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O significado de cuidar no contexto do pensamento complexo: novas possibilidades para a enfermagem

El significado de cuidar en el contexto del pensamiento complejo: nuevas posibilidades para la enfermería

The meaning of care in the context of complex thinking: new possibilities for nursing

Resumos

Este estudo objetiva refletir sobre o significado do cuidado de enfermagem a partir da ótica do pensamento complexo, evidenciando pontos que possam ancorar uma concepção teórica e uma prática mais aderida às necessidades que hoje se colocam para a Enfermagem. Por isso, faz-se breve explanação sobre o pensamento complexo e questões histórico-conceituais relativas à concepção de cuidado, para então tecer reflexões que possam contribuir à construção de uma nova matriz de significados ao cuidado de enfermagem. Ao contrário do pensamento fragmentado e unilateral que nos ensina a disjuntar, simplificar e reduzir, o pensamento complexo constitui um modo mais interativo de abordar a realidade. A reflexão revela o esforço de trazer à vida da Enfermagem enquanto disciplina e profissão, a possibilidade de vislumbrar-se novos caminhos que esclareçam os diferentes significados do cuidado, reveladores da necessidade de inter-relacionar saberes e contextos e valorizar a singularidade de cada ser e situação.

Conhecimento; Enfermagem; Cuidados de enfermagem


El objeto de este estudio es reflexionar sobre el significado del cuidado de la enfermería desde la óptica del pensamiento complejo, señalando puntos que puedan basar una concepción teórica y una práctica más adherida a las necesidades que hoy se colocan para la enfermería. Por ese motivo, se hace una breve explicación sobre el pensamiento complejo y cuestiones histórico-conceptuales relativas a la concepción de cuidado, para entonces tejer reflexiones que puedan contribuir para la construcción de una nueva matriz de significados para el cuidado de la enfermería. Al contrario del pensamiento fragmentado y unilateral que nos enseña a desunir, simplificar y reducir, el pensamiento complejo, constituye un modo más interactivo de abordar la realidad. La reflexión revela el esfuerzo de traer a la vida de la enfermería, como disciplina y profesión, la posibilidad de vislumbrar nuevos caminos que aclaren los diferentes significados de cuidado, reveladores de la necesidad de interrelacionar saberes y contextos, y valorizar la singularidad de cada ser y situación.

Conocimiento; Enfermería; Atención de enfermería


The objective of this study is to reflect upon the meaning of care given the light of complex thinking, evidencing points that can anchor a theoretical conception as well as a practice more adhering to the necessities currently placed before Nursing. Thus, a brief account of complex thinking is given as well as historical-conceptual questions related to the conception of care, with the intention of producing reflections that may contribute to the construction of a new matrix of significances for the Nursing care. Contrary to fragmented and unilateral thinking, which teaches us to isolate, simplify, and reduce, complex thinking is a more interactive manner of approaching reality. This reflection reveals the effort of bringing the possibility of illuminating new paths that make clear the different significances of care to the Nursing practice, as a discipline and profession. These different significances show the need to relate knowledge and contexts, as well as to value the singularity of each human being and situation.

Knowledge; Nursing; Nursing care


REFLEXÃO

O significado de cuidar no contexto do pensamento complexo: novas possibilidades para a enfermagem

The meaning of care in the context of complex thinking: new possibilities for nursing

El significado de cuidar en el contexto del pensamiento complejo: nuevas posibilidades para la enfermería

Marlene Gomes TerraI; Silviamar CamponogaraII; Laura Cristina da SilvaIII; Juliana Balbinot Reis GirondiIV; Keyla NascimentoV; Vera RadünzVI; Evanguelia Kotzias Atherino dos SantosVII

IEnfermeira. Mestre em Educação. Professora do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem (PEN) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Grupo de Pesquisa Cuidado, Saúde e Enfermagem na UFSM, Santa Maria, RS. Membro do Grupo de Estudos sobre Cuidado de Saúde Integral de Pessoas Idosas na UFSC. Bolsista do Programa de Qualificação Institucional (PQI) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Rio Grande do Sul, Brasil

