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Ideologia e saúde mental: análise do discurso do trabalhador no campo psicossocial1 1 Recorte dos resultados da pesquisa intitulada - Trabalhadores de saúde mental: análise discursiva crítica da prática no contexto da reforma psiquiátrica, financiada com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Edital FAPERGS ARD 003/2009).

Resumos

Este estudo reside na análise do discurso dos trabalhadores de um Centro de Atenção Psicossocial sobre os modos de operação da ideologia que manifestem a dimensão das práticas sociais constituídas no serviço. Pesquisa de natureza qualitativa, cujo corpus foi originado da transcrição de entrevistas semiestruturadas, aplicadas a 17 dos 25 trabalhadores de um serviço substitutivo de uma cidade da Região Sul do Brasil. Utilizamos o referencial teórico-metodológico da análise dos modos de operação da ideologia de John Thompson. A análise de discurso sobre a prática do trabalhador evidenciou uma pluralidade de manifestações ideológicas, que se reservam tanto à mudança das práticas, com características inovadoras e criativas, como à manutenção de modelos obsoletos, que dificultam ou até mesmo impedem essas mudanças. Concluímos que essas questões devem ser trabalhadas continuamente no dia a dia dos serviços, sendo um importante desafio para a consolidação da reforma psiquiátrica no Brasil.

Saúde mental; Enfermagem psiquiátrica; Reforma dos serviços de saúde


This study proposes to analyze the discourse of workers in a Psychosocial Care Center regarding the operation of the ideologies which express the dimension of social practices incorporated at this service. This was a qualitative research, and the corpus was originated by transcription of semi-structured interviews, applied to 17 out of the 25 workers of a substitute service in a city in southern Brazil. The theoretical-methodological analysis of the operation of ideologies by John Thompson was used. The discourse analysis of the workers' practice shows a plurality of ideological manifestations, so that they reserve the changing practices with innovative and creative features such as the maintenance of obsolete models, hindering or even preventing these changes. In conclusion, these issues should be worked continuously in everyday services, being a major challenge to the consolidation of the psychiatric reform in Brazil.

Mental health; Psychiatric nursing; Health care reform


Este estudio pretende analizar el discurso de trabajadores de un Centro de Atención Psicosocial sobre los modos de operación de la ideología que manifiestan la dimensión de las prácticas sociales en ese servicio. Investigación cualitativa, en la que el corpus fue originado de la transcripción de entrevistas semiestructuradas, aplicadas a 17 de los 25 trabajadores de un servicio sustitutivo de una ciudad de la Región Sur de Brasil. Utilizamos el referencial teórico-metodológico de análisis de los modos de operación de la ideología de John Thompson. Identificamos una pluralidad de manifestaciones ideológicas, preocupadas tanto con el cambio de las prácticas, de características innovadoras y creativas, como con la manutención de modelos obsoletos, que dificultan o perjudican los cambios. Concluimos que son cuestiones que deben de ser trabajadas continuamente en los servicios, siendo un importante desafío para la consolidación de la reforma psiquiátrica en Brasil.

Salud mental; Enfermería psiquiátrica; Reforma de la atención de salud


INTRODUÇÃO

A reforma psiquiátrica tem possibilitado constituir novos discursos no campo da saúde mental, ressignificando velhas posturas de saber, arraigadas em modelos psiquiátricos tradicionais. Hoje, discute-se a permanência dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPSs) como serviços substitutivos ao manicômio, além do fortalecimento das ações em rede, com conexão de saberes que possam ampliar o conhecimento sobre a loucura e sobre a vida do louco em sociedade. Fala-se de loucura como uma consequência limitante do indivíduo, assim como uma experiência de vida que pode tornar esse mesmo ser humano reconhecido pela sua irreverência. Fala-se também em tratamento e cuidado, sendo, ambos, conceitos e práticas interdependentes e complementares.

A reforma psiquiátrica é, sim, movimento, mas também processo; um longo caminho pelo qual transitamos e nos questionamos. As transformações que a acompanharam puderam ser sentidas no contexto da saúde pública porque refletem as mudanças no pensar e no sentir da sociedade como um todo. Em particular, essas mudanças foram construídas com os profissionais de saúde mental, que também foram tensionados a buscar os direitos humanos como meta e a libertação do louco e da loucura como princípio, meio e fim, já que, durante séculos, foram deixados dentro de muros isolantes e assépticos aos olhos do mundo. Nesse sentido, a reforma exige que essa diferença seja vista como parte de nós, e, para isso, devemos buscar todas as estratégias possíveis para promover saúde e cidadania em todo e qualquer espaço social.11. Branco Neto JRC, Lima VBO. Reforma psiquiátrica e políticas públicas de saúde mental no Brasil: resgate da cidadania das pessoas portadoras de transtornos mentais. Direito & Política. 2011 Jul-Dez; 1(1):121-31.

