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CONSTRUÇÃO SOCIAL DE SENTIDOS SOBRE A GRAVIDEZ-MATERNIDADE ENTRE ADOLESCENTES1 1 Extraído da dissertação - Adolescentes e a rede de produção de sentidos sobre o cuidado de si na gestação, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em 2015, integrante da pesquisa matricial - Saúde de adolescentes: discursos, práticas e reflexões críticas.

RESUMO

Buscou-se compreender a construção social de sentidos sobre a gravidez-maternidade entre adolescentes grávidas. Estudo explicativo, realizado em 2014, com 12 adolescentes, por meio de entrevista individual e grupal, observação do contexto local, consulta a documentos e preceitos da Análise de Discurso Crítica de Fairclough. Encontrou-se o sentido de compatibilidade entre a gravidez e a adolescência e de contraposição ao discurso dominante de gravidez adolescente como um problema. O evento respondia ao que as adolescentes projetavam para si, em um contexto restrito de oportunidades sociais. Valorizavam-no com base em um ideal social de maternidade e de constituição familiar, prevendo reconhecimento social, comprovação da feminilidade e maior poder e autonomia. Contudo, esses ganhos mostraram-se atravessados por dificuldades percebidas, tais como enfrentar o crivo familiar e a "dolorosa" parturição. A compreensão contextualizada desses sentidos e de seu conteúdo social e ideológico é essencial ao desenvolvimento de maior grau de autonomia-responsabilização das adolescentes.

Gravidez; Adolescente; Comunicação; Cuidado pré-natal

ABSTRACT

This study aimed to comprehend the social construction of meanings about pregnancy-motherhood among pregnant adolescents. An explicative study, conducted in 2014, with 12 adolescents, using individual and group interview, local context observation, consultation of documents and precepts of Fairclough's Critical Discourse Analysis. The meaning of compatibility between pregnancy and adolescence was found, and the contraposition to the dominant discourse of adolescent pregnancy as a problem. The event answered that to which teenagers projected for themselves, in a restricted context of social opportunities. They valued it as a social ideal of maternity and family constitution, foreseeing social recognition, evidence of femininity and greater power and autonomy. However, these gains showed themselves crossed by difficulties seen, such as confronting the family evaluation and the "painful" parity. The comprehension contextualized of these meanings and of the social and ideological content is essential to the development of a higher degree of autonomy-accountability of adolescents.

Pregnancy; Adolescent; Communication; Prenatal care

RESUMEN

Se buscó comprehender la construcción social de sentidos sobre embarazo-maternidad entre adolescentes embarazadas. Estudio explicativo, realizado en 2014, con 12 adolescentes, por medio de entrevista individual y grupal, observación del contexto local, consulta al documentos y preceptos de Análisis de Discurso Crítica de Fairclough. Se encontró el sentido de compatibilidad entre el embarazo y adolescencia y de contraposición al discurso dominante de embarazo como un problema. El evento respondía al que las adolescentes proyectaban para si, en uno contexto restringido de oportunidades sociales. Lo valoran con base en un ideal social de maternidad y de constitución familiar, prebendo reconocimiento social, comprobación de feminidad y mayor poder y autonomía. Sin embargo, esas ganancias se muestran atravesados por dificultades percibidas, como enfrentar el juicio familiar y el "doloroso" parto. La comprensión contextualizada de estos sentidos y su contenido social y ideológico es esencial al desenvolvimiento de mayor grado de autonomía-responsabilidad de adolescentes.

Embarazo; Adolescente; Comunicación; Atención prenatal

INTRODUÇÃO

Comumente, no pré-natal, dá-se pouco espaço às experiências das adolescentes com a gravidez-maternidade e aos seus pontos de vista sobre o assunto, negando-se a importância destes frente à gravidez em curso e também no planejamento e efetivação de uma gravidez futura. Os sentidos valorados pelos trabalhadores impõem-se aos das adolescentes. Estudos sobre o pré-natal,11. Alvez A, Albino AT, Zampieri MFM. Um olhar das adolescentes sobre as mudanças na gravidez: promovendo a saúde mental na atenção básica. REME Rev Min Enferm. 2011 Out-Dez; 15(4):545-55.

2. Parenti PW, Silva LCFP, Melo CRM, Clapis MJ. Cuidado pré-natal às adolescentes: Competências das enfermeiras. Rev Baiana Enferm. 2012 Mai-Ago; 26(2):498-509.
-33. Santos MMAS, Saunders C, Baiao MR. A relação interpessoal entre profissionais de saúde e adolescente gestante: distanciamentos e aproximações de uma prática integral e humanizada. Cien Saude Colet. 2012; 17(3):775-86. realizados em contextos variados, apontam a presença de ações e relações mecânicas, impessoais e impositivas, além de condutas de moralização e de responsabilização de adolescentes pela gravidez, considerada socialmente "indevida" para a fase da adolescência.

A necessidade de mudar essas práticas requer, dentre outros aspectos, a compreensão da intersubjetividade envolta no lidar com a própria fecundidade e no modo de adolescentes viverem e pensarem as suas vidas e se colocarem frente à gravidez e maternidade, sem deixar de contextualizá-la, dado que se encontra intrinsecamente ligada à forma como aquelas tomam decisões, projetam o futuro e efetivam práticas de cuidado de si.

