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Qual é o valor da aplicação da teoria social no cuidado à maternidade?

A Gravidez, o parto e a transição para a maternidade são processos fisiológicos, porém eles estão sempre social e culturalmente influenciados e moldados, formando um grande acontecimento na vida das mulheres, das famílias e das comunidades. O parto não é apenas um processo que envolve a reprodução individual - ter um filho, ser mãe -, mas envolve um processo de reprodução social - a forma como a sociedade e a cultura se reproduzem. Por essa razão, e porque os seres humanos são essencialmente seres sociais, o parto é sempre um fenômeno social e culturalmente moldado e gerenciado. Em paralelo, o papel e estatuto profissional das parteiras, obstetras e enfermeiras são moldados por contextos sociais e culturais nos quais estão imersas, trabalhando, a fim de cuidar e apoiar as mulheres durante a gravidez, o parto e a transição para a paternidade.

Dar à luz é um processo que cria novos indivíduos e papéis sociais: o feto se torna uma pessoa social e a mulher que dá à luz se torna uma mãe, seu parceiro em pai, e desta forma novas famílias são formadas. Consequentemente, as formas em que as mulheres dão à luz são uma questão de grande interesse - um objeto da política e um tema de interesse e preocupação social. As circunstâncias em que o parto é moldado e gerenciados pelos diferentes quadros legais e do governo, pela política, pelos profissionais e pelas instituições são um reflexo de um contexto social e cultural específico, influenciado pela sua própria história. Podemos citar aqui o conceito da antropóloga Mary Douglas, que considera o corpo como um microcosmo - quando se refere ao como se inscreve o mundo social no corpo das mulheres e ao como os corpos das mulheres são representadas no mundo social. A ideia do corpo como um microcosmo fornece uma imagem em um nível micro do corpo e das suas estruturas e relações que ocorrem em um nível macro com o seu contexto social. Também podemos mencionar como o processo de nascimento e as diversas formas em que é gerido, não só é influenciado pelo mundo social, mas também como ajuda a moldar, reciprocamente, o mundo social do qual faz parte.

Espero que esta introdução tenha conseguido demonstrar por que a teoria social pode ser útil para pensar sobre os alcances e as relações com o parto e os cuidados à maternidade. Agora eu quero sugerir algumas maneiras em que a teoria social pode-se constituir como uma ferramenta importante para o pensamento crítico e a análise, que poderia ajudar enfermeiras e parteiras no fortalecimento das habilidades e conhecimentos para desenvolver, interpretar, questionar, discutir e implementar evidências na prática.

No âmbito da saúde pública (no nível macro de análise), a teoria social ajuda a analisar e explicar os determinantes sociais da saúde e a complexidade que as formas socioeconômicas, as oportunidades de vida, o acesso ao conhecimento e o poder podem moldar a saúde e o bem-estar. A assistência à maternidade é um fato fundamental para a saúde pública, pois influencia diretamente o bem-estar durante a gravidez e o período perinatal. No futuro, influencia também a saúde da criança e, mesmo nas gerações posteriores, na própria saúde da mãe. O impacto dos cuidados da saúde, incluindo o cuidado na maternidade, é realizado no nível mais fundamental. No início da gravidez, a saúde de algumas mulheres e seus bebês já está em desvantagem, por algumas desigualdades sociais baseadas na classe econômica, etnia e local de residência. As desigualdades também são evidentes na determinante de gênero, como também são percebidas no poder de influenciar a estrutura social e política, no acesso aos cuidados de saúde e nas relações em assistência social. Assim, mesmo antes que comecem as aventuras da gravidez e o parto, a teoria social deve desempenhar um papel importante na informação dos profissionais da maternidade sobre os fatores que influenciam a saúde materna e infantil. Também tem sido demonstrado que os fatores anteriormente mencionados influenciam no acesso aos cuidados e qualidade do atendimento recebido por diferentes mulheres na sociedade, de modo que a assistência à maternidade, em alguns momentos, pode exacerbar, em vez de diminuir, as desigualdades sociais existentes na saúde. A economia política pode ajudar a explicar tanto as desigualdades no atendimento que recebem as mulheres, quanto as desigualdades de poder entre os obstetras, enfermeiras e parteiras, e os fatores econômicos e institucionais que estão envolvidos na medicalização do atendimento.

