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CENAS DE USO DO CRACK NA CAPITAL DE SANTA CATARINA/BRASIL: A (IN)VISIBILIDADE DO USUÁRIO

RESUMO

Objetivo:

descrever as características da cena de uso do crack, seu entorno e desdobramentos.

Método:

o projeto se valeu da metodologia Time-Location Sampling. De janeiro a junho de 2011 foram mapeadas 41 cenas de uso de crack em Florianópolis (Brasil). Após seleção aleatória das cenas a serem observadas, sortearam-se os dias e turnos em que essas seriam observadas em detalhe, totalizando 98 cenas/turno, atapa realizada entre dezembro de 2011 a março de 2012. As observações, registradas em caderno de campo, foram examinadas via análise de conteúdo e discutidas à luz da literatura nacional e internacional.

Resultados:

o estudo identificou que as cenas de uso de crack se concentram nas regiões centrais de Florianópolis. O policiamento ocorre de maneira ostensiva nas comunidades próximas a estas áreas, fortemente marcadas pelo tráfico de drogas. As ações de cuidado, prevenção e autoridade se mostraram incipientes nos locais de uso da substância, o que denota a invisibilidade do usuário de crack perante a sociedade.

Conclusões:

são necessários maiores investimentos para que as políticas públicas atuem a fim de possibilitar que o usuário da droga acesse os equipamentos sociais e de cuidados.

DESCRITORES
Cocaína; crack; Controle de medicamentos e entorpecentes; Redução do dano; Saúde mental; Saúde pública

ABSTRACT

Objective:

to describe the characteristics of the crack cocaine use scene, its surroundings and consequences.

Method:

this study was based on the Time-location Sampling methodology. Between January and June 2011, 41 crack use scenes were mapped in Florianópolis (Brazil). After randomly selecting the scenes to be observed, the days and shifts for in-depth observation were selected by lottery, for a total of 98 scenes/shifts, this atep was performed between December 2011 and March 2012. The observations were recorded in a field diary, and were examined using content analysis and discussed based on the Brazilian and international literature on the topic.

Results:

the results show that crack cocaine use scenes were more concentrated in the central regions of Florianópolis. Policing was very ostensive in the communities surrounding these areas, which are strongly marked by drug trafficking. Healthcare, prevention and authority actions were incipient in the locations of substance use, which shows the invisibility of crack users in society.

Conclusions:

more investments are needed so that public policies work to help drug users access social and healthcare services.

DESCRIPTORS
Crack cocaine; Drug and narcotic control; Harm reduction; Mental health; Public health

RESUMEN

Objetivo:

describir características de la escena del consumo de crack, su entorno y evoluciones.

Método:

utilizada metodología Time-Location Sampling. Entre enero y junio de 2011 fueron mapeadas 41 escenarios de consumo de crack en Florianópolis (Brasil). Escenarios a observarse elegidos aleatoriamente, se sortearon días y turnos para la tarea, totalizando 98 escenas/turno, etapa realizada entre diciembre 2011 u marzo 2012. Observaciones registradas en cuaderno de campo, examinadas por análisis de contenido y discutidas según literatura nacional e internacional.

Resultados:

los escenarios de consumo de crack se concentraron en regiones centrales de Florianópolis. Vigilancia ostensiblemente aplicada en comunidades cercanas, marcadas por el tráfico de drogas. Las acciones de cuidado, prevención y autoridad resultaron ser incipientes en lugares de consumo de la substancia, expresando la invisibilidad del usuario de crack frente a la sociedad.

Conclusiones:

se requieren mayores inversiones para que las políticas públicas actúen permitiendo que el consumidor de la droga acceda a equipos sociales y de cuidado.

DESCRIPTORES
Cocaína Crack; Control de medicamentos y narcóticos; Reducción del daño; Salud Mental; Salud Pública

INTRODUÇÃO

O consumo de drogas acompanha a história da humanidade, com fins terapêuticos, recreativos ou rituais. A partir do início do século XX, a circulação e o uso dessas substâncias passaram a ser regulamentados, com algumas sendo proibidas, formalmente, sob a alegação de constituírem ameaças à ordem social e estarem relacionadas a problemas de saúde, desordem e violência urbana. A expansão do capitalismo, juntamente com o status de ilegalidade dessas substâncias, contribuíram para o crescimento do tráfico nacional e internacional, mercados comerciais em expansão e - apesar das tentativas de detê-lo, o aumento do consumo.11. United Nations Office on Drugs and Crime. World Drug Report 2016. Washington (US): United Nations; 2016. Em vários cenários, incluindo cidades do interior americano (especialmente em décadas anteriores),22. Parker MA, Anthony JC. Should anyone be riding to glory on the now-descending limb of the crack-cocaine epidemic curve in the United States? Drug Alcohol Depend [Internet]. 2014 [cited 2016 Apr 17];1(138):225-8. Available from: Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4327819/
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e no Brasil, o crack se tornou facilmente disponível por alguns dólares (ou reais - na moeda brasileira). Essa força de mercado, somada às particularidades da própria droga, como o seu efeito prazeroso quase que imediatamente após ser fumada,33. Chaves TV, Sanchez ZM, Ribeiro LA, Nappo SA. Crack cocaine craving: behaviors and coping strategies among current and former users. Rev Saude Publica [Internet]. 2011 [cited 2016 Apr 22];45(6):1168-75. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rsp/v45n6/en_2774.pdf
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contribuem para a disseminação do seu uso.

