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Mediação nas redes para o cuidado de pessoa e família que vivencia o câncer colorretal

Mediación en redes para el cuidado de persona y familia que experimenta el cancer colorrectal

Resumos

Objetivou-se compreender como a mediação afeta a experiência de busca por cuidado no adoecimento pela condição crônica decorrente do câncer colorretal. Utilizou-se a abordagem compreensiva em pesquisa por meio da História de Vida Focal, operacionalizada pela entrevista em profundidade. Os sujeitos do estudo foram uma pessoa e sua família que vivenciavam o adoecimento por essa condição crônica, bem como pessoas de sua rede para o cuidado à saúde, tidas por nós como mediadores, totalizando seis sujeitos entrevistados. Os mediadores atuaram facilitando o acesso da pessoa adoecida a bens e recursos em saúde. A lógica que esses mediadores imprimiram na busca por cuidado difere da lógica dos serviços públicos de saúde, mas elas se influenciam mutuamente por meio dos laços de amizade que permeiam mediadores e servidores públicos. Observamos a mediação como algo positivo na perspectiva do usuário, pela dinamicidade que ela garante às redes de busca por cuidado.

Rede social; Família; Apoio social; Relações familiares; Atenção à saúde


El objetivo fue examinar cómo la mediación afecta la experiencia de búsqueda de atención en condiciones de enfermedad crónica causada por cáncer colorrectal. Se utilizó un enfoque comprensivo-integral a través de la Historia de Vida Focal operada por Entrevista en Profundidad. Los sujetos del estudio fueron una persona y su familia que experimentaron esta enfermedad crónica, así como las personas en su rede para el cuidado a la salud, obtenidos por nosotros como mediadores, totalizando seis entrevistados. Los mediadores actuaron facilitando el acceso a los bienes y recursos en salud para la persona enferma. La lógica de estos mediadores se diferencia de la lógica de la salud pública, e influyen mutuamente a través de los lazos de amistad que impregnan los mediadores y los funcionarios públicos. Vemos la mediación como algo positivo en la perspectiva del asegurar una mejor dinámica de las redes de búsqueda de atención.

Red social; Familia; Apoyo social; Relaciones familiares; Atencion a la salud


The objective was to analyze how mediation affects the experience of seeking care in case of illness due to the chronic condition caused by colorectal cancer. A comprehensive research approach was used through the Focal Life History, put in practice through an in-depth interview. The study subjects were a person and his family, who experienced illness due to this chronic condition, as well people from their healthcare network, considered as mediators, totaling six interviewed subjects. The mediators acted by facilitating the ill person's access to health assets and resources. The logic these mediators imprinted in the search for care differs from the logic of public health services, but they influence each other through the bonds of friendship that permeate mediators and public servants. Mediation was observed as something positive in the user's perspective, due to the dynamics it guarantees for care search networks.

Social networking; Family; Social support; Family relations; Health care


ARTIGO ORIGINAL

Mediação nas redes para o cuidado de pessoa e família que vivencia o câncer colorretal1 1 Este artigo é parte da dissertação - Mediação nas redes para o cuidado à saúde na experiência de adoecimento por condição crônica decorrente do câncer colorretal, desenvolvida no âmbito da pesquisa matricial - A instituição jurídica como mediadora na efetivação do direito pátrio em saúde: análise de itinerários terapêuticos de usuários/famílias no SUS/MT, apresentada ao Programa de Pós-Graduação, Mestrado em Enfermagem, da Faculdade de Enfermagem (FAEN) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), 2011.