Vários estudos11. Alvez A, Albino AT, Zampieri MFM. Um olhar das adolescentes sobre as mudanças na gravidez: promovendo a saúde mental na atenção básica. REME Rev Min Enferm. 2011 Out-Dez; 15(4):545-55.,44. Farias R, Moré COO. Repercussões da gravidez em adolescentes de 10 a 14 anos em contexto de vulnerabilidade social. Psicol Refl Crít. 2012; 25(3):596-604.

5. Gómez-Sotelo A, Gutiérrez-Malaver ME, Izzedin-Bouquet R, Sánchez-Martínez LM, Herrera-Medina NE, Ballesteros-Cabrera M. Representaciones sociales del embarazo y la maternidade en adolescentes primigestantes y multigestantes en Bogotá. Rev Salud Pública. 2012; 14(2):189-99.

6. Albuquerque-Souza AX, Nóbrega SM, Coutinho MPL. Representações sociais de adolescentes grávidas sobre a gravidez na adolescência. Psicol Soc. 2012; 24(3):588-96.

7. Dias ACG, Patias ND, Fiorin PC, Dellatorre MZ. O significado da maternidade na adolescência para jovens gestantes. RBHCS. 2011; 3(6):153-67.
-88. Santos KA. Teenage pregnancy contextualized: understanding reproductive intentions in a Brazilian shantytown. Cad Saude Publica. 2012 Apr; 28(4):655-64. descrevem e debatem as experiências e os olhares do grupo, em especial da mulher, a respeito do processo de gerar na adolescência. Os mesmos tratam de aspectos distintos da questão - da gênese e repercussões da gestação-maternidade, das ações e planos de adolescentes, dos apoios/suportes ao processo, dentre outros - em momentos e situações diversos do processo reprodutivo ou fora dele, privilegiando contextos ora de menor, ora de maior vulnerabilidade. As perspectivas neles adotadas são diversificadas e trazem contribuições importantes à compreensão da questão, mas ainda que alguns66. Albuquerque-Souza AX, Nóbrega SM, Coutinho MPL. Representações sociais de adolescentes grávidas sobre a gravidez na adolescência. Psicol Soc. 2012; 24(3):588-96.

7. Dias ACG, Patias ND, Fiorin PC, Dellatorre MZ. O significado da maternidade na adolescência para jovens gestantes. RBHCS. 2011; 3(6):153-67.
-88. Santos KA. Teenage pregnancy contextualized: understanding reproductive intentions in a Brazilian shantytown. Cad Saude Publica. 2012 Apr; 28(4):655-64. se atenham à natureza social e relacional da vivência e dos sentidos que lhe são atribuídos por adolescentes, a maioria dá ênfase aos aspectos contraproducentes do fenômeno.

Considerando essa característica da produção científica, a investigação ora apresentada toma por objeto o modo próprio e contextualizado de adolescentes significarem a experiência gestacional em curso, por meio da análise dos sentidos sociais manifestos em seus discursos, com destaque aos aspectos ideológicos.

Tal como na teoria social dos discursos, os sentidos são interpretados como construções sócio-políticas. Assume-se que os sentidos veiculados pelos discursos dizem respeito ao modo de perceber, classificar e intervir sobre o mundo, configurando-se como construções sociais mutáveis e negociáveis nas interações/comunicação, em meio a relações de poder, segundo os contextos. Os discursos revelam a maneira como pessoas posicionam-se no mundo e disputam/constroem sentidos diversos para os fenômenos.99. Araújo IS. Mercado Simbólico: um modelo de comunicação para políticas públicas. Interface (Botucatu). 2004 Fev; 8(14):165-77.

Ainda que expresso por um único interlocutor, todo discurso representa múltiplas vozes (polifonia) em articulação e/ou confronto, quer dizer, em luta social pelo predomínio discursivo,99. Araújo IS. Mercado Simbólico: um modelo de comunicação para políticas públicas. Interface (Botucatu). 2004 Fev; 8(14):165-77.

10. Fairclough N. Discurso e mudança social. Brasília (DF): Editora Universidade de Brasília; 2001.
-1111. Araújo IS. Contextos, mediações e produção de sentidos: uma abordagem conceitual e metodológica em comunicação e saúde. Reciis. 2009 Set; 3(3):42-50. tendo em vista afiançar a hegemonia de suas ideias. Essa propriedade dos discursos - ser repleto de fragmentos de outros textos ou vozes que podem aparecer bem delimitados ou mesclados e se contradizer, assimilar, ecoar ironicamente, dentre outros aspectos - é característica relacionada à hegemonia, uma vez que as vozes representam interesses e poderes diversos.1010. Fairclough N. Discurso e mudança social. Brasília (DF): Editora Universidade de Brasília; 2001.

Na luta pelo predomínio discursivo, a ideologia é essencial. Os discursos, enquanto práticas ideológicas incorporam significações que propiciam a permanência e/ou a reestruturação das relações de dominação. Nesse sentido, é particularmente eficaz quando naturaliza ideias e estas adquirem o status de senso comum.1010. Fairclough N. Discurso e mudança social. Brasília (DF): Editora Universidade de Brasília; 2001.