São Paulo foi a primeira cidade a registrar a presença de crack no Brasil, ocorrida em 1991, e onde se originou o termo “Cracolândia”, caracterizado por um espaço geográfico, que chega a congregar até centenas de usuários de crack, e no qual se mantém uma rede de relações em que se estabelece a troca, venda e consumo da droga.44. Smart RG. Crack cocaine use: a review of prevalence and adverse effects. Am J Drug Alcohol Abuse. 1991;17(1):13-26. Com o passar dos anos e o insucesso de ações meramente higienistas e repressivas, o crack deixou de estar presente apenas nos grandes centros urbanos e chegou até nos municípios de médio e pequeno porte. Apesar desta droga não estar entre as mais utilizadas no Brasil,55. Brasil. Decreto n. 7.179 de 20 de maio de 2010: Institui Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, cria o seu Comitê Gestor, e dá outras providências. Diário Oficial da União; 20 maio 2010. seu uso chama a atenção da sociedade, pois ela está ligada, no imaginário coletivo, ao tráfico, violência, marginalização, prostituição, infecções/doenças sexualmente transmissíveis, entre outros problemas, reais ou percebidos, de cunho social e de segurança pública.

O Brasil, além de ser um país vasto geograficamente, é cultural e socioeconomicamente diversificado. O uso de drogas varia entre suas cidades. As grandes metrópoles do sudeste tendem a ter Cracolândias, enquanto outras cidades possuem locais de uso de crack com menor número de usuários, como ilustrado em Florianópolis, capital de Santa Catarina (Brasil), onde as cenas públicas de uso de drogas raramente são observadas pelas autoridades e pela sociedade civil.

Passados 20 anos do surgimento do crack no mercado ilegal brasileiro, sua presença trouxe complexidade e dificuldades adicionais, que podem incluir efeitos diretos ou indiretos (embora os problemas percebidos possam não ser enraizados em evidências empíricas, mal documentadas em pesquisas brasileiras). Para enfrentar estes efeitos, o planejamento urbano, a segurança pública, os programas de atenção à saúde, a pesquisa e a política se concentraram nos usuários da droga e nos locais do seu uso.33. Chaves TV, Sanchez ZM, Ribeiro LA, Nappo SA. Crack cocaine craving: behaviors and coping strategies among current and former users. Rev Saude Publica [Internet]. 2011 [cited 2016 Apr 22];45(6):1168-75. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rsp/v45n6/en_2774.pdf
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As políticas públicas relacionadas ao uso de crack variam de acordo com o país. Em maio de 2010, o governo brasileiro estabeleceu o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas - “Crack, é Possível Vencer”, a fim de aumentar a oferta de tratamento de saúde aos usuários de drogas, enfrentar o tráfico e as organizações criminosas e ampliar as ações de prevenção ao uso de drogas. É uma iniciativa coordenada do governo federal, estados, municípios e sociedade civil. O plano possui três eixos: cuidado - ampliação da capacidade de atendimento e atenção ao usuário e familiares; prevenção - fortalecimento da rede de proteção contra o uso de drogas; autoridade - enfrentamento ao tráfico de drogas e policiamento ostensivo de proximidade.55. Brasil. Decreto n. 7.179 de 20 de maio de 2010: Institui Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, cria o seu Comitê Gestor, e dá outras providências. Diário Oficial da União; 20 maio 2010.

Para colaborar com a implementação efetiva das políticas é importante identificar a realidade dos territórios brasileiros quanto à temática. Neste sentido, este estudo tem por objetivo descrever as características da cena de uso do crack, seu entorno e desdobramentos.

MÉTODO

Estudo exploratório, de natureza qualitativa, que integra o projeto nacional “Perfil dos usuários de crack nas 26 capitais, Distrito Federal, nove regiões metropolitanas e Brasil”, com abordagem e análises dos achados referentes à Capital (Florianópolis) de Santa Catarina.

A pesquisa nacional se valeu da metodologia Time-Location Sampling (TLS), no sentido de recrutar e coletar informações relativas a usuários de crack, uma população de difícil acesso e muitas vezes oculta. Assim, busca, através do conhecimento aprofundado dos lugares de interação dessa população e da compreensão etnográfica de suas características e dinâmica, recrutar os participantes com base em seleção aleatória, ancorada em blocos temporais, e se vale da formulação conceitual e observação empírica de que esta população frequenta um conjunto de lugares com dias e horários (ou turnos) passível de identificação e especificação.66. Raymond H F, Ick T, Grasso M, Vaudrey J, McFarland W. Resource Guide: Time Location Sampling (TLS). San Francisco(US): San Francisco Department of Public Health HIV Epidemiology Section, Behavioral Surveillance Unit; 2007.

Importante ressaltar que o presente artigo se trata de um recorte da pesquisa mencionada, reportando-se somente a uma etapa de observação das cenas de uso de crack identificadas. Florianópolis é dividida em cinco distritos sanitários: Norte, Sul, Leste, Centro e Continente. Assim, inicialmente, entre os meses de janeiro e junho de 2011, realizaram-se visitas aos territórios adscritos dos distritos sanitários e levantadas informações junto aos equipamentos sociais com relação aos locais, dias e horários onde se congregavam os usuários de crack, para o consumo da droga. Todas as cenas relatadas foram visitadas por equipe do estudo para comprovar a sua existência. E mapeadas por equipe formada por cinco agentes da Guarda Municipal e cinco redutores de danos. Nesta etapa, considerou-se “cena de uso” como qualquer grupo constituído por, no mínimo, três pessoas, envolvendo o manuseio, compartilhamento e/ou uso de crack em local público aberto. Cada visita ao território do distrito sanitário foi realizada por um agente da Guarda Municipal e um redutor de dano de maneira conjunta. Todas as cenas de uso identificadas se concentraram no Distrito Sanitário Centro e Continente.