No contexto brasileiro, a política de saúde mental, ancorada nos pressupostos da reforma psiquiátrica, tem investido fortemente na constituição de serviços substitutivos ao modelo de atendimento tradicional. A partir de dispositivos legais, como a Lei n. 10.216/2001,22. Brasil. Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 09 Abr 2001. Seção 1. que redireciona o atendimento à saúde mental no país, e a Portaria GM/MS n. 336/2002,33. Brasil, Ministério da Saúde. Portaria n. 336, de 19 de fevereiro de 2002: normas e diretrizes para a organização dos serviços que prestam assistência em saúde mental. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 2002 Fev. que institui os CAPSs, reconhece-se a necessidade de ampliar a rede de serviços que possa substituir as amarras do tratamento psiquiátrico tradicional, centrado no manicômio.

Atualmente, já existem mais de 1600 CAPSs espalhados pelo território brasileiro,44. Ministério da Saúde (BR). Informativo eletrônico de dados sobre a Política Nacional de Saúde Mental. Brasília (DF): MS; 2010. além das diversas iniciativas para fortalecer a rede de atenção psicossocial. Destacam-se aí Consultórios de Rua, Ambulatórios Especializados, Lares Abrigados, Casas de Passagem, Serviços hospitalares de referência para álcool e drogas, entre outros. Analisamos que essas iniciativas vêm contribuindo para repensar os cenários onde a prática se materializa, assim como os discursos provenientes das pessoas que fazem o cotidiano desses serviços.

No entanto, consideramos que a ruptura com serviços tradicionais não necessariamente evidencia a existência de novas posturas e atitudes frente ao indivíduo em sofrimento psíquico. Isso porque a ideologia que permeia o discurso do trabalhador pode ainda estar atrelada a ideias excludentes de cuidado no campo psiquiátrico. É dizer que os serviços podem ser criativos e inovadores, produzindo transformações no contexto da prática, mas ainda podem estar presos em tecnologias de cuidado que perpassam a segregação, a opressão e a culpabilização do outro. Alguns estudos já vêm apontando essa realidade.55. Wetzel C, Kantorski LP, Olschowsky A, Schneider J, Camatta MW. Dimensões do objeto de trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial. Ciên Saúde Colet. 2011 Abr; 16(4):2133-43.

6. Pinho LB. Análise crítico-discursiva da prática de trabalhadores de saúde mental no contexto social da reforma psiquiátrica [tese]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem Psiquiátrica; 2009.
- 77. Pande MNR, Amarante PDC. Desafios para os Centros de Atenção Psicossocial como serviços substitutivos: a nova cronicidade em questão. Ciên Saúde Colet. 2011 Abr; 16(4):2067-76.

Nesse sentido, entendemos que o discurso sobre a prática do trabalhador evidencia uma pluralidade de modos de operação da ideologia, os quais se reservam tanto à transformação de saberes e práticas, como à materialização de posturas cristalizadas que dificultam ou até mesmo impedem as referidas transformações. Assim sendo, temos como objetivo analisar o discurso de trabalhadores de um CAPS sobre os modos de operação da ideologia que manifestem a dimensão das práticas sociais constituídas no serviço.

REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

Este estudo adotou, como referencial teórico-filosófico, a Análise de Discurso Crítica (ADC).88. Pinho LB, Kantorski LP, Hernández AMB. Análise crítica do discurso: novas possibilidades para a investigação científica no campo da saúde mental. Rev Latino-Am Enfermagem. 2009 Jan-Fev; 17(1):126-32. Também foi utilizado, junto com à ADC, o referencial metodológico de interpretação dos modos de operação da ideologia.99. Thompson JB. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis (RJ): Vozes; 2009. Segundo o referencial, ideologias podem ser compreendidas como fenômenos simbólicos, que servem para situações sociais específicas e para estabelecer ou sustentar relações de dominação; e estabelecer no sentido de criar, instituir essas relações, e sustentar, no intuito de mantê-las ou reproduzi-las.99. Thompson JB. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis (RJ): Vozes; 2009.

O interesse nos estudos da ideologia e suas repercussões nos eventos da vida não se localizam na necessidade de (apenas) constituir um sistema de crenças ou de pensamentos. Ao contrário, o interesse fundamental na análise ideológica está concentrado em se, em que medida e como (se for o caso) essas formas simbólicas servem para estabelecer ou sustentar relações de dominação. Também está relacionado com a desfamiliarização das maneiras de transmissão, recepção e produção dessas relações no contexto social, que se materializam tanto nos processos linguísticos, como nos extralinguísticos.99. Thompson JB. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis (RJ): Vozes; 2009.