IIEnfermeira. Mestre em Enfermagem. Doutoranda do PEN/UFSC.Professora do Departamento de Enfermagem da UFSM. Membro do Núcleo de Estudos sobre Trabalho, Saúde, Cidadania e Enfermagem na UFSC. Bolsista PQI/CAPES. Rio Grande do Sul, Brasil

IIIEnfermeira do Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago (HU) da UFSC. Mestre em Enfermagem. Doutoranda do PEN/UFSC. Santa Catarina, Brasil

IVEnfermeira do HU/UFSC. Santa Catarina, Brasil

VEnfermeira. Mestre em Enfermagem. Doutoranda do PEN/UFSC. Santa Catarina, Brasil

VIEnfermeira. Doutora em Filosofia da Enfermagem. Docente do PEN/UFSC. Vice-coordenadora do Grupo de Pesquisa Cuidando e Confortando no PEN/UFSC. Santa Catarina, Brasil

VIIEnfermeira. Doutora em Filosofia da Enfermagem. Docente do PEN e do Departamento de Enfermagem da UFSC. Líder do Grupo de Pesquisa em Enfermagem na Saúde da Mulher e do Recém-Nascido no PEN/UFSC. Santa Catarina, Brasil

Endereço Endereço: Marlene Gomes Terra R. Felipe dos Santos, 97 97.070-340 - Duque de Caxias, Santa Maria, RS, Brasil E-mail: martesm@terra.com.br

RESUMO

Este estudo objetiva refletir sobre o significado do cuidado de enfermagem a partir da ótica do pensamento complexo, evidenciando pontos que possam ancorar uma concepção teórica e uma prática mais aderida às necessidades que hoje se colocam para a Enfermagem. Por isso, faz-se breve explanação sobre o pensamento complexo e questões histórico-conceituais relativas à concepção de cuidado, para então tecer reflexões que possam contribuir à construção de uma nova matriz de significados ao cuidado de enfermagem. Ao contrário do pensamento fragmentado e unilateral que nos ensina a disjuntar, simplificar e reduzir, o pensamento complexo constitui um modo mais interativo de abordar a realidade. A reflexão revela o esforço de trazer à vida da Enfermagem enquanto disciplina e profissão, a possibilidade de vislumbrar-se novos caminhos que esclareçam os diferentes significados do cuidado, reveladores da necessidade de inter-relacionar saberes e contextos e valorizar a singularidade de cada ser e situação.

Palavras-chave: Conhecimento. Enfermagem. Cuidados de enfermagem.

ABSTRACT

The objective of this study is to reflect upon the meaning of care given the light of complex thinking, evidencing points that can anchor a theoretical conception as well as a practice more adhering to the necessities currently placed before Nursing. Thus, a brief account of complex thinking is given as well as historical-conceptual questions related to the conception of care, with the intention of producing reflections that may contribute to the construction of a new matrix of significances for the Nursing care. Contrary to fragmented and unilateral thinking, which teaches us to isolate, simplify, and reduce, complex thinking is a more interactive manner of approaching reality. This reflection reveals the effort of bringing the possibility of illuminating new paths that make clear the different significances of care to the Nursing practice, as a discipline and profession. These different significances show the need to relate knowledge and contexts, as well as to value the singularity of each human being and situation.

Keywords: Knowledge. Nursing. Nursing care.

RESUMEN

El objeto de este estudio es reflexionar sobre el significado del cuidado de la enfermería desde la óptica del pensamiento complejo, señalando puntos que puedan basar una concepción teórica y una práctica más adherida a las necesidades que hoy se colocan para la enfermería. Por ese motivo, se hace una breve explicación sobre el pensamiento complejo y cuestiones histórico-conceptuales relativas a la concepción de cuidado, para entonces tejer reflexiones que puedan contribuir para la construcción de una nueva matriz de significados para el cuidado de la enfermería. Al contrario del pensamiento fragmentado y unilateral que nos enseña a desunir, simplificar y reducir, el pensamiento complejo, constituye un modo más interactivo de abordar la realidad. La reflexión revela el esfuerzo de traer a la vida de la enfermería, como disciplina y profesión, la posibilidad de vislumbrar nuevos caminos que aclaren los diferentes significados de cuidado, reveladores de la necesidad de interrelacionar saberes y contextos, y valorizar la singularidad de cada ser y situación.

