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RELAÇÕES FAMILIARES NO CONTEXTO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO1 1 Texto extraído da tese - Representações sociais de familiares sobre a violência de gênero, apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 2015.

RESUMO:

Estudo que objetivou analisar as representações sociais das relações familiares no contexto da violência de gênero. A presente pesquisa, qualitativa, baseou-se na Teoria das Representações Sociais e foi realizada com 19 familiares de mulheres em situação de violência de gênero, cadastrados em unidades da Estratégia Saúde da Família de Jequié, Bahia. A coleta ocorreu por meio da entrevista semiestruturada, entre abril e setembro de 2014, e a organização dos dados seguiu a técnica da análise de conteúdo. As representações sociais dos familiares mostraram a violência de gênero como crime e pontuaram a necessidade de ações que minimizem a sua ocorrência. Elas também assinalaram que a violência de gênero gera adoecimento dos familiares e restringe-se ao espaço privado da casa, favorecendo o silêncio. Urge a adequação da formação em saúde e educação e dos serviços assistenciais da rede de violência, observando as políticas públicas no enfrentamento da violência de gênero.

DESCRITORES:
Violência contra a mulher; Saúde da família; Gênero e saúde; Enfermagem

ABSTRACT:

This study aimed at analysing social representation of family relationships in the context of gender-based violence. This qualitative research was based on the Theory of Social Representations and it was conducted with 19 family members of women in the situation of gender-based violence, registered in Family Health Strategy units of Jequié, Bahia. Data was collected through a semi-structured interview between April and September 2014 and data organization was done according to the content analysis technique. The family members' social representations showed gender-based violence as a crime and the need towards actions to minimize its occurrence. They also indicated that gender-based violence results in illness of family members and as it is restricted to the private area of the house, it contributes towards its silence. Proper training of health, education and welfare services of the anti-violence network is urgent, observing public policies dealing with gender-based violence.

DESCRIPTORS:
Violence against women; Family health; Gender and health; Nursing

RESUMEN

el artículo objetiva analizar las representaciones sociales en las relaciones familiares en el contexto de la violencia de género. Esta investigación cualitativa, se basó en la Teoría de las Representaciones Sociales realizada con 19 familiares de mujeres en situación de violencia de género, inscritos en unidades de la Estrategia de Salud de la Familia de Jequié, Bahia. La colecta ocurrió se llevó a cabo a través entrevista semiestructurada entre abril y setiembre de 2014 y la organización de los datos siguió la técnica de análisis de contenido. Las representaciones sociales de los familiares mostraron la violencia de género como crimen y anotó la necesidad de acciones que minimicen su ocurrencia. También señalaron que la violencia de género genera padecimiento de los familiares y es restringida al espacio privado de la casa, favoreciendo el silencio. Urge la adecuación de la formación en salud y educación y de los servicios asistenciales de la red de violencia, observando las políticas públicas en el enfrentamiento de la violencia de género.

DESCRIPTORES:
Violencia contra la mujer; Salud de la familia; Género y salud; Enfermería

INTRODUÇÃO

A violência de gênero é produzida em contextos relacionais de poder entre mulheres e homens, configurados pela subalternidade feminina e pelas dissimetrias que determinam as normas e regras sociais em relação aos comportamentos de mulheres e homens.11. Bandeira LM. Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação. Soc Estado. 2014 Mai-Ago; 29(2):449-69.

A prevalência global de violência física e/ou sexual praticada por parceiro íntimo foi de 30%, considerando a estimativa de 79 países. O Brasil registrou média de 4,8 feminícidios por 100 mil mulheres, ocupando a quinta posição no ranking mundial num grupo de 83 países. Registrou, ainda, através do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), que no ano de 2014 foram atendidas 223.796 vítimas de violência doméstica, sexual e/ou outras violências, sendo que duas em cada três dessas vítimas de violência (147.691) foram mulheres que precisaram de atendimento médico. Para as mulheres de 18 a 59 anos de idade, o agressor principal foi o parceiro ou ex-parceiro.2-3

A violência de gênero na relação amorosa revela a existência do controle do homem sobre o corpo, a sexualidade e a mente feminina, evidenciando, paralelamente, por um lado a diferença que se estabelece entre homens e mulheres na família e na sociedade, e, por outro, a manutenção das estruturas de poder e dominação disseminadas na ordem patriarcal.1

A cultura patriarcal estabelece uma hierarquia que invade todos os espaços da sociedade: tem uma base material, corporifica-se e representa uma estrutura de poder, baseada tanto na ideologia machista/sexista quanto na violência.44. Saffioti HIB. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo (SP): Editora Fundação Perseu Abramo; 2004. Esta relação de poder também pode ser observada nas relações familiares, reafirmando a violência de gênero.

