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SIGNIFICADO DE SER-CUIDADOR DE FAMILIAR COM CÂNCER E DEPENDENTE: CONTRIBUIÇÕES PARA A PALIAÇÃO

SIGNIFICADO DE SER-CUIDADOR DE FAMILIAR CON CÁNCER Y DEPENDIENTE: CONTRIBUCIONES A LA PALIACIÓN

Resumos

Objetivou-se compreender o significado de ser-cuidador de um familiar com câncer e com alta dependência para as atividades diárias. Estudo fenomenológico fundamentado em Martin Heidegger, realizado junto a três núcleos integrados de saúde em um município do Noroeste do Paraná. A realização das entrevistas ocorreu entre novembro de 2012 e fevereiro de, com 17 cuidadores familiares. Após a análise, emergiram duas temáticas: "o ser-cuidador vivenciando diferentes modos de disposição" e "sendo-com-o-familiar: da ocupação cotidiana à preocupação libertadora". Significou para o ser-cuidador apavorar-se com o diagnóstico, horrorizar-se com o tratamento, aterrorizar-se com os cuidados paliativos e ser-com-o-outro na doença. Mostrou-se ocupado com as coisas, porém sem deixar de estar preocupado, evidenciando solicitude em suas ações. Esta base para um cuidado paliativo efetivo deve permear o trabalho do enfermeiro para que este profissional seja um verdadeiro ser-do-cuidado.

Cuidados paliativos; Cuidadores; Atenção primária à saúde; Enfermagem oncológica


Se tuvo como objetivo comprender el significado de ser-cuidador de un familiar con cáncer y con gran dependencia para las actividades diarias. Estudio fenomenológico fundamentado en Martín Heidegger realizado junto a tres núcleos integrados de salud en un municipio del noroeste de Paraná. La entrevista sucedió entre noviembre de 2012 y febrero de 2013 con 17 cuidadores familiares. Del análisis propuesto surgieron dos temáticas: "El ser-cuidador vivenciando distintos modos de disposición" y "Siendo-con-el: de la ocupación cotidiana a la preocupación libertadora". Significó para el ser-cuidador aterrarse con el diagnóstico, horrorizarse con el tratamiento, aterrorizarse con los cuidados paliativos y ser-con-el-otro en la enfermedad. Se mostró ocupado con las cosas, pero también estuvo preocupado, evidenciando la solicitud en sus acciones. Esta base para un cuidado paliativo efectivo, debe permear la labor del enfermero visando que este profesional sea un verdadero ser-del-cuidado.

Cuidados paliativos; Cuidadores; Atención primaria a la salud; Enfermería oncológica


The goal with to understanding the meaning of being-a-caregiver for a family member with cancer who is highly dependent for daily activities. Phenomenological analysis based on Martin Heidegger´s philosophy, undertaken at three health centers in a city in the Northwest of the state of Paraná, Brazil. Interviews were held between November 2012 and February 2013 with seventeen family caregivers. Two themes arose after the analysis: "Being-a-caregiver experiencing different modes of disposition" and "Being-with-a-relative: from daily occupation to liberating concern". This meant that for the caregiver-being to get terrified by the diagnosis and horrified with the treatment, terrified by end-of-life care and being-with-the-other in the illness. Although occupied with daily things, caregivers were nevertheless concerned, showing solicitude in their actions. This basis for effective palliative care should pervade nurses' work for this professional to be a true care-being.

Palliative care; Caregivers; Primary health care; Oncologic nursing


INTRODUÇÃO

As políticas públicas, na atualidade, tendem a transferir os cuidados aos pacientes com neoplasias malignas para a atenção ambulatorial ou domiciliar, visando à redução de intervenções desnecessárias, bem como dos custos hospitalares para as instituições de saúde.11. Sanchez KOL, Ferreira NMLA, Dupas G, Costa DB. Apoio social e familiar com câncer: identificando caminhos e direções. Rev Bras Enferm. 2010 Mar-Abr; 6(2):290-9. Sob esta sistemática, a família pode sofrer com o diagnóstico, tratamento, pós-tratamento e tudo o que permeia o vivenciar desta enfermidade.

Com a tendência da assistência domiciliar de pacientes com câncer, juntamente com uma maior sobrevida,22. Mc Lean LM, Walton T, Rodin G, Esplen MJ, Jones JM. A couple-based intervention for patients and caregivers facing end-stage cancer: outcomes of a randomized controlled trial. Psycho-oncol. 2013 Jan; 22(1):28-38. a família precisa superar os desafios que se colocam a cada momento, entre eles a necessidade de eleger um cuidador principal. Este, figura de referência para um cuidado efetivo e comumente integrante do próprio seio familiar, assume diversas funções.33. Baptista BO, Beuter M, Girardon-Perlini NMO, Brondani CM, Budó MLD, Santos NO. A sobrecarga do familiar cuidador no âmbito domiciliar: uma revisão integrativa da literatura. Rev Gauch Enferm. 2012 Mar; 33(1):147-56. Tais afazeres podem sobrecarregá-lo, seja em virtude da demanda objetiva, que condiz com tarefas relacionadas com os cuidados e o tempo envolvidos em sua prestação, assim como subjetivamente, relacionada à experiência do cuidador e aos sentimentos sobre o seu papel nesta ocupação.22. Mc Lean LM, Walton T, Rodin G, Esplen MJ, Jones JM. A couple-based intervention for patients and caregivers facing end-stage cancer: outcomes of a randomized controlled trial. Psycho-oncol. 2013 Jan; 22(1):28-38.