Palabras clave: Conocimiento. Enfermería. Atención de enfermería.

INTRODUÇÃO

A vida do ser humano, ao longo do seu processo de existência, foi e é influenciada por diversas correntes de pensamento. Conforme determinada época histórica, diferentes formas de conceber inúmeros aspectos dessa existência foram se manifestando e, consolidando concepções e práticas na humanidade. Este processo foi fundamental para que o ser humano fosse descobrindo diferentes aspectos do seu próprio eu, da sua relação com o outro e com o mundo.

Algumas etapas deste processo tiveram maior repercussão, tendo em vista o seu caráter de ruptura com concepções e modelos já existentes. Uma delas pode ser demarcada a partir do final do século XIX, quando se iniciou um processo de rompimento com algumas concepções do mundo moderno dando-se início a discussão de novas abordagens e formas de entendimento que hoje configuram a contemporaneidade. A visão mecanicista e reducionista do mundo e da vida, decorrente do paradigma cartesiano-newtoniano, que se tornou a base natural da ciência no período moderno, começou a perder a sua influência como teoria que fundamenta, prioritariamente, a ocorrência dos fenômenos naturais.

Assim, começa a ter espaço o pensamento complexo e todas as suas concepções ancoradas em pressupostos diferentes dos até então ditados pelo modelo mecanicista. Questões como interdependência, auto-organização, autopoiese, caos, dentre outras, começam a ser debatidas em diversos meios e a configurar novas concepções, buscando embasar diferentemente a forma como o ser humano relaciona-se consigo mesmo e com o mundo e, como percebe e analisa os fenômenos que o cercam.

Contudo, apesar da discussão sobre estes conceitos e este novo paradigma, já ocorrer há cerca de um século, parece que, em muitas áreas do conhecimento, poucas mudanças aconteceram. Em parte isto pode ser atribuído às inegáveis contribuições do pensamento cartesiano-newtoniano, as quais foram fundamentais para o avanço da humanidade como um todo. Além disso, sabe-se que a mudança de concepções e, particularmente, de uma dada prática, é muito lenta uma vez que envolve toda uma rede de relações, contextos e situações.

Uma das áreas que apresenta uma espécie de dualidade neste sentido é a da saúde; ainda muito apegada a concepções mecanicistas, que influenciaram fortemente seus pressupostos teóricos e o seu fazer, mas com algumas aberturas para a reflexão sobre a necessidade de mudar referenciais norteadores de sua prática em direção ao pensamento complexo. Particularizando este contexto para a área da enfermagem, logo surge a idéia de refletir sobre como é concebido e praticado o cuidado – sua essência – e, em conseqüência, discutir sobre a necessidade de sensibilizar os cuidadores para as dificuldades e insuficiências presentes no pensamento reducionista e simplificado, mostrando a urgência de um pensar complexo, que implique em uma re-orientação de pressupostos e valores. Para que uma mudança de paradigma aconteça é necessária uma expansão não apenas de nossas concepções e maneiras de pensar, mas também de valores.1 O conhecimento fragmentado em função das disciplinas impede o vínculo entre as partes e a totalidade. Em virtude disso, precisa ser substituída por um modo de conhecimento capaz de apreender os objetos em seu contexto e complexidade.2

Nesse sentido, objetiva-se refletir sobre o significado do cuidado de enfermagem a partir da ótica do pensamento complexo, buscando evidenciar pontos que possam ancorar uma concepção teórica e uma prática mais aderida às necessidades que hoje se colocam para a enfermagem. Por isso, busca-se ressaltar uma breve explanação sobre o pensamento complexo e sobre questões histórico-conceituais relativas à concepção de cuidado, para então tecer reflexões que possam contribuir à construção de uma nova matriz de significados para o cuidado de enfermagem.