A produção de discursos a respeito de algo ocorre a partir do acervo individual e social das pessoas/grupos em diferentes contextos. Nesta pesquisa, destacou-se o contexto existencial, que referencia o interlocutor no mundo - sua história de vida, seus grupos de pertença, gênero, classe, idade etc. - em um tempo e espaço particular. Tal contexto aciona a rede intertextual e comanda a articulação dos demais contextos.99. Araújo IS. Mercado Simbólico: um modelo de comunicação para políticas públicas. Interface (Botucatu). 2004 Fev; 8(14):165-77.,1111. Araújo IS. Contextos, mediações e produção de sentidos: uma abordagem conceitual e metodológica em comunicação e saúde. Reciis. 2009 Set; 3(3):42-50.

Dessa perspectiva teórica, a pesquisa intencionou compreender a constituição da rede de sentidos sobre a gestação-maternidade entre adolescentes grávidas moradoras de áreas pobres de Cuiabá, Mato Grosso, a partir da distinção das várias vozes que compõem seus discursos e da apreensão da perspectiva de dominação e superação que incorporam.

MÉTODO

O estudo é do tipo explicativo, qualitativo. Nele participaram doze adolescentes cadastradas no pré-natal de unidades da Saúde da Família (SF) da Região Sul de Cuiabá, Mato Grosso. Considerou-se como atributos desejáveis para as participantes: estar no máximo com 28 semanas de gestação, para que a recolha de dados não coincidisse com o momento do parto; ter idade entre 15 e 18 anos, pressupondo-se certa homogeneidade nesta fase da adolescência; estar em pré-natal no mínimo há duas consultas, para captação de seus pontos de vista sobre ele; residir nos territórios das unidades de SF selecionadas, tendo em vista incluir adolescentes com um contexto de vida similar. Na definição do número total de participantes, levou-se em conta a suficiência dos dados (critério de saturação), com base na classificação temática do material.

Dado o número de participantes, foi suficiente a inclusão de quatro unidades de SF da Região Sul. Estas atenderam aos critérios: ser urbana; ter médico e enfermeiro realizando o pré-natal; ter, no mínimo, cinco adolescentes cadastradas nessa ação*. Os dois últimos critérios foram considerados condições para explorar as consultas médica e de enfermagem como fontes de construção de sentidos pelas adolescentes e ter a participação de, no mínimo, duas adolescentes por unidade de SF.

As atividades empírico-analíticas ocorreram de abril a setembro de 2014. O estudo foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa, parecer n. 624.671/2014, e obteve a autorização das participantes e de seus responsáveis, por meio, respectivamente, do Termo de Assentimento e Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Respeitou-se a Resolução 466/2012/CNS. Às participantes foram atribuídos nomes fictícios.

Na apreensão dos discursos das adolescentes sobre a gravidez-maternidade utilizou-se a entrevista, nas modalidades individual e grupal. Primeiramente, em cada unidade que integrou a pesquisa, foram feitos dois encontros grupais, de uma hora cada: 1) para a construção de relações de confiança entre as participantes e o partilhamento das suas histórias de vida; e 2) para exploração de suas ideias sobre o tema em pauta. Para tal, foram usadas quatro dinâmicas específicas. Essas entrevistas incluíram duas a quatro adolescentes, além da pesquisadora. O número reduzido favoreceu a manifestação de todas as adolescentes, o entrosamento entre elas e as trocas em torno dos assuntos de interesse da pesquisa A entrevista individual foi realizada após a análise do material advindo das atividades grupais. Por meio dela se aprofundou, confirmou e esclareceu questões que emergiram na etapa grupal e na análise do material correspondente.

A caracterização do contexto existencial das adolescentes baseou-se na observação direta da realidade local e das condições de vida familiares e na consulta de dados/informações sociodemográficos das áreas eleitas. As características de cada adolescente foram traçadas com base em dados/informações de seus prontuários de pré-natal e, ainda, colhidos nas entrevistas individual e grupal.

O tratamento dos dados baseou-se em alguns preceitos da Análise de Discurso Crítica.1010. Fairclough N. Discurso e mudança social. Brasília (DF): Editora Universidade de Brasília; 2001. Dentre as dimensões de análise que o autor propõe, fez-se um recorte na relação entre duas delas: prática discursiva e prática social. O trabalho interpretativo foi orientado pelas questões: 1) Que temas, ideias e práticas sobre a gravidez-maternidade encontravam-se presentes nos discursos? Que sentidos eles espelhavam em sua relação com o contexto existencial das adolescentes? Que comunidades discursivas e vozes encontravam-se representadas em seus discursos? Que posições ideológicas e disputas materializavam-se em seus discursos?

Na operacionalização analítica realizou-se: a organização do corpus de análise; a leitura repetida deste; o destaque dos enunciados e de outros dados de interesse; a classificação dos achados, com base na inferência; e a articulação empírico-teórico. Esta última etapa foi orientada pela articulação das dimensões: 1) prática discursiva e 2) prática social; e as suas respectivas categorias: a) interdiscursividade (polifonia), sentidos sociais, contexto existencial; e b) ideologia e hegemonia. Os resultados apresentados a seguir foram organizados em dois conjuntos: Contexto existencial e características individuais das adolescentes; e Sentidos sociais da gravidez-maternidade entre adolescentes.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Contexto existencial e características individuais das adolescentes

As adolescentes do estudo residiam em localidades periféricas da zona urbana de Cuiabá, Mato Grosso. Apesar de se ter observado certa diversidade de condições sociais nessas áreas, as mesmas possuem condições sociais reduzidas.

