e dificuldades no seio familiar.44. Monteiro ARM, Teixeira LA, Silva RSM, Rabelo KPS, Tavares SFV, Távora RCO. Sofrimento psíquico em crianças e adolescentes - a busca pelo tratamento. Esc Anna Nery. 2012 Jul-Set; 16(3):523-29.Em muitos casos, a criança se mostra um fardo para o cuidador, levando-o a buscar ajuda nos serviços de saúde. Nesse momento, em que o suporte profissional se torna necessário tanto para a criança quanto para a família, a enfermagem pode atuar, realizando a intervenção, seja no âmbito da Estratégia Saúde da Família ou do CAPS-i.44. Monteiro ARM, Teixeira LA, Silva RSM, Rabelo KPS, Tavares SFV, Távora RCO. Sofrimento psíquico em crianças e adolescentes - a busca pelo tratamento. Esc Anna Nery. 2012 Jul-Set; 16(3):523-29.

Se ele continuar assim, ele vai ficar muito rebelde! Então, como se diz, ou ele vai matar ou ele vai morrer cedo, você entendeu? Porque pessoa assim 'valente' morre cedo. Então ele vai ser daquelas pessoas que vai arrumar encrenca com qualquer um 'facinho' (Cravo, pai)

No depoimento de Cravo, percebe-se a preocupação do pai com o futuro do filho, o medo de que o filho venha a desenvolver um desvio de conduta capaz de levá-lo a atos criminosos, trilhando um "caminho sem volta".

A orientação de como lidar com comportamentos agressivos da criança por parte dos profissionais de saúde é essencial, pois o conhecimento é um fator facilitador da compreensão e da aceitação da doença e da adesão ao tratamento. Foi observado que o nível de escolaridade do cuidador não interferiu no cuidado prestado à criança (higiene, alimentação, cuidados físicos), mas interferiu na compreensão da doença, na forma de reivindicar os cuidados e exigir qualidade dos serviços de saúde, como foi constatado em outro estudo.77. Estevam MC, Marcon SS, Antonio MM, Munari DB, Waidman MAP. Living with mental disorders: family members' perspective have on primary care. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(3):679-86. Esses e outros aspectos reforçam a necessidade de a família reorganizar sua rotina para cuidar da criança, face à demanda de cuidados especializados, incluindo uma rotina de consultas médicas e de acompanhamento multiprofissional. Tal fato torna necessário que o cuidador disponibilize seu tempo para acompanhar essa jornada, o que pode significar, em muitos casos, uma dedicação exclusiva aos cuidados com a criança.

É tarefa do familiar atender as necessidades da criança, promover seu crescimento e desenvolvimento adequado. No entanto, para efetivá-la, é necessário que ele encontre estratégias para enfrentar as situações adversas e que lhe propiciem trabalhar seus anseios a fim de se conhecer melhor, e, assim, estar apto a cuidar do outro.1414. Borba LO, Paes MR, Guimarães AN, Labronici LM, Maftum MA. The family and the mental disturbance carrier: dynamics and their family relationship. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(2):442-9.

O profissional de enfermagem deve ser o agente facilitador da adaptação do familiar às situações adversas, tendo sempre presente que o cuidado em saúde mental decorre de uma relação intrínseca entre os serviços e profissionais de saúde, o cliente e sua família, considerando as particularidades de cada contexto social, econômico e cultural.1515. Cardoso L, Galera ASF. Mental health care today. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(3):687-91.

Na maioria das famílias entrevistadas, evidenciou-se que o cuidador fez adaptações no horário de trabalho ou deixou de trabalhar para se dedicar exclusivamente à criança.

A mudança foi não ter tempo, porque de terça-feira a gente leva ele no CAPS. Na quinta, a cada 15 dias, tem grupo de pais lá no CAPS, e na sexta, tem o pocotó [equoterapia]. Então, todo dia você tem uma coisa e ainda tem o sócio educativo. Eu acompanho todas essas atividades. Eu trabalhava para fora e tive que parar. Tive que mudar toda a minha rotina, porque eu trabalhava. Sempre trabalhei fora (Girassol, mãe).

Só meu esposo trabalha. No momento é só! Por motivos devidos ao tratamento do meu filho, porque eu tenho meus horários muito contados. Porque ele, além do CAPS-i que ele faz, tem que estar levando ele no neurologista, faz tratamentos de especialidade devido à alteração neurológica [...] (Margarida, mãe).