Mapeadas as cenas de uso, os dados foram enviados para Fundação Osvaldo Cruz (FIOCRUZ), onde aquelas sofreram codificação. A seguir, selecionaram-se, aleatoriamente os locais, dias da semana, turnos/horários distintos para visitação das equipes de campo a fim de observarem a cena. Foram mapeadas 41 cenas de uso crack na Capital, sendo destacadas 39 para a observação, devido ao fato das demais serem inacessíveis (por questões de segurança). Na sequência, realizou-se um sorteio dos turnos (matutino - 06 às 12 horas; vespertino - 12 às 18 horas; noturno - das 18 às 24 horas) por cena, sendo sorteadas 98 cenas/turno. Foi definido um tempo mínimo de 30 minutos para a observação das cenas/turno. Todas estas foram codificadas por números que representam o local e o turno em que ocorrem, no sentido de cumprir com os princípios éticos do estudo. Exemplo da codificação: Cód. Cena: 29; Cena 2943, onde a cena 29 se refere ao local do uso da droga e cena 2943 se reporta ao horário e dia de visitação desta cena. Todo este processo de codificação e seleção aleatória das cenas foi realizado por equipe central da FIOCRUZ (conforme livro) e enviada posteriormente às instituições colaboradas do estudo para início da etapa de observação.

Nas observações realizadas entre dezembro de 2011 e março de 2012, constatou-se uso de crack em todas as 98 cenas/turno. Os dados coletados foram registrados em cadernos de campo elaborados e formatados para este fim (e que constam do Anexo da publicação original do estudo.77. Bastos FI, Bertoni N. Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro (BR): ICICT/FIOCRUZ; 2014. Dentre os diversos registros realizados pelos observadores referentes às características das cenas de uso do crack, constam: informações sobre o espaço físico e geográfico, movimentação de pessoas no local, comércio, policiamento e venda de drogas. As visitas foram realizadas por dois observadores por motivos de segurança, sendo estes, agentes da guarda municipal, porém o preenchimento do caderno de campo foi individual, para o enriquecimento qualitativo do estudo. Assim, foi realizada a leitura na íntegra e a análise qualitativa de 196 cadernos de campo.

A avaliação qualitativa se deu com base nos métodos e procedimentos pertinentes à análise de conteúdo,88. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa (PT): Edições 70; 2011. seguindo as três fases estabelecidas: pré-análise, na qual foi realizada a organização do material, com vistas a torná-lo operacional, sistematizando as ideias iniciais; exploração do material, com a codificação, classificação e categorização dos dados, e tratamento das informações, onde se realizou a condensação e o destaque das informações, culminando na análise reflexiva e crítica do material.

Ao longo deste artigo, os achados referentes ao material empírico coletado serão sistematizados através de extratos de descrições das cenas e transcrição de trechos de observações registrados nos cadernos de campo.

RESULTADOS

Em relação às informações quanto ao espaço físico e geográfico das cenas de uso de crack ficou evidente que elas se concentram em regiões centrais do Distrito Sanitário Centro e Continente. Em um grande número de cenas/turno se verifica a presença de comércio (57 cenas/turno-55,86%) e se evidencia o movimento de pessoas/pedestres ou automóveis (69 cenas/turno-67,62%) em suas proximidades. Em 27 cenas/turno (26,46%) há instituições de saúde, em sua maioria Unidades Básicas de Saúde, nas suas imediações. Algumas cenas/turnos ainda continham em seus arredores, instituições como corpo de bombeiros, Tribunal de Justiça, creches, escolas, igrejas, assembleia legislativa, secretaria da justiça e da cidadania, delegacia do trabalho, fundação de esportes, polícia militar ambiental, entre outros.

Das 98 cenas/turno, 46 (46,9%) foram observadas no período noturno, sendo que em apenas seis (5,88%) foi destacada a deficiência de iluminação pública. Quanto à limpeza urbana no local onde ocorrem as cenas de uso de crack, em 56 cenas/turnos (54,88%) foram identificadas precárias condições sanitárias, registrando-se, inúmeras vezes, o acúmulo de lixo, presença de dejetos humanos ou de animais, odor fétido, resquícios do uso de crack, entre outros materiais, como exemplificado a seguir: a sujeira é demasiada, o local parece que também é usado como banheiro, o lixo se acumula em toda a parte [...] latas amassadas, pedaços de antena de rádio e isqueiros vazios [...] O local é fétido e úmido, quando chove a água fica empossada no local (Cód. Cena: 31; Cena 3162).

Entre os usuários, muitos pareciam estar em situação de rua, pois, além de permanecerem em local muitas vezes insalubre, não raramente apresentavam lesões na pele, saúde debilitada, ou outras necessidades de cuidado à saúde. Observou-se também a presença de gestante nas cenas. Seguem algumas transcrições que demonstram a realidade encontrada: saúde bucal em péssimas condições, dentes aparentemente quebrados e cariados (Cód. Cena: 03; Cena 353). todos tinham aparência de pessoas desnutridas [...] e higiene pessoal muito ruim (Cód. Cena: 10; Cena 1023). a mulher aparentava estar grávida (Cód. Cena: 01; Cena 163).

Em nenhuma das cenas/turno houve a abordagem dos usuários por profissionais da saúde e da assistência social, redutores de danos, agentes de segurança pública, lideranças comunitárias ou religiosas, ou quaisquer outros atores sociais.