Todas as adolescentes do estudo dependiam dos serviços públicos de saúde e de educação, habitavam em moradias simples, dependiam financeiramente dos companheiros ou da família de origem e eram responsáveis por atividades de cuidado com a casa. Algumas de suas características sociodemográficas e de saúde são sintetizadas a seguir (Quadro 1).

Quadro 1
- Perfil sociodemográfico e de saúde das adolescentes do estudo

Por ocasião da coleta de dados, oito adolescentes moravam com os companheiros e tinham relacionamento estável, sendo duas legalmente casadas; quatro eram solteiras e viviam com os pais, sendo que três mantinham o relacionamento com o namorado do qual engravidaram. O tempo de relacionamento entre as adolescentes e os companheiros/namorados, antes da atual gravidez, variava entre três meses e seis anos. A idade média dos companheiros/namorados era de 24 anos (20 a 29 anos). Em relação às famílias das adolescentes, quatro tinham pais casados e convivendo, quatro possuíam pais separados, duas tinham um dos pais falecido, uma desconhecia o pai e uma não informou.

Todas as adolescentes iam regularmente ao pré-natal, no serviço local. Elas o iniciaram no primeiro trimestre gestacional, exceto uma que o iniciou no segundo trimestre. Nenhuma tinha histórico de problemas médicos anteriores e na gravidez em curso.

Sentidos sociais da gravidez-maternidade entre adolescentes

Gravidez-maternidade como experiência desejada ou aceita e ganhos atribuídos a ela

Sobre a gravidez em curso, as adolescentes realçaram ganhos obtidos e espelharam de modo contundente a incorporação de um ideal de maternidade, revelado como felicidade, realização e oferta-recebimento de amor. A gravidez-maternidade lhes possibilitava a vivência de certos afetos que apreciavam: a oferta de amor, carinho e amizade ao filho; a possibilidade de cuidarem de algo "seu", por meio da maternagem, do toque, da amamentação; e sentimentos de alegria, paz, parceria e completude da vida à medida que a gravidez se materializava em manifestações de vida do filho.

Sobre a própria gravidez, Elen, 15 anos, primeira gestação, escreveu e leu para o grupo, com sorriso largo e olhos brilhantes: [...] maternidade, filho, sexo [do bebê]; amamentação; amor que eu vou ter por ele; eu não sei o que é - se é menino ou menina - cuidar, dar carinho, amor, alegria, saúde, poder tocar; tô muito ansiosa pra saber o que é.

Sentidos como esses se vinculam, particularmente, às demarcações sociais do lugar da mulher, na família e na sociedade, e à constituição do feminino - como construções socioculturais, políticas e históricas, mediadas pela prática comunicativa e a partir de articulação, embates e lutas de poder em torno das ideias.

Nas sociedades ocidentais, antes do século XVIII, nem a mulher, nem a maternidade e tampouco os filhos eram socialmente valorizados. Discursos políticos e religiosos da época reforçavam essa insignificância.1212. Ariès P. História social da criança e da família. 2ª ed. Rio de Janeiro (RJ): LTC Editora; 1981.-1313. Badinter E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro (RJ): Nova Fronteira; 1985. Isso se modificou no final desse mesmo século, com a necessidade crescente de mão de obra para as indústrias em expansão. Para supri-la, o Estado investiu em condições de sobrevivência e saúde das crianças e, nesse sentido, proclamou o poder da mulher. Atribuiu-se a ela o papel social de cuidado dos filhos, ao que se vinculou, ideologicamente, a ideia de amor materno e o discurso da felicidade e da igualdade da mulher.1313. Badinter E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro (RJ): Nova Fronteira; 1985.

Na modernidade este ideal se aprofundou com o uso da tecnologia do biopoder, com a qual se administrou a vida humana, principalmente por meio da forte ação do Estado e da Medicina.1414. Foucault M. História da sexualidade I: a vontade do saber. 13ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Edições Graal; 1999. A mulher adquiriu maior poder sobre o espaço doméstico e a maternidade consolidou-se como uma experiência afeita à essência da feminilidade.1515. Nunes SA. Esperando o futuro: a maternidade na adolescência. Physis. 2012; 22(1):53-75.

O campo médico construiu e reforçou a ideia de que as mulheres possuíam especificidades em seus corpos determinantes da vocação inexorável para a maternidade.1616. Nunes SA. Afinal, o que querem as mulheres? Maternidade e mal estar. Psicol Clin. 2011; 23(2):101-15. Discursos técnico-científicos, do senso comum e discursos morais, dentre outros, passaram a reafirmar esse juízo e, assim, o projeto idealizado torna-se naturalizado.

Nos anos 1960 a 1980, esse discurso passou a ser confrontado pelo movimento feminista, no qual a ideologia da maternidade, como destino e necessidade para a felicidade da mulher, é significada como decorrente da dominação de um sexo sobre o outro. No subsequente discurso de gênero, as abordagens culturais construídas em torno da maternidade são evidenciadas e relacionadas aos valores sociais desiguais, entre o sexo feminino e o masculino, e à decorrente concentração de poder e dominação.1717. Scavone L. A maternidade e o feminismo: diálogo com as ciências sociais. Cad Pagu. 2001; (16):137-50.-1818. Porto D. O significado da maternidade na construção do feminino: uma crítica bioética à desigualdade de gênero. Rev Redbioética/UNESCO. 2011 Jan-Jun; 1(3):55-66.