Se olharmos para as instituições de saúde, como hospitais e clínicas, e aos profissionais como obstetras ou parteiras (no nível meso da análise), podemos usar a teoria social, com a finalidade de analisar e compreender as formas de organização do cuidado que é proporcionado, a divisão de papéis profissionais, as atitudes e práticas dos profissionais e suas inter-relações. As teorias de gênero, por exemplo, podem ajudar a explicar a autonomia da obstetrícia, a abrangência dentro do seu campo e, como o conhecimento obstétrico, chegou a implantar seu saber, enquanto as teorias da medicalização e da modernidade poderiam revelar os motivos das formas excessivas e socialmente desiguais em que a tecnologia é aplicada no parto.

Um exemplo de minha própria pesquisa tem sido o uso da teoria social para analisar as formas em que o tempo é conceituado e gerenciado durante o parto e os cuidados à maternidade. Eu percebi que, historicamente, os conceitos de duração do trabalho de parto, a ênfase na medição e o controle do tempo durante a gravidez e o parto têm mudado. Essa mudança na assistência à maternidade é o resultado de grandes mudanças históricas nos conceitos culturais de tempo e na forma de como gerir e pensar sobre o tempo no nosso dia a dia e na nossa vida laboral. Isso se reflete na ênfase da gestão de tempo durante a gravidez e o parto, mas semelhante no risco de tecnologia de vigilância, gestão de riscos e no protocolo baseado no cuidado. Meu trabalho na avaliação do modelo do número de atendimentos obstétricos, no qual as parteiras cuidavam de um número de mulheres atendidas, evidenciou a manutenção de um elevado nível de continuidade, de autonomia da prática obstétrica e da prestação de contas para os seus cuidados, ressaltou como a gestão e até mesmo os conceitos de tempo do trabalho de parto começaram mudar à medida que estes obstetras adaptaram ao seu "novo" papel, que era mais parecido com o papel da parteira tradicional ou "parteira". Esses obstetras pareciam operar com um conceito pósmoderno de tempo, embora - o conceito era mais fluido e centrado na mulher. Tinha muito em comum com os conceitos de tempo e das práticas de sociedades e parteiras mais tradicionais, e tinha uma abordagem mais centrada no parto fisiológico, em vez da abordagem que envolve uma "gestão ativa do" próprio parto, mas dentro de um contexto pós-moderno de estabelecimento do status como um grupo profissional, da utilização das evidências científicas críticas, da afirmação da sua autonomia profissional e responsabilidade.

Vários dos artigos desta edição da revista refletem a importância da teoria social, bem como outros que estão relacionados com a pesquisa em enfermagem, em termos dos papéis dos membros da família, a natureza da família, como ser mãe ou outro membro da família, desde a conceptualização e experiência relacionados à doença, deficiência ou fragilidade. Ser o pai de uma criança com deficiência, por exemplo, desafia pressupostos comuns sobre a maternidade em termos da função materna, e como isso muda ao longo do tempo, de acordo com o desenvolvimento da criança. Convida-se a considerar e refletir sobre a experiência da maternidade e do reconhecimento social dos papéis familiares em um contexto de estigma social. Os artigos desta edição também refletem as maneiras pelas quais as forças sociais moldam as práticas e os autoconceitos das enfermeiras e da população em geral, e qual o impacto que isso tem sobre a saúde e o cuidado. Também demonstram as formas pelas quais as experiências subjetivas de fornecer ou receber cuidado podem ter um impacto sobre os resultados do autocuidado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2014
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