Em saúde mental, a análise ideológica do discurso permite aproximar a realidade do cuidado contemporâneo na saúde mental com a produção de novos discursos, formadores de opinião sobre a liberdade, a cidadania e a autonomia de indivíduos em sofrimento psíquico. Também possibilita compreender como esses mesmos discursos produzem mudanças ou reforçam posturas cristalizadas, típicas de modelos tradicionais. Nesse sentido, a análise do conteúdo ideológico permite compreender como se deslocam os embates, os conflitos e as contradições que fazem a reforma psiquiátrica no cotidiano das práticas do trabalhador.

Nesse sentido, a análise ideológica de eventos discursivos se desenvolve a partir de cinco categorias fundamentais: legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação.9 9. Thompson JB. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis (RJ): Vozes; 2009.Nesse estudo, foi trabalhado o modo de operação da ideologia "unificação".

A unificação diz respeito ao uso de expressões que unem indivíduos ou grupos sociais que, a priori, formariam uma identidade coletiva, independente das diferenças ou divisões que possam separá-los. As estratégias utilizadas como unificadoras são a padronização e a simbolização de unidades. Na primeira, as formas simbólicas são adaptadas a um referencial padrão, para estabelecer linguagens coletivas, mas originadas de um discurso particular. Em relação à simbolização, considera-se a construção de símbolos ou unidades formadoras de identidades, que são difundidas por um grupo em particular ou por uma pluralidade de grupos.

Num primeiro momento, foi realizada uma leitura inicial das respostas atribuídas aos profissionais à pergunta-chave ("Fale sobre a sua prática em saúde mental neste CAPS"), para uma primeira sensibilização. Foi possível, nessa etapa, verificar os diferentes pontos de vista implícitos e explícitos no material discursivo, para, a posteriori, produzirem as temáticas que nortearam a análise.

O material empírico foi organizado a partir de sua distribuição em duas colunas. Na primeira foi disposta a entrevista na íntegra, com a identificação de apontamentos importantes trazidos pelo trabalhador e, na segunda coluna, uma pré-análise do material empírico, com inferências (ainda elementares) sobre a estrutura discursiva do entrevistado.

Num segundo momento, após a leitura exaustiva de todas as entrevistas, foi proposto um agrupamento sistemático delas, onde foi possível estabelecer as primeiras relações de comparação entre os elementos do discurso e suas contradições. O objetivo era perceber o poder de síntese do material empírico, na medida em que se discorria sobre suas similaridades em termos de sentido e conteúdo. Nesse momento, chegava-se à construção dos primeiros eixos temáticos, que foram submetidos, novamente, a uma reanálise.

A partir da reanálise dos dados, já era possível verificar as consonâncias e dissonâncias do contexto discursivo. Por exemplo, quando os trabalhadores mencionam a incerteza sobre a prática em saúde mental nos novos serviços, há várias variáveis envolvidas (processo de trabalho, organização da equipe e do serviço, entre outras). Embora sejam complementares, essas variáveis faziam parte do conteúdo ideológico do discurso do trabalhador.

No momento em que se foi chegando a esse nível de detalhamento, sempre se respeitando a complexidade do corpus e evitando incorrer em reducionismos, as informações foram reunidas e iniciou-se a etapa de aproximação com os modos de operação da ideologia.99. Thompson JB. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis (RJ): Vozes; 2009. Dentro do modo de operação "unificação", surgiu a seguinte temática: "o processo de trabalho em saúde mental: a organização da equipe para o atendimento às demandas do sujeito em sofrimento psíquico".

Quanto aos aspectos operacionais, tratou-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, com orientação dialética. O corpus foi originado da transcrição de entrevistas semiestruturadas, aplicadas a 17 dos 25 trabalhadores de um CAPS de uma cidade da Região Sul do Brasil.

As entrevistas foram realizadas nas dependências do serviço, em horário agendado e acordado previamente com o profissional. A duração média foi de 30 minutos e foram gravadas a partir de autorização expressa em Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

O serviço de saúde mental estudado foi inaugurado em 1993, sendo credenciado como CAPS II em 2001. É serviço de referência na região central do município, e seu horário de funcionamento é das 8h às 18h.

Os profissionais que trabalham no CAPS possuem diversas formações e integram uma equipe multiprofissional. É um grupo de diferentes técnicos de nível superior e de nível médio. No CAD, fazem parte da equipe os seguintes profissionais de nível superior: uma enfermeira, dois médicos psiquiatras, três psicólogas (sendo uma delas a coordenadora do serviço), duas assistentes sociais, duas terapeutas ocupacionais e uma farmacêutica. Os profissionais de nível médio são: quatro auxiliares/técnicos de enfermagem, dois agentes de saúde pública, um agente administrativo, duas serventes, dois vigilantes e um motorista.

Os critérios de inclusão para a participação dos trabalhadores foram: 1) possuir vínculo empregatício no serviço estudado, maior que seis meses; e 2) estar em efetivo exercício no período de coleta de dados, sem licenças, afastamentos ou gozo de férias.