Nesse contexto, o apoio religioso, de familiares, de amigos e de Organizações Não Governamentais integram a rede de apoio social de mulheres em situação de violência, revelando-se elementos importantes para o enfrentamento da violência conjugal, ao propiciar apoio emocional, espiritual, material e informações.55. Gomes NP, Diniz NMF, Reis LA, Erdmann AL. The social network for confronting conjugal violence: representations of women who experience this health issue. Texto Contexto Enferm [internet]. 2015 [cited 2016 Jan 10]; 24(2):316-24. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072015000200316&lng=en&nrm=iso&tlng=en
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Constatamos, a partir da busca em bases de dados nacionais e internacionais, utilizando o descritor violência contra a mulher, que, apesar do aumento da produção teórica sobre a violência de gênero, a maioria dos estudos sobre representações sociais teve como foco os relatos da mulher, do homem ou dos(as) profissionais da rede de violência, abordando as consequências psicossociais disso para a mulher.

Identificamos uma lacuna no conhecimento, o que nos impulsionou a buscar uma compreensão das relações familiares no contexto da violência de gênero, com base na Teoria das Representações Sociais (TRS), considerando que as representações sociais decorrem de informações, atitudes, valores, crenças e opiniões elaboradas em interações humanas, entre duas pessoas ou grupos de pessoas, sobre um objeto ou situação, a partir de uma visão subjetiva e social da realidade, influenciando e direcionando os comportamentos, práticas e decisões inerentes à vida cotidiana.66. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 9ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2012.

Esta pesquisa teve como objetivo analisar as representações sociais das relações familiares no contexto da violência de gênero.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, realizada com 19 familiares de mulheres em situação de violência de gênero, cadastradas em Unidades de Saúde da Família (USF), entre os quais estão seis mães, cinco irmãs, uma filha, um filho, uma sogra, três primos e duas cunhadas.

O estudo foi realizado em dez USFs, quatro com equipes únicas e seis com equipes duplas; destas, apenas uma USF contemplou a realização da entrevista com familiares cadastrados(as) nas duas equipes, totalizando 11 equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) do município de Jequié, interior da Bahia. Consideramos, para critérios de inclusão, ser familiar de mulheres em situação de violência de gênero, residindo no mesmo domicílio da mulher ou em domicílio próprio, cadastrados(as) nas USFs selecionadas para o estudo, ter mais de 18 anos, com ou sem vínculo consanguíneo e com capacidade de manter a comunicação verbal, sendo excluídos(as) aquelas e aqueles que estavam em uma condição de saúde que impedisse a sua participação, por exemplo, aquelas e aqueles que estavam hospitalizados.

Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada, no período de abril a setembro de 2014, com a utilização de um gravador. A duração média de cada entrevista foi de 40 minutos. Onze entrevistas foram realizadas nas USFs, e oito em domicílio.

A coleta de dados se deu depois de o projeto de pesquisa ter sido aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia, sob o parecer nº 456.776/2013, CAEE 23641513.8.0000.5531, visando a cumprir os preceitos éticos estabelecidos na Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012, com prévia solicitação de consentimento informado das participantes e dos participantes.

Para a organização dos dados, utilizamos o método da análise de conteúdo, modalidade temática, que tem como finalidade descobrir os núcleos de sentido e propiciar uma comunicação significativa ao alcance dos objetivos propostos, seguindo três etapas, iniciando com a pré-análise, consistindo na leitura flutuante do material empírico inerente às entrevistas. Sucessivas leituras do conteúdo das entrevistas possibilitaram a codificação dos dados a partir do recorte do texto para a identificação das unidades de registro. Em seguida, os dados foram classificados e agregados em temas, categorias e subcategorias.7

Na fase de interpretação e discussão, foram estabelecidas relações críticas entre as falas das colaboradoras e dos colaboradores, explícitas e implícitas, e o contexto científico, fundamentando-nos na categoria analítica gênero e nas representações sociais.

Para garantir o anonimato, usamos a letra E, de entrevistado(a), seguida de um algarismo arábico correspondente à ordem crescente de realização da entrevista e do vínculo familiar com a mulher em situação de violência. Por exemplo, (E1, irmã), e assim sucessivamente.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os entrevistados(as) encontravam-se na faixa etária compreendida entre os 20 e os 70 anos, sendo que apenas dois eram do sexo masculino. No concernente à raça, 15 eram negros e quatro brancos tomando-se por base a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No que respeita à escolaridade, quatro não eram alfabetizados(as), quatro possuíam ensino fundamental, sete o ensino médio e quatro, o ensino superior.

Quanto à situação conjugal, 11 eram casados(as), dois solteiros, três viúvas e três viviam em união consensual. No que respeita à renda familiar, um não tinha renda fixa, cinco percebiam até um salário mínimo, nove percebiam entre um e três salários mínimos e quatro recebiam de três a cinco salários mínimos; apenas cinco recebiam bolsa-família. No que se refere à ocupação, cinco participantes se autodenominaram do lar, três aposentadas, uma pensionista, sete agentes comunitários(as) de saúde (ACS), entre outras profissões.