Quanto à venda de drogas, notou-se que das 98 cenas/turno observadas, ocorreu nitidamente a venda da droga em quatro cenas/turno, sendo que em duas, os indivíduos que as vendiam, acessaram o local apenas com esse objetivo, sem realizar o uso de qualquer substância; e, em outras duas cenas/turno, o próprio usuário comercializou a droga. Em três cenas/turno foram registradas apenas suspeitas da presença da venda da droga. As transcrições a seguir exemplificam o tráfico de drogas presentes nas cenas.

Homem, parecia ter em média 35 anos, usava crack em cachimbo [...] comprou mais droga de um outro sujeito, homem com idade próxima a 20 anos, cor branca. Este vendeu a droga e saiu da cena em direção ao morro (Cód. Cena: 2; Cena 211).

Homem, moreno, idade aproximada de 40 anos, vendedor de bala no semáforo próximo, trouxe consigo algumas pedras de crack que vendeu ao casal que ali estava. Fez uso de crack em latinha e deixou a cena (Cód. Cena: 32; Cena 3263).

Na maioria das cenas/turnos observadas os usuários chegavam em posse da droga, sendo identificado também o ganho de pedras de crack dos amigos e, raramente, a troca da droga por favores sexuais. Isto se explica pelo fato de que das 39 cenas, nove (23,07%) estavam situadas próximas a pontos de tráfico, assim, consequentemente, das 98 cenas/turno, em 25 (25,51%) os usuários de crack possuíam fácil acesso ao comércio da droga. Em algumas cenas/turno os usuários se retiravam, iam até os pontos de venda da droga e retornavam ao local para continuar o uso. Seguem exemplos:

desceram do morro dois homens morenos. Um deles [...] veio trazendo a droga nas mãos, sentaram no chão e fizeram uso em latinha de alumínio (Cód. Cena: 4; Cena 441).

para fumar a droga utilizada em cachimbo, após o seu uso, saiu em direção ao ponto de venda de drogas “beco da lixeira” - localizado a 200 metros da cena (Cód. Cena:5; Cena 512).

Em relação ao policiamento, foi relatada a sua ocorrência no sentido de enfrentamento ao tráfico de drogas nas comunidades próximas às cenas de uso:

o policiamento na cena é muito raro, mas na comunidade acima da cena é bem intenso, sendo que o grupo tático da PMSC, o COPE da polícia civil e o BOPE frequentemente fazem incursão no morro à procura de criminosos, quando isso acontece os usuários se disparam para dentro do túnel (Cód. Cena: 2; Cena 212 - Cód. Cena: 3; Cena 353 - Cód. Cena: 5; Cena 531).

Foi observada a passagem da polícia em locais próximos às cenas de uso de crack em 41 (41,84%) das cenas/turnos, porém em nenhuma das vezes ocorreu a abordagem dos usuários por policiais. Por vezes, o patrulhamento realizado pela polícia causa apenas a dispersão momentânea dos usuários, ou não afeta o uso da cena pelo usuário: policiamento intenso, mas quando a polícia sai, dentro de poucos minutos o consumo recomeça (Cód. Cena: 9; Cena 923). o policiamento nas proximidades tem se intensificado por causa de reclamações de pequenos furtos em veículos estacionados próximos à cena, porém não tem afetado a utilização das cenas pelo usuário (Cód. Cena: 10; Cena 1023).

Chamou a atenção que 9 (23,07%) cenas e, consequentemente 22 (22,45%) cenas/turno, ocorreram nas proximidades das instituições policiais: como a cena fica na entrada de acesso ao prédio da COP, Capturas da Polícia Civil, é comum ver viaturas policiais passando próximas à cena, mas os usuários não ficam à vista da viatura, então isto acaba passando desapercebido pelos policiais na maioria das vezes (Cód. Cena: 16; Cena 1623). Viaturas policiais passam pelo local várias vezes, pois há um posto policial a 200 metros do local (Cód. Cena: 25; Cena 2533).

Cabe elencar que os usuários, enquanto, em muitas cenas buscam usar a droga em locais de difícil visualização, tanto pela polícia, como pela população, em outras não houve preocupação alguma em serem vistos utilizando a droga.

Os usuários se alojam em uma escada que leva ao subsolo, desta forma fogem do olhar das pessoas que circulam próximos ao local (Cód. Cena:10; Cena 1023).

Quando chegamos à cena, haviam três pessoas em situação de rua deitados embaixo de uma árvore conversando [praça do centro da cidade]. Todos aparentavam ter aproximadamente 35 anos, acenderam e fumaram quatro cigarros de tabaco. Após chegou um rapaz que parecia ter 18 anos, trouxe algumas pedras de crack e usaram ali mesmo, sem nenhuma preocupação em serem vistos utilizando a droga. Várias pessoas passavam pelo local, inclusive mulheres grávidas e crianças (Cód. Cena:13; Cena 1363).

DISCUSSÃO

As cenas de uso de crack

As cenas de uso de crack em Florianópolis se localizam nas regiões centrais da cidade e se mostraram deficientes em suas condições sanitárias, ao mesmo passo que os usuários dessa droga, aparentemente em situação de rua, que frequentam estes locais, encontram-se com a saúde visivelmente debilitada, o que acarreta em maior risco para desenvolvimento de infecções e outras patologias. Identificar e compreender quais as principais necessidades da população que ocupam as cenas de uso de crack possibilitam programar e implementar as ações de cuidado. Frente às características das cenas e dos usuários de crack neste estudo, constatou-se a necessidade de: lugar seguro para dormir e realizar cuidados de higiene e conforto, como também cuidar de lesões e feridas; local para realizar as refeições; trabalho digno para obter uma fonte de renda; assistência integral ao pré-natal; educação sobre as drogas e oferta de tratamento de acordo com a necessidade e aceitação do usuário; e ações de redução de danos.

