Resumos
Atualmente os principais serviços de tratamento para pessoas com problemas relacionados ao álcool e outras drogas seguem os princípios do Sistema Único de Saúde Brasileiro e são orientados pelas atuais políticas de saúde mental. Objetivou-se conhecer as intervenções previstas pelos documentos, observar estas intervenções no dia-a-dia e problematizar possíveis fragilidades destas práticas num destes serviços. Os parâmetros para análise foram a Política Nacional sobre Drogas, a Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral dos Usuários de álcool e drogas e preconizações da Organização Mundial da Saúde com relação à prevenção e controle do uso abusivo de drogas. As técnicas metodológicas foram a análise documental e a observação-participante. Evidenciaram-se importantes avanços como: preconização de intersetorialidade, integralidade e ações focadas no ambiente social. Como fragilidade destaca-se certa dificuldade na consolidação das seguintes ações: busca ativa, atividades de lazer, trabalho e redução de danos.
Saúde mental; Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Política de saúde; Desinstitucionalização; Enfermagem
En la actualidad los servicios principales de tratamiento para las personas con problemas relacionados con el alcohol y otras drogas están en conformidad con los principios del Sistema Único de Salud brasileño y las actuales políticas de salud mental. Este estudio tuvo el objetivo de aprender acerca de las intervenciones recomendadas por los documentos, teniendo en cuenta estas intervenciones en el día a día y discutir las posibles deficiencias en las prácticas de uno de estos servicios. Se adoptó como parámetros para el análisis, las Política Nacional sobre Drogas, y Política del Ministerio de la Salud para Atención Integral de los Usuarios de alcohol y drogas bien como orientaciones de la Organización Mundial de la Salud con relación a la prevención del uso abusivo de drogas. Fueron utilizadas las técnicas de análisis documental y observación-participante. Importantes avances se evidenciaron como la preconización de la acción intersectorial, integral y centrada en el entorno social. Se destaca como debilidad, la dificultad en la consolidación de las siguientes acciones: búsqueda activa, actividades de ocio, trabajo y reducción de daños.
Salud mental; Trastornos relacionados con sustancias; Políticas de salud; Desinstitucionalización; Enfermería
Currently the major day treatment services for people with problems related alcohol and other drugs are in accordance with the principles of the Brazilian Health System and guided by recent mental health politics. Aimed to know the interventions provided by documents, to observe these interventions in practical context of a these services and to problematize possible weaknesses. The parameters of analyze were the National Policies of Drugs, the Health Ministry's Policy to Integral Attention of the Alcohol and Drugs Users and the recommendation of the WHO to prevent of drugs abuse. The methodological techniques were the documentary analysis and participant-observation. Were seen important advances like: recommendation to intersectoral actions, integrality and actions focused in social context. About the fragilities were highlighted some difficulty in the consolidation of the some actions, as: active search, leisure activity, work and harm reduction.
Mental health; Substance related-disorders; Health policy; Deinstitutionalization; Nursing
ARTIGO ORIGINAL
Intervenções de saúde mental para dependentes de álcool e outras drogas: das políticas à prática cotidiana1 1 Extraído da dissertação - Intervenções de um serviço de saúde mental direcionadas aos usuários sob tratamento pelo uso abusivo de substâncias psicoativas: das políticas e documentação à prática cotidiana, apresentada à Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da Universidade de São Paulo (USP), em 2008. Subprojeto da pesquisa - Avaliação dos Centros de Atenção Psicossocial da Região Sul do Brasil. Edital Ministério de Ciência e Tecnologia/CNPq/Ministério da Saúde SCTIE-DECIT/CT Saúde 07/2005.