O tema violência de gênero nas relações familiares foi discutido a partir das seguintes categorias: Expressão da violência de gênero nas relações familiares; Implicações da violência para a saúde do familiar; Filhos(as) participando dos atos agressivos; Sentimentos dos familiares.

Expressão da violência de gênero nas relações familiares

Os familiares de mulheres em situação de violência de gênero evidenciaram a vivência de violência no cotidiano das relações familiares.

Imaginava quando meu pai chegava bêbado final de semana, porque já chegava querendo agredir, querendo fechar a porta pra ela [mãe] não entrar, querendo bater, quebrava os móveis [...]. Eu não aceito isso, em relação a um homem bater na mulher, eu achava isso terrível, eu não sabia lidar com isso [...]. Eu era totalmente fria, não conseguia ser a mesma filha [...] (E3, filha).

Nas relações entre homens e mulheres, a desigualdade de gênero não é dada, mas construída.44. Saffioti HIB. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo (SP): Editora Fundação Perseu Abramo; 2004. Essa construção ficou bem evidente na convivência familiar entre o casal vivendo em um contexto de violência e seus familiares.

A entrevistada 11 afirmou não estar conversando com a irmã em virtude de ameaças que sofreu, da parte dela (irmã) e de seu companheiro, por causa da denúncia que tinha feito no Conselho Tutelar.

[...] Ela [irmã] 'tava desaparecida desde sexta-feira à tarde, chamei o Conselho Tutelar por causa das crianças, o Conselho Tutelar chamou a polícia, 'tava em uma casa de drogas, trouxe ela [...]. Me afastei um pouco dela, por causa dessa vez que eu chamei o Conselho Tutelar, ela juntamente com ele [agressor] foram me ameaçar, nós estávamos brigadas mesmo, sem se falar [...]. Ela foi me ameaçar de morte [...] (E11, irmã).

O relato evidenciou que a irmã agiu de acordo com a lei ao denunciar os maus tratos praticados pelos familiares contra as crianças, mas que, apesar disso, recebeu ameaças de morte.

O afastamento do agressor das relações familiares também foi evidenciado na seguinte fala: [...] tinha como meu filho [genro agressor] [...]. Foi criado aqui dentro da minha casa, era tanta liberdade que ele me chamava de mãinha, já cansou de ir tirar meu dinheiro, hoje em dia [...] não permito mais que ele entre na minha casa [...] (E19, mãe).

A perda da confiança impede a convivência familiar.

Os (As) participantes também evidenciaram que a violência deixa a família em alerta para a ocorrência de eventos violentos.

Presenciei assim, um dia ela [irmã] 'tava vindo da festa na madrugada, eu já estava dormindo, eu sabia que ela tinha saído, já fiquei na expectativa de quando ela chegar. Nesse dia, eu, com sono leve, escutei os gritos pedindo por socorro. 'Socorro! Socorro!' Aí foi quando eu chamei o meu marido pra que a gente fosse acudir, ele [agressor] já tinha dado socos nela, a boca dela já 'tava bem arrebentada, inclusive ela foi pro PA [Pronto Atendimento] [...]. Ela prestou uma queixa [...] contra ele, ela sofreu ameaças, não só ela como eu sofremos ameaças, nos sentimos encurraladas, aí decidimos retirar [...] (E1, irmã).

Ela morou na casa da minha mãe, mas foram seis meses de violência [...]. Foi um período curto, porém intenso [...]. Ele acabou matando ela [...] (E11, irmã).

As falas mostraram que, apesar de não conviverem no mesmo espaço doméstico, os familiares também se veem envolvidos na situação de violência, amparando a mulher que vê o seu cotidiano transformado.

As mulheres em situação de violência receberam o amparo da família e/ou dos amigos, constituindo este, na maioria dos casos, o suporte necessário para a decisão de denunciar o agressor e procurar apoio, apesar da prevalência das marcas que configuram um corpo sofrido num cotidiano de renúncias e incertezas.88. Oliveira PP, Viegas SMF, Santos WJ, Silveira EAA, Elias SC. Women victims of domestic violence: a phenomenological approach. Texto Contexto Enferm [internet]. 2015 [cited 2016 Jan 10]; 24(1):196-203. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v24n1/pt_0104-0707-tce-24-01-00196.pdf
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Os relatos também mostraram o cotidiano dos familiares com o agressor e esses familiares usaram diversas atitudes de suporte para agregar vínculos e promover a interação, conforme os trechos das entrevistas a seguir:

[...] chega em minha casa [genro agressor], trato muito bem, come e tudo, porque se eu escurraçar [...] a filha, muitas horas, pode ficar revoltada [...] (E9, mãe).

[...] com meu irmão e cunhada vejo uma situação que preciso aproximar mais ainda [...]. Tenho cartão de crédito [...]. Vejo que é um meio pra que eu possa estar interagindo com ele, porque ele também é fechado, eu procuro ter um vínculo [...] (E15, cunhada).