Mediación en redes para el cuidado de persona y familia que experimenta el cancer colorrectal

Leandro Felipe MufatoI; Laura Filomena Santos de AraújoII; Roseney BellatoIII; Marly Akemi Shiroma NepomucenoIV

IMestre em Enfermagem. Bolsista CNPq. Docente do Centro Universitário de Várzea Grande. Mato Grosso, Brasil. E-mail: leandro.mufato@yahoo.com.br

IIDoutora em Enfermagem. Docente da FAEN/UFMT. Mato Grosso, Brasil. E-mail: laurafil1@yahoo.com.br

IIIDoutora em Enfermagem. Docente da FAEN/UFMT. Mato Grosso, Brasil. E-mail: roseney_bellato@yahoo.com.br

IVMestre em Enfermagem. Enfermeira da Secretaria Estadual de Saúde de Mato Grosso. Mato Grosso, Brasil. E-mail: marlynepo1@yahoo.com.br

Correspondência Correspondência: Leandro Felipe Mufato Rua 24, 85, ap. 103A. Residencial Esperança - Boa Esperança 78068-620, Cuiabá, MT, Brasil E-mail: leandro.mufato@yahoo.com.br

RESUMO

Objetivou-se compreender como a mediação afeta a experiência de busca por cuidado no adoecimento pela condição crônica decorrente do câncer colorretal. Utilizou-se a abordagem compreensiva em pesquisa por meio da História de Vida Focal, operacionalizada pela entrevista em profundidade. Os sujeitos do estudo foram uma pessoa e sua família que vivenciavam o adoecimento por essa condição crônica, bem como pessoas de sua rede para o cuidado à saúde, tidas por nós como mediadores, totalizando seis sujeitos entrevistados. Os mediadores atuaram facilitando o acesso da pessoa adoecida a bens e recursos em saúde. A lógica que esses mediadores imprimiram na busca por cuidado difere da lógica dos serviços públicos de saúde, mas elas se influenciam mutuamente por meio dos laços de amizade que permeiam mediadores e servidores públicos. Observamos a mediação como algo positivo na perspectiva do usuário, pela dinamicidade que ela garante às redes de busca por cuidado.

Descritores: Rede social. Família. Apoio social. Relações familiares. Atenção à saúde.

RESUMEN

El objetivo fue examinar cómo la mediación afecta la experiencia de búsqueda de atención en condiciones de enfermedad crónica causada por cáncer colorrectal. Se utilizó un enfoque comprensivo-integral a través de la Historia de Vida Focal operada por Entrevista en Profundidad. Los sujetos del estudio fueron una persona y su familia que experimentaron esta enfermedad crónica, así como las personas en su rede para el cuidado a la salud, obtenidos por nosotros como mediadores, totalizando seis entrevistados. Los mediadores actuaron facilitando el acceso a los bienes y recursos en salud para la persona enferma. La lógica de estos mediadores se diferencia de la lógica de la salud pública, e influyen mutuamente a través de los lazos de amistad que impregnan los mediadores y los funcionarios públicos. Vemos la mediación como algo positivo en la perspectiva del asegurar una mejor dinámica de las redes de búsqueda de atención.

Descriptores: Red social. Familia. Apoyo social. Relaciones familiares. Atencion a la salud.

INTRODUÇÃO

As redes para o cuidado à saúde são tecidas por pessoas e famílias em experiência de adoecimento e se apresentam como fonte de diferentes formas de cuidado, sendo tão ou mais importantes frente às vulnerabilidades sociais em que se encontrem tais famílias. As redes de relações sociais, de reconhecimento mútuo e de entreajuda baseadas em laços de parentesco e de vizinhança, postas como relações onde se trocam bens e serviços numa base não mercantil, têm sido importante fonte de bem-estar.1-3

Entendemos que essas redes de relações sociais podem ser capazes de promover apoio e sustentação para o cuidado em saúde na experiência de adoecimento. Elas são tecidas nas experiências de adoecimento, com ênfase nas condições crônicas, nas quais as famílias passam a conformar trajetórias de busca, produção e gerenciamento de cuidados; e é por meio da abordagem metodológica do Itinerário Terapêutico (IT) que essas trajetórias podem ser apreendidas e analisadas, por permitir observar "como se deu o processo de adoecimento e a busca por cuidados, como a experiência foi interpretada pela própria pessoa e família, o significado que o evento tem em suas vidas, uma vez que a vivência do evento tem por referência os contextos socioculturais que compartilham no seu processo de socialização, bem como as perspectivas de vida delineadas por elas".4:188

Nas vivências de cuidado e adoecimento de famílias é possível evidenciar a relação entre suas necessidades de saúde e os cuidados profissionais à elas ofertados, em especial na vivência do adoecimento por condições crônicas, evidenciam-se as dificuldades encontradas pelas pessoas para o acesso e resolução de suas necessidades nos serviços públicos de saúde.