Os depoimentos revelam as transformações no cotidiano familiar em função da doença do filho, incluindo a necessidade de readequar os horários e deixar o emprego. Além de dificuldades financeiras, essas alterações podem ocasionar uma sublimação dos interesses e necessidades pessoais das cuidadoras, as quais, muitas vezes, deixam de olhar para si, de buscar sua realização pessoal e profissional para viver exclusivamente em função da criança, o que pode ser prejudicial à sua saúde física e mental.

As cuidadoras eram, em sua maioria, mães, fato que corrobora a literatura da área, ao afirmar que o papel de cuidadora é inerente à mãe, a qual, em situação de doença, faz adaptação em seu horário de trabalho ou abdica dele para atender as necessidades da criança, diminuindo a renda da família, o que pode aumentar os níveis de estresse nos relacionamentos familiares.1111. Silva MDAS, Collete N, Silva KDL, Moura FMD. Cotidiano da família no enfrentamento da condição crônica na infância. Acta Paul Enferm. 2010; 23(3):359-65.,1616. Marini A, Martins MRI, Vigãno A, Marques Filho AB, Pontes HER. Sobrecarga de cuidadores na psiquiatria infantil. Rev Neurocienc. 2010; 18(3):300-6.,-1717. Bessa JB, Waidman, MAP. Family of people with a mental disorder and needs in psychiatric care. Texto Contexto Enferm [online]. 2013 Jan-Mar; [acesso 2013 Nov 10]; 2(1):61-70. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n1/pt_08.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n1/pt_08...

Ah, eu posso dizer que na minha vida mudou tudo, porque eu sempre sonhei em ser uma profissional, em ter meu dinheirinho. Aí, eu me vi numa situação que eu tinha que abraçar uma causa que eu nem sequer sabia o que era. Então, assim, para mim, foi um obstáculo muito difícil no começo e, de início, eu que não queria aceitar também, foi difícil pra eu aceitar, entender tudo isso, aceitar e saber o que ele tem, e que faz parte da minha vida, e que eu deveria abraçar isso e ir continuando do jeito que dava. Eu tentei trabalhar, várias vezes, mas como eu vi que não tinha condição de ninguém ficar com ele, por ele ser muito agitado, pelo fato de ninguém entender o probleminha dele e não ter muita paciência, então, eu infelizmente não pude trabalhar [nota de diário de campo: fala emocionada] (Margarida, mãe).

Margarida revela, em seu depoimento, a dificuldade em aceitar o transtorno mental e as mudanças geradas em sua vida em função dos impactos dessa condição. A tristeza era perceptível em seu olhar e no tom de voz ao longo do relato, especialmente ao mencionar o sonho de ser uma mulher financeiramente independente, de ter uma profissão. Ao mesmo tempo, justificava-se, dizendo ter encontrado forças em seu amor incondicional de mãe, de modo a superar os obstáculos e a seguir em sua caminhada.

Nesse sentido, estudos sobre a temática reiteram que o amor faz com que o cuidador encontre forças para enfrentar o sofrimento advindo da descoberta da doença, o preconceito e as dificuldades.44. Monteiro ARM, Teixeira LA, Silva RSM, Rabelo KPS, Tavares SFV, Távora RCO. Sofrimento psíquico em crianças e adolescentes - a busca pelo tratamento. Esc Anna Nery. 2012 Jul-Set; 16(3):523-29.

Outro aspecto abordado nos relatos diz respeito ao preconceito no contexto do transtorno mental. Muitas pessoas, por falta de conhecimento, apresentam atitudes preconceituosas ao saber da existência do transtorno mental.

Eu tenho amigos, mas eu já não vou na casa dos outros por causa do problema dele; aí, no caso, eles se afastam um pouco. Os amigos do meu marido vinham aqui, aí eles se afastaram por causa do meu filho, porque ele fica nervoso, se vai na casa dos outros ele apronta [...]. Então, eu prefiro ficar mais em casa, eu deixei de receber visitas também, porque fica difícil. De final de semana, eu saía bastante, agora eu não vou mais, eu só vou lá na casa da minha sogra e da minha tia, nos lugares que os outros já sabem o que ele tem e compreendem (Tulipa, mãe).