A TRS é dirigida para a construção e transformação dos saberes sociais, em diferentes contextos produzidos na vida cotidiana e, por ela, configurando uma pluralidade de saberes profundamente interligada ao mundo da vida e à experiência vivida de uma comunidade, o que demarca seus referenciais de pensamento, ação e relacionamento.99. Jovchelovitch S. Os contextos do saber: representações, comunidade e cultura. Petrópolis (RJ): Vozes; 2008.

Desse ponto de vista, podemos apreender as representações sociais dos familiares sobre a violência de gênero ora como crime, na medida em que acompanham a mulher na denúncia, ora como forma de ajuda, no sentido de minimizar estas ocorrências.

As representações sociais transformam em convenções os objetos, as pessoas ou os acontecimentos encontrados, categorizando-os e definindo-os como um modelo a ser aceito e partilhado por um grupo de pessoas, podendo sofrer influências da linguagem ou cultura. Além disso, as representações são prescritivas, impondo-se sobre as pessoas como uma força irresistível, decorrente de uma estrutura existente antes do pensamento e de uma tradição que decreta o que deve ser pensado.66. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 9ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2012.

Podemos, portanto, inferir que essas representações dos familiares tendem a reproduzir as questões culturais na dinâmica da violência, influenciadas pelos meios de comunicação, atravessando gerações e se perpetuando até o contexto atual.

Estudo fundamentado na TRS mostrou o apoio familiar como elemento essencial para potencializar o empoderamento das mulheres em vivência de violência.55. Gomes NP, Diniz NMF, Reis LA, Erdmann AL. The social network for confronting conjugal violence: representations of women who experience this health issue. Texto Contexto Enferm [internet]. 2015 [cited 2016 Jan 10]; 24(2):316-24. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072015000200316&lng=en&nrm=iso&tlng=en
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Esse apoio da rede familiar no contexto da violência de gênero também ganhou destaque na literatura, onde se mostra que, apesar do isolamento em que se refugiam, algumas dessas mulheres se sentem inseridas numa rede sócio-humana, que lhes permite pensar em alternativas para permanecer junto ao agressor ou romper com o parceiro, principalmente quando confiam nas mães para dividir com elas a violência vivida,1010. Dutra ML, Prates PL, Nakamura E, Villela WV. A configuração da rede social de mulheres em situação de violência doméstica. Ciênc Saúde Colet. 2013 Mai 18(5):1293-304. pedindo orientação para sair dessa difícil situação.

O caminho encontrado pelos familiares para dar apoio, não desprezando o vivido e tentando ajudar, é importante. Mas, não é suficiente, considerando-se que em determinado momento a situação de violência se torna insustentável, requerendo ajuda institucional dos serviços da rede de atenção à violência. Nesse sentido, o papel das políticas públicas ganha destaque no enfrentamento da violência de gênero.

Implicações da violência para a saúde do familiar

A vivência da violência de gênero acarreta o adoecimento físico e o sofrimento psíquico dos familiares, como mostram as falas a seguir:

vou dar conselho por causa de confusão, passo mal, já fui parar no hospital duas vezes quase morta, os médicos e a polícia no hospital falou que era pra 'mim' sair do meio, deixasse lá, senão eu ia morrer, porque a pressão sobe demais, sou hipertensa [...] (E9, mãe).

[...] cansamos de sair daqui meia-noite pra ir pra casa deles, pra tirar eles de briga, [...]. Muito nervosismo, assim tira a paz total, cem por cento a paz. Aí você não vive bem, você não trabalha bem, você não é uma boa mãe, você não é uma boa esposa, seu marido não é um bom esposo, porque tudo influencia, tudo acarreta em cima da família [...] (E19, mãe).

Os relatos mostraram que os membros da família que convivem com a violência de gênero adoecem física e mentalmente: crise hipertensiva e nervosismo são apenas algumas das consequências desse fenômeno, que tira a paz da família e interfere nos papéis sociais dos familiares. Destaque também para o comprometimento do desenvolvimento biopsicossocial das filhas e dos filhos e o envolvimento com as drogas.

De modo geral, a família estrutura sua convivência com base nos valores considerados importantes para o viver comum, passados de geração para geração no processo educativo das filhas (e dos filhos) como legado familiar. Contudo, quando não há uma comunhão de valores, e as pessoas agem de maneira distinta, temos uma convivência conflituosa e desgastante para os membros da família.1111. Althoff CR. Delineando uma abordagem teórica sobre o processo de conviver em família. In: Elsen I, Marcon SS, Santos MR, organizadores. O viver em família e sua interface com a saúde e a doença. Maringá (PR): EDUEM; 2002.

Essa convivência conflituosa, por sua vez, propicia a violência de gênero e atinge a vida das filhas e dos filhos, que passam a conviver com sentimentos de medo e revolta, principalmente quando tal situação não se resolveu por meio do diálogo.