Na contemporaneidade, os sentidos veiculados por esses discursos ganham espaço, por meio de diferentes fontes de comunicação - mídia, educação, debates e outros. Muitas mulheres e homens deixam de defender ideias tradicionais sobre a gestação-maternidade, postergam essa experiência e enquadram-se em um novo projeto político construído, que pressupõe a gravidez-maternidade como um plano racional, tardio e opcional, mesmo dentro do casamento, privilegiando-se outros projetos de vida.1515. Nunes SA. Esperando o futuro: a maternidade na adolescência. Physis. 2012; 22(1):53-75.

Com essa nova biopolítica, a gravidez na adolescência torna-se um problema social, à medida que se opõe à racionalidade proposta.1515. Nunes SA. Esperando o futuro: a maternidade na adolescência. Physis. 2012; 22(1):53-75. No País, o discurso biomédico hegemônico e argumentos científicos e políticos certificam-na como um problema de saúde pública, fundamentados em possíveis consequências nefastas para os adolescentes e os seus filhos, de ordem social, econômica, psicoemocional e física.1919. Pariz J, Mengarda CF, Frizzo GB. A atenção e o cuidado à gravidez na adolescência nos âmbitos familiar, político e na sociedade: uma revisão da literatura. Saúde Soc. 2012; 21(3):623-36.

Na direção oposta, as adolescentes deste estudo afirmaram o ideal da maternidade, considerando-a um ganho, embora Diana, 18 anos, segunda gestação, também tenha manifestado a necessidade de gestão da própria vida reprodutiva: as coisas foram acontecendo... [a primeira gravidez]. Eu sonhava em trabalhar, dar um carro pro meu pai, essas coisas. Mas aí [o sonho] não aconteceu. Falta de juízo! Se tivesse juízo na cabeça conseguia.

O não conseguir administrá-la é associado ao próprio comportamento sexual, considerado descuidado, com o mesmo sentido afirmado socialmente, a partir de uma perspectiva de risco. Do ponto de vista ideológico, a visão de Diana reafirma, assim, a naturalização ou a supressão social da questão.

Diana incialmente "planeja" obter sucesso profissional e acessar bens materiais decorrentes. Mas adolescentes com condições de vida adversas, como ela, vivem em um cenário que reduz suas possibilidades de pensarem e concretizarem certos projetos sociais, como o de sucesso profissional e econômico.

Na falta de condições que permitam às adolescentes definir ou ampliar seus projetos de vida, o desejo de tornar-se mãe ganha lugar principal no processo de subjetivação de várias delas.1515. Nunes SA. Esperando o futuro: a maternidade na adolescência. Physis. 2012; 22(1):53-75. Mesmo adolescentes que não tinham planejado a gravidez, acabaram por representá-la como um ideal. A gravidez-maternidade como uma alternativa ao alcance de adolescentes, sobretudo em condições de vida desfavoráveis, é uma característica já evidenciada em outros estudos.1515. Nunes SA. Esperando o futuro: a maternidade na adolescência. Physis. 2012; 22(1):53-75.,2020. Kudlowiez S, Kafrouni R. Gravidez na adolescência e construção de um projeto de vida. Psico. 2014 Abr-Jun; 45(2):228-38.

Contribuiu para isso o fato de adolescentes terem uma história de vida com problemas que as impulsionaram para determinadas direções. Katia e Laura, por exemplo, enfrentaram violência sexual na infância. Helena, Ingrid, Julia, Katia e Laura conviviam com adversidades familiares. Gabi tinha estado em um centro socioeducativo e o pai de seu filho estava encarcerado. Fabi e Helena abdicaram da escola antes mesmo da gravidez; e o segundo grau de escolaridade era o máximo projetado por quase todas.

A construção da subjetividade de adolescentes vincula-se tanto aos projetos possíveis como aos estereótipos, discursos e histórias de vida compartilhados desde a infância, nos respectivos grupos sociais.2020. Kudlowiez S, Kafrouni R. Gravidez na adolescência e construção de um projeto de vida. Psico. 2014 Abr-Jun; 45(2):228-38. Assim, neste estudo, a importância dada à maternidade reflete a forma de subjetivação concretizada em um contexto de restritas oportunidades sociais, além de valores tradicionais incorporados sobre o papel social da mulher. De igual modo, sugere resistência ao projeto racional planejado e tardio proposto socialmente para a maternidade.

Privilegiar outros projetos de vida mostrou-se algo distante da realidade das adolescentes desta investigação. De tal modo, buscavam possibilidades mais próximas, como ter sucesso em uma nova vida familiar - diferenciando-se da família de origem. Diz Laura, 17 anos, casada, que mora na casa dos sogros: ah, eu queria casar. [...] Eu sempre tive vontade de ter minha família, meu marido, minha casa, meu filho. [...]. Sabe, pra cuidar das minhas coisas. E, assim, ser diferente do meu pai e da minha mãe.