O projeto foi submetido previamente à avaliação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal e Pelotas (UFPel), obtendo parecer favorável n. 074/2005. Foi, também, garantido o anonimato dos sujeitos do estudo e respeitados todos os preceitos ético-legais que regem a pesquisa com seres humanos, como é preconizado pelo Ministério da Saúde, Resolução n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde1010. Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Resolução n. 196 de 10 de outubro de 1996: diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos, versão 2012 . Brasília (DF): MS; 2012. e pelo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Cada sujeito foi identificado com a letra "T", seguida do número correspondente à ordem na entrevista.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O processo de trabalho em saúde mental: a organização da equipe para o atendimento às demandas do sujeito em sofrimento psíquico

Uma das mudanças mais significativas, com o advento da reforma psiquiátrica, está na organização do trabalho em equipe nos novos serviços de saúde mental. Se no manicômio o que sustentava o trabalho era a ordem, isto é, a regulação das atividades de acordo com a autoridade médica, que disciplinava corpos e sujeitos, nos serviços contemporâneos a lógica se inverte. Neles, vê-se o renascimento do diálogo e da inclusão das diferentes disciplinas como potencializadoras do cuidado na área. Levantando-se a loucura como um fenômeno social, multifatorial, não é possível atribuir a uma profissão toda a carga e o domínio sobre as demandas do outro. É preciso compartilhar, trocar, dialogar, para compreender que o sofrimento possui múltiplos olhares e direções.1111. Amarante P. A clínica e a reforma psiquiátrica. In: Amarante P, organizador. Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro (RJ): Nau; 2003. p.45-65.

No que se refere às características e ao modo de organização do trabalho, os profissionais trazem apontamentos para discutir a dinâmica do processo de trabalho em saúde mental. Entre os aspectos que se destacam, podemos citar a dimensão da gestão do processo de trabalho em saúde mental. Uma das primeiras características da gestão do processo de trabalho está na própria constituição das equipes. Os trabalhadores afirmam que a composição é baseada na multidisciplinaridade, com ênfase na articulação interdisciplinar.

Tá, então assim, a nossa organização é sempre em equipe, é interdisciplinar, né? As nossas oficinas e grupos sempre visam buscar pelo menos dois profissionais de áreas diferentes (T.2).

Não é um serviço que quando você entra vão te dizer assim: 'oh, sua função é essa, essa e aquela'. Não tem isso, principalmente na enfermagem, que a gente praticamente não faz quase nada da enfermagem, a não ser medicação, né? O resto é tudo uma coisa conjunta com o psicólogo, com o psiquiatra, com o assistente social. Acaba trabalhando com todo mundo e aprendendo um pouco de cada (T.7).

Todos que precisam estar em tudo, né? Claro, cada um tem o seu papel, tem sua formação, que é importante a contribuição, mas procuramos contribuir em tudo (T.11).

O interdisciplinar aparece e atravessa um oceano de racionalidades científicas postas à prova, no momento em que se redesenha o cotidiano a partir de uma necessidade de compreender o complexo. Sabemos que o "novo" incomoda, mas se esse "novo" não puder ser questionado, é porque não é "novo". Importa lembrar-se de que a interdisciplinaridade desloca o centro em direção às fronteiras (aquilo que podemos fazer juntos, construir juntos e pensar juntos). Nessa perspectiva, o que se busca é interagir e convergir, numa postura concertada, os diferentes pontos de vista médicos, filosóficos, antropológicos, psicológicos, entre outros, para compreender os fatos e fenômenos humanos.1212. Japiassu H. O sonho transdisciplinar as razões da filosofia. Rio de Janeiro (RJ): Imago; 2006.

No trabalho em saúde, a interdisciplinaridade desponta como uma forma de se organizar a equipe e compreender situações ou problemas de saúde através da integração e da articulação de outros saberes e práticas. Oposta à tradição cartesiana, que fragmenta o conhecimento, a abordagem interdisciplinar horizontaliza as trocas e as relações, sem desconsiderar as atribuições ou competências de cada profissional. Não se trata de uma sobreposição de saberes, mas um reconhecimento dos limites de cada campo do conhecimento, em prol de um fazer coletivo.1313. Souza RC, Scatena MCM. Produção de sentidos acerca da família que convive com o doente mental. Rev Latino-Am Enfermagem. 2005 Mar-Abr; 13(2):173-9.

Nos discursos, os profissionais entendem que sua organização perpassa um modo de operar voltado para a dimensão multi e interdisciplinar do trabalho em saúde mental. Profissionais que possuem especificidades técnicas, mas que se unem para produzir um cuidado baseado nas premissas de interação e de protagonismo coletivo. T7, por exemplo, afirma que transitar por uma prática, em parceria com outros trabalhadores de diferentes áreas, permite ao profissional ampliar o cardápio de saberes, possibilitando-o conhecer e aprender a lidar melhor com as demandas, muitas vezes, complexas e mutantes oriundas do serviço.