[...] Os filhos [...] o mais velho ficava com medo e o mais novo corria aqui pra casa. 'Minha avó, meu pai já tá brigando mais minha mãe e eu não vou pra lá não [...]' (E10, sogra).

Ficou 'uns meninos revoltado', aquela malcriação, qualquer coisa que a gente fala, grita, esperneia. Eu vou rumar uma pedra, eu vou matar [...] de ver aquelas brigas dentro de casa, eles ficam revoltados [...] (E9, mãe).

Os familiares perceberam que a relação de violência dos pais era prejudicial para as filhas e os filhos; identificaram-se alterações no comportamento deles, que passaram a sentir medo e revolta, ficaram agressivos e apresentaram dificuldades de aprendizado.

O menino até hoje não sabe ler direito, que ele já é quase da idade do meu menino, que já vai pro primeiro ano e o menino parece que ainda tá na quinta [...]. Se der uma coisa pra ler, não lê [...]. O sofrimento que já passaram na vida [...] (E6, irmã).

[...] Os três aprendem pouco, às vezes, bota pra fazer uma coisa assim, que uma é agitada demais, os outros são desligados demais, então tudo tem a ver [...] (E19, mãe).

Ao destacar que a violência praticada por parceiro íntimo está associada aos problemas de comportamento dos filhos em idade escolar, os achados deste estudo coincidem com aquilo que diz a literatura a respeito do assunto: a mulher ter sofrido a violência por parceiro íntimo grave foi condição sine qua non para a ocorrência de três ou mais problemas de comportamento entre suas filhas e filhos, independentemente do apoio social e comunitário.1212. Durand JG, Schraiber LB, França-Junior, Barros C. Repercussão da exposição à violência por parceiro íntimo no comportamento dos filhos. Rev Saúde Pública 2011 Abr; 45(2):355-64.

Uma irmã destacou o fato de os três sobrinhos terem presenciado a morte da mãe, segundo mostram trechos da entrevista a seguir:

[...] ele foi lá com a faca e cravou no pescoço dela na frente dos filhos [...]. Foi assim terrível [...]. A gente tinha que sair procurando pelo meio da rua esses meninos de noite [...]. Quando 'tava com fome ficava pedindo pelas portas, eles fugiam [...]. Eu perguntava: 'Por que é que vocês fogem assim?' 'Ah, tia, sei lá, me dá uma coisa assim na minha cabeça, a gente sai andando' [...] uma desorientação, fugir da situação [...] (E11, irmã).

Este fato pode ser a causa de traumas psicológicos e vulnerabilidade social.

O uso de drogas, a gravidez na adolescência e a prostituição também foram citados pelos familiares do estudo como efeitos da violência de gênero na vida dos filhos e filhas dessas mulheres.

A gente que é membro da família vê os filhos da minha irmã já na mesma situação [...]. O marido é usuário, as filhas já estão no mesmo caminho [...] se envolveram com usuários, já têm filhos, uma tem 17, outra tem 18 anos [...] (E5, irmã).

A influência das brigas, todo momento que eles tinham discussão eu pensava logo em esquecer aquilo, ia me drogar [...] horizonte aberto foi a minha vida, procurei assim esquecer as coisas que eu 'tava vivendo na prostituição, nas drogas [...]. É um reflexo mesmo de violência de dentro de casa que vai refletir num filho ou numa filha [...] (E16, filho).

Diversos fatores tornam os adolescentes vulneráveis às mudanças comportamentais e aos problemas de saúde. Entre estes, fatores individuais, tais como sexo, idade e características psicológicas, tais como baixa autoestima, baixa autoconfiança e pouca determinação; fatores familiares relacionados com a história de problemas de saúde mental, problemas com álcool e/ou drogas, violência física, psicológica e sexual, violência entre os pais, perdas por morte, separação dos pais; fatores socioculturais, tais como pobreza, violência no contexto social, falta de apoio/suporte social; e fatores biológicos, compreendidos articuladamente.1313. Santos DCM, Jorge MSB, Freitas CHA, Queiroz MVO. Adolescents in psychological distress and mental health policy for children and youth. Acta Paul Enferm. 2011 Nov-Dez; 24(6):845-50.