O relato descortina um aspecto muito comum nos contextos de famílias de crianças com transtorno mental, representado pelo isolamento social de seus membros, tanto para ocultarem uma situação causadora de constrangimentos quanto por medida de proteção à criança contra a falta de compreensão e o preconceito.

O preconceito e a discriminação se destacam, principalmente a partir do momento em que aspectos particulares da convivência com a pessoa com transtorno mental se tornam públicos, pois a sociedade tem dificuldades em aceitar comportamentos que se diferenciem do padrão de normalidade instituído por ela.77. Estevam MC, Marcon SS, Antonio MM, Munari DB, Waidman MAP. Living with mental disorders: family members' perspective have on primary care. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(3):679-86.,1818. Vicente JB, Mariano PP, Buriola A, Paino M, Waidman MAP, Marcon SS. Aceitação da pessoa com transtorno mental na perspectiva de familiares. Rev Gaúcha Enferm. 2013; 32(2):54-61.

Ao deparar-se com o universo desconhecido da doença mental, a família necessitará de cuidados integrais por parte da equipe de saúde, visando capacitá-la a compreender a doença, aceitá-la, aprender a lidar com o comportamento da criança, de modo a conservar o contato social e as atividades de lazer essenciais à manutenção da qualidade de vida de seus membros. Por sua vez, o enfermeiro tem papel crucial nos serviços substitutivos de atenção em saúde mental, representados, neste estudo, pelo CAPS-i, tendo a responsabilidade de acolher, cuidar e compreender o sofrimento de acordo com a singularidade de cada indivíduo e família.1919. Kondo EH, Vilella JC, Borba LO, Paes MR, Maftum MA. A nursing team's approach to users of a mental health emergency room. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(2):501-7.

O sentir e o reagir: vivenciando o transtorno mental infantil

A descoberta do transtorno mental impõe mudanças na estrutura familiar e na rotina do cuidador principal, fazendo aflorar inúmeros sentimentos: preocupação com o comportamento da criança, medo, insegurança e tristeza. Esses sentimentos, muitas vezes, acabam passando despercebidos aos olhos do profissional de saúde, que precisa adentrar no seio familiar para conhecê-los e, assim, poder amparar essas famílias, oferecendo a atenção e o suporte necessários para o enfrentamento da doença.

Diante de um diagnóstico como esse, a família sente-se fragilizada e culpada, podendo negar a existência do transtorno, frustrando-se quanto às expectativas que cultivou em relação a este ente querido. São comuns os relatos de famílias afirmando que se o problema fosse físico, elas conseguiriam lidar melhor com a situação.1414. Borba LO, Paes MR, Guimarães AN, Labronici LM, Maftum MA. The family and the mental disturbance carrier: dynamics and their family relationship. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(2):442-9.

A necessidade de ter com quem compartilhar os acontecimentos cotidianos, como meio de amenizar a dor e dividir os cuidados diários, evidencia-se nos relatos das participantes, em que destacam a sobrecarga emocional das cuidadoras.

Quando a gente está estressado, a gente conversa bastante, desabafa, alivia aquele nervoso, aquela coisa que está por dentro. Tem dia que a gente fica a ponto de explodir também, tem horas que eu 'desacorçôo'! Esses dias eu falei para a menina [enfermeira] que tem horas que eu penso que eu não vou aguentar, vou 'desacorçoar' de lidar com ele (Iris, avó).

Ai, meu Deus do céu! Tem hora que dá vontade de ir embora daqui. Ontem foi um dia, deu vontade de sumir daqui! O lugar aqui é bom, mas dependendo, a situação da vida da gente [...]. Mas é bom, só que do jeito que eu estou hoje! Se tivesse um marido, seria diferente, Que trabalhasse, sustentasse a casa, aí eu me dedicaria o tempo todo a elas, mas eu não posso (Lírio, mãe).