À medida que a doença progride, e o doente sob seus cuidados torna-se cada vez mais dependente, o cuidador tem sua sobrecarga agravada.44. Cipolletta S, Shams M, Tonello F, Pruneddu A. Caregivers of patients with cancer: anxiety, depression and distribution of dependency. Psycho-oncol. 2013 Jan; 22(1):133-9. Neste cenário, concomitante à terapêutica curativa, os cuidados paliativos assumem dimensão especial, como uma forma de atenção, que preconiza uma assistência individualizada ao doente e à sua família. Tais cuidados permitem compreendê-los em suas necessidades assistenciais prioritárias e específicas de seu convívio no lar com o câncer. Nesta abordagem, o envolvimento da família é primordial, considerando que ela desempenha importante papel na recuperação da saúde, bem como no desenvolvimento da doença e suas consequências.55. Ferreira NMLA, Souza CLB, Stuchi Z. Cuidados paliativos e família. Rev Cienc Med. 2008 Jan-Fev; 17(1):33-42.

Apesar de a atenção primária não ser comumente responsável pelas ações em cuidados paliativos, pode ser estruturada para incorporar este modelo. Ademais, com as equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), sua assistência pode ser fortalecida, uma vez que acompanha de perto as experiências dos sujeitos em sua área de abrangência. Com isso, torna-se possível identificar fragilidades e carências que pacientes e cuidadores vivenciam diante do processo de enfrentamento da doença, de modo a oferecer elementos para a elaboração do planejamento assistencial de acordo com a realidade de cada família.66. Nardi EFR, Oliveira MLF. Significado de cuidar de idosos dependentes na perspectiva do cuidador familiar. Cienc Cuid Saude. 2009 Jul-Set; 8(3):428-35.

Estimativas apontaram a ocorrência de aproximadamente 518.510 casos novos de câncer no Brasil em 2013,77. Ministério da Saúde (BR). Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Estimativa 2012: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: MS; 2011. projeção que demonstra que, cada vez mais, os profissionais de saúde, especialmente os da enfermagem, terão que albergar, em seus cotidianos, a atenção domiciliar aos cuidadores familiares de pessoas com câncer. Em seus momentos de cuidado, a família vivencia sofrimentos físicos e emocionais e tem que se adaptar às situações geradas pela doença, contexto que demanda uma reflexão dos profissionais da ESF sobre a importância da paliação no planejamento das ações e programas de saúde voltados para o núcleo familiar.

Deste modo, com base nos pressupostos que, para cuidar, é necessária a díade cuidador-paciente e quem cuida também precisa ser cuidado, o foco do presente estudo contempla as seguintes inquietações: Como esses seres se sentem ao realizar os cuidados ao seu familiar com câncer e elevada dependência? Como essa situação é vivenciada por eles? Diante disto, ideando reduzir a lacuna de conhecimento que existe acerca desta vivência no âmbito existencial, este estudo teve por objetivo compreender o significado de ser-cuidador de um familiar com câncer e com alta dependência para as atividades diárias.

METODOLOGIA

Trata-se de estudo qualitativo, fundamentado na fenomenologia existencial de Martin Heidegger.88. Heidegger M. Ser e tempo. 6ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2012. A opção pela fenomenologia heideggeriana deu-se em virtude de seu referencial teórico-filosófico-metodológico revelar-se condizente com os princípios humanísticos da enfermagem e com seu foco de atenção e, por tencionar os pesquisadores a voltarem seus olhares para as experiências subjetivas dos seres humanos.99. Paula CC, Souza IEO, Cabral IE, Padoin SMM. Analytical movement - Heideggerian hermeneutics: methodological possibility for nursing research. Acta Paul Enferm. 2012; 25(6):984-9.

Foi realizado em um município do Noroeste do Paraná, junto a três Núcleos Integrados de Saúde (NIS). A escolha dos núcleos participantes se deu pelo número de equipes cadastradas no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), sendo selecionados aqueles núcleos com o maior número de equipes da ESF.

Foram incluídos todos os cuidadores que atenderam aos seguintes critérios: idade superior a 18 anos; ter condições físicas e preservação do estado cognitivo para responder as perguntas; ser cuidador familiar principal de paciente com câncer com Escala de Performance Paliativa (PPS) menor ou igual a 40% e estar cuidando do paciente há, no mínimo, três meses. A PPS é uma escala dividida em 11 níveis, a partir de 0% a 100%, que avalia cinco dimensões funcionais: a deambulação, o nível de atividade e evidência de doença, o autocuidado, a ingestão oral e o nível de consciência.1010. Maciel MGS, Carvalho RT. Palliative Performance Scale PPS: versão 2. Tradução brasileira para a língua portuguesa [Internet]. São Paulo; 2009. [acesso 2013 Mar 28]. Disponível em: http://www.victoriahospice.org/sites/default/files/pps_portugese_0.pdf
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Descreve, rapidamente, o estado funcional da pessoa, e foi utilizada neste estudo com a finalidade de identificar os pacientes com alta dependência para as atividades da vida diária.