O PENSAMENTO COMPLEXO: UMA BREVE APROXIMAÇÃO

Ao contrário do pensamento fragmentado e unilateral que ensina a disjuntar, a simplificar e reduzir, o pensamento complexo constitui outro modo de abordar a realidade. De maneira geral, a complexidade é capaz de reunir, de contextualizar, de globalizar, mas, ao mesmo tempo, pode reconhecer o singular, o individual, o concreto.3

A complexidade surgiu por volta da década de 50, com os fundadores da cibernética Wiener e Ashby. Entretanto foi Von Neumann que, pela primeira vez, distinguiu o conceito de complexidade ao procurar elucidar os processos na auto-organização. Esse novo paradigma despontou como resultado das descobertas da Física Quântica. Quando os físicos começaram a explorar o mundo atômico, logo perceberam que não havia uma maneira de pensar as novas descobertas. O pensamento reducionista não conseguia interpretar e compreender o infinitamente pequeno.4

O pensamento complexo baseia-se em dois princípios: o da emergência e o da imposição. O princípio da emergência mostra que o todo é superior à soma das partes e o da imposição comprova que o todo é inferior à soma das suas partes. Ainda, outra característica é a hierarquia a qual demonstra que um sistema maior é composto por sistemas menores que estão sempre em prol da totalidade. Assim, quando se pensa na palavra complexidade, primeiramente vem à mente a idéia de imposição de dificuldades que fogem da possibilidade do ser humano pensar sobre as mesmas. Na realidade complexidade não se reduz à complicação, mas em algo mais profundo que o pensamento simplificado não é capaz de resolver satisfatoriamente.

A palavra complexidade indicaria uma tessitura comum, pois complexo significa aquilo "que é tecido junto" e que coloca como sendo inseparavelmente associados indivíduo e contexto, ordem e desordem, sujeito e objeto, corpo e mente e todos os tecidos que regem os acontecimentos, as ações, as interações e retroações que tecem a realidade de nossa existência. A complexidade emerge da desordem, incerteza, ambigüidade, individualidade, autonomia e ainda é dialógica, necessitando uma aptidão reflexiva.4

Assinala-se a importância de buscar-se a complexidade na vida cotidiana, isto é, nos vários papéis sociais que se desempenha, no trabalho, com os amigos ou desconhecidos. Cada ser tem uma multiplicidade de identidades e de personalidades em si mesmo, um mundo de fantasias e de sonhos que acompanham a sua vida.4 O mundo, então, passa a ser concebido na sua totalidade, interconectado e não como a soma de partes dissociadas. O pensamento complexo integra os modos de pensar, opondo-os ao reducionismo. É uma atividade mental que procura integrar os modos de pensar linear e sistêmico. A grande questão é combinar a simplicidade com a complexidade, exercitando a contextualização.3

Esta reflexão remete ao papel social da Enfermagem, que de modo geral, embasa-se na premissa de proporcionar um cuidado o qual responda as necessidades do indivíduo considerando-o singular e plural, a parte e o todo que este representa. Nesse contexto, é possível compreender que os significados do cuidar traduzem toda uma trajetória histórica que hoje pode ser ponto de partida para que a Enfermagem, como profissão, possa refletir e propor novas tendências para este cuidar.

O CUIDADODEENFERMAGEM: FUNDAMENTOS HISTÓRICO-CONCEITUAIS

O cuidado é a mais antiga prática da história do mundo, cuja função é assegurar a continuidade da vida do grupo e da espécie, tendo em vista a garantia das funções vitais. Por muito tempo teve um caráter apenas de tradição cultural, transmitido através da experiência passada de geração a geração.5 No entanto, aos poucos passou por um processo de profissionalização, sendo um atributo de profissionais da saúde, porém ganhou espaço e singularidade na busca da profissionalização da enfermagem. Obviamente esta profissionalização foi marcada por inúmeros fatos históricos, mas é possível evidenciar, na Enfermagem, uma forte herança advinda de um vínculo ligado à moralidade e religiosidade.