Também observamos pessoas que participam de modo mais ou menos efetivo de suas trajetórias de busca por cuidado, amenizando suas dificuldades. Presentes nas redes para o cuidado à saúde, elas têm mediado situações em que o acesso ao cuidado é dificultado, em decorrência da própria dificuldade de organização dos serviços que compõem o Sistema Único de Saúde (SUS), bem como práticas profissionais pouco efetivas e resolutivas. Essa mediação afeta as trajetórias de busca por cuidado de modo positivo, proporcionando às pessoas adoecidas e suas famílias melhores patamares para que o cuidado se realize, de modo a torná-lo mais efetivo/eficaz.5

É nas trajetórias de busca por cuidado que a mediação possibilita maior organicidade no atendimento às necessidades de saúde da pessoa e família, por estabelecer conexões entre elas e outras pessoas e instituições que possam auxiliar na busca por cuidado. Esta conectividade conferida pela mediação, ao ligar as redes existentes da pessoa adoecida e família a novos pontos e/ou outras redes, permite-lhes empreender novos percursos na busca por cuidados, não antes considerados e por vezes mais efetivos para o cuidado.5

A aproximação com o fenômeno da mediação tem levado em conta o dinamismo da vida diária e os pequenos atos criativos aí vividos. Procuramos não pensar "a vida social tal como ela deveria ser, ou tal como se gostaria que ela fosse",6:114 mas, sim tal como ela é. Devido a isso, não buscando dizer "o que é" mediação, mas considerá-la em seus movimentos, com possibilidades diversas de expressão nas redes das pessoas, bem como seus afetamentos nas experiências de adoecimento.

Evidenciamos a importância dos estudos sobre a mediação pela movimentação dinâmica que esta promove nas redes para o cuidado à saúde, sendo ela, como um constructo teórico, uma noção capaz de ampliar o conceito de participação e movimento social, ainda muito formalizado.7 Mais do que isso, estudar a mediação possibilita a discussão teórica sobre os movimentos reticulares que ocorrem no cotidiano das famílias ao buscarem cuidados, frente aos impasses na implantação de políticas públicas de saúde, como o financiamento insuficiente, crescimento lento e de baixa qualidade da atenção primária, regionalização e integração entre municípios e serviços quase virtuais, e práticas com eficácia e eficiência abaixo do esperado.8

A noção de mediação enriquece nossa compreensão sobre a experiência de adoecimento ao abordar os movimentos nas redes de apoio e sustentação para o cuidado, nas quais, poderíamos dizer, se constrói o apoio social na concretude do cotidiano, ou seja, se alcançam recursos diversos que os sujeitos recebem por meio das relações sociais, "incluindo desde os relacionamentos mais íntimos com amigos e familiares próximos até relacionamentos de maior densidade social como os grupos e redes sociais".9:5 O objetivo deste estudo foi compreender a mediação nas redes para o cuidado à saúde tecidas na experiência de adoecimento por condição crônica decorrente do câncer colorretal de uma pessoa e sua família no contexto do SUS em um Estado Brasileiro.

PERCURSO METODOLÓGICO

A abordagem qualitativa em pesquisa, tida como a que "se aplica no estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões, produtos das interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e pensam",10:57 o que se mostra potente na investigação de nosso objeto. Por meio da abordagem metodológica da História de Vida Focal (HVF) pudemos apreender a lógica da pessoa em adoecimento na busca por cuidado, pois é ela quem detém a "história de seu processo de adoecimento e de busca por assistência junto aos serviços de saúde".11:852 Esta abordagem nos permitiu evidenciar os percursos e a produção de sentidos nas trajetórias empreendidas pela pessoa adoecida e sua família, bem como abordar a lógica que direcionou suas trajetórias.