Os cuidadores selecionados, após contato com as equipes, receberam a primeira visita domiciliar da pesquisadora, juntamente com enfermeiro e/ou agente comunitário de saúde, para apresentação e observação dos critérios preestabelecidos. Em caso afirmativo, foram convidados a participar do estudo, sendo marcado o segundo encontro em local e horário de sua preferência. Ao final, totalizaram-se três encontros de contato direto com os participantes, com o intuito de que cria empatia e sentimentos de segurança para falar de suas vivências.

A entrevista fenomenológica ocorreu em encontro individual, singularmente instituído entre a pesquisadora e o cuidador, no qual foi necessária a ambientação, a empatia e a intersubjetividade, possibilitada pela redução de pré-conceitos.1111. Carvalho AS. Metodologia da entrevista: uma abordagem fenomenológica. Rio de Janeiro (RJ): Agir; 1987. Os participantes foram interrogados com a seguinte questão norteadora: "Como está sendo para você cuidar do (nome do familiar com câncer)?" As entrevistas ocorreram entre os meses de novembro de 2012 e fevereiro de 2013.

Os depoimentos tiveram duração média de 40 minutos. E, para a captação plena das falas, utilizou-se um gravador como recurso. Ao desenvolver a etapa de trabalho campo concomitante com a da análise, determinou-se a participação de 17 depoentes, uma vez que mostrou a suficiência de significados capaz de responder aos objetivos da pesquisa.99. Paula CC, Souza IEO, Cabral IE, Padoin SMM. Analytical movement - Heideggerian hermeneutics: methodological possibility for nursing research. Acta Paul Enferm. 2012; 25(6):984-9. Para captar a plenitude expressa pelos sujeitos em suas linguagens, optou-se pela análise individual de cada discurso. Assim, a priori, realizaram-se leituras atentas de cada depoimento, separando os trechos ou unidades de sentidos (US) que se mostrassem como estruturas fundamentais da existência dos participantes entrevistados.1212. Josgrilberg RS. A fenomenologia como novo paradigma de uma ciência do existir. In: Pokladek DD, organizador. A fenomenologia do cuidar: prática dos horizontes vividos na área da saúde, educacional e organizacional. São Paulo (SP): Vetor, 2004. p.75-93.A posteriori, passou-se a analisar as unidades de sentido de cada depoimento, realizando seleção fenomenológica da linguagem de cada sujeito,1212. Josgrilberg RS. A fenomenologia como novo paradigma de uma ciência do existir. In: Pokladek DD, organizador. A fenomenologia do cuidar: prática dos horizontes vividos na área da saúde, educacional e organizacional. São Paulo (SP): Vetor, 2004. p.75-93. que deu origem às temáticas ontológicas, analisadas à luz de algumas ideias heideggerianas, de estudiosos sobre o tema e, de pesquisadores que versam sobre os cuidados paliativos.

Respeitaram-se os preceitos éticos da Resolução 196/96, substituída pela Resolução n° 466/2012. Este estudo está vinculado ao projeto "Aplicabilidade dos cuidados paliativos nas ações básicas de saúde promovendo melhor qualidade de vida ao doente com neoplasia maligna, seus familiares e profissionais da saúde", aprovado pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá, sob parecer n. 435/2011. A solicitação de participação no estudo se fez acompanhada de duas vias do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, momento em que os colaboradores foram notificados sobre as finalidades da pesquisa, tipo de participação desejada, liberdade para desistência e tempo provável de duração da entrevista.

Para preservar o anonimato, os participantes foram apresentados por pseudônimos de anjos e a escolha foi subsidiada por alguns motivos. O primeiro, em virtude da presença frequente de crenças em divindades superiores entre as pessoas que estão com câncer e seus familiares, significando para eles uma estratégia de enfrentamento no processo de adoecer de seu ente querido.1313. Tavares JSC, Trad LAB. Estratégias de enfrentamento do câncer de mama: um estudo de caso com famílias de mulheres mastectomizadas. Cienc Saude Colet. 2010 Jun; 15 (suppl 1): 1349-58.Além disso, por observar que, com frequência, o profissional enfermeiro é caricaturado como "anjo" ao desempenhar sua função de "cuidar" e por constatar, durante os encontros, que os cuidadores familiares são como anjos, que zelam, cuidam e procuram atender a todas as necessidades do familiar adoecido.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Fizeram parte do estudo 17 depoentes, sendo nove esposos(as), cinco filhas, uma mãe, uma tia e uma prima, com idades entre 42 e 70 anos, a maioria casada/amasiada, somente uma solteira e outra separada. Acerca da localização da doença em seu familiar, obtiveram-se: cinco com câncer inicial em intestino, quatro no estômago, dois em orofaringe, um no encéfalo, um no pulmão, um na bexiga, um no útero, um na próstata e um nas mamas, quase todos com metástases. Da totalidade, seis possuíam PPS de 40%; seis, de 30%; quatro, de 20% e um, 10%. Sobre as profissões, a maior parte dos cuidadores era do lar ou aposentado, uma massoterapeuta, uma administradora, uma auxiliar de enfermagem e os demais se afastaram do trabalho em virtude da nova ocupação.