A literatura demonstra que uma pequena minoria dos usuários de crack acessa os serviços de saúde e de assistência social,99. Zavaschi MLS, Mardini V, Cunha GB, Costa SHAM, Guarienti F, Pianca TG, et al. Socio-demographic and clinical characteristics of pregnant and puerperal crackcocaine using women: preliminary data. Arch Clin Psychiatry [Internet]. 2014 [cited 2016 June 17];41(5):121-3. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rpc/v41n5/0101-6083-rpc-41-5-0121.pdf
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-1010. Santos Cruz M, Andrade T, Bastos FI, Leal E, Bertoni N, Lipman L, et al. Patterns, determinants and barriers of health and social service utilization among young urban crack users in Brazil. BMC Health Serv Res [Internet]. 2013 [cited 2016 June 17];13:536. Available from: Available from: https://dx.doi.org/10.1186/1472-6963-13-536
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o que pode ser explicado pela existência de diversos entraves nos serviços que realizam a atenção à saúde mental nos municípios brasileiros: baixa integração com a política de redução de danos; não contam com gestores e profissionais preparados para lidar com os usuários de crack e têm reduzida capacidade de atender à demanda, principalmente em casos de crise; a intersetorialidade é precária, pois há falta de articulação entre assistência social, saúde e segurança pública; programas que não se baseiam na política de saúde mental; provisão irregular dos serviços de saúde mental; saúde mental não é vista como prioridade; baixa cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF); pouca integração do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e do Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) com a ESF e o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS); existência de ações de repressão marcadas por preconceito e violação de direitos humanos.1111. Moreira MR, Fernandes FMB, Ribeiro JM, Neto TLF. A review of Brazilian scientific output on crack - contributions to the political agenda. Cien Saude Colet [Internet]. 2015 [cited 2016 June 17];20(4):1047-62. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/csc/v20n4/1413-8123-csc-20-04-01047.pdf
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Estas dificuldades acabam por sustentar ações de enfrentamento ao crack através de uma abordagem ao usuário que foca em um tratamento que objetiva a desintoxicação e a abstinência. É necessário transcender essa lógica e destacar ações na redução de danos, incentivar a educação, abordando as vulnerabilidades sociais e a promoção da saúde.

Usuários de crack com o padrão de uso compulsivo, ou seja, aqueles que, motivados pela fissura, utilizam diversas pedras da droga seguidamente, a fim de continuar sob o efeito desejado da mesma, o chamado binge, podem suscitar comportamentos de risco que comprometam a sua saúde e suas relações sociais, o que pode acarretar em perda de relações familiares, amizade, escola e trabalho, que acabam por reforçar seu envolvimento com a droga, e por vezes os colocar em situação de rua.33. Chaves TV, Sanchez ZM, Ribeiro LA, Nappo SA. Crack cocaine craving: behaviors and coping strategies among current and former users. Rev Saude Publica [Internet]. 2011 [cited 2016 Apr 22];45(6):1168-75. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rsp/v45n6/en_2774.pdf
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,1111. Moreira MR, Fernandes FMB, Ribeiro JM, Neto TLF. A review of Brazilian scientific output on crack - contributions to the political agenda. Cien Saude Colet [Internet]. 2015 [cited 2016 June 17];20(4):1047-62. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/csc/v20n4/1413-8123-csc-20-04-01047.pdf
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Atualmente é comprovado a existência também do padrão de uso controlado do crack, ou seja, àquele em que o usuário consegue usar a droga de forma compatível com a manutenção de atividades regulares, como trabalho e estudo, e vínculos familiares, podendo até mesmo ficar em abstinência por vários dias.1212. Oliveira LG, Nappo AS. Characterization of the crack cocaine culture in the city of São Paulo: a controlled pattern of use. Rev Saude Publica [Internet]. 2008 [cited 2016 June 17];42(4):664-71. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rsp/v42n4/en_6645.pdf
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Esta realidade sugere que o fenômeno do uso de crack ultrapassa seus efeitos farmacológicos e é influenciado por questões sociais, ambientais e emocionais, por isso a importância de que as políticas públicas e seus atores abordem todas essas questões.33. Chaves TV, Sanchez ZM, Ribeiro LA, Nappo SA. Crack cocaine craving: behaviors and coping strategies among current and former users. Rev Saude Publica [Internet]. 2011 [cited 2016 Apr 22];45(6):1168-75. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rsp/v45n6/en_2774.pdf
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Ao refletir sobre os diferentes padrões de uso do crack e a singularidade dos motivos que podem levar um indivíduo a usá-lo, descontinuar ou retomar seu uso, fica evidente a necessidade de se aproximar do usuário e interpelá-lo em sua singularidade, negociando propostas de cuidados que lhe assegurem segurança, saúde e inserção social.

Frente a este panorama, em que o usuário da droga não busca os serviços assistenciais, chamou a atenção o fato de que, apesar da localização destas cenas, onde seu entorno está repleto de instituições de saúde, segurança pública, assistência social e diversos equipamentos sociais, assim como fluxo de diversas pessoas, estas cenas não foram acessadas por quaisquer atores sociais representantes destes equipamentos, no sentido de abordar o usuário da droga quanto aos cuidados anteriormente mencionados e debatidos. Assim, é necessário identificar por quais razões estes atores não têm atuado frente a esta realidade social de acordo com as políticas públicas existentes.