Assim, a Enfermagem foi, historicamente, influenciada por fatores variados, desenvolvendo-se ao ritmo das grandes correntes de pensamento que marcaram a evolução do conhecimento. A prática da enfermagem, na primeira metade do século XX, vai se distanciando dos valores morais e religiosos herdados do passado e adota o modelo biomédico, valorizando o tecnicismo. Dessa forma, o cuidado restringe-se cada vez mais, havendo um desaparecimento da vinculação entre o ser humano com o universo, ambiente e grupo social. A subjetividade do sujeito é obliterada, focalizando-se o cuidado sobre o espaço tissular ou mesmo celular portador de doença.5

Essa forma de concepção ganha cada vez mais impulso face ao crescente avanço tecnológico e institucionalização das formas de tratamento da doença, bem como da crescente hierarquização do trabalho atribuído as diferentes categorias profissionais. Dessa maneira, ao seguir o modelo biomédico, a Enfermagem relegou a segundo plano um cuidado que tenha como sentido o de assegurar a continuidade da vida dos homens e a sua razão de existir, criando-se um imenso abismo.5

Com isso, a enfermagem, ao adotar durante anos este modelo, distanciou-se de sua origem. Isto acontece porque as tradições científico-culturais e padrões de pensamentos de natureza dogmática são fatores de resistência às mudanças.6 Ainda hoje, apesar de todo movimento de transformação paradigmática que existe, a Enfermagem dirige sua prática em sentido contrário ao discurso "biopsicossocial" (que já é reducionista), enfatizando apenas o aspecto biológico através de procedimentos e ações terapêuticas.7

Assim o cuidar assume características profissionais obtidas de uma educação formal, fruto da modernidade, dos avanços científicos e tecnológicos e do crescente poder da ideologia médica, buscando o reconhecimento do poder dominante e status. Com isso perdeu muito de sua arte, do foco no ser humano e conhecimento específico, o que faculta ao profissional uma falsa idéia de autonomia.

A visão tradicional do cuidado, parte do pressuposto de que o ser humano é passivo, espectador e que o cuidado é estabelecido de modo linear, seqüencial sem considerar a capacidade que ele possui de relacionar-se, interagir. Visto desta maneira, ele fica a espera do cuidado planejado, preciso, verificável, lógico e metódico pelo cuidador, conseqüente da mecanização da sua forma de pensar como único caminho para desenvolver o cuidado.

O modelo, herdado de Descartes e Newton, afetou profundamente a nossa maneira de ser e ver o ser humano. Há um fracionamento constante do corpo e, na área da saúde, este modelo chamado de biomédico fez com que o corpo humano fosse comparado a uma máquina e o cuidado passou a ser considerado como um conserto.8

Esta visão fragmentada é uma forma mais simplificada de cuidar do ser humano sem necessariamente se envolver nas suas relações, pois ao passo que se vê o ser em sua integralidade e multidimensionalidade é necessário ser mais sensível, estar mais disponível e até mesmo entrar em campos jamais transitados: o processo de viver de cada pessoa.

No entanto, como forma de contrapor a este paradigma, estudiosas da Enfermagem, como Paterson e Zderad, Leininger e Watson curvaram-se sobre a perspectiva de uma re-orientação na concepção de cuidado. Este é o atributo mais valioso que a Enfermagem tem para oferecer à humanidade, que está ameaçada pela desenvolvida tecnologia médica, pelas restrições burocráticas e administrativas, aliadas à proliferação de técnicas de cura e tratamentos radicais.9 A teórica propõe um modelo centrado no cuidado, que capacite os acadêmicos de enfermagem e profissionais a serem mais responsáveis e comprometidos com a sociedade, preocupando-se mais com o humano, no sentido de contrabalançar a crescente tecnologização da saúde e a serem mais solidários, sensíveis e zelosos com problemas éticos e morais, criativos e aptos a aplicar conhecimentos a questões de cada pessoa que cuidam.9