A partir da análise da linguagem dos participantes, emergiram duas temáticas ontológicas, apresentadas a seguir.

O ser-cuidador vivenciando diferentes modos de disposição

Na analítica heideggeriana, o sentido do ser é elucidado com base no ente, porque, em seu pensar, é por meio deste que o ser se revela ao mundo. "Ente é tudo de que falamos dessa ou daquela maneira, ente é, também, o que e como nós mesmos somos",8:42 é algo concreto, determinado. Já "ser" é presença, é a forma de dizer que o ser só é alguma coisa devido aos modos como ele se manifesta, designado por ele deDasein, ser-no-mundo, ser-aí.1414. Oliveira MFV, Carraro TE. Cuidado em Heidegger: uma possibilidade ontológica para enfermagem. Rev Bras Enferm. 2011 Mar-Abr; 64 (2):376-80.

E, ao olhar para o mundo em sua existencialidade, o ser-aí se percebe arremessado numa condição já determinada e independente de sua vontade e escolha, experienciando situações não planejadas e não esperadas.1515. Moreira RC, Sales CA. The nursing care towards individuals with diabetic foot: a phenomenological focus. Rev Esc Enferm USP. 2010 Dez; 44(4):896-903. Esta facticidade revela que estar-no-mundo é estar vulnerável a todas as maravilhas e barreiras que esta condição pode submeter.1414. Oliveira MFV, Carraro TE. Cuidado em Heidegger: uma possibilidade ontológica para enfermagem. Rev Bras Enferm. 2011 Mar-Abr; 64 (2):376-80.

Com a descoberta do câncer em seu lar, o ser-cuidador experienciou a concretude de estar lançado no mundo da doença, compartilhou peculiaridades inerentes a cada etapa da enfermidade, despertando diferentes modos de disposição. A disposição é o humor ou a tonalidade afetiva que não representa um simples fenômeno psicológico que colore as coisas e as pessoas, mas uma definição constitutiva do ser.1515. Moreira RC, Sales CA. The nursing care towards individuals with diabetic foot: a phenomenological focus. Rev Esc Enferm USP. 2010 Dez; 44(4):896-903.

No medo, uma das formas de disposição, o de que se tem medo, denominado "amedontrador", é sempre algo dentro do mundo, localizado, podendo ser de alguma coisa ou de outro Dasein. O ter medo pode estender-se a outros e, desta maneira, fala-se em ter medo em lugar de. Este é um modo de disposição junto com os outros, e o que dá medo nesta situação é o ser com o outro. O ter medo em lugar de sabe implicitamente que não será atingido, embora, na verdade, seja afetado pela copresença da qual se tem medo. Assim, não perde sua autenticidade específica quando "propriamente" não tem medo.88. Heidegger M. Ser e tempo. 6ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2012.

Durante a leitura dos depoimentos, visualizou-se o câncer como um ente intramundano, o qual veio ao encontro dos coadjuvantes deste estudo (familiares adoecidos) e, consequentemente, dos protagonistas (cuidadores), desvelando o domínio do temor em sua cotidianidade mediana. O ser-cuidador ficou apavorado com o diagnóstico de câncer de seu familiar, revelando-se o pavor, uma das variações do medo. "O referente do pavor é, de início, algo conhecido, familiar [...] e súbito".8:202

[...] meu marido que nunca fumou, nunca bebeu, oitenta anos, um homem muito saudável [...] a gente correu no médico, mas não podia operar mais que já estava grande o tumor! Foi uma apunhalada(Uzziel).

Ninguém nunca imaginou que a mãe fosse ficar doente algum dia. Nunca passou na cabeça que minha mãe teria essa doença. Quando o médico fala, o chão abre, perde o chão. Ver uma coisa que você só ouvia falar é diferente de ver de perto como é! (Antriel).

Os discursos asseveram que, quando relembram o momento do diagnóstico de câncer, os cuidadores ficam atemorizados e sem saber o que fazer. A doença lhe é habitual, todavia não esperavam por esta descoberta em seu seio familiar, mostrando-se no modo de ser do pavor. É comum que tal pavor seja ocasionado justamente pelo que o cuidador compreende ou ouviu dizer sobre a doença, sendo perturbado pelo falatório.

O falatório ou falação constitui o modo de ser do compreender e da interpretação do ser-no-mundo cotidiano. Essa falação, que nada traz de novo e muito menos convida o outro para a escuta sensível, contenta-se em adotar o que já foi dito como correto e reproduzi-lo, num movimento de repetição e de certeza.1616. Rocha MG. Da (im)possibilidade de dizer o que é o homem - um estudo sobre o homem na analítica existencial de Heidegger. Thaumazein [online]. 2011. [acesso 2013 Set 02]; IV (7): 90-108. Disponível em: http://sites.unifra.br/Portals/1/ARTIGOS/nro_06/Munira.pdf.
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Esse falatório, ao ser repetido/repassado, mostra-se como algo familiar para o ser-cuidador, que vinculou a enfermidade do seu parente com o "conhecimento anterior". Tudo parece ter compreendido mesmo sem ter se apropriado daquilo de que se fala.