No contexto do imaginário coletivo que enfatiza a culpa dos usuários de drogas e a demonização da substância, os usuários de crack, por vezes, são definidos por aquilo que consomem, e por este motivo, em muitas matérias veiculadas na mídia brasileira, por exemplo, eles são denominados de “crackeiros”, ou seja, tornam-se a própria mercadoria, relacionados à violência, marginalidade ou doença mental, ao passo que não abordam de maneira integral todos os aspectos sociais e culturais envolvidos no fenômeno, tampouco as possibilidades de cuidado a esta população, que não sejam a repressão e institucionalização através do encarceramento ou internação.1313. Romanini M, Roso A. Mídia, ideologia e cocaína (Crack): produzindo “refugo humano”. Psico-USF. 2013;18(3):373-82. Assim, a mídia tende a reforçar estereótipos, tratamentos, políticas e contribuir para a persistência de um discurso hospitalocêntrico e biomédico, que não pressupõe o conceito mais ampliado de saúde, o que pode contribuir para o reforço de ações generalistas, higienistas e a exclusão social.1414. Macedo FS, Roso A, Lara MP. Women, health and crack use: the reproduction of new racism on/by television media. Saude Soc [Internet]. 2015 [cited 2016 July 20];24(4):1285-98. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v24n4/1984-0470-sausoc-24-04-01285.pdf
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Estudo sobre os spots da campanha publicitária “Crack: é possível vencer”, evidenciou que estes não se concentraram em aspectos educacionais do uso da droga, com abordagem às questões psicológicas, sociais, jurídicas e político-econômicas. Em vez disso, reproduziram informações baseadas em um senso comum, centradas no medo e na tragédia, não trazem informações educativas, tampouco desvelam o véu da ignorância acerca do tema da dependência química, pois direcionam o olhar para o viés de que existe uma relação íntima entre criminalidade, violência e o uso da substância.1515. Volcov K., Vasconcellos MP. “Crack é possível vencer” ou é preciso compreender: observações a partir de campanhas publicitárias do governo federal. Sau & Transf Soc [Internet]. 2013 [cited 2016 July 24];4(2):99-105. Available from: Available from: http://incubadora.periodicos.ufsc.br/index.php/saudeetransformacao/article/view/2245/2636
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Se pode notar assim, que campanhas educativas, que teriam o poder de mobilizar a sociedade para o cuidado a esta população, acabam por perpetuar preconceitos entre a população e marginalizar ainda mais os usuários destas substâncias.

Como entraves para que os atores sociais acessem esta população, pode-se citar, como exemplo, um estudo realizado no Distrito Federal, no qual pesquisadores demonstraram que, após a realização do Curso de Prevenção ao Uso de Drogas para Educadores de Escolas Públicas por professores, enquanto algumas escolas buscaram o protagonismo do aluno e do professor, rompendo com ideologias ultrapassadas, ainda se percebeu uma pedagogia do medo, repressão e o proibicionismo, que torna os sujeitos escolares reprodutores do velho jargão “diga não às drogas”. É imprescindível o envolvimento dos diversos atores escolares e acionar diferentes níveis e instâncias das redes interna e externa da escola e buscar o alinhamento das concepções políticas e ideológicas dos diversos profissionais e instituições envolvidos.1616. Souza MLP, Botechia JAA, Martins JNR, Lessa MB, Watanabe DRJ. The prevention and the policy of drugs in the Federal District public schools. Argumentum. 2015;7(1):126-37.

Outro achado importante no presente estudo mostra que as cenas observadas não se configuraram como regiões marcadamente dinamizadas por compra e venda de drogas, como o que ocorre em grandes centros urbanos, a exemplo de São Paulo e Rio de Janeiro (Brasil), mas sim, pelo seu consumo. No entanto, grande parte destas cenas se estabeleceu em locais próximos ao comércio ilegal da substância, o que facilita o acesso do usuário ao produto. Consequentemente, o policiamento com o objetivo de identificar e prender os traficantes, como também desarticular organizações criminosas que atuam no tráfico de drogas ilícitas foi identificado nas comunidades próximas às cenas de uso da droga, o que vai ao encontro do contemplado nas ações imediatas do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas 55. Brasil. Decreto n. 7.179 de 20 de maio de 2010: Institui Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, cria o seu Comitê Gestor, e dá outras providências. Diário Oficial da União; 20 maio 2010. que preconiza o enfrentamento qualificado ao tráfico do crack em áreas de maior vulnerabilidade ao consumo.

O estudo nacional sobre o uso de crack demonstrou que, dos 7.381 usuários entrevistados, 6,42% atuaram no tráfico de drogas nos últimos 30 dias (no momento do estudo) e 9,4% obtiveram dinheiro através de outras atividades ilícitas como furtos, roubos, fraudes, vendas de pirataria e estelionato. Em relação aos motivos de detenção no último ano foram relatados: tráfico/produção de drogas (11,36%); assalto, roubo (20,40%); furto, fraude, invasão de domicílio (19,43%); agressão, briga, violência doméstica (13,95%); homicídio (4,56%); prostituição ou cafetinagem (1,71%); e violação da condicional/de ordem de tratamento/sob fiança (0,64%).77. Bastos FI, Bertoni N. Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro (BR): ICICT/FIOCRUZ; 2014. Estes dados mostram que uma minoria recorre ao tráfico de drogas para obter dinheiro, e que há outros fatores relacionados à segurança pública e que merecem atenção multiprofissional (segurança, saúde e assistência social) na tentativa de solucioná-los.

Cabe assim refletir que o policiamento ostensivo de proximidade (comunitário) nas cenas de uso de crack se mostrou deficitário, visto que não se observou a polícia atuar na cena no sentindo de reconhecer o usuário de crack, para então realizar uma abordagem que possibilite ações educativas e de reinserção social. Este tipo de policiamento ainda pode incentivar a participação comunitária nas áreas de uso de drogas para fortalecer a prevenção à violência e à criminalidade, além da revitalização desses espaços.55. Brasil. Decreto n. 7.179 de 20 de maio de 2010: Institui Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, cria o seu Comitê Gestor, e dá outras providências. Diário Oficial da União; 20 maio 2010.