Esse sentido vai ao encontro do ideal de constituição da família moderna, caracterizada pela ternura e intimidade entre pais e filhos e estruturada no núcleo marido, esposa e filhos.1212. Ariès P. História social da criança e da família. 2ª ed. Rio de Janeiro (RJ): LTC Editora; 1981. Desde o século XVIII, é a dois que se espera, em primeiro lugar, realizar a felicidade, fundada na ideia de amor. Nessa nova constituição, inclusive, mulheres possuem maior valor social.1313. Badinter E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro (RJ): Nova Fronteira; 1985. E é esse o modelo de família, dentre outros defendidos e materializados socialmente, expresso no discurso das adolescentes.

De outro modo, a formação familiar, por elas projetada ou constituída, poderia estar relacionada, também, à necessidade de proteção, cuidado, sobrevivência ou reprodução da própria vida.2121. Oliveira AMN, Silva MRS, Gomes GC, Busanello J. Repensando as relações intrafamiliares sob um olhar foucaultiano. Rev Rene. 2009; 10(3):152-8. Tanto que, além do casamento ou vida a dois, o projeto de vida familiar idealizado por Gabi, Laura e Diana compreendeu, ainda, terem determinados bens materiais, como a própria casa e os próprios pertences.

A constituição de um núcleo familiar próprio e com certas condições mostrou-se um meio visualizado por adolescentes de tornarem-se protagonistas de suas histórias, em vez de repetirem o enredo da família de origem ou de a ela se submeterem. Contudo, nessa projeção, distanciaram-se do contexto concreto de reduzidas perspectivas de realizações econômico-financeiras que enfrentavam, tal qual seus companheiros.

Com a constituição de uma nova família, adolescentes como Carla e Ingrid viam a possibilidade de obter maior autonomia e independência do núcleo de origem e de poder lançar-se a outras experiências e novos aprendizados. Carla, 17 anos, que mora com o companheiro desde os 15 anos, fala: vamos dizer, foi tudo 'no susto'. Porque, de repente, eu tava morando com ele; e, de repente, eu tava casada. [...] Ai eu fui acostumando. [...] Mas, tipo, não foi planejado. [...] Minha mãe até não queria que eu saísse de casa [...]. Mas, mesmo assim, eu fui. Porque quando a gente fica com a mãe a gente fica na curiosidade pra saber como é a vida lá fora [...].

No núcleo familiar, cada membro ocupa um lugar de acordo com a forma como essa instituição organiza-se e estabelece relações. Socialmente, a estrutura hierárquica familiar define maior poder e autoridade aos pais perante os filhos, que manifestam comportamentos de submissão e/ou de não sujeição.2121. Oliveira AMN, Silva MRS, Gomes GC, Busanello J. Repensando as relações intrafamiliares sob um olhar foucaultiano. Rev Rene. 2009; 10(3):152-8.

Um dos motivos que levou Ingrid, 16 anos, a casar e sair de casa foi a interpretada autoridade e opressão da mãe, com maior poder na família. Em seu discurso: ela [mãe] enchia meu saco e era tudo eu que tinha que fazer; e eu não podia sair, não podia fazer nada, não podia sair também pra se divertir. Né? Morar com a mãe significava, para ela, privação de sua liberdade.

De outro modo, Katia, 18 anos, via na gravidez a possibilidade de amenizar sofrimentos, frente a vivências e sentimentos de solidão e desproteção materna. Casamento é a melhor coisa. Com a pessoa certa. [...] Eu pensei em ter filho, mas não casar. Eu tinha medo de repartir meu filho com o marido. [...] Eu sempre quis ter a mesma experiência da minha mãe. Ver o porquê fez isso comigo [permitiu que fosse molestada pelo padrasto]. [...] Se ela teve o motivo dela. [...]. Se qualquer mãe faria isso, entendeu?

A gravidez na adolescência como ideação, para suprir uma necessidade afetiva não desfrutada na infância, resolver conflitos ou preencher a solidão vivenciada/interpretada, é uma prática também encontrada entre adolescentes de outras realidades do país.2222. Resta DG, Colomé ICS, Marqui ABT, Hesler LZ, Eisen C. Adolescents: for what reasons do they get pregnant? Rev Enferm UFPE on line [online]. 2014 Mai [acesso 2015 Mar 13]; 8(5):1229-36. Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/view/4161/pdf_5052
http://www.revista.ufpe.br/revistaenferm...
-2323. Zanin M, Moss AT, Oliveira LA. Representação social da gravidez na percepção de adolescentes gestantes de baixa renda. ACHS. 2011 Jan-Jun; 2(1):89-98.

Socialmente, a família é articulada à proteção e segurança de seus membros. Mesmo quando os laços não são positivos, a importância dada aos parentes é significativa. Quando há conflito ou ruptura nas relações familiares elas comumente são sentidas com dor.2424. Portugal S. Famílias e redes sociais: ligações fortes na produção de bem-estar. Coimbra (PT): Edições Almedina, S. A.; 2014. Desse modo, frente à vivência de situações dessa natureza, adolescentes veem, na constituição de uma família própria, a possibilidade de superarem ou reduzirem sofrimentos.