A falta de apoio de outras pessoas no cuidado à criança assevera a sobrecarga do cuidador preferencial, e o desespero e o esgotamento físico e emocional tornam-se superiores à esperança.1111. Silva MDAS, Collete N, Silva KDL, Moura FMD. Cotidiano da família no enfrentamento da condição crônica na infância. Acta Paul Enferm. 2010; 23(3):359-65.Muitas vezes, o cuidador enfrenta uma jornada solitária, marcada pela necessidade de falar, de compartilhar sua experiência e de ter alguém que ouça suas angústias e medos.1414. Borba LO, Paes MR, Guimarães AN, Labronici LM, Maftum MA. The family and the mental disturbance carrier: dynamics and their family relationship. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(2):442-9. O apoio do profissional de enfermagem é essencial nesse contexto, valorizando a escuta sensível e promovendo ações de reabilitação psicossocial.

Outro aspecto evidenciado nos relatos das participantes foi a busca de explicações para a instalação do transtorno mental em suas vidas. Tais explicações nem sempre são racionais, guardando relação com a falta de conhecimentos científicos e com uma concepção mística ou fantasiosa acerca do fenômeno.

Às vezes até eu brigava, porque eu olhava para ele e não queria ver uma criança com esse tipo de transtorno [...]. Entrei em depressão por não entender, eu cobrava sempre de mim, assim: 'Por que, meu Deus do céu, eu tive logo meu primeiro filho com esse problema? Por que é que eu tenho que passar por tudo isso, por que eu tenho que enfrentar tudo isso?O que eu fiz para merecer isso?' (Margarida, mãe).

Eu criei ela, então sou mãe. Sabe, eu achava que era culpa minha ela ter isso, mas o que eu tinha feito de errado? Era algum castigo de outra vida? [...] eu estava vendo meu barco afundar! Eu não sabia para onde correr. Eu pensei, daqui a pouco eu saio desembestada aqui, sabe? Eu já tava sentindo o pé fora do chão, como diz o ditado (Orquídea, avó).

Muitas vezes, por falta de informações precisas e de um conhecimento maior sobre o transtorno mental, a mãe busca explicações em suas ações, culpando-se pela doença da criança, atribuindo o fato a algum tipo de castigo divino, tornando a aceitação da doença mais difícil. Além dos relatos, as manifestações de cansaço perceptíveis na postura e no tom de voz das entrevistadas contribuíam para a expressão de sentimentos de desamparo, desânimo e tristeza profunda, conduzindo as entrevistadas a revelarem a vontade de desistir.

A família busca, assim, entender onde errou, sentindo culpa pela doença de seu ente, ao mesmo tempo em que enfrenta o descompasso temporal e o sentimento de perda pela dificuldade de comunicação e interação.1414. Borba LO, Paes MR, Guimarães AN, Labronici LM, Maftum MA. The family and the mental disturbance carrier: dynamics and their family relationship. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(2):442-9. O desconhecimento sobre o significado dessa doença e a falta de clareza sobre o que ocorre com as pessoas acometidas por ela fazem com que a família se sinta perdida em relação a que atitudes deve adotar com seu ente.77. Estevam MC, Marcon SS, Antonio MM, Munari DB, Waidman MAP. Living with mental disorders: family members' perspective have on primary care. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(3):679-86.,1717. Bessa JB, Waidman, MAP. Family of people with a mental disorder and needs in psychiatric care. Texto Contexto Enferm [online]. 2013 Jan-Mar; [acesso 2013 Nov 10]; 2(1):61-70. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n1/pt_08.pdf
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A culpa se revela uma das marcas mais visíveis na vida de famílias acometidas pelo transtorno mental, fazendo com que procurem erros que possam ter cometido no passado, na tentativa de explicar o aparecimento do transtorno. Buscam, assim, uma explicação concreta para uma realidade que julgam inaceitável, procurando um culpado de um fato para o qual a culpa não se aplica.1818. Vicente JB, Mariano PP, Buriola A, Paino M, Waidman MAP, Marcon SS. Aceitação da pessoa com transtorno mental na perspectiva de familiares. Rev Gaúcha Enferm. 2013; 32(2):54-61. As cuidadoras buscam, então, artifícios ou estratégias que as ajudem no enfrentamento da doença da criança. Uma dessas estratégias é realizar atividades que as tirem da rotina do cuidado.