Intervenciones de salud mental para usuarios de drogas: de las políticas y documentación a la práctica cotidiana
Jacqueline de SouzaI; Luciane Prado KantorskiII; Margarita Antonia Villar LuisIII; Nunila Ferreira de OliveiraIV
IDoutora em Ciências. Professora do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da EERP/USP. São Paulo, Brasil. E-mail: jacsouza2003@yahoo.com.br
IIDoutora em Enfermagem. Professora Adjunto da Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia da Universidade Federal de Pelotas. São Paulo, Brasil. E-mail: kantorski@uol.com
IIIDoutora em Enfermagem. Professora Titular do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da EERP/USP. São Paulo, Brasil. E-mail: margarit@eerp.usp.br
IVDoutoranda em Ciências do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da EERP/USP. São Paulo, Brasil. E-mail: nunilaferreira@gmail.com
Correspondência Correspondência: Jacqueline de Souza Av. Dos Bandeirantes, 3900 14040-902 Campus USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil E-mail: jacsouza2003@yahoo.com.br
RESUMO
Atualmente os principais serviços de tratamento para pessoas com problemas relacionados ao álcool e outras drogas seguem os princípios do Sistema Único de Saúde Brasileiro e são orientados pelas atuais políticas de saúde mental. Objetivou-se conhecer as intervenções previstas pelos documentos, observar estas intervenções no dia-a-dia e problematizar possíveis fragilidades destas práticas num destes serviços. Os parâmetros para análise foram a Política Nacional sobre Drogas, a Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral dos Usuários de álcool e drogas e preconizações da Organização Mundial da Saúde com relação à prevenção e controle do uso abusivo de drogas. As técnicas metodológicas foram a análise documental e a observação-participante. Evidenciaram-se importantes avanços como: preconização de intersetorialidade, integralidade e ações focadas no ambiente social. Como fragilidade destaca-se certa dificuldade na consolidação das seguintes ações: busca ativa, atividades de lazer, trabalho e redução de danos.
Descritores: Saúde mental. Transtornos relacionados ao uso de substâncias. Política de saúde. Desinstitucionalização. Enfermagem.
RESUMEN
En la actualidad los servicios principales de tratamiento para las personas con problemas relacionados con el alcohol y otras drogas están en conformidad con los principios del Sistema Único de Salud brasileño y las actuales políticas de salud mental. Este estudio tuvo el objetivo de aprender acerca de las intervenciones recomendadas por los documentos, teniendo en cuenta estas intervenciones en el día a día y discutir las posibles deficiencias en las prácticas de uno de estos servicios. Se adoptó como parámetros para el análisis, las Política Nacional sobre Drogas, y Política del Ministerio de la Salud para Atención Integral de los Usuarios de alcohol y drogas bien como orientaciones de la Organización Mundial de la Salud con relación a la prevención del uso abusivo de drogas. Fueron utilizadas las técnicas de análisis documental y observación-participante. Importantes avances se evidenciaron como la preconización de la acción intersectorial, integral y centrada en el entorno social. Se destaca como debilidad, la dificultad en la consolidación de las siguientes acciones: búsqueda activa, actividades de ocio, trabajo y reducción de daños.
Descriptores: Salud mental. Trastornos relacionados con sustancias. Políticas de salud. Desinstitucionalización. Enfermería.