Outro sentido dado à gravidez, no grupo estudado, revelou-a como conquista da valorizada condição de mulher adulta. Para elas, a gravidez requeria e se fazia acompanhar de amadurecimento, novos pensamentos e comportamentos, além de novas experiências, decisões e responsabilidades. Diana, 18 anos, segundo filho, disse: bom, pela idade eu me considero [adolescente]. [...] Mas pela vida, pelos pensamentos... Já são de mulher. [...] Eu não tenho pensamento mais de 'vou pra festa, vou curtir, vou não sei o quê'. [...] É assim, tudo muda [com a gravidez]. [...] Principalmente os pensamentos. [...] Pra mim, mulher é mais madura, mais experiente. Adolescente não, adolescente tá conhecendo ainda. Mulher é quando você já sabe mais coisa. [...] Mais responsável das coisas.

Ainda que algumas adolescentes estivessem no início da gestação ou que esta fosse a primeira experiência reprodutiva, já se viam como mulheres. Embora não houvesse, para as adolescentes, nenhum inconveniente em engravidar na adolescência, suas falas sugeriam, contraditoriamente, incompatibilidade entre a gravidez-maternidade e o modo de ser adolescente. As mudanças advindas ou esperadas da gravidez são aditadas ao mundo adulto, ao 'ser-mãe' e ao 'ser-mulher'.

A especificação cultural da adolescência, como uma fase entre a infância e a vida adulta, ocorre a partir do século XVIII, no contexto de transformações sociais capitalistas.1212. Ariès P. História social da criança e da família. 2ª ed. Rio de Janeiro (RJ): LTC Editora; 1981. Em uma perspectiva desenvolvimentista, entende-se que nela o jovem busca afirmar sua identidade e autonomia diante do mundo adulto, que os enquadra comumente como inseguros, irresponsáveis, rebeldes, impulsivos.2525. Bertol CE, Souza M. Transgressões e adolescência: individualismo, autonomia e representações identitárias. Psicol. Ciênc Prof. 2010; 30(4):824-39. A perspectiva cultural adotada é homogeneizante, naturaliza a adolescência e as características consideradas peculiares à fase são replicadas, dentre outros meios, no discurso midiático, das famílias, das escolas, circulando amplamente na sociedade.

Nesse contexto, as adolescentes do estudo caracterizaram a fase como de irresponsabilidade, imaturidade, festa e curtição, reproduzindo o padrão. Mas bastou a gravidez para acessarem o mundo adulto, visto como de maior autonomia e reconhecimento social, pois entendiam que o evento produzia ou requeria exigências e comportamentos típicos da fase valorizada, mesmo que sentissem falta de práticas e possibilidades atribuídas à adolescência.

Nesse sentido, Ingrid, 16 anos, casada, primeiro filho, expressou que a gravidez lhe conferiu maior poder - provou sua feminilidade, sua capacidade de ter um companheiro e de ser mãe; de ter algo que outras do grupo ainda não haviam conquistado - com a consequente reverência de outros. Ao falar sobre a gravidez, disse: me senti linda, poderosa. [...] Os outros tá me respeitando demais!!! [...] Por que elas [amigas] falaram que eu não pegava ninguém, que eu ia ficar pra titia. Depois que elas viram meu marido, depois que elas ficaram sabendo que eu estava grávida, ficaram com inveja. [...] Falei: 'Morram de inveja! É pra quem pode!' [muitos risos].

A gravidez-maternidade como alavanca para a vida adulta e a sua associação à conquista de maior valor social e à comprovação da feminilidade são aspectos que se somaram na interpretação do evento como ganho, entre as adolescentes do estudo.

Gravidez-maternidade como experiência que leva a perdas e enfrentamentos difíceis

Apesar de as adolescentes desejarem ou aceitarem a gravidez e a afirmarem como um evento promotor de ganhos, expressaram versões ambivalentes em torno dela, aproximando-se de discursos sociais que a relacionam a certas perdas e problemas.

Nesse sentido, entendiam que a gravidez lhes "impunha" certas mudanças - no modo de se divertirem, comportarem, relacionarem com os pares, alimentarem-se. Essas mudanças eram controladas e reafirmadas por amigos e/ou familiares. Assim, manifestaram aceitação e resistência em relação aos aspectos que, de alguma forma, entendiam que eram importantes para o filho, mas que tinham dificuldade de aceitar ou administrar. Bia, 15 anos, primeira gestação, responde à pergunta da pesquisadora: mas o que suas amigas fazem que você não pode mais fazer? Ah! Sair, comer coisas diferentes, fazer as coisas. Não pode fazer mais, tem que ficar quieta, sozinha, num canto. [...] Minha mãe fala, minha vó, tios; tudo fala que eu tenho que tomar mais cuidado. Aí a gente fica com medo.

Igualmente, a gravidez colocava as adolescentes diante de certos enfrentamentos "difíceis", relativos a dois momentos principais. O primeiro ocorreu na revelação da gravidez à família, ao companheiro, aos amigos e conhecidos do círculo. Adolescentes que ainda viviam com a família de origem tiveram medo de uma possível reação negativa, especialmente dos pais. Nesse sentido, reportaram-se à ideia de que a gravidez na adolescência era algo indevido. Diana, 18 anos discursou: quando eu fiquei sabendo da minha gravidez, veio o desespero. No início, porque eu estava muito nova e pensei muito nos meus pais. O que eles iam achar? Se eles iam me botar pra fora de casa; se eles iam fazer eu casar. [...] Foi muito difícil contar; contei para minha mãe e ela me ajudou muito.