Com isso, pode-se inferir que haveria maiores possibilidades de re-significar o cuidado de enfermagem, atribuindo-lhe uma conotação mais sensível à vida e a tudo que conosco se inter-relaciona. "A tendência atual na enfermagem parece ser a de resgatar o pessoal do puramente impessoal, a aparência sensual e estética da descrição científica de uma natureza fria, incompleta e insatisfatória, a experiência subjetiva, individual e coletiva da objetividade científica".6:88

O CUIDADO NA PERSPECTIVA DA COMPLEXIDADE

Para abordar-se o cuidado na perspectiva da complexidade faz-se necessário questionar-se primeiramente: o que é cuidado? Quem é o cuidador? Quem necessita de cuidado? E ainda por que cuidamos? Pensa-se que o cuidador é um ser diferente, singular, ser de relações, contextualizado; alguém que está no mundo e com o mundo; percebe a totalidade conectando corpo e mente, sujeito e objeto; compreende as sensações, as emoções e valoriza a experiência do ser humano que cuida dialogando amorosamente; constrói conhecimento com base na dimensão sensível, mas se utiliza dos procedimentos técnico-científicos tão importantes na área da saúde apenas como instrumento de aproximação, de facilitador em busca de um bem-estar, de satisfação do outro em resposta ao que o outro expressa. Um ser capaz de valorizar a percepção do outro como ponto primordial de respeito e ética do cuidado.

Logo, não se pode partir de certezas, verdades científicas, estabilidade. Se tudo está interconectado, em interação constante de transformação, como trabalhar em saúde com conceitos exatos, teorias verdadeiras, processos fragmentados e comportamentos esperados? O cuidado no paradigma da complexidade requer do cuidador responsabilidade, solidariedade, uma profunda mudança na maneira de perceber o ser humano e uma revisão dos princípios éticos procurando compreendê-lo segundo as suas possibilidades. O cuidado "é uma forma de ser, isto é, a forma como a pessoa humana se estrutura e se realiza no mundo com os outros. Melhor ainda: é um modo de ser-no-mundo que funda as relações que se estabelecem com todas as coisas".10:92 Nesse sentido, o cuidado somente surge quando a existência do outro passa a ter importância, possuindo duas significações básicas e que estão interconectadas: a atitude de solicitude e atenção para com o outro e a de preocupação e inquietação.10

Para isso o cuidado implica em conhecer-se a si mesmo, devendo o cuidador "investir para conhecer o outro, mas também a si mesmo, pois quanto mais eu procurar perceber-me tanto mais poderei perceber ao outro e vice-versa".11:02 Isto quer dizer que quanto mais se conhece mais aptos estamos para cuidar do ser humano. É fundamentado na disposição de autoconhecer-se, que o ser humano pode descobrir maneiras que transformem a si, o outro e o mundo a nossa volta.

Nessa linha, pode-se também fazer um chamamento para outro aspecto primordial relacionado à produção de conhecimentos. A partir da perspectiva com que se analisa a realidade empírica do cuidado e os seus diversos determinantes, teremos ou não uma rede de significação que possa a refletir a complexidade do contexto em que se insere. Assim, "consoante à natureza dos conhecimentos utilizados, a sua exclusividade ou a sua diversidade, o seu dogmatismo ou a sua flexibilidade, a sua certeza rigorista ou a sua abertura a incerteza, ao novo, geram comportamentos ou condutas sociais, comprometendo, por vezes, para toda a vida, uma inibição ou uma libertação das capacidades de existir".5:323

Desta forma, a pesquisa e a produção de conhecimentos em enfermagem podem contribuir tanto para reforçar a visão reducionista que já lhe influencia, como para buscar novos subsídios para um cuidado que valorize a subjetividade dos sujeitos e sua complexa interdependência com tudo e com todos. Atualmente, a predominância do cuidado ainda está pautada na visão fragmentada do ser humano. Essa concepção nos faz perder a capacidade de contextualizar, transformando as informações, o conhecimento em um saber no seu contexto natural.