INTRODUÇÃO
A complexidade dos problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas demanda diferentes opções de tratamento. Atualmente, as principais abordagens utilizadas mesclam intervenções de caráter cognitivo-comportamentais (prevenção de recaída, entrevista motivacional, por exemplo), autoajuda e tratamento medicamentoso, com índices muito semelhantes e baixos de abstinência após o tratamento.1
A teoria cognitivo-comportamental pressupõe que o reforço negativo diminui a frequência de um comportamento indesejado e propõe psicoterapia breve para modificar ideias distorcidas e comportamentos disfuncionais através da sensibilização do indivíduo a pensar sobre si e sua atuação no mundo.2-4
A Prevenção da Recaída (PR) mescla o treinamento de habilidades comportamentais, intervenções cognitivas e mudanças do estilo de vida. Entende-se que o indivíduo pode voltar a usar drogas em situações de alto risco e, uma vez identificado tal risco, é possível desenvolver estratégias eficazes de enfrentamento.5
Já a Entrevista Motivacional, também baseada em princípios cognitivos, visa auxiliar o sujeito nos processos de mudanças comportamentais através da modificação dos padrões de pensamento, entendimento das reações emocionais e implementação de soluções.6
Além disso, intervenção sistemática com as famílias e a mobilização de diferentes recursos da sociedade no intuito de identificar situações de risco e construir estratégias de enfrentamento são práticas importantes e devem estar atreladas às demais abordagens.7
O modelo de redução de danos é uma abordagem que tem assumido relevância no cenário das drogas. De acordo com o Programa de Orientação e Atendimento aos Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (PROAD-UNIFESP), o objetivo é minimizar os efeitos danosos das drogas para melhoria do bem-estar físico e social dos usuários. Para isso são realizados trabalhos de campo nas ruas, em hospitais e em prisões, para tornar mais acessíveis os serviços de saúde, e propiciar oportunidades de reabilitação social. Recomenda-se que os profissionais que atuam neste programa assumam postura compreensiva e inclusiva a fim de evitar o uso de substâncias psicoativas ou o envolvimento precoce; ajudar os sujeitos já envolvidos a não se tornar dependentes e aos já dependentes oferecer meios para o abandono da droga ou orientações para que tenham menos prejuízos.8
Alguns serviços especializados na abordagem de indivíduos com problemas pelo uso abusivo ou dependência de substâncias são: hospitais-dia, clínicas especializadas, fazendas de recuperação (ou serviços residenciais), grupos de auto-ajuda que seguem o modelo de 12-passos (Alcoólicos Anônimos-AA, Narcóticos Anônimos-NA e outros grupos) e, especificamente no Brasil, os Centros de Atenção Psicossocial álcool e drogas (CAPSs ad).9-12
Os CAPSs ad são serviços de saúde mental de base comunitária preconizados pelas atuais políticas de saúde mental, como um dos componentes da rede de atenção às demandas decorrentes do uso de substâncias psicoativas.9-10 No CAPS ad, a atenção aos usuários e dependentes de substâncias conta com atividades terapêuticas e preventivas, tais como: atendimento individual (medicamentoso, psicoterápico, de orientação), atendimento em grupo (psicoterapia, grupo operativo, atividade de suporte social), oficinas terapêuticas, visitas domiciliares, atendimento às famílias e atividades comunitárias.12
Apesar do leque de possibilidades de intervenção nestes serviços, alguns pesquisadores da área,11,13-14 têm apontado a necessidade de melhorias visando aumentar a adesão e resolubilidade das ações. Neste contexto, destaca-se a demanda por estudos que proporcionem um panorama das práticas dos CAPSs ad de modo a problematizar os saberes e as práticas profissionais nestes dispositivos de atenção.
Objetivou-se neste estudo: 1) conhecer as intervenções previstas pelos documentos que embasam o funcionamento do Centro de Atenção ao Dependente Químico (CADEQ) do município de Alegrete-RS; 2) evidenciar tais ações no contexto prático; e 3) identificar as fragilidades destas práticas. O alcance de tais objetivos permitirão problematizar alguns aspectos a serem considerados na melhoria continuada da assistência em saúde mental aos dependentes de álcool e drogas.
METODOLOGIA
O presente estudo advém de uma pesquisa de caráter avaliativo dos CAPSs da região Sul do Brasil, e concentrou-se no CADEQ do município de Alegrete-RS, serviço cadastrado como CAPS ad. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (ofício 058/06).
As técnicas adotadas foram observação-participante técnica de observação sistemática em que o pesquisador/observador se insere na realidade a ser estudada com a finalidade de apreendê-la ampla e detalhadamente,15 e análise documental, cuja proposta é realizar extração científico-informativa de informações dos documentos, para obter um reflexo objetivo da fonte original e também novas mensagens implícitas no documento.16
A observação-participante (682hs) foi realizada por três pesquisadores previamente treinados para a coleta de dados em pesquisa qualitativa, e as observações foram registradas em diário de campo, no local, ou posteriormente. Diariamente, após o término do expediente do serviço os pesquisadores discutiam as observações registradas nos respectivos diários de campo, para que fosse alcançado o máximo de cobertura das ações do serviço.