As condições desfavoráveis em toda a fase da infância e adolescência, inclusive a presença de álcool e/ou drogas em casa, além das vivências de pobreza e violência, evidenciadas por famílias em situação de degradação e o fato de presenciarem a violência conjugal marcaram a infância de mulheres dependentes de drogas.1414. Bittar DB, Nakano AMS. Violência intrafamiliar: análise da história de vida de mães agressoras e toxicodependentes no contexto da família de origem. Texto Contexto Enferm [internet]. 2011 [cited 2016 Jan 10]; 20(1):17-24. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072011000100002
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A configuração de um ambiente favorável à adoção de comportamentos, tais como o consumo de drogas, é influenciada por uma série de fatores, sendo a família um dos mais importantes. Além disso, embora o consumo de drogas pelos pais esteja relacionado com o maior risco de as filhas e filhos se tornarem usuários, tendo em vista que o comportamento lhes serve de modelo, é a atitude permissiva a que mais pesa na equação.1515. Marangoni SR, Oliveira MLF. Triggering factors for drug abuse in women. Texto Contexto Enferm [internet]. 2013 Jul-Set [cited 2016 Jan 10]; 22(3):662-70. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072013000300012
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Os riscos potenciais para o uso de álcool por adolescentes, identificados no contexto familiar, estão relacionados com a falta de suporte parental: pais liberais, relacionamento conflituoso com os pais, vivência de maus tratos e violência de gênero, entre outros fatores.1616. Rozin L, Zagonel IPS. Risk factors for alcohol dependence in adolescents. Acta Paul Enferm. 2012 Mar-Abr; 25(2):214-8.

No contexto das relações violentas relacionadas ao uso de álcool e de outras drogas, o abuso de substâncias psicoativas não deve ser assumido como causa de um fenômeno social e complexo como a violência, para não recairmos no reducionismo positivista da unicausalidade, pois são notórias questões de gênero, tais como a opressão, que sempre recai sobre as mulheres e crianças, que, entre outros aspectos,1717. Fonseca RMGS, Egry EY, Nóbrega CR, Apostólico MR, Oliveira RNG. Recurrence of violence against children in the municipality of Curitiba: a look at gender. Acta Paul Enferm. 2012 Nov-Dez; 25(6):895-901. possuem menos poder.

A Organização Mundial de Saúde ressalta que a violência doméstica traz inúmeras implicações para a saúde física e mental das mulheres e de suas crianças e que as trabalhadores(as) de saúde têm dificuldade de questionar as mulheres a respeito da violência, considerando a falta de tempo, a formação e a competência profissional específica.1818. World Health Organization. Relatório Mundial de Saúde 2008: cuidados de saúde primários - agora mais do que nunca. Geneva (SW): World Health Organization; 2008 [cited 2014 Dez 02]. Available at: http://www.who.int/whr/2008/whr08_pr.pdf

Pesquisa mostrou que o enfrentamento da violência de gênero pelas trabalhadoras (e pelos trabalhadores) da ESF parecia se limitar à discussão de ações pela equipe, não envolvendo a participação da mulher, com vistas a motivar uma atitude proativa e o exercício da cidadania.1919. Rodrigues VP, Machado JC, Simões AV, Mendes VMMP, Paiva MS, Diniz, NMF. The practice of family health strategy workers when caring for women in gender violence situations. Texto Contexto Enferm [internet]. 2014 Jul-Set [cited 2016 Jan 10]; 23(3):735-46. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072014000300735
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Em face disto, é importante refletir a respeito da complexidade da violência que atravessa as gerações e dos desdobramentos relacionados às condições de vida e de saúde, o que requer um olhar atento das políticas públicas e da rede assistencial para estas demandas.

Filhos(as) participando dos atos agressivos

Os familiares revelaram que as crianças participaram dos episódios de violência.

São quatro filhos [...]. A vivência deles quando têm, assim, esses atritos dentro de casa, as meninas defendiam muito a mãe [...]. Quando o pai ia bater [...] tomavam a frente, porque [...]. Ele drogado, as meninas batiam nele também [...]. Entra tudo no meio [...] (E5, irmã).

Antigamente, quando era menor, a gente via a tristeza delas, chorava muito, mas hoje em dia elas 'tão dona de si', as meninas grande. Se partir pra cima da mãe, graças a Deus que elas cresceram, hoje elas protegem a mãe [...]. Tenho pena das crianças, tem criança pequena [...] que é neto dele [agressor] [...]. Ia fazer dois anos ainda viu! [ênfase], pegou a faca, como ele não fala direito, ele ficou marcando pro avô e ficando 'hum, hum, hum', dizendo que ia rumar no avô pra defender a mãe [...] (E6, irmã).

A criança mais ainda sem saber o que fazer [...]. Hoje ele vai em cima, mas até a idade de cinco anos ele saía correndo, gritando dentro de casa: 'socorro vó, socorro, acode aqui, acode aqui', aquele desespero (E15, cunhada).

Os relatos mostraram que as filhas e os filhos começaram a tomar parte no evento da violência, saindo em defesa da mãe. Um estudo mostrou a necessidade de apoio emocional para filhos de casais que presenciam a violência de gênero, ressaltando que crianças que presenciam a violência estão vulneráveis e podem ter sua saúde psicossocial comprometida, tendendo, assim, a naturalizar e reproduzir tal comportamento nas suas relações sociais.2020. Gomes NP, Erdmann AL. Conjugal violence in the perspective of "Family Health Strategy" professionals: a public health problem and the need to provide care for the women. Rev Latino-Am Enfermagem. 2014 Jan-Fev; 22(1):4-9.