Na busca por compreensão do vivido destas pessoas, utilizamos como instrumento a Entrevista em Profundidade (EP), modalidade que consiste em uma conversa aberta em que a pessoa é "convidada a falar livremente sobre um tema e as perguntas do investigador, quando são feitas, buscam dar mais profundidade às reflexões".10:262 Pode, ainda, ser caracterizada como uma conversa aberta, mas intencionada. Dessa forma, a pessoa pode ser valorizada em sua experiência de adoecimento, o que pressupõe a necessidade de compreender a sua lógica nesta vivência e o modo como busca cuidados, ou seja, privilegia sua narrativa, cabendo ao pesquisador buscar compreendê-la.11-12

As experiências narradas foram registradas em gravador de áudio e, posteriormente, transcritas em diário de campo. O diário de campo comportou ainda as observações do pesquisador durante os encontros para realização da EP,12 bem como onde pôde-se expressar as percepções, angústias e questionamentos. Quanto mais ricas foram as anotações, maior auxílio esse instrumento ofereceru para descrição e compreensão do objeto estudado.13 Desta forma, seu uso se deu de modo sistemático desde o primeiro momento de entrada em campo até o final da investigação.

A seleção dos sujeitos deste estudo obedeceu a critérios de inclusão da pesquisa matricial: ser usuário do SUS; estar vivenciando a experiência de adoecimento por condição crônica; ter acessado instância jurídica entre 31 de Abril de 2008 e 01 de Maio de 2009; e ser residente no Estado de Mato Grosso. Por meio de busca ativa em serviço de saúde especializado encontramos André, * * Utilizamos nomes fictícios para garantir o anonimato das pessoas e das instituições. que vivenciava o adoecimento por câncer colorretal e seus familiares. Além deles, participou do estudo uma pessoa que atuou como mediadora em suas redes para o cuidado à saúde, totalizando seis entrevistados.

Foram realizados sete encontros de entrevista de, aproximadamente, duas horas cada, com os sujeitos de nosso estudo, sendo três encontros com André e sua irmã, Clara, em instituição de saúde de Cuiabá, onde ele realizava tratamento quimioterápico; dois encontros com André e familiares em sua residência, no interior de Estado, com a participação de sua irmã Clara, seu irmão Emanuel, sua esposa Gabi, bem como de seus filhos Tobias e Narcisa; e um encontro exclusivo com a esposa de André, Gabi. Um último encontro se deu com Alexandre, mediador na busca por cuidado de André, em seu local de trabalho.

O trabalho de campo, com a realização dos encontros, ocorreu de abril a junho de 2010. O processo de análise dos dados se deu desde o início do trabalho de campo e, dessa forma, foram sendo construídos aprofundamentos pertinentes entre os diversos encontros de entrevista, quando também se fazia a eleição de temas a serem abordados.

Com a releitura das narrativas pudemos observar as unidades de significado que emergiam,10 expressas por narrativas. Por meio desta leitura observamos que dois grandes eixos de sentidos se compunham: o primeiro sobre a mediação nas redes para o cuidado à saúde tecidas em uma experiência de adoecimento; e um segundo, sobre a repercussão da mediação na experiência familiar da condição crônica por câncer. Nestes eixos temáticos as unidades de significados foram grifadas e agrupadas em duas categorias, sendo elas: a) Eu não acho que se tem hospital público aqui, então tem que ser atendido aqui - na qual observamos a mediação agindo em um movimento próprio, dialogando e divergindo da lógica estabelecida pelos serviços públicos de saúde; e b) Cheguei lá e ela estava pronta. Não ocupo papel, não ocupo assinatura, não ocupo nada - na qual observamos os afetamentos da mediação na trajetória de busca pelo cuidado de André e sua família, caracterizado pelas facilidades produzidas pelas mediações. Com a leitura de cada categoria, pudemos apresentar e discutir os significados que emergiram dos dados.

Neste estudo respeitamos os critérios metodológicos e éticos previstos e aprovados pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário Júlio Müller (CEP/HUJM), sob protocolo 671/CEP-HUJM/09, em atendimento à Resolução 196/69 do Conselho Nacional de Saúde, Ministério da Saúde.

APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS

Apresentamos um delineamento resumido da história de André, importante para compreendermos as implicações que a condição crônica trouxe para ele e sua família, e de como sua trajetória de busca por cuidado foi afetada por pessoas presentes em sua rede de relações sociais. Adiante, passamos a discutir especificamente sobre a atuação de Humberto, Alexandre, Saulo e Emanuel, pessoas que consideramos mediadoras em sua trajetória de busca por cuidado, os quais requerem análise mais apurada para atingirmos o objetivo do estudo.

Conhecendo André e sua busca por cuidado

André, homem de quarenta e nove anos de idade, vivenciou a experiência da condição crônica gerada pelo câncer colorretal, sendo que seu adoecimento teve início em 2004 com a alteração da função intestinal, quando passou a perceber sangue nas fezes. O problema foi primeiramente por ele tratado como hemorróida, que foi à farmácia e comprou remédios. Como não houve melhoras das alterações, ele procurou o serviço público de saúde e o médico lhe disse que suas alterações eram causadas por vermes. André, pedreiro, funcionário da prefeitura de sua cidade no interior de Mato Grosso, narra o problema para seu amigo Humberto, médico e prefeito da cidade, que lhe oferece uma consulta para investigar seu problema. André descobre, então, que as alterações que surgiram há pouco tempo em seu corpo, e que ele considerava ser hemorróida, podiam ser, na verdade, decorrentes do câncer; suspeita levantada por Humberto. Frente a esta suspeita e com a ajuda de Alexandre, André é encaminhado rapidamente para um hospital especializado no atendimento às pessoas com câncer no Estado de São Paulo. Alexandre, pessoa influente no município, realiza leilões anualmente para o hospital, referido garantindo-lhe recursos financeiros que chegam a atingir cerca de cento e setenta mil reais. Dessa forma, ele, ao encaminhar pessoas para essa instituição, consegue agilidade no atendimento. A esposa de André, Gabi, preferia que ele começasse em Cuiabá seu tratamento, dada a proximidade de sua cidade, mas a família de André discordou. A passagem para tratamento em São Paulo lhe foi garantida pelo amigo prefeito e a consulta diagnóstica no hospital especializado foi garantida por Alexandre. André retornou uma segunda vez, quando o diagnóstico foi confirmado e a cirurgia para ressecção colorretal e confecção da colostomia foi sugerida e, em sua terceira viagem, a cirurgia foi realizada. Neste momento foi acompanhado pelo irmão, Emanuel. Já Gabi necessitou pedir licença de seu emprego para acompanhar seu marido quando Emanuel não o pode mais. André retornou uma quarta vez ao hospital especializado para radioterapia e quimioterapia, permanecendo por cerca de setenta e cinco dias acompanhado pelo filho Tobias, na época com dezoito anos de idade. Durante mais três anos, retornou a cada vinte e um dias para quimioterapia, indo sozinho devido aos familiares estarem trabalhando. André passou a ter dificuldades para conseguir as passagens e chegou a pedi-las no fórum de sua cidade uma vez, mas Humberto, intervindo na situação, mais uma vez lhe garantiu passagens pela Secretaria de Saúde de seu município. Contudo, Humberto distanciou-se do caso quando deixou de ser prefeito do município; a isto se somaram dificuldades nas idas a São Paulo para André e sua família. Desta forma, André pediu para ser transferido para Cuiabá, três anos após a primeira viagem a São Paulo ter acontecido. Por mais três anos ele continuou seu tratamento em serviço público de referência para o câncer em Cuiabá e, por ser uma viagem mais curta, passou a ser acompanhado por sua irmã Clara. Neste período ele precisou entrar na justiça para conseguir o medicamento quimioterápico receitado pela médica que o acompanhava, tendo recebido da própria profissional tal orientação. O irmão de André, Emmanuel, foi o responsável por empreender esta busca, primeiro via ouvidoria do Sistema Único de Saúde em Cuiabá e, posteriormente, através do fórum de sua cidade, pois foi informado, pela própria ouvidoria, que somente conseguira o medicamento na justiça. Já no fórum Emanuel afirma que conseguiu dar maior agilidade ao trâmite do processo por "conhecer pessoas". Assim, fornecido este medicamento via judicial, André realizou seis meses de tratamento; mas, não havendo a melhora esperada, novo medicamento lhe foi prescrito por sua médica, sendo-lhe fornecido pela própria instituição em que fazia tratamento. André foi aposentado graças à intervenção de Saulo, advogado da prefeitura à época em que Humberto era prefeito; ele garantiu a aposentadoria que há um ano André tentava obter.