Nesse sentido, a ideologia manifestada nos discursos revela não somente a intenção da equipe de responsabilizar-se integralmente pelas atividades do serviço e pelas demandas do usuário, mas também pelo sentimento de todo um grupo que vê sua prática em saúde mental de forma mais inovadora, compartilhada, dialogada e menos cartesiana. Premissas essas que são mais compatíveis com um modo ampliado de compreender a loucura e com posturas menos fragmentárias, típicas de modelos anteriores. Dessa forma, a prática em saúde mental fica mais próxima das prerrogativas do movimento da reforma psiquiátrica.

Desse modo, é possível desenvolver uma nova proposta de cuidado, ou seja, uma nova maneira de compreender e expandir o horizonte da clínica (aquela voltada para o usuário e praticada nos serviços). No contexto de transformação das práticas em saúde, esse "fazer clínica" resultaria em ir além das reais necessidades ou possibilidades. É adotar posturas de compromisso ético e de respeito ao valor da vida no contexto dessas práticas. É esforçar-se na construção de caminhos e meios que não são estáticos, pois estão sempre em transformação, para que possam produzir conhecimentos compartilhados, de forma a garantir a autonomia das pessoas e a fortalecer o vínculo delas com os serviços de saúde que procuram.1414. Lancetti A, Amarante P. Saúde mental e saúde coletiva. In: Campos GWS, organizador. Tratado de saúde coletiva. São Paulo (SP): Hucitec: 2009. p.615-34.

Reportando-nos às atividades da equipe, organizadas de maneira interdisciplinar, uma delas trata da figura do técnico de referência no contexto do CAPS. Trata-se de um técnico que assume um papel fundamental na construção do projeto terapêutico do usuário, organizando as estratégias de atendimento e acolhendo as dúvidas.

Então, assim, o que me trouxe aqui, que foi muito positivo, que pra mim acrescentou, foi que eu fiz uma especialização em atenção psicossocial em Florianópolis. Daí pra frente eu comecei a entender o que era o técnico de referência, porque que o CAPS ta atendendo assim, porque a gente tem que ter esse olhar diferente com o usuário, né? Tu não olha mais ele como um doente e olha o que ele tem de/de saudável, o que ele tem de, né? (T.9).

Uma coisa também que pega, que eu parei e pensei bastante, é esse papel do técnico de referência... como é que eu posso dizer, esse jogo de cintura que precisa ter pra fazer as negociações, pra fazer as mediações, pra negociar com a família, ir lá na comunidade, pra fazer a intersetorialidade, discutir com a equipe (T.10).

O técnico de referência é especialmente importante na medida em que provê esforços e contornos mais precisos no encontro do trabalhador com o usuário em saúde mental. Trata-se de um profissional que tem o dever de conduzir um caso, seja ele individual ou familiar. É também um dispositivo de organização das práticas que está intimamente articulado com os serviços substitutivos em saúde mental, focados no resgate do potencial dialógico. O técnico de referência é o profissional que visa a garantir um espaço de acolhida a ele, contemplando a capacidade de "fazer ver e falar", como condições primordiais para explorar as potencialidades do usuário, valorizar sua expressão e dar-lhe visibilidade social.1515. Furtado JP, Miranda L. O dispositivo "técnico de referência" nos equipamentos substitutivos em saúde mental e o uso da psicanálise winnicottiana. Rev Latino Am Psicopatol Fundam. 2006 Set; 9(3):508-24. - 1616. Silva EA, Costa II. O profissional de referência em saúde mental: das responsabilizações ao sofrimento psíquico. Rev Latino Am Psicopatol Fundam. 2010 Dez; 13(4):635-47.

Nos discursos acima, observamos um consenso entre o papel do técnico de referência na funcionalidade do serviço. Responsável pelo usuário, ele deve organizar e articular os diferentes dispositivos que fazem parte de sua vida (família, rede de serviços, outros profissionais, equipamentos sociais, etc.), de modo a contemplar suas necessidades de cuidado. Mesmo sendo a referência, destaca-se que esse profissional deve contribuir para a tessitura de redes de diálogo abertas e sensíveis com todos os atores sociais. É dizer que o técnico de referência assume o desafio de potencializar vínculos e singularizar trocas, num contínuo esforço de demonstrar que cuidar em saúde mental compreende um compromisso ético, social e sanitário da equipe com o sujeito e no território.