Contudo, isto significa um grande desafio, já que somos produto de uma tradição fortemente assentada em preceitos positivistas e reducionistas. Exercitar esta nova perspectiva apoiada no pensamento complexo requer que a academia, os serviços de saúde, os usuários e os gestores enfrentem este desafio. Este é maior tendo em vista o contexto clássico de formação dos profissionais da saúde, mas referem que este olhar dinâmico e complexo "oferece a oportunidade de uma ação integrada que inclui as diferentes dimensões da experiência humana: a subjetiva, a social, a política, a econômica e a cultural, colocando, portanto, a serviço da saúde, os saberes produzidos nos mais diferentes campos do conhecimento".12:192

Com base no que foi exposto, acredita-se que o caminho mais frutífero, para que se possa consolidar uma matriz de significados mais contemporânea para o cuidado de enfermagem e, portanto, que atenda as reais demandas da sociedade, seja a inter/transdisciplinariedade. Por meio da integração de saberes poderemos chegar a uma faceta de multiplicidade de olhares para um mesmo foco, onde cada qual poderá contribuir com suas experiências, seu modo de pensar o ser humano e o mundo que este está integrado, vislumbrando um caminhar sem prescrições rígidas de como se deve cuidar, entretanto alicerçado no conhecimento fundado na sensibilidade. É preciso reconhecer que ao observar o outro e a si mesmo, tem-se a possibilidade de criar um ambiente simbólico de cuidado, onde melhor expresse a sua complexidade. Logo, não é possível construir um "banco de significados do cuidado", pois este se dá no momento de vida de cada relação, de um ambiente que nós mesmos criamos ao viver com alguém uma relação de cuidado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cuidado de enfermagem é a expressão de uma relação de interdependência, que só existe de fato dentro de um contexto de troca e de despertar para a vida.5 Assim, o ato de cuidar integra a racionalidade ao afeto. Envolve estratégias para completar o potencial de mudanças, de construção e re-construção de conhecimentos, de ruptura de paradigmas, tendo como foco a construção da autonomia e liberdade, síntese das diversas formas de cuidar.

Há a necessidade de que os cuidadores conheçam melhor esta realidade, a fim de que possam unir forma e conteúdo, quantidade e qualidade, razão e sensibilidade. Com isto, acredita-se que se possa cuidar melhor, confrontando e emancipando este cuidado, entendendo dialeticamente a realidade complexa para nela agir e cuidar.

O paradigma vigente ainda não está direcionado totalmente ao ser humano que está sendo cuidado, mas sim na doença, embora já apareçam esforços para transformar esta visão. Nesta perspectiva, a Enfermagem muitas vezes não repensa seu cuidado, sua prática, logo, seu saber. Perde-se a dimensão sobre o cuidado e o papel de cuidar, o que inviabiliza a evolução da profissão, fragmentando o ser humano. Este é o caminho que a Enfermagem vem buscando até mesmo na construção de um trabalho como este, de cunho acadêmico, porém que produz inquietação com a sua presença. Por conseguinte, momentos como estes promovem a reflexão e sabe-se que independente do tempo de leve estimulará a transcendência de uma história que precisa descortinar seus caminhos.

Enfim, o cuidado é um tema que incita a reflexão pela sua complexidade, desperta a solidariedade nas relações entre os cuidadores e seres cuidados. Dessa forma, é fundamental lembrar que "a consciência de que uma relação com o outro é necessária, a capacidade de ser sensível, de conviver com as diferenças, são atitudes de solidariedade. Por representar um valor, ela favorece o potencial criativo, o espírito crítico e a interação enfermeiro/paciente".13:27 Isto é cuidado, isto significa cuidar!

Recebido em: 31/10/2006

Aprovação final: 24/04/2007

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      2006

    Histórico

    • Aceito
      24 Abr 2007
    • Recebido
      31 Out 2006
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