Eu não acho que se tem hospital público aqui, então, tem que ser atendido aqui

A mediação realizada por Alexandre possibilitou a André acesso e atendimento ágil em serviço especializado para o tratamento do câncer em outro Estado, seguindo uma lógica diferente da estabelecida pelo poder público em relação aos fluxos de referência e contrarreferência do SUS. Desta forma, por meio de diferente percurso, o mediador diverge da lógica de acesso aos serviços de saúde, não somente no Estado, mas da possibilidade de regulação do acesso à serviços entre Estados. Este percurso mediado conflita com o percurso regulado e, compreendendo estas diferentes lógicas, o mediador evita recorrer ao poder público local para obter ajuda às pessoas que o procuram. André, uma dessas pessoas, acaba não podendo conseguir acesso ao tratamento numa lógica diferente da estabelecida pela mediação. Alexandre narra que [...] tem pessoas que tem condições e vão com recursos próprios. Tem pessoas que não tem condições e, às vezes, pedem para a gente se tem condições de ajudar. Eu não peço para o poder público, não, porque... [...]. Eu não acho que se tem hospital público aqui então tem que ser atendido aqui. As pessoas fazem opção de ir pra lá, aí, já é questão de política pública, não é comigo. Então não peço pra prefeito.

Alexandre mostra em sua fala os significados dos serviços públicos, incluindo acesso a eles, a dificuldade de obter respaldo para encaminhar de modo ágil pessoas para tratamento no hospital especializado, uma vez que esse encaminhamento não obedece à lógica construída nos serviços de saúde de sua cidade, indicando, ainda, que já conhece a resposta dos gestores e do prefeito para esse pedido, não concordando com a opinião de que se há hospital público na cidade, então todas as pessoas deveriam ser ali atendidas. Alexandre busca sempre recursos em suas próprias redes de relações sociais, mostrando que, para a mediação ocorrer, é necessário articulação entre inúmeras pessoas. Desta forma, evidencia-se a potência do mediador em sua capacidade de mobilizar pessoas e recursos em redes, conforme apontado por outros autores.5, 7, 14

O apoio que o mediador recebe de sua rede de relações sociais é importante para que ele possa afetar as trajetórias de busca por cuidados das pessoas que o procuram tornando-se, ele mesmo, participante das redes para o cuidado à saúde de cada pessoa adoecida, o que evidencia que o mediador não age sozinho, antes, precisa do reconhecimento das pessoas adoecidas, da instituição da qual é mediador e, também, de apoio daqueles que compartilham com ele da noção de que ser mediado para o hospital especializado é melhor que seguir os trâmites da regulação no SUS local. Isso mostra que, apesar da figura do mediador se sobressair construindo o reconhecimento, a mediação somente ocorre pela capacidade do mediador em articular-se, sendo uma mediação feita coletivamente, em rede, o que lhe garante sua potência. [...] tem pessoas que ajudam para se beneficiar, então não nos servem. Não serve pra nós. Não serve pra estar no nosso meio [...]. Se a pessoa é pobre e precisa realmente, vem aqui, a gente encaminha e vê que precisa, eu ligo e consigo, em meia hora eu consigo passagem de ida e volta e tem o alojamento lá e a pessoa não gasta nada. Muito mais fácil do que ficar administrando dinheiro de terceiro, porque maldade há em todo o lugar, né? (Alexandre).