Se por um lado o técnico de referência pode reposicionar papéis e construir novas abordagens pautadas no paradigma psicossocial, há desafios a superar no que tange à operacionalização desse importante instrumento no processo de trabalho. As dificuldades inerentes ao processo de construção do técnico de referência não dizem respeito apenas às questões mais internas do serviço, mas também são reflexos de como o sistema de saúde mental está organizado no município. Os relatos a seguir demonstram essa preocupação:

[...] é técnico de referência de um, aí muda, aí vai para outro aí fica aquela coisa, né? Sem contar que a equipe também sofre demais, né? Porque aí sai uma pessoa em já tem contrato com outro durante um ano, aí já começou a se adaptar com a proposta o CAPS, aí de repente ele vai embora (T.8).

[...] daí, de repente, o que que começa a acontecer, né? Diante do serviço público, né? Recessão de contratos, a rotatividade de profissionais, né? Dos atores essenciais, né? (T.3).

[...] teve uma enfermeira que entrou, mas pediu pra sair, não ficou nem três meses, então os pacientes que ela pegou como técnico de referência mal deu tempo de ela conhecer e já passou pra outro. Eu, assim, na minha visão, eu acho que isso prejudica o paciente né, e essa... essa mudança que vai tendo de profissionais, acaba criando uma desorganização entre a gente, e isso o paciente sente isso (T.15).

Os depoimentos da equipe permitem compreender que a rotatividade dos profissionais pode colocar em risco a sustentabilidade da organização das práticas como um todo, que se baseiam, preferencialmente, na formação de vínculos duradouros entre usuários e trabalhadores. Na fala de T.8 e T.15, por exemplo, destaca-se o quanto isso pode mudar a dinâmica do atendimento e prejudicar a vinculação desse usuário à equipe e ao CAPS.

O município estudado utiliza-se de uma política voltada para a abertura de processos seletivos para a contratação de profissionais temporários, que superem, de imediato, a falta de profissionais em áreas específicas da saúde. No entanto, cada contrato tem validade de, no máximo, um ano, sendo o profissional dispensado logo após expirar o contrato de trabalho. Nesse sentido, se a rotatividade já é sentida pela equipe como um problema importante, na medida em que é obrigada a conviver ano a ano com diferentes profissionais, isso também proporciona o rompimento com a continuidade do cuidado, gerando vínculos precários entre trabalhadores e usuários.

Observou-se, em um estudo,1717. Rebouças D, Abelha L, Legay LF, Lovisi GM. O trabalho em saúde mental: um estudo de satisfação e impacto. Cad Saúde Pública. 2008 Mar; 24(3):624-32. que a alta rotatividade dos profissionais em saúde mental vem sendo um problema candente em diferentes países. No Brasil, ela está relacionada a altas taxas de licença médica, assim como vínculos trabalhistas precários, amparados por subsídios legais questionáveis. Além disso, essa alta rotatividade também acontece pelos níveis importantes de desemprego, subemprego, as jornadas de trabalho duplicadas e a escassa proteção social dos trabalhadores. São fatores que acabam desencorajando as perspectivas de melhora, independente das condições de satisfação ou do estresse relacionado ao trabalho. Este é um desafio para as políticas públicas de saúde, que precisam estabelecer indicadores mais precisos de avaliação sistemática dos serviços de saúde mental, para a obtenção de dados que permitam redirecionar a assistência com base nessas condições.1717. Rebouças D, Abelha L, Legay LF, Lovisi GM. O trabalho em saúde mental: um estudo de satisfação e impacto. Cad Saúde Pública. 2008 Mar; 24(3):624-32.

Sabidamente, a rotatividade até pode ser benéfica em termos de controle dos gastos públicos, além de evitar demandas judiciais previstas pela legislação trabalhista. Nossa compreensão, no entanto, é de que o vínculo formado entre trabalhadores e usuários deve ser superior às questões administrativas que envolvem a contratação de pessoal, pois é esse vínculo que faz parte de toda uma cadeia complexa do processo de trabalho em saúde (seu início, seu meio e seu fim).

Estamos diante de uma nova concepção de política, ou seja, como aquele produto que não é abstraído da coletividade dos cidadãos e que tornaria o Estado realmente democrático. Uma coletividade que "deve ser entendida como produto de uma elaboração de vontade e pensamentos coletivos, e não como resultado de um processo fatal estranho aos indivíduos singulares".18:232 Estaríamos, no campo da saúde mental, diante da construção de novas ideologias, quando superarmos os interesses particulares, penetrando no seio social não para estabelecer relações unilaterais, mas para construir novos caminhos e meios de melhorar e qualificar o cuidado e a vida das pessoas.

Nesse sentido, consideramos que é preciso repensar a dimensão cuidadora em saúde mental como aquela a priori, prejudicada, no entanto, face à alta rotatividade profissional. Se os serviços vêm se esforçando para investir em estratégias de fortalecimento de vínculos entre os trabalhadores e os usuários, como a constituição do técnico de referência, entendemos que também se faz necessário que a gestão local comece a repensar a política local, diferenciando-a da visão meramente técnica da saúde e da necessidade de contenção de despesas. Isso daria maior segurança e satisfação ao profissional, gerando, consequentemente, vínculos mais fortalecidos e duradouros entre o trabalhador e as pessoas que cuida.