[...] às vezes, os vizinhos ficam falando pelos cotovelos que, na família deles, aconteceu a mesma coisa e morreu, então não sei, a gente tenta não dar bolas para isso, mas é um converseiro, sei lá, cada um é cada um, não sei! (Afriel).

[...] foi triste, primeiro ele ficou seis meses na cama, sem levantar para nada, o pessoal que vinha visitar achava que ele não ia escapar, porque com a vizinha foi assim, ficou pele e osso, e a gente cuidando[...] (Jofiel).

Ao atentar para as falas, percebe-se o quão importante pode ser a contribuição dos profissionais de enfermagem na desconstrução desse "conhecimento coloquial" que, na maioria das vezes, suscita anseios desnecessários aos cuidadores. Ademais, é possível clarificar dúvidas com relação ao próprio diagnóstico e tratamento, bem como desmistificar o caráter de incurabilidade do câncer que provoca tanto pavor aos que adentram em seu mundo.

Ao iniciar a etapa do tratamento, o ser-cuidador revelou-se horrorizado com tudo o que precisou vivenciar. Mostrou-se apreensivo quando, em sua concepção, a terapia curativa, ao invés de auxiliar, parecia piorar o quadro de seu familiar. Ademais, temia a incerteza do tratamento realizado, desvelando-se a transição do pavor para o horror. No horror, a ameaça assume o caráter daquilo que é desconhecido, não familiar.88. Heidegger M. Ser e tempo. 6ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2012.

[...] agora, deixa perguntar uma coisa para você, se a radioterapia faz isso com a pessoa, por que eles fazem? Penso que, se ela não tivesse feito, ela não tinha sofrido tanto. O tratamento do câncer é muito forte, ele tenta a cura, mas faz surgir outras complicações! Daí você fica pensando: o que é pior, a doença ou o tratamento? (Caliel).

[...] eu nunca tinha visto de perto alguém fazer esse tratamento, sabe. Aquele monte de gente que faz quimio, de ver como as pessoas ficam fraquinhas, eu não tinha a noção disso. A hora que começa a químio de novo a mãe fica assim [aponta para mãe] [para, respira fundo, enche os olhos de lágrima e diz]: 'é muito dolorido isso, não sei no que vai dar' (Antriel).

Sobre o tratamento antineoplásico, sabe-se das diversas implicações nos âmbitos físicos, emocionais e sociais, sobretudo das terapias quimioterápicas e radioterápicas, na qualidade de vida em geral do doente e sua família.1717. Nicolussi AC, Sawada NO. Qualidade de vida de pacientes com câncer de mama em terapia adjuvante. Rev Gaúcha Enferm. 2011 Dez; 32(4):759-66. Inserir-se no mundo dos tratamentos, fez despertar o horror pelo desconhecido, dessa forma, o ser-cuidador precisa estar acompanhado por profissionais de saúde capazes de orientar e compartilhar suas dúvidas e incertezas, lembrando que não apenas o doente merece atenção, mas este membro que sofre por compartilhar cada etapa vivida.

Na medida em que a ameaça vem ao encontro como algo não familiar, ou seja - o horror, possuindo, ao mesmo tempo, um o caráter súbito - o pavor, o temor se constitui como terror.88. Heidegger M. Ser e tempo. 6ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2012. Isso foi desvelado quando o ser-cuidador externou a ameaça inesperada e desconhecida: a unicidade da terapêutica paliativa.

[...] daí em diante, ele passou a sentir muita dor e o médico disse que ele não tinha resistência para fazer outra cirurgia e que, agora, era cuidar e esperar [choro]. Dobrou os remédios dele para tirar a dor, ele está ficando um pouco sedado (Manu).

[...] os médicos falaram que o tratamento dele [familiar]era só paliativo, para que ele não sentisse dor e nem falta de ar. Só! Mais nada... Mas eu não aceitava de início. Aí, eu fui para médico particular, gastei, fiz um monte de coisa, sabe aquele desespero?[...] sempre pensando que eu iria conseguir salvá-lo(Morael).

Vislumbra-se que Morael ficou aterrorizada ao receber a proposta de assistir paliativamente o seu familiar. O terror provocado pelos "cuidados paliativos" pode estar vinculado justamente ao estigma social que esta terapêutica possui, em que "é só esperar e não há mais o que fazer".

A prática adequada dos cuidados paliativos preconiza atenção individualizada ao doente e à sua família, em conjunto com a equipe de saúde, visando à melhora biopsicossocioespiritual de todos.1818. Sales CA. Cuidado paliativo e o profissional enfermeiro. Cienc Cuid Saude. 2010 Jul-Set; 9 (3): 417-22. Para que o ser-cuidador cuide de seu familiar nessa perspectiva, ele precisa ser instrumentalizado, faz-se necessário que conheça e compreenda a finalidade dos cuidados paliativos, o quão imprescindível e satisfatória pode ser uma atuação embasada na paliação e que sua presença e ação são fundamentais nesse processo.