Ressaltamos, aqui, a importância da família na socialização dos membros que vivenciam a violência de gênero, com base em valores familiares e socioculturais aprendidos na convivência em rede, estabelecida entre a família, a cultura e a sociedade.2121. Schenker M. Valores familiares e uso abusivo de drogas. Rio de Janeiro (RJ): Editora Fiocruz; 2008.

Sentimentos dos familiares

Os afetos estão na base da construção das representações sociais, porque o objeto nos instiga a falar sobre ele como uma compulsão. Não se trata apenas de preencher as lacunas, diminuir a distância entre o que se conhece, por um lado, e o que se observa, por outro lado, mas de reafirmar os laços com o grupo, reconhecendo os familiares como participantes daquele grupo, pois falam a mesma linguagem.2222. Arruda A. Meandros da teoria: a dimensão afetiva das representações sociais. In: Almeida AMO, Jodelet D, organizadores. Representações sociais: interdisciplinaridade e diversidade de paradigmas. Brasília (DF): Thesaurus; 2009.

Neste sentido, os familiares relataram que a convivência com o contexto de violência provocou tristeza e angústia, com consequente sofrimento, sentimentos decorrentes da sensação de impotência.

Minha mãe sofria muito, porque morava na casa em baixo e ela ficava ouvindo os gritos, móveis quebrando, porta quebrando, porque ele chegava arrombando tudo [...]. Um sofrimento pra quem vê e não pode fazer nada [...] (E11, irmã).

Eu fico impotente, assim, porque a gente quer ajudar e não sabe como [...]. Deixa a gente triste, porque tem que depender dela sair desse problema [...]. Meu pai é muito triste também com essa situação [...] (E5, irmã).

Pior que eu não posso nem ir lá, fico só do meu quintal [...]. Infelizmente a gente não pode fazer nada [...]. Fico saindo no quintal pra tentar vim defender ela, mas meus filho não quer que eu vou pra lá [...]. Ele pode querer fazer alguma coisa comigo [...] (E6, irmã).

Os familiares enfatizaram a sensação de impotência no convívio com a situação de violência de gênero. Isso decorre ora do medo do agressor, ora do fato de a mulher não aceitar ajuda. Ao afirmar que não podiam interferir na situação de violência, por medo da reação do agressor e das consequências que seu envolvimento poderia trazer, as irmãs deixaram manifesta a sua impotência. Isso mostra que o poder exercido pelo homem se estendeu aos familiares, que tenta, dessa forma, limitar as possibilidades de fortalecimento da mulher.

Um estudo verificou que, quanto maior o tempo de convívio do casal, maiores os reflexos da violência sofrida pela mulher, transformando a configuração de suas redes sociais, cada vez mais restritas e reduzidas, a atores com pouco poder de apoio. A restrição da rede social e humana, por sua vez, limitava o acesso à rede social e institucional e o dificultava, concorrendo para que a mulher permanecesse na situação de violência.1010. Dutra ML, Prates PL, Nakamura E, Villela WV. A configuração da rede social de mulheres em situação de violência doméstica. Ciênc Saúde Colet. 2013 Mai 18(5):1293-304.

Por esse motivo, torna-se importante que as equipes da ESF contemplem os familiares nas ações de prevenção e controle da violência de gênero, levando-se em conta que estes familiares necessitam de cuidados para poder auxiliar a mulher no enfrentamento da situação de violência, e que a família está envolvida e precisa ser ouvida.

Este estudo destacou que o medo estava presente no cotidiano de familiares que conviviam com a mulher em situação de violência, mesmo entre aqueles que não residiam no mesmo domicílio.

A gente da família ficou tudo destruído, naquele pânico, naquele choro, com medo de ouvir morte [...] (E13, mãe).

Um grande medo da minha mãe, os vizinhos ligar. Às vezes é tão forte, o menino sai gritando desesperado [...]. Sempre foi receosa com esta questão de chamar a polícia, porque passa vergonha e também é a imagem dela como mãe [...] (E15, cunhada).

Os relatos mostraram a fragilidade e a vulnerabilidade da mulher diante da violência de gênero. Além disso, o medo da mãe de que os vizinhos denunciassem as agressões, diante da reação das crianças em vivenciar as agressões, demonstra que alguns familiares parecem contribuir para que a violência de gênero permaneça velada no interior dos domicílios, tornando difícil para a mulher a decisão de enfrentar a situação.

A maneira como os conteúdos das representações sociais são determinados e organizados decorre da relação ideológica com o mundo social, com as normas institucionais e com os modelos ideológicos aos quais obedecem. Está na dependência do lugar que os indivíduos ocupam ou das funções exercidas e define o intercâmbio social que corresponde a um jogo de determinações ligadas à estrutura e às relações sociais, consubstanciado pela linguagem, que possibilita a formação de ideias, vínculo e identidades sociais.2323. Almeida GJ. As representações sociais, o imaginário e a construção social da realidade. In: Santos MFS, Almeida LM, organizadores. Diálogos com a teoria das representações sociais. Recife (PE): Editora Universitária da UFPE; 2005.