A (in)visibilidade do usuário de crack

Frente aos dados apresentados, neste estudo, é notório que o usuário de crack se mostrou invisível aos olhos da polícia, instituições de saúde, assistência social e da comunidade civil. Por este motivo, torna-se relevante discutir questões referentes à legislação e políticas públicas que embasem ações que possam mudar esta realidade.

Em 2006, a Lei n. 11.343 1717. Brasil. Lei n. 11.343 de 23 de agosto de 2006: Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da União; 2006. estabeleceu medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, e descriminalizou o usuário de droga, ao estabelecer penas diferenciadas para o usuário e traficante. Ficou estabelecido que aquele que adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade; e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo - os dois últimos itens apresentados, serão aplicadas pelo prazo máximo de cinco meses e em caso de reincidência, serão aplicados pelo prazo máximo de dez meses. Ainda deve ser colocado à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde para realização de tratamento.

Por este ângulo, cabe aos agentes da segurança pública mapear as cenas de uso de crack, reconhecer o território nos quais se estabelecem, identificar os usuários e os pontos de comércio da droga, a fim de se fazer cumprir a legislação vigente, atentando-se para o fato de que, por vezes, o pequeno varejista da droga, é na verdade um usuário que vende o produto para alimentar o seu próprio consumo da substância (pouco identificado neste estudo), e não um agente do narcotráfico, vinculado ao crime organizado. A identificação de quem é o traficante e quem é o usuário da droga é facilitada através da vinculação da polícia ao território e à comunidade, empoderado de treinamento, recursos materiais e humanos necessários para o desenvolvimento de seu trabalho de forma eficaz, contínua e segura.

Este olhar multiprofissional foi abarcado pelo Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas - “Crack, é Possível Vencer”. O crack deixou de ser apenas um problema de segurança, e passou a ser uma questão social e de saúde. A cidade de São Paulo, a partir dos recursos e diretrizes deste plano, criou o programa “De Braços Abertos”, implementado em janeiro de 2014. Para atuar no Programa, 200 agentes da Guarda Civil Metropolitana receberam treinamento no qual foi abordado conteúdos que se referiam à filosofia do policiamento comunitário, formas de mobilização social e fortalecimento dos espaços públicos, resolução pacífica de conflitos, rede intersetorial de serviços assistenciais e de saúde, treinamento com profissionais da saúde a respeito de drogas, e por fim, prática sobre o uso de armamentos não letais. Além do empoderamento teórico, ocorreu a reestruturação do processo de trabalho e os guardas ainda contaram com ônibus de vigilância que realizava o vídeo monitoramento daqueles que circulam na região com maior concentração de usuário de drogas.18 Após um ano de funcionamento do programa “De Braços Abertos”, os números demonstraram a diminuição de 80% no fluxo de usuários de crack nas cenas de uso, 50% nos roubos de veículo e de 33% no furto a pessoas, e efetuou um número 83% maior de prisões por tráfico de entorpecentes.1919. São Paulo. Programa "De Braços Abertos" completa um ano com diminuição do fluxo de usuários e da criminalidade na região [Internet]. 2015 [cited 2017 Mar 06]. Available from: Available from: http://www.capital.sp.gov.br/noticia/programa-de-bracos-abertos-completa-um-ano-com
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O eixo prevenção tem grande amplitude quanto às suas atribuições, sendo voltado especialmente à formação de profissionais que irão atuar nas três áreas previstas no Plano - Crack é possível vencer. Os cursos são oferecidos tanto de modo presencial, quanto via internet. Além disso, prevê a atuação da polícia de proximidade, ações de educação sobre o tema, em variados equipamentos sociais, como em escolas e comunidades, e através da mídia. Estabeleceu a capacitação de líderes comunitários, conselheiros municipais e outras lideranças para atuarem na prevenção do uso de drogas e desenvolverem ações preventivas com abordagem apropriada à realidade vivenciada, como também capacitação de profissionais da saúde, assistência saúde e operadores de direito.55. Brasil. Decreto n. 7.179 de 20 de maio de 2010: Institui Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, cria o seu Comitê Gestor, e dá outras providências. Diário Oficial da União; 20 maio 2010.

Como o presente estudo evidenciou fragilidades no que se refere às ações intersetoriais no cuidado e na abordagem aos usuários de crack, fica notória a necessidade de ações educativas referentes ao tema com toda a população civil, ou seja, faz-se necessário consolidar o eixo prevenção no município em estudo, e assim, formar multiplicadores de conhecimentos e habilidades capazes de protagonizar ações que colaborem para o fortalecimento da cidadania do usuário de crack.