Outra questão que surgiu no decorrer das entrevistas e que está relacionada às dificuldades no campo psicossocial se trata da insegurança com a prática em saúde mental. Os depoimentos a seguir apontam essas questões.

Eu acho que os técnicos de enfermagem não estão preparados para serem técnicos de referência. Por medo, por insegurança, por olhar o social de uma maneira totalmente assistencialista, por ter medo da própria cultura, eu acho que isso tem se discutido bastante em todos os CAPSs (T.4).

[...] que nem sempre, a gente também não tem aquele preparo... aí tu fica na insegurança se fez o certo ou não (T.12).

Quarta-feira eu tive que faltar, por problemas particulares. Eu ouvi algumas pessoas dizendo que... como se eu não pudesse faltar, mas... eu sinto hoje, acredito nisso, que existe alguns profissionais que tem uma certa insegurança (T.9).

A insegurança com a prática em saúde mental já vem sendo discutida em diferentes estudos.1919. Pinho LB, Kantorski LP, Bañon Hernández AM. O trabalho da enfermagem: contradições e desafios no contexto da reforma psiquiátrica. Rev Enferm UFPE [online] 2010 Jul-Set [acesso 2011 Jan 20]; 3(3):112-9. Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/view/163
Disponível em: http://www.revista.ufpe.b...

20. Arce VAR, Sousa MF, Lima MG. A práxis da saúde mental no âmbito da Estratégia Saúde da Família: contribuições para a construção de um cuidado integrado. Physis 2011 Abr-Jun; 21(2):541-60.
- 2121. Furtado JP, Campos RO. A transformação das políticas de saúde mental no Brasil para prática nos novos serviços. Rev Latino Am Psicopatol Fundam 2005 Jan; 8(1):109-22. Neles, é possível notar que, apesar de haver um sentimento no trabalhador de "mudar" a sua prática, com o uso de novas tecnologias, o processo de trabalho em saúde mental ainda vem sendo consumido pelas imprecisões do cotidiano. Para esses trabalhadores, muitas vezes fica mais cômodo concentrar-se naquilo que ele domina, ou seja, naquilo que aprenderam a fazer, do que transitar pela irregularidade, que exige adaptações sequenciais.

Nos depoimentos acima, por exemplo, a insegurança surge como um elemento que bloqueia a criatividade dos profissionais. No caso de T.9, ficou claro o desconforto da equipe com sua ausência por problemas particulares, pois isso exigiu certa reorganização do processo de trabalho. Já no discurso de T.4 e T.12 fica evidente a necessidade de preparo do profissional para trabalhar com as questões de saúde mental, como se, nesse campo, houvesse respostas precisas para questões que, quase sempre, são bem mais complexas.

Para os trabalhadores de serviços de saúde mental, que já incorporam a dimensão singular do sujeito em sua prática (aquela focada nas suas expectativas e na qualidade de vida), fica fácil desenvolver estratégias que invistam na convivência, na autonomia e num projeto terapêutico focado nas experiências dessas pessoas. Mesmo aqueles com formação ainda muito tradicional, já é consenso a intenção de ampliar as práticas, mas isso exige a adoção de instrumentos cada vez mais complexos de cuidado. Nesse sentido, essa intenção não quer dizer que ela esteja realmente acompanhada de uma mudança conceitual sobre o modelo de saúde mental em si, pois é ele que constrói e sustenta toda a teia de serviços, atores e relações.2222. Costa RP. Interdisciplinaridade e equipes de saúde: concepções. Mental. 2007 Jun; 5(8):107-24.

Parte dessas explicações é sustentada pela tese de que há uma tendência no campo da saúde de repetir certos padrões ou referenciais já aprendidos anteriormente, que dão margem de segurança para a prática do trabalhador. Evidente que há a necessidade de resituar a clínica no contexto dos saberes e no interior dos serviços, já que a saúde mental contemporânea diz respeito ao conjunto de ações políticas e eticamente orientadas que procura respeitar a singularidade de todo um grupo, com as marcas de uma "loucura". Seguir padrões cristalizados e mediados por rotinas institucionais potencializaria os riscos de burocratização e alienação do objeto e do objetivo do trabalho, sendo isso maior nos trabalhadores em saúde mental do que nos outros do campo da saúde em geral. Isso é possível perceber pelo simples motivo de que a convivência com a loucura e seus desdobramentos não é um evento fácil de lidar, razão pela qual toda e qualquer sociedade cria seu mecanismo de defesa, justamente aquilo que, hoje, estamos tentando superar.2121. Furtado JP, Campos RO. A transformação das políticas de saúde mental no Brasil para prática nos novos serviços. Rev Latino Am Psicopatol Fundam 2005 Jan; 8(1):109-22.