É verossímil que, nesta fase da doença, a demanda por cuidados eleve-se e o doente torne-se cada vez mais dependente. O cuidador passa a realizar atividades relativas ao atendimento de necessidades básicas, gerando uma atenção permanente e desgastante.1919. Sales CA, Matos PCB, Mendonça DPR, Marcon SS. Cuidar de um familiar com câncer: o impacto no cotidiano de vida do cuidador. Rev Eletr Enf. 2010; 12 (4):616-21 [online] [acesso em 2013 Mar 01]. Disponível em: http://www.fen.ufg.br/revista/v12/n4/v12n4a04.htm
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Ao longo da jornada do câncer, o ser-cuidador partilha com o doente cada instante; são tristezas, angústias, conquistas e alegrias; este ser torna-se um legítimo ser-com-o-outro. O envolvimento do ser-cuidador que cuida do familiar dependente que tem câncer desvela o modo de ser-com.

Sendo-com-o-familiar: da ocupação cotidiana à preocupação libertadora

Ser-com é um constitutivo essencial do ser-aí, é uma característica existencial do ser-no-mundo, significando junto a algo ou alguém, não sendo unicamente o estar-junto, e tem ainda o sentido de relacionar-se, envolver-se, conviver, depreender e compartilhar.2020. Almeida IS, Souza IEO. Gestação na adolescência com enfoque no casal: movimento existencial. Esc Anna Nery. 2011 Jul-Set; 15(3):457-64. Todavia o relacionamento entre ser-com e os "outros" não ocorre de forma análoga quando estes são entes simplesmente dados ou quando são outrosDasein. No trato com as coisas cotidianas, o ser-com se relaciona sob o modo da ocupação, já com outros Dasein, vê-se envolvido no modo da preocupação.2121. Martins Filho JRF. Heidegger e a concepção de "outro" em Ser e tempo. Rev Aproximação. 2010; 1(3):56-76.

O ser ocupa-se em realizar atividades que lhe são designadas. No cumprimento dessas tarefas, não há um verdadeiro entendimento, o ser lança mão do instrumento que é imprescindível para executá-las e, então, realiza-as sem refletir sobre seu processo. Numa primeira aproximação, e na maior parte das vezes, o ser-no-mundo dedica-se ao mundo das ocupações.1616. Rocha MG. Da (im)possibilidade de dizer o que é o homem - um estudo sobre o homem na analítica existencial de Heidegger. Thaumazein [online]. 2011. [acesso 2013 Set 02]; IV (7): 90-108. Disponível em: http://sites.unifra.br/Portals/1/ARTIGOS/nro_06/Munira.pdf.
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O ser-cuidador se mostrou ocupado, com frequência, na execução de tarefas básicas, como dar banho, alimentação, curativos, contudo, apesar de não serem estas menos importantes, há que se considerar que, por trás dessas atividades, existem outras demandas de cuidado tão ou mais imperiosas.

Em primeiro lugar o banho, depois eu coloco o leite dele, uns 250, 300 ml, dou água e, mais tarde, faço um suco para ele e, depois, eu faço o almoço, e é isso. Vou fazer as minhas coisas (Afriel).

Eu, hoje, estou com ele ainda, eu nem sei o porquê, porque amor não é, mas a gente tem dó. Fiz a comida dele, coloquei ali na cabeceira da cama, não sei se ele comeu (Jeremiel).

Não obstante, "o caráter ontológico da ocupação não é próprio do ser-com, embora esse modo de ser seja um ser para os entes que vêm ao encontro dentro do mundo da ocupação".8:177 Nesse contexto, o preocupar-se com é a forma ideal de ser-com-os-outros do Dasein, visto que se remete a estar preocupado, a cuidar ou a se responsabilizar por algo. Por possuir, ele mesmo, o caráter de Dasein, sua relação torna-se correlação.2020. Almeida IS, Souza IEO. Gestação na adolescência com enfoque no casal: movimento existencial. Esc Anna Nery. 2011 Jul-Set; 15(3):457-64.-2121. Martins Filho JRF. Heidegger e a concepção de "outro" em Ser e tempo. Rev Aproximação. 2010; 1(3):56-76. Averiguou-se, pela linguagem dos depoentes, que alguns ser-cuidadores permaneceram no modo da ocupação ao desempenharem suas atividades, enquanto outros transitaram para as possibilidades de ser e manifestaram-se ser-com-o-outro no modo da preocupação.

[...] estou fazendo o que eu posso, apesar de todas as dificuldades [...] tento ficar ao máximo com ela, mesmo que for para ficar aqui assim, só do lado, para passar energia boa para ela, palavras amigas, consolar. Apesar de a nossa família ser um pouco busca- pé, acho que eu venho conseguindo passar alguma coisa boa (Miguel).

Destaca-se, na fala de Miguel, a humanização em seu cuidar, mostrando que alguns ser-cuidadores apoiam, ajudam, cuidam e se preocupam com o doente para que ele não se sinta só. As coisas intramundanas decrescem para segunda instância e o que vale a pena é ser-com, indo ao encontro de uma assistência paliativa real e factível.

No tocante à preocupação, há duas possibilidades de agir desse modo. A primeira, a substituição dominadora, pode retirar o cuidado do outro, substituindo-o, assumindo a ocupação que outro deve realizar. Essa forma pode acarretar a dependência pelo outro, bem como a dominação, mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça velado. A segunda, a anteposição liberadora, não tanto sucede o outro, mas antepõe a ele a sua possibilidade de ser, respeita a existência do outro e o ajuda a tornar-se livre para cuidar de si,88. Heidegger M. Ser e tempo. 6ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2012. ou seja, na primeira forma explicitada, tudo é feito pelo outro, enquanto que, na segunda, remete-se ao cuidado que oferece condições ao outro de crescer e seguir suas escolhas.