O programa “De Braços Aberto”, em São Paulo, por exemplo, trouxe inovações no que se refere ao eixo cuidado aos seus beneficiários (usuários de crack cadastrados no programa), entre elas: a oferta de moradia através de hotéis conveniados; trabalho por contratação para serviços de varrição e zeladoria de ruas da região central com carga horária de 4 horas diárias e remuneração de 15 reais por dia de trabalho; qualificação técnica caso o beneficiário desejar; três refeições gratuitas ao dia; e acesso aos serviços de saúde através de encaminhamentos direcionados. Não há imposição de tratamento clínico ou de abstinência para que o indivíduo seja inserido no programa. O espaço físico onde é realizado o cadastro dos usuários ainda conta com local para a realização de atividades físicas, culturais ou de organização, banheiros, tanques para a lavagem de roupas, equipamentos de ginástica e televisão de uso coletivo. As ações são realizadas por equipes de assistência social, saúde, cultura, esporte e lazer, com apoio da segurança urbana. Com esta iniciativa, no que tange à saúde, foi possível oferecer um cuidado integral, através de assistência médica, de enfermagem, odontológica, psicológica, ações de prevenção de infecções e doenças sexualmente transmissíveis (ISTs/DSTs), como também atendimentos específicos a mulheres, gestantes e crianças. Em relação ao trabalho e assistência social, muitos iniciaram o trabalho no serviço de varrição de ruas e limpeza de praças, outros passaram por um processo de autonomia e começaram a trabalhar fora do programa, diversos beneficiários conseguiram novos documentos. Salienta-se que os usuários contemplados pelo programa que iniciaram atividades laborais, aceitaram tratamento, compareceram diariamente ao trabalho e reduziram o consumo de drogas.1919. São Paulo. Programa "De Braços Abertos" completa um ano com diminuição do fluxo de usuários e da criminalidade na região [Internet]. 2015 [cited 2017 Mar 06]. Available from: Available from: http://www.capital.sp.gov.br/noticia/programa-de-bracos-abertos-completa-um-ano-com
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Em Florianópolis a intervenção intersetorial em cenas de uso de crack foi inexistente. Portanto, é essencial que gestores municipais se esforcem para efetivar um cuidado integral a esta população. O município conta com os seguintes equipamentos para oferecer assistência aos usuários: Unidades Básicas de Saúde, Equipe de Consultório na Rua, Centros de Atenção Psicossocial, Unidades de Pronto Atendimento 24 horas, Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, CRAS, CREAS, Equipamentos da Alta Complexidade da Assistência Social (abrigos e moradias assistidas), além de convênio com Comunidades Terapêuticas. Todas estas instituições, juntamente com os agentes de segurança pública e a sociedade civil podem ser sensibilizadas, empoderadas e supridas de recursos materiais e humanos necessários para atuarem de maneira integrada no cuidado ao usuário de crack.

Dentre as ações estruturantes do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, consideram-se, ainda, a realização de estudos e o diagnóstico em relação ao tema para o acúmulo de informações destinadas ao aperfeiçoamento das políticas públicas de prevenção do uso, tratamento e reinserção social do usuário e enfrentamento do tráfico de crack e outras drogas ilícitas.5 Neste ínterim está contemplado o estudo do qual esta pesquisa foi derivada, e na qual a Guarda Municipal de Florianópolis participou e nesse processo recebeu capacitação para atuar junto aos usuários de crack sob um olhar que vai ao encontro das políticas públicas vigentes. Com a participação destes agentes no mapeamento e observação das cenas, ocorreu também a sensibilização e maior empoderamento para atuar junto a esta população, atentando-se para as necessidades de cuidado à saúde e de reinserção social. Cabe ao munícipio dispor dos recursos materiais e humanos para que os agentes de segurança pública efetivem o policiamento de proximidade (comunitário) nas cenas de uso de crack.

O Brasil vive um momento de transição, em que se percebe esforços para um cuidado integral e sistêmico, que abarque todas as necessidades de cuidado, prevenção e promoção da saúde e da cidadania, e concomitantemente, ações e ideias repressivas, arraigadas na visão de que o crack e “crackeiro” são o mesmo problema, o que acaba por excluir e invisibilizar o usuário da droga pela sociedade. É necessário que as ações educativas veiculem informações adequadas referentes às questões sociais, de saúde e de segurança pública que envolvam o tema das drogas e desmistifiquem preconceitos. Para tanto, é primordial maiores investigações que embasem ações capazes de atingir os seus propósitos, ou seja, educar e informar criticamente a população, acarretando em maior responsabilidade da sociedade civil e profissionais das diversas áreas com o cuidado aos usuários de crack.

São necessários estudos acerca do contexto social e cultural dos cenários de uso da droga integrada a dados epidemiológicos e estatísticos, na intenção de compreender o fenômeno, possibilitar a imersão de diferentes atores nesse contexto, e assim, fomentar a aproximação e abordagem transdisciplinar na produção e efetivação do acolhimento das necessidades desta população, que em muitos momentos são negligenciadas. As políticas de atenção e assistência que envolvem os usuários de crack devem ser prioridades dos gestores, sempre articuladas com base nas produções científicas produzidas nacional e internacionalmente.2020. Ferreira RZ, Oliveira MM, Kantorski LP, Coimbra VCC, Jardim VMR. Gift theory among groups of users of crack and other. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Mar 06];24(2):467-75. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v24n2/0104-0707-tce-24-02-00467.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v24n2/0104-...

CONCLUSÃO

São necessários maiores investimentos para que o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas55. Brasil. Decreto n. 7.179 de 20 de maio de 2010: Institui Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, cria o seu Comitê Gestor, e dá outras providências. Diário Oficial da União; 20 maio 2010. seja efetivado, a fim de possibilitar que o usuário da droga acesse os equipamentos sociais e de cuidados que fortaleçam sua cidadania e que promovam a redução do uso da droga ou até mesmo a abstenção. É recomendável que os municípios brasileiros avaliem a capacidade que têm para atuar no atendimento integral aos usuários de crack. Fazem-se necessários, também, intensos esforços no eixo prevenção a fim de que toda a população possa ser empoderada para atuar frente à temática de maneira ética e humana, possibilitando a inserção social dos usuários de crack.

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  • FINANCIAMENTO

    Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Presidência da República. Brasil.
  • APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

    Aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, sob o número do Certificado de Apresentação para apreciação Ética n. 0073.0.031.000-11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2017
  • Aceito
    08 Fev 2018
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