Os documentos selecionados para o levantamento dos dados foram: Plano Plurianual Projeto do Serviço de Saúde Mental (DOC-1), Planejamento 2006 (DOC-2), Documento Base para uma Política de Atenção Psicossocial ao álcool e outras drogas no Município de Alegrete 2006 (DOC-3) e Projeto Técnico do CADEQ 2005 (DOC-4).
O critério para tal seleção foi que o documento fizesse referência às ações de saúde mental ofertadas, previstas ou instituídas como intervenção. Assim, a análise documental foi feita tendo como parâmetro: a Política Nacional sobre Drogas,17 a Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral dos Usuários de álcool e drogas12 e preconizações da Organização Mundial da Saúde com relação à prevenção e controle do uso abusivo de drogas.18
Na análise dos dados, primeiramente procedeu-se à análise documental, extraindo o conteúdo principal de cada documento, e leitura sistemática para identificação da convergência dos itens com as políticas de saúde mental.
Após releituras sucessivas destacaram-se as intervenções previstas pelos documentos. Estas foram elencadas em uma matriz de acordo com a divisão proposta pela OMS18 para os métodos de prevenção e controle do uso abusivo de drogas: métodos diretos (ações centradas na conduta do usuário de drogas) e métodos indiretos (práticas direcionadas aos fatores relacionados com o uso das drogas visando à correção das condições "determinantes" do uso para diminuir o consumo e seus respectivos problemas). Os métodos indiretos contemplam a seguinte subdivisão: a) Método da Saúde Mental o abuso de drogas é considerado uma conseqüência do estresse psicológico. As ações são voltadas para eliminação das fontes de tensão emocional através da detecção e assistência precoce e programas educacionais e de adestramento (reforço da autoconfiança, comunicação social do indivíduo, relações familiares, etc.); b) Estratégia de Promoção da Saúde considera-se que a melhoria da percepção do indivíduo sobre a saúde pode incentivar o abandono e a não adoção de práticas nocivas. As ações são centradas em hábitos e modos de vida e responsabilidade individual (alimentação, trabalho, exercício, ócio); e c) Método do ambiente social considera que as condições sociais são determinantes ou favorecem o uso abusivo de drogas; as ações, portanto, pretendem eliminar ou corrigir as influências sociais negativas. "Os programas deste tipo atacam problemas tais como a pobreza, a vida inadequada, o desemprego, a falta de oportunidade de acesso a atividades produtivas, as atividades de lazer perigosas, a alienação social e a marginalização".18:49
As intervenções foram confrontadas com os dados da observação-participante para identificar aquelas que foram ou não evidenciadas nas práticas do serviço durante o período do estudo, considerando os parâmetros adotados para a análise.
A figura 1 apresenta a estruturação dos dados e o foco da discussão dos resultados.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O quadro 1 apresenta o conteúdo básico dos documentos analisados. Conforme pode ser observado cada documento possui conteúdos específicos, no entanto todos estão alinhados com a proposta das atuais políticas de saúde mental.
O DOC-1 consiste num plano de metas que apresenta a inserção social dos portadores de sofrimento psíquico na sociedade, o resgate da cidadania e o atendimento multiprofissional como objetivos-chave. Apresenta ações para o cumprimento de tais objetivos e seus respectivos prazos. A proposta geral é melhoria contínua na qualidade dos serviços prestados.
O DOC-2 aponta várias necessidades de melhorias, dentre estas a qualificação do acolhimento. Tal aspecto tem grande relevância pois o acolhimento consiste numa técnica primordial para o estabelecimento do vínculo com o usuário e consequentemente para sua adesão ao tratamento ou encaminhamento para os outros serviços da rede, se necessário.
Os fatores que merecem destaque no DOC-2 são: a preconização de capacitação contínua para profissionais da Atenção Básica e do hospital geral da cidade, cursos para a equipe da recepção (recepcionistas) e reuniões de estudo com a participação de toda a equipe. A reunião de equipe e a capacitação são apresentadas como prioridades.