Olha, para falar bem a verdade, eu me sinto muito mal, eu não gosto de estar passando por isso. Então eu procurei estar fazendo alguma coisa para melhor, investir mais em mim, estar focando em alguma coisa para não pirar. Porque se a gente se abalar, se a gente abaixar a cabeça [...] às vezes a gente quer se isolar, quer ficar sozinho, sabe? A gente quer sumir, abrir um buraco e entrar dentro! Mas não é bem assim, a gente tem que seguir em frente... é complicado, mas tem que erguer a cabeça, todo dia levantar e falar: 'hoje eu vou erguer a cabeça, vencer meu dia' (Girassol, mãe).

A doença mental compromete a estrutura emocional da família e os cuidadores buscam estratégias de enfrentamento. Girassol relatou estar fazendo um curso de costura, assim poderia trabalhar no domicílio, conciliando as atividades laborais e o cuidado com o filho.

Muitas vezes, o retorno ao mundo do trabalho, por meio do desenvolvimento de uma atividade remunerada, resgata uma condição anterior ao surgimento da doença, fazendo com que esse familiar cuidador passe a se sentir útil. Esse resgate da autoestima pode ter efeito revigorante, fortalecendo esse familiar para seguir em sua jornada de acompanhamento da terapêutica.

Ainda hoje, o transtorno mental é permeado de estigma e preconceito, refletindo uma postura de rejeição de tudo e de todos aqueles que fogem do padrão de normalidade instituído.

Assim... as pessoas, elas ficavam meio assustadas, assim, de ir a fundo, procurar entender isso, é melhor que não entenda. E é a mesma situação, meu marido é uma pessoa desentendida. Nunca enfrentou isso, então, no começo, ele se negou a aceitar que nosso filho tinha problema! Na verdade, enfrentei tudo sozinha, minha família inteira, ninguém entendia, ninguém sabia o 'porque' de onde que isso começa. O 'porque' que isso dá! Então, assim, fui buscando saídas de outra forma, pessoas que tenham conhecimento (Margarida, mãe).

Observa-se, nesse depoimento, a não aceitação da presença do transtorno mental intrafamiliar, motivada, em grande parte, pelo desconhecimento acerca da doença. Em alguns casos, a família teme ser julgada pelas atitudes da criança, pois, muitas vezes, a sociedade atribui o comportamento agressivo ou fora do padrão de normalidade da criança a falhas educacionais cometidas pela família, ou como o espelho das atitudes dos pais.

Eu tenho apoio, mas antes não tinha! Era só paulada! Às vezes, as pessoas falavam que, alguém na família fazia a mesma coisa, as coisas que as crianças faziam, eles sempre falavam que então, alguém estava fazendo para eles. E sempre tinha um referencial, de que a família deve ser assim. Então, não conhecia e já julgava. Para a gente era bem difícil (Girassol, mãe).

Desse modo, a família fica sujeita a atitudes preconceituosas e de discriminação que a marcam socialmente.77. Estevam MC, Marcon SS, Antonio MM, Munari DB, Waidman MAP. Living with mental disorders: family members' perspective have on primary care. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(3):679-86.Tais atitudes por parte da comunidade também provocam receio e indignação dos pais que, via de regra, afastam a criança do convívio social na tentativa de evitar a proximidade com outras crianças, por medo da agressividade.

O medo é um grande obstáculo e limita o relacionamento interpessoal e está aliado a sentimentos de vergonha e constrangimento dos familiares frente aos comportamentos inadequados do filho, o que dificulta a convivência e a interação social.1818. Vicente JB, Mariano PP, Buriola A, Paino M, Waidman MAP, Marcon SS. Aceitação da pessoa com transtorno mental na perspectiva de familiares. Rev Gaúcha Enferm. 2013; 32(2):54-61.

Eu penso muito em ele estar na sala de aula sem estar sendo criticado, sem estar sendo taxado [...] Porque ele chega no portão, os pais já ficam: 'Ai, já vai bater no meu filho!' Fica ligeiro, sabe? Agora, entrar na sala de aula, ficar sentadinho e fazer as coisas dele, é meio difícil. Mas eu tenho esperança que ele vai conseguir (Girassol, mãe).

A família que tem em seu seio uma criança com transtorno mental vivencia um turbilhão de sentimentos, que incluem desde a negação inicial, passando pelo receio em relação ao convívio social até as expectativas e dúvidas em relação ao futuro. Nesse sentido, cabe aos enfermeiros e demais profissionais da saúde reconhecerem, nessas famílias e em suas singularidades, as fontes de informação essenciais ao planejamento do cuidado. A família deve estar na base e na destinação final desse processo de cuidar, exercendo o protagonismo na construção da qualidade de vida da criança com transtorno mental e de todos os familiares.