O conhecimento das formas simbólicas e de como elas se manifestam, através de ideologias ou não, dizem muito sobre o funcionamento da sociedade. Demonstrada a conexão existente entre as possíveis relações de dominação, abre-se a possibilidade de que participantes do "campo-objeto" possam se apropriar dessa interpretação, buscando a superação das possíveis assimetrias entre eles.99. Thompson JB. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis (RJ): Vozes; 2009. Na saúde mental, é dizer que as ideologias que permeiam a sustentação das relações tradicionais de cuidado - que dão segurança ao trabalhador e organizam os serviços nem sempre sob a lógica usuário-centrada -, podem ser superadas com o nascimento do "fazer diferente", como no caso da constituição do técnico de referência. Apesar da insegurança, trata-se de uma estratégia, fruto de um diálogo promissor e permanente entre trabalhadores, usuários e gestores locais.

Nesse sentido, entendemos que o cuidado em saúde mental é um processo materializado pela presença ativa dos atores sociais e também se consolida no processo de satisfação, plenitude e utilização de distintos recursos tecnológicos e terapêuticos para o cuidado às pessoas. Um cuidado onde é inerente a produção de técnicas e procedimentos, mas que não devem ser totalizadores do processo de trabalho na área. Isso porque, apesar de poder dar a sensação de segurança institucional, o cuidado em saúde mental é resultado do jogo interativo entre as pessoas e os serviços. Isso não pode ser padronizado ou enquadrado, como nos moldes de serviços tradicionais; um trabalho que se completa e se incompleta ao mesmo tempo, num movimento dialético que produz a história por meio dos diferentes interesses, necessidades, realidades e processos de negociação.

Como é possível notar, a equipe convive com inovações tecnológicas e é constantemente tensionada a produzir novos saberes, novas costuras, novas ideologias de cuidado e novos arranjos interdisciplinares, para dar conta da complexidade das manifestações da loucura. Há, nos discursos, o sentimento de pertença a um grupo e de valorização do cuidado como dimensão fundamental das trocas. Ao passo que vão ampliando o potencial cuidador do serviço, com implementação de novas estratégias, os trabalhadores são também confrontados com a insegurança em mudar a prática, bloqueando o poder de criatividade e de inovação cotidianas. Fato esse que, ao nosso entendimento, deve ser trabalhado no dia-a-dia dos serviços, para construir novos cenários e desafios à reforma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo trouxe algumas inquietações que marcam o movimento atual da reforma psiquiátrica no contexto brasileiro. Foi possível notar algumas das inovações trazidas pela prática, como a inclusão do técnico de referência no serviço, além da interdisciplinaridade, como princípio organizador dos saberes e práticas no campo da saúde mental.

No entanto, ao passo que as mudanças são acionadas no cotidiano, também vêm acompanhadas de conflitos e embates. No contexto mais estrutural, onde se situaria a política, destaca-se a grande rotatividade profissional, causada, principalmente, pelo vínculo precário de contratação dos trabalhadores. Segundo eles, essa é uma questão que prejudica tanto a operacionalização das novas estratégias de cuidado (o técnico de referência), quanto o vínculo entre trabalhadores e usuários.

Identificamos também que a insegurança com a prática é outro desafio da equipe. Alguns dos profissionais sentem que sua prática é imprecisa, dificultando o caminho entre o certo e o errado. No entanto, vale lembrar que o novo é passível tanto de resistências quanto de dúvidas, cabendo à equipe estabelecer diálogos permanentes para dirimir os conflitos e construir uma prática em saúde mental compartilhada.

No que se refere à proposta teórico-metodológica, a identificação dos modos de operação da ideologia mostrou-se apropriada para revelar as contradições, as potencialidades e os desafios inerentes à construção discursiva dos trabalhadores. Sabemos que a reforma trouxe grandes avanços ao contexto brasileiro. Nesse sentido, a análise dos discursos de seus protagonistas revela o quanto essas mudanças estão ou não incorporadas aos serviços de saúde mental, revitalizando a construção de outras agendas e novos debates no campo.

Esperamos que os resultados do estudo permitam processar como se dá o relacionamento dialético entre os trabalhadores e o seu trabalho no contexto social da reforma psiquiátrica. A análise de seus discursos não apenas corresponde ao que vivem no cotidiano dos serviços, mas representam a construção de novas ideologias para ressignificar velhas práticas no campo psicossocial, de modo a poder repensar o papel da sociedade brasileira, com as diferenças e os diferentes.

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    Recorte dos resultados da pesquisa intitulada - Trabalhadores de saúde mental: análise discursiva crítica da prática no contexto da reforma psiquiátrica, financiada com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Edital FAPERGS ARD 003/2009).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2014

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2012
  • Aceito
    19 Abr 2013
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