A valorização da equipe e a dedicação para qualificar os profissionais conformam uma política de administração de recursos humanos coerente com as propostas de valorização do ser humano e de horizontalização das relações. Tal preocupação é coerente com a preconização do Ministério da Saúde no tocante à Educação Permanente em Saúde.
Os princípios do serviço são apresentados no DOC-3 e convergem com os princípios do SUS e da política de saúde mental, como por exemplo, a integralidade da atenção, a eqüidade na assistência, a saúde como direito de todos, acolhimento, vínculo, trabalho em equipe interdisciplinar e intersetorialidade.
O DOC-4 apresenta como objetivo do serviço buscar a integralidade nas ações de prevenção, promoção e reabilitação em saúde às pessoas vulneráveis ao abuso de álcool e outras drogas na comunidade, observando os princípios do Sistema Único de Saúde.
A análise do conjunto dos documentos permitiu identificar que a teoria que embasa as práticas prevê hierarquização das ações nos diferentes espaços de construção da subjetividade do sujeito: íntimo-individual, grupo-pessoal, público-institucional e sócio-comunitário, primando por ações intersetoriais e foco na integralidade da atenção, aspectos que convergem com as preconizações das políticas adotadas como parâmetro para a análise neste estudo.
Intervenções: da documentação à prática cotidiana
Os dados documentais (Quadro 2) e a observação participante permitiram evidenciar que algumas intervenções preconizadas não eram efetivadas no período do estudo.
As intervenções 1 a 16, 18 a 21, 23 a 26, 28 e 30 foram evidenciadas durante a observação-participante; destas, destacam-se as intervenções 14, 26 e 30. As intervenções 17, 22, 27, 29 e 31 não foram evidenciadas durante a observação-participante.
As intervenções, considerando o conjunto dos documentos, encontram-se distribuídas entre os quatro métodos propostos pela OMS18 (Quadro 2). É visível o predomínio de intervenções pertencentes ao método indireto, o qual possui características do modelo psicossocial de atenção em saúde mental.
As intervenções do método direto (atendimentos centrados na conduta do usuário) foram citadas em todos os documentos selecionados. Embora tais intervenções pertençam ao modelo tradicional de atenção em saúde mental, os dados da observação permitiram identificar algumas características que, dentro do conjunto das propostas do serviço, refletem também especificidades do modelo psicossocial.
Das ações do método indireto (centradas nos determinantes do uso de drogas), algumas intervenções destacaram-se, a saber as numeradas como 14, 26, e 30 (Quadro 2).
O acompanhamento do usuário do CADEQ quando este é submetido à internação (intervenção 14) tem grande relevância, pois propicia o acompanhamento do indivíduo num momento crítico de seu tratamento, possibilita fortalecimento do vínculo profissional-usuário e da interação entre os trabalhadores dos diferentes serviços: hospital e CADEQ. Esta ação expressa cuidado e preocupação com o indivíduo e cumpre as orientações relacionadas ao acolhimento, referenciação e co-responsabilização.
O apoio e orientação para o uso e administração do recurso previdenciário (intervenção 26), consiste numa prática direcionada aos indivíduos com maior comprometimento psíquico (por exemplo, aqueles com comorbidades psiquiátricas) e efetivada pelos diferentes profissionais do nível médio ou superior.
Tal intervenção abrange desde o acompanhamento do usuário nos trâmites bancários e no planejamento dos gastos mensais (compra de alimentos, dinheiro para o final de semana, lazer), até a organização orçamentária, pesquisa e efetivação da aquisição de móveis, eletrodomésticos ou melhorias no domicílio, de acordo com a necessidade do sujeito.
A ação é realizada de fato junto com o usuário (e não para o usuário) e tem importância fundamental por possibilitar o aprendizado progressivo focando a autonomia do sujeito, contrastando-se com o caráter tutelar das práticas do modelo de cuidado tradicional.