No imaginário social de alguns familiares, ainda prevalece a ideia de que a violência deve se restringir ao âmbito privado, como o prova o receio de chamar a polícia, desse modo expondo publicamente a situação de violência.

O medo das frequentes ameaças e agressões, somado à vergonha de se manter nessa relação, contribui para o isolamento da mulher, impedindo-a de expor a violência vivida. Temendo novas agressões, as mulheres chegam ao ponto de evitar as relações consideradas indesejadas pelos maridos, levando-as a se refugiar num silêncio que se estende até às instituições que lhe poderiam dar algum suporte.1010. Dutra ML, Prates PL, Nakamura E, Villela WV. A configuração da rede social de mulheres em situação de violência doméstica. Ciênc Saúde Colet. 2013 Mai 18(5):1293-304.

Este estudo mostrou que a busca da mulher em situação de violência por apoio inicialmente se deu em seu meio social mais próximo, com importante participação da família e de amigos. Entretanto, as ações de suporte e ajuda às mulheres em situação de violência, apesar de trazerem compreensão, solidariedade, proteção e melhoria nas condições econômicas, por vezes não se coadunam com o que as mulheres esperam receber, indo além das consequências imediatas dos atos violentos.2424. Santi LN, Nakano AMS, Lettiere A. Percepção de mulheres em situação de violência sobre o suporte e apoio recebido em seu contexto social. Texto Contexto Enferm. 2010 Jul-Set; 19(3):417-24.

Outro estudo constatou que a mulher em situação de violência praticada por parceiro íntimo é abandonada pela família; esta última a responsabiliza pela violência vivenciada e não a incentiva a enfrentar a situação,2525. Silva EB, Padoin SMM, Vianna LAC. Violence against women and care practice in the perception of the health professionals. Texto Contexto Enferm [internet]. 2015 [cited 2016 Jan 10]; 24(1):229-37. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072015000100229&lng=en&nrm=iso&tlng=en
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
o que faz com que esta mulher se submeta a tal situação e a tolere.

Some-se a isso o fato de que as profissionais e os profissionais da ESF tendem a focalizar o fenômeno na esfera privada, sem analisar os determinantes sociais de saúde inerentes às condições de vida e de saúde das pessoas envolvidas.2626. Machado JC, Rodrigues VP, Vilela, ABA, Simões AV, Morais RLGL, Rocha EN. Violência intrafamiliar e as estratégias de atuação da equipe de Saúde da Família. Saude Soc. 2014 Jul-Set; 23(3):828-40.

A ESF, por sua vez, enquanto política pública de saúde, por meio das e dos profissionais de saúde, precisa reconhecer que esses familiares se sentem impotentes tendo um membro da família vivendo em situação de violência de gênero. Desse modo, torna-se essencial que na ESF se efetivem as políticas de enfrentamento da violência.

CONCLUSÃO

As representações sociais de familiares sobre a violência de gênero direcionaram a conduta desses familiares no grupo de pertencimento; tais representações mostraram que a violência é crime e que os familiares atuam de diversas maneiras no sentido de ajudar a minimizar os atos violentos nas relações cotidianas.

A convivência com a violência nas relações familiares, por sua vez, propiciou o adoecimento dos sujeitos envolvidos. Isso comprometeu o desenvolvimento psicossocial e comportamental das filhas e dos filhos, levando-os a se envolverem com drogas, prostituição e gravidez na adolescência.

Por tudo isso, os sentimentos mais manifestos por parte dos familiares foram tristeza, angústia, medo e impotência. Isso se deve ao fato de estes, na maioria das vezes, não conseguirem interagir no contexto da violência, visando a minimizar ou resolver a situação, ou por medo do agressor ou por entender que a saída da situação dependia apenas da mulher.

A violência de gênero, como o mostraram ainda essas representações sociais, ficou restrita ao espaço do lar, o que pode estar ancorado grandemente em questões culturais. Isto contribui para a legitimação da violência de gênero no contexto das relações familiares e parece ter tornado mais difícil para a mulher o enfrentamento desta situação.

Ressaltamos que, no contexto da violência de gênero, as ações não devem se restringir às atribuições do setor saúde, fazendo com que as ações desenvolvidas pelas e pelos profissionais dos serviços da rede de atenção à violência ampliem sua abrangência: estas representações devem contemplar igualmente o cuidado à mulher em situação de violência, incluindo a família como unidade de cuidado que interage nesse contexto.

Além disso, cabe à gestão pública estruturar os serviços da rede de violência de gênero, de maneira a propiciar à mulher e a seus familiares uma rede efetiva e intersetorialmente articulada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2015
  • Aceito
    03 Nov 2015
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