Na condição de alta dependência do paciente, seja ela física, cognitiva ou emocional, o doente pode ter sua autonomia comprometida e carrear maior demanda de cuidados contínuos por parte do grupo familiar cuidador.2222. Stackfleth R, Diniz MA, Fhon JRS, Vendruscolo TRP, Fabrício-Whebe SCC, Marques S, et al. Burden of work in caregivers of frail elders living at home. Acta Paul Enferm. 2012; 25(5):768-74. Nesse ínterim, torna-se difícil para o ser-cuidador não realizar quase que a totalidade das tarefas pelo outro, presumindo uma substituição dominadora. Entretanto, ainda que preponderante a realização dos cuidados como um todo, ao permitir que o doente decida sobre sua vida, bem como exponha suas vontades e anseios, o ser-cuidador pode respeitar a existência do seu familiar e caminhar para um cuidado autêntico e libertador.

[...] ele não queria fazer quimioterapia, porque ele viu um senhor morrer do lado dele na enfermaria depois que fez a quimio, e eu deixei! Não foi fácil para mim respeitar essa decisão dele, porque era um tratamento [...] ele não é de reclamar, fica ali quietinho no canto, mas, um dia, eu peguei ele sentado aqui no sofá chorando muito, vi que era porque estava com dor, percebi que ele estava sofrendo e não gostava de demonstrar, daí, ele quis retornar, daí fomos atrás! (Manu).

Observa-se, na fala de Manu, que atender aos anseios aquém do dito de seu familiar é imprescindível e gratificante, assim como renegá-los soa como uma lacuna em seu existir como ser-cuidador. Dessa forma, preocupar-se revela, consonante com as proposições da assistência paliativa, que não é a doença seu foco de atenção e, sim, o seu proprietário, entendido como um ser autônomo, com necessidades individuais e prioritárias, capaz de decidir a respeito de seu tratamento.1818. Sales CA. Cuidado paliativo e o profissional enfermeiro. Cienc Cuid Saude. 2010 Jul-Set; 9 (3): 417-22.

O relacionamento envolvente e expressivo com o outro é chamado "solicitude".2323. Heidegger M. Todos nós... ninguém. São Paulo (SP): Moraes; 1981. Esta apresenta como características primordiais: "ter consideração para com o outro" e "ter paciência com o outro". As duas estão relacionadas à temporalidade; a consideração remete-se à vivência que já foi, tem um olhar para trás, e a paciência é vista para frente, pela esperança daquilo que ainda poderá ser.2323. Heidegger M. Todos nós... ninguém. São Paulo (SP): Moraes; 1981. Em alguns discursos, foi possível entrever tais aspectos no cuidado desempenhado pelos ser-cuidadores.

[...] com bastante paciência e amor, isso eu faço, porque é meu companheiro de quarenta e poucos anos, e, nas horas difíceis, eu também tenho que estar junto dele, tem dia que ele está lá para cima e tem dia que ele está num desânimo (Ariel).

[...] não devemos desistir nunca, eu sempre procuro fazer as coisas com amor, não faço para ganhar alguma coisa, ele fala que, se não fosse por mim, ele não tinha conseguido e já teria desistido [...] é difícil, a gente torce muito para que ele fique logo curado(Gabriel).

Ao considerar estas características, o ser entende o outro em suas dificuldades e anseios, abrindo-se para a preocupação, em um movimento de autenticidade que emerge da cotidianidade. Essa forma de preocupação deveria permear a assistência tanto de cuidadores familiares quanto de profissionais da saúde ao desempenharem a função de "cuidar".

É nevrálgico ser solícito no cuidado para com o outro, visto que possibilita resgatar o respeito e a dignidade do doente, ou seja, assistir paliativamente. Orientados por esta filosofia, deve-se olhar o ser humano na sua totalidade, independente do ambiente em que esteja inserido, podendo ajudar a pessoa no processo de enfrentamento da doença e da morte e garantir uma assistência humanizada e de qualidade.1818. Sales CA. Cuidado paliativo e o profissional enfermeiro. Cienc Cuid Saude. 2010 Jul-Set; 9 (3): 417-22.

Ante o exposto, a enfermagem pode atuar no sentido de apoiar o cuidador e auxiliar na identificação de pensamentos angustiantes do doente, como a necessidade de ser considerado como pessoa, de ter suas vontades atendidas, de reconciliar-se com os outros e consigo, de livrar-se da culpa, além de outros aspectos que merecem atenção nessa fase de sua vida. Destarte, o ser-cuidador preocupa-se na resolução de conflitos pessoais do seu familiar, por meio do diálogo e da escuta, e, de modo concomitante, é solícito.