O caráter interdisciplinar pressupõe a participação dos profissionais em determinadas atividades independente de sua formação, exceto naquelas delimitadas pelos respectivos conselhos. Todavia, no caso dos enfermeiros do referido serviço, observou-se que o envolvimento nas atividades voltadas para a educação sanitária, orientação no uso de medicamentos, motivação para a continuidade no tratamento, estava atrelada apenas ao compromisso pessoal, isto é, tais atividades não eram consideradas como corpo de competências específico deste profissional.
Esta questão nos remete à discussão sobre o núcleo e campo de competência em saúde mental. Entende-se o núcleo como o conjunto de saberes e responsabilidades específicos a cada profissional.19 Em relação ao enfermeiro, poderíamos considerar seu núcleo de competência centrado em três dimensões: o cuidado de enfermagem; o monitoramento das condições de saúde individual e coletiva (por meio de consulta individual e/ou em atendimento grupal) e as ações gerenciais voltadas ao cuidado.20-21
Por campo entende-se os saberes e responsabilidades comuns ou confluentes a vários profissionais ou especialidades.19 Por exemplo, o conhecimento que toda a equipe de trabalho deve ter sobre os princípios básicos do Sistema Único de Saúde e sobre as diretrizes que norteiam as atuais políticas de saúde mental.
Assim, o fato do profissional enfermeiro não ter papel definido no contexto da atenção em reabilitação psicossocial é uma questão relacionada ao núcleo e campo de competências em saúde mental e necessita ser problematizada para que a enfermagem se consolide como uma figura que atue interdisciplinarmente, mas também que domine as competências que lhes são específicas. O projeto "Rodas do Saber" (ação 30) envolve o CADEQ e os demais dispositivos da rede de saúde mental (Figura 2). Sua efetivação se dá através de encontros periódicos e têm a forma de "Mateadas Culturais" (grupo que se reúne para tomar chimarrão, bebida típica do Rio Grande do Sul).
Ocorrem nos moldes de plenárias, painéis, palestras informativas e outras técnicas de produção do saber estruturadas previamente pelos participantes. Há um planejamento prévio com relação à temática a ser discutida e respectivos responsáveis pelo conteúdo, organização e divulgação para os próximos encontros.
Tal ação pode ser identificada como base importante para a manutenção da intersetorialidade e atenção integral no município, pois os representantes dos diferentes serviços que compõe a rede de saúde mental realizam o planejamento estratégico, a organização dos serviços e o fluxo para os demais espaços de cuidado através da troca de experiências, saberes e informações. Estes encontros estimulam a visão crítica em torno do saber em saúde mental coletiva e das políticas públicas e possibilitam a organização do sistema de referência e contra-referência à luz das práticas dos sistemas de educação, saúde, assistência social e justiça.
Apesar dessa possibilidade de articulação intersetorial, inexistiam intervenções envolvendo o CADEQ e a equipe do Programa de Redução de Danos (intervenção 31), embora DOC-4 preveja esse tipo de articulação. Isto aponta uma fragilidade na efetivação do princípio de intersetorialidade entre dois serviços (CADEQ e Programa de Redução de Danos) que tem foco numa mesma problemática: o uso abusivo de substâncias psicoativas; e pressupõem ações num mesmo âmbito: nas redes sociais.
Os passeios e participação em eventos externos ao serviço (Quadro 2, intervenção 22) não foram observados durante o período do trabalho de campo, embora houvessem fotografias de passeios, festas e viagens realizados em momentos anteriores ao estudo.
Além disso, o CADEQ não realiza a busca ativa (intervenção 17) prática preconizada pela Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral dos Usuários de álcool e Organização Mundial da Saúde.