Frente às esperadas críticas pela ocorrência da gravidez na adolescência, confrontando-as, Carla, 17 anos, segunda gestação, casada, reproduziu ironicamente ideias socializadas a respeito de sua inconveniência e sobre a necessidade de adoção de comportamento preventivo: [...] As criticas são muitas... Todo mundo fala: 'ah, você engravidou agora, cedo, porque você não estudou? Porque você não fez isso e aquilo?' [...] Se a gente não quisesse engravidar, tem camisinha, tinha remédio, tinha tudo! Então, porque que a gente não fez? Então... É que, no caso, a gente queria engravidar!

Entre as adolescentes, a aceitação, ou não, pela família e por aqueles com os quais conviviam repercutiu na tradução e concretização da gravidez como ganho ou perda. Estudos2626. Souza TA, Brito MEM, Frota AC, Nunes JM. Gravidez na adolescência: percepções, comportamentos e experiências de familiares. Rev Rene. 2012; 13(4):794-804.-2727. Valila MG, Moraes NA, Dalbello NN, Vieira SS, Beretta MIR, Dupas G. Gravidez na adolescência: conhecendo a experiência da família. REME Rev Min Enferm. 2011 Out-Dez; 15(4):556-66. mostram que a descoberta da gravidez da filha adolescente, pelas famílias, resulta em diversos sentimentos. Esses sentimentos vão variar a partir dos sentidos construídos pelas famílias sobre o fenômeno, segundo a visão incorporada acerca do papel da mulher na sociedade, da adolescência e da constituição familiar, conforme já apresentados.

No discurso de Diana, 16 anos, encontrou-se fragmentos que revelaram sentidos concorrentes sobre consequências da gestação na adolescência, tais como: um filho não interfere tanto na vida da gente, é uma benção [reproduzindo a fala da mãe]. Foi um choque pra eles, meio nova, assim, tá grávida já [sugerindo ganho e perda]. Porque pai e mãe sempre quer ver o filho bem [sugerindo que a gravidez adolescente produz perda]. Esses discursos, dentre outros, evidenciaram sentidos incorporados de compatibilidade e de antagonismo entre gravidez e adolescência, que expressam visões sociais distintas e em confronto presentes em nossa sociedade.

O segundo momento de difícil enfrentamento para as adolescentes relacionou-se ao parto. Todas interligaram a parturição à dor e ao sofrimento. Disse Katia, 18 anos, terceira gestação, segundo filho: eu acho que o momento mais difícil da gravidez, mais difícil mesmo, é quando tá chegando a hora de ganhar [nascer o bebê]. [...] Porque as pessoas, invés de ajudar a gente, fala: 'A dor é imensa, a dor é num sei o quê'. Dá mais medo!

Muitas mulheres têm medo da parturição, relacionando-a a ocorrência inevitável da dor. Essa é uma visão histórica e também assentada no modo como o parto normal tem sido realizado, especialmente nos atendimentos públicos de saúde. Na construção desse sentido, os meios de comunicação - filmes e novelas - têm exercido considerável influência,2828. Almeida NAM, Medeiros M, Souza MR. Perspectivas de dor do parto normal de primigestas no período pré-natal. Texto Contexto Enferm [online]. 2012 Out-Dez [acesso 2015 Mar 13]; 21(4):819-27. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v21n4/12.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v21n4/12.pd...
mas a ideia também encontra sustentação no relato de experiências de parto de mulheres que o vivenciam com sofrimento, pela forma como são conduzidos em serviços de assistência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na contramão dos discursos hegemônicos, para as adolescentes do estudo, a gravidez-maternidade responde ao que querem para as suas vidas, dentro de um contexto com oportunidades sociais limitadas. Valorizam a experiência com base em um ideal de maternidade e de constituição familiar, socialmente veiculado; também, prevendo maior reconhecimento social, comprovação da própria feminilidade e maior poder e autonomia. Assim, para elas, a gestação-maternidade resulta em apreciados ganhos, apesar de também atribuírem ao evento certas dificuldades, manifestas pelas solteiras como ter que revelar a gravidez à família e ser "condenada" por conhecidos pela gravidez na adolescência; além de conferirem à parturição a vivência de sofrimento.

A compreensão contextualizada dos sentidos que a gravidez adquire, entre as adolescentes e o seu conteúdo ideológico e potencialmente reprodutor e mobilizador de ideias que naturalizam o processo, é essencial para a adoção de estratégias assistenciais consistentes e críticas, nas quais se inclua o desenvolvimento de maior grau de autonomia-responsabilização das adolescentes.

Sugerimos que novos estudos sejam realizados para explorar significados em torno de determinadas práticas reprodutivas das adolescentes identificadas, mas não exploradas neste estudo, tais como aborto, contracepção e seu uso de forma inadequada. Recomendamos, ainda, que se analisem, em estudos futuros, os sentidos e contextos das famílias dessas jovens, que tanto influenciam em seus modos de pensar e em suas vidas.

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    Extraído da dissertação - Adolescentes e a rede de produção de sentidos sobre o cuidado de si na gestação, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em 2015, integrante da pesquisa matricial - Saúde de adolescentes: discursos, práticas e reflexões críticas.
  • *
    Na ocasião, encontrado o máximo de dez adolescentes cadastradas no pré-natal das unidades de SF do município, pressupondo que parte poderia não corresponder aos atributos definidos ou não desejar integrar a pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    13 Mar 2015
  • Aceito
    17 Ago 2015
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