Estudo realizado com enfermeiros de um centro de atenção psicossocial revelou haver conhecimento limitado a respeito da Reforma Psiquiátrica, e a falta desse conhecimento pode interferir na qualidade da assistência por eles prestada. Portanto, é de suma importância que a enfermagem adquira competência e habilidades para atender as necessidades dessa população, apoiada em seu próprio saber.2020. Dias CB, Silva ALA. The profile and professional practice of nurses in a psychosocial care services. Rev Esc Enferm USP. 2010; 44(2):469-75. Desta forma, faz-se necessário que o enfermeiro conheça o movimento da Reforma Psiquiátrica para que respalde sua prática nos princípios propostos por ele, apropriando-se do conhecimento necessário para enxergar e entender a singularidade de cada indivíduo e de cada família, centrando seu cuidado no núcleo familiar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As categorias que emergiram da análise dos dados mostraram os aspectos do convívio diário com a criança, os sentimentos vivenciados pelos familiares e a reação da família frente à criança com transtorno mental. Também evidenciaram um cuidado centralizado na figura materna, seu protagonismo no acompanhamento e tomada de decisões em relação à saúde e a terapêutica da criança com transtorno mental.

A descoberta do transtorno mental na infância modificou a rotina das famílias dessas crianças, acarretando a necessidade de adaptações à nova situação. Na maioria dos casos, o cuidador preferencial obrigou-se a deixar o emprego para se dedicar exclusivamente ao cuidado da criança e, em alguns casos, também se privou de atividades de lazer e socialização, essenciais à manutenção de sua saúde física e mental.

Os relatos revelaram, ainda, as dificuldades de convivência que pontuam a realidade dessas crianças e suas famílias e os sentimentos de despreparo dos cuidadores para lidar com os comportamentos agressivos da criança. Os participantes dizem que o comportamento agressivo da criança é a principal causa do preconceito intra e extrafamiliar que sofrem e, por isso, suas tentativas de isolamento do convívio social.

A doença mental, ainda hoje, é motivo de preconceito e discriminação, o que dificulta seu entendimento e sua aceitação pela sociedade, gerando sofrimento para a criança e para a família. Aos profissionais de saúde, e em especial ao enfermeiro, cabe o papel de conhecer e adentrar nessa realidade, desenvolvendo a escuta sensível, orientando, apoiando e sanando as dúvidas dessas famílias, a fim de promover seu empoderamento, pois, munida de informações e conhecimento acerca da doença mental, cada família poderá construir uma trajetória mais equilibrada em busca de sua autonomia.

O papel da enfermagem, como facilitadora desse processo, assume importância fundamental ao aliviar medos, reduzir angústias e estimular o sentimento de segurança familiar. Destarte, a participação efetiva do enfermeiro no trabalho com famílias de pessoas com transtornos mentais, sejam elas crianças ou adultos, ainda não é uma realidade, persistindo o discurso da falta de preparo, respaldado no fato de, ao longo de décadas, o ensino da saúde mental nas escolas de enfermagem ter se vinculado à ideia da internação psiquiátrica. Cabe, assim, aos enfermeiros, buscar mecanismos para modificar esse paradigma, atualizando seus conceitos e práticas, de modo a qualificar a atenção a essa clientela, norteada pelos ideais da reinserção social, da liberdade e do cuidado centrado na família.

Por fim, a despeito de algumas limitações decorrentes, por exemplo, do fato de as famílias terem sido indicadas pelos profissionais de saúde, constatou-se que todas elas convivem há mais de um ano com o transtorno mental na infância, tempo suficiente para qualificar suas vivências. Os resultados encontrados, portanto, além de subsidiarem a prática assistencial da enfermagem centrada na família, poderão estimular novas reflexões sobre a temática, ainda pouco explorada, e suscitar o desenvolvimento de mais estudos que abordem não apenas a vivência da família de crianças com transtorno mental, mas, também, as redes de apoio e estratégias utilizadas no enfrentamento dessa condição.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2014
  • Aceito
    10 Out 2015
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