A busca ativa, em seu conceito tradicional, consiste num procedimento técnico específico da vigilância epidemiológica que significa ir à procura de indivíduos para identificar precocemente certas sintomatologias visando o controle de doenças sobre as populações vulneráveis. As atuais políticas de saúde, ao conceber o território como princípio organizador das ações, assumem a busca ativa como postura política que prevê tecnologias de trabalho que operem em movimento (visitas domiciliares, agentes comunitários de saúde, redutores de danos, acompanhantes terapêuticos). Trata-se de uma postura ativa para acessar os usuários e suas necessidades em detrimento do automatismo da demanda espontânea.22
A ideia de ajuda ativa6 transcende a ação "buscar" pois diz respeito a manter uma postura ativa, positiva e interessada mediante as diferentes necessidades do usuário. Contempla: motivar para o tratamento, contato com o usuário quando ele falta no atendimento, acompanhamento co-responsável quando ele for encaminhado para outro serviço e outras atitudes de demonstração de cuidado com o sujeito. Entende-se que este tipo de intervenção é imprescindível junto aos usuários e dependentes de substâncias, pois a busca ativa como expressão de ajuda e cuidado certamente terá repercussões importantes na motivação e adesão destes indivíduos ao tratamento.
Também não foram observadas quaisquer ações ou articulação externas voltadas à inserção dos usuários no mercado de trabalho. Isto pode ser considerado mais um ponto crítico, pois a exclusão do mercado de trabalho é uma questão que acentua a influência de todos os demais determinantes do processo saúde doença (por exemplo, a autoestima, o autoprovimento, a possibilidade de atividades de lazer, a autonomia, relações sociais, etc.).
De um modo geral, o conjunto de ações não efetivadas pelo serviço estudado (Quadro 2, intervenções 17, 22, 27, 29 e 31) denota certa dificuldade dos profissionais em "exteriorizar" suas práticas de saúde mental, ou seja, de atuarem mais ativa e efetivamente nos espaços comunitários não restringindo suas ações ao espaço físico do serviço.
Tal dificuldade foi constatada também por outro estudo realizado em CAPSad da região Sul do Rio Grande do Sul7 e evidencia um problema que merece redobrada atenção, principalmente por ter sido constatado em dois serviços de base comunitária.
Considerações para a melhoria da assistência em saúde mental de base comunitária
O corpo de documentos analisados ressaltou a preocupação constante com a melhoria da qualidade da atenção. A partir disto, convém tecer algumas proposições no tocante à prática de saúde mental nos serviços de base comunitária.
Com base nas discussões prévias relacionadas às intervenções não efetivadas pelo serviço, depreende-se a pertinência de um chamamento à "exteriorização das práticas", termo concebido como colocar a instituição em movimento interrogando: as relações de poder, as diversas formas de cristalização das ações e distanciamento e os diferentes modos de "fechamento de portas" que se produzem no cotidiano.23
Ao considerar a reinserção do portador de sofrimento psíquico no espaço social como o princípio fundamental que norteia as práticas no novo modelo de atenção em saúde mental, depreende-se que a convivência do indivíduo sob tratamento em diferentes espaços sociais é o indicador do que é terapêutico nas ações.24
Dessa forma a circulação do usuário é primordial e deve ser a finalidade principal de toda e qualquer ação terapêutica, sobretudo por proporcionar a ampliação dos vínculos e possibilitar ao sujeito inserções que não o reduzem ao seu problema psíquico25 e ampliem o seu poder de efetuar trocas sociais.
Tais premissas remetem às argumentações em prol da consolidação de uma "clínica peripatética", entendida como a clínica praticada fora dos settings habituais (espaços, cenários, situações utilizadas para efetivação das técnicas terapêuticas) na abordagem dos problemas que não têm obtido resposta nos protocolos tradicionais; isto é, uma clínica que seja praticada em movimento e fora dos espaços convencionais possibilitando novas práticas e novas conexões. Tal proposta é apresentada como sendo o cerne da clínica antimanicomial, ou seja, objetiva, primordialmente, a interação do usuário com a cidade e as pessoas através de movimentos diversos no âmbito externo da unidade de saúde.26
A imagem de uma "clínica em movimento", isto é, práticas de intervenção em trânsito no território, remete diretamente às ações do Redução de Danos, cuja abordagem do usuário é realizada in loco, nas ruas, nas casas, nos locais de encontros entre as pessoas.6
Com base nas evidências de um estudo sobre o CAPS ad e o Redução de Danos (RD) em um município do Rio Grande do Sul,13 pontua-se que os Centros de Atenção Psicossocial se beneficiariam muito de uma interação com as equipes de RD, que possuem o diferencial de transitar pela comunidade com maior facilidade, agindo de modo a garantir, não só o direito de entrada como o de circulação e permanência nas áreas mais críticas dos bairros mais periféricos dos municípios em que atuam.