Ressalta-se que a comunicação é imperativa no cuidado, um recurso valioso na prática de enfermagem que, se bem aplicado, contribui para um relacionamento verdadeiro, no qual o enfermeiro propicia ao paciente suporte, conforto, informação e sentimentos de confiança e de autoestima. A escuta ativa e o diálogo são os principais instrumentos de trabalho do paliativista, uma vez que é por meio de sua utilização que são identificadas as necessidades nas diferentes dimensões de quem vivencia o fim da vida.2424. Araújo MMT, Silva MJP. The knowledge about communication strategies when taking care of the emotional dimension in palliative care. Texto Contexto Enferm. 2012 Jan-Mar; 21(1):121-9.

Os profissionais, guiados pelos pressupostos dos cuidados paliativos, podem auxiliar a pessoa, bem como sua família, em seu processo de morte e morrer, de uma forma solícita e humana.1919. Sales CA, Matos PCB, Mendonça DPR, Marcon SS. Cuidar de um familiar com câncer: o impacto no cotidiano de vida do cuidador. Rev Eletr Enf. 2010; 12 (4):616-21 [online] [acesso em 2013 Mar 01]. Disponível em: http://www.fen.ufg.br/revista/v12/n4/v12n4a04.htm
http://www.fen.ufg.br/revista/v12/n4/v12...
Como a ESF acompanha essas famílias e estabelece uma relação de vínculo e confiança pode contribuir ativamente no processo de cuidado do cuidador e seu dependente, consolidando uma assistência paliativa efetiva. Para tanto, é crucial superar alguns obstáculos, entre eles a própria formação acadêmica dos trabalhadores, que pouco aponta para as questões de cuidado no domicílio. É fundamental ter em mente que o sucesso desse cuidar está em olhar o indivíduo e sua família em seu contexto, a fim de enaltecer a humanização e a autonomia dos envolvidos com o cuidado.2525. Lacerda MR. Cuidado domiciliar: em busca da autonomia do indivíduo e da família - na perspectiva da área pública. Cienc Saude Colet. 2010 Aug; 15(5):2621-6.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da facticidade do câncer de seu familiar, o ser-cuidador perpassou por distintos momentos condizentes com a enfermidade, os quais provocaram diferentes modos de disposição. Apavorou-se com a confirmação do diagnóstico e, influenciado pela falação, concebeu a doença como incurável, mutiladora e temível, rememorando o estigma social que o câncer possui. Ao enfrentar o tratamento, revelou-se horrorizado, por temer as incertezas perante as terapias indicadas e por ver o desconhecido tornar-se real.

A unicidade da terapêutica paliativa significou, a princípio, terror. Nesta fase, com a elevada dependência do ser-cuidado, o cuidador desvelou-se em um verdadeiro ser-com-o-outro. Significou ser um ser-com-familiar que conviveu no domicílio, que foi copresença e que compartilhou cada momento. Por vezes, esteve ocupado com as coisas e atividades intramundanas, entretanto outros transitaram em um movimento existencial e tornaram-se ser-cuidadores preocupados. Mesmo com todas as dependências do familiar e dificuldades encaradas, o cuidador pode apresentar uma preocupação libertadora e autêntica.

O ser-cuidador foi solícito com seu familiar, desmistificando a impossibilidade da correlação solicitude versus sobrecarga alegada por muitos cuidadores, seja ele o familiar incumbido desta função ou os próprios profissionais de saúde corresponsáveis por estes doentes. É possível, mesmo diante da tormenta de contratempos enfrentada com a jornada do câncer, em especial com a elevada dependência, abrir caminhos para um "cuidar" que rume à efetividade paliativista. Esta deve ser entendida não como uma assistência específica, única e momentânea, mas como um agir cotidiano e concomitante a outras terapêuticas. As proposições paliativas, ainda que desconhecidas, foram, em parte, efetuadas por estes seres, que carecem de atenção adequada para que, de modo crescente, possam oferecer um cuidado autêntico em seu lar.

Ante tal situação, cabe à enfermagem, com destaque para aqueles profissionais ligados a ESF, orientar esses familiares e, também, assumir conduta idêntica em sua assistência diária, sendo disseminadores da terapêutica paliativa. É preciso ter conhecimento teórico-prático e uma atitude coerente com as demandas do paciente e seus familiares, atuando como facilitador na implementação do cuidar. Incorporar esse amálgama interessante de cuidado no cotidiano dos profissionais faz-se exequível, ainda que, de início, seja cauteloso e progressivo, dentro das possibilidades fornecidas pelos serviços, mas sempre com o ideal de que melhorias podem ser implantadas. Para tanto, é necessário interesse, competência, habilidades técnicas e comunicacionais. São ações que sempre foram imprescindíveis ao saber da enfermagem, mas que devem ser recuperadas na prática assistencial diária.

Ressaltam-se algumas limitações do estudo, em virtude da própria natureza qualitativa da pesquisa, por se restringir ao tempo e espaço das vivências dos sujeitos envolvidos. Com isto, não é possível realizar generalizações do seu conteúdo a outras equipes da ESF de outros municípios. Contudo, acredita-se que permitiu e suscitou reflexões importantes, contribuindo para a expansão do conhecimento acerca da temática.

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  • 1
    Artigo extraído da dissertação - Vivências dos cuidadores de familiares de pessoas com câncer e dependentes: uma análise existencial, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual de Maringá (UEM), em 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    26 Maio 2014
  • Aceito
    12 Maio 2015
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