Este diferencial está diretamente relacionado ao objetivo estratégico das ações do RD: aproximar-se da população a fim de adquirir oportunidades de intervenção e propor técnicas relacionadas às questões íntimas da vida de cada um, como a sexualidade e o uso de drogas.26
A iniciativa por parte dos profissionais de circular "descompromissadamente" pelo território de cobertura do serviço poderia funcionar como um exercício em prol de conhecer, estar e transitar num espaço que não é o seu e que, portanto, atenua a idéia de poder que comumente delimita a relação entre o profissional e o usuário. A partir desta inserção do profissional na comunidade podem surgir novas alternativas de intervenção.27
CONCLUSÃO
A partir dos três objetivos elencados neste estudo, realizou-se análise da documentação e da prática do serviço confrontando-as com as atuais políticas sobre álcool e outras drogas no Brasil. Além disso, problematizou-se as fragilidades pontuadas e isso permitiu traçar algumas recomendações.
Na análise dos documentos constatou-se que a teoria que embasa as intervenções está fortemente alinhada com os princípios do SUS e atuais políticas de saúde mental. Os princípios adotados pelo CADEQ são integralidade, intersetorialidade e equidade. As prioridades, de acordo com os documentos, são inserção social, resgate da cidadania e saúde como direito. Para operacionalização das práticas prevê-se qualificação do acolhimento, fortalecimento do vínculo, abordagens preventivas, promoção da saúde e reabilitação.
A observação da prática mostrou que são desenvolvidas ações do método direto (atendimentos individuais e medicação) e indireto. Quanto ao método indireto as ações de saúde mental observadas foram acolhimento, escuta, reuniões e assembléias, visitas domiciliares, atendimento familiar, projeto terapêutico individual. Já as estratégias de promoção da saúde eram, basicamente, oficinas e grupos.
Intervenções no ambiente social foram as menos observadas durante o período do estudo. Apesar disso, houve predomínio das ações do método indireto, isto é, intervenções focadas nos determinantes do uso de drogas.
As ações que mais se destacaram positivamente dizem respeito à interação com outros serviços (por exemplo, projeto "Rodas do Saber" e acompanhamento dos pacientes quando vão para internação). O apoio e orientação para uso do benefício previdenciário é também uma estratégia importante para promoção da autonomia dos sujeitos.
Quanto às fragilidades, a não articulação com o serviço de Redução de Danos, o não engajamento em atividades relacionadas ao lazer e trabalho e a não realização de busca ativa sinalizam a necessidade de maior atuação nos espaços comunitários.
A falta de definição efetiva do papel do enfermeiro no contexto da atenção psicossocial foi problematizada, e sugere-se que as competências do núcleo e campo da enfermagem sejam melhor definidas e articuladas. Isso pode ser uma estratégia chave para suprir as lacunas que conferem certa fragilidade nas práticas do serviço estudado e, possivelmente dos CAPSs ad de uma forma geral.
Uma limitação deste estudo é contemplar apenas uma instituição. A inclusão de outros serviços deste tipo poderia ampliar as perspectivas das discussões. Também seria importante a inclusão da percepção dos diferentes sujeitos envolvidos na assistência, a saber, profissionais, usuários e familiares, estes aspectos poderão ser explorados em estudos posteriores.
REFERÊNCIAS
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Recebido: 1º de Fevereiro de 2011
Aprovação: 17 de Maio de 2012
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Correspondência:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Jan 2013 -
Data do Fascículo
Dez 2012
Histórico
-
Recebido
01 Fev 2011 -
Aceito
17 Maio 2012