A circulação de bens acontece pelo reconhecimento do mesmo valor entre as pessoas envolvidas, o que, no caso estudado, está ligada a uma noção de solidariedade.15 Alexandre se articula com pessoas que têm afinidades com seus valores de vida e que compartilham de sua noção de solidariedade aos adoecidos, sendo seletivo àqueles que o ajudam nesta mediação, ao dizer que se ajudam por esperar benefícios próprios não serve. Desta forma, Alexandre rechaça o interesse utilitarista presente no âmbito social que impede a circulação de bens e valoriza as trocas baseadas nos laços sociais de amizade e familiares.

Seria errôneo acreditar que o dom somente pode circular nas relações de socialidade primária, de amizade e familiares, mesmo no seio dos serviços públicos, em relações consideradas de socialidade secundária; as trocas de dons agem vigorosamente.15 Os mediadores que observamos atuar na trajetória de André parecem mobilizar, em benefício próprio e das pessoas que os procuram, as redes de primariedade cimentadas na lei do dom.15 Seria dizer que o mediador consegue construir fluxos para o acesso a tratamento do câncer, por meio das relações de amizade, com o reconhecimento dos serviços que realizam este atendimento, no caso, o hospital especializado no interior do Estado de São Paulo. Nesse sentido, este serviço parece atuar numa lógica de gestão pautada na solidariedade, assim como o são as ações do mediador, pois isso estaria gerando o reconhecimento mútuo entre o mediador, André e a instituição.

A permanência de Alexandre como mediador há dez anos em sua cidade permite evidenciar que sua atuação parece ganhar diferentes conformações em relação ao cenário político, sendo influenciada por este. O caso de André mostra que existe articulação entre mediador e política pública local, e sua mediação é afetada por quem está neste comando. As narrativas mostram que André chegou a Alexandre por intermédio do então prefeito da cidade à época. Alexandre nos fala sobre ele: é meu amigo pessoal! Entendeu? Amigos de longas datas. Inclusive quem diagnosticou o câncer na minha mulher foi ele. É... quando eu preciso de encaminhamento, que é um documento do SUS, quem assina é o Humberto. Eu só ligo pra ele, peço, mando os documentos pra ele e ele faz o encaminhamento. Porque precisa do papelzinho [...] até hoje. Uma pessoa maravilhosa. Tem um coração desse tamanho.

A mediação se mostra um movimento influenciado pelo cenário político do local, conformando-se e estando implicada pelos laços de amizade que se tecem entre as pessoas que aí transitam, como mostra o mediador Alexandre, ao afirmar não pedir ajuda ao poder público local, mas que tinha grande apoio quando seu amigo, Humberto, era prefeito. O que observamos é um jogo explícito entre os laços de amizade interferindo em um contexto social onde predominaria a impessoalidade, mostrando que laços que se constituem na sociabilidade primária possuem força de aliança maior e independente da posição social em que se encontram as pessoas que os constituíram.15

Do mesmo modo, enquanto Humberto ocupa um cargo público, ele usa das possibilidades de trânsito social e do poder que este lhe confere para concretizar o seu auxílio a André e Alexandre, conforme nos narra André: quando eu não encontrava com o prefeito não era fácil. Quando eu me encontrava com ele, falava, era na hora né? Quando não encontrava... que teve uma vez mesmo... das últimas vezes que eu procurei ele, não achei. Fui lá, conversei com a secretária dele, falou pra mim que tava numa reunião [...] que vou chegando na secretaria ele tava piando o carro. Ele falou: 'oi irmão! Como que tá?'. Uai! To aí, pelejando. [...] 'Não, você pode ficar tranquilo. Pode embora. Você pode vim busca sua passagem aqui'. Então, graças a Deus, pra foi um pai, né.

A capacidade do mediador de obter recursos e acessos em saúde, pautando-se nos laços de amizade, mostra sua capacidade de ser transgressor da lógica burocrática e lenta que permeia os serviços públicos de saúde e de assistência social. Na história de André, seus mediadores atuaram de modo a facilitar seu acesso aos diversos recursos e serviços de saúde, tais como acesso ao hospital especializado, à aposentadoria e viagens para tratamento, agindo por meio de diferentes vínculos sociais e convergindo esforços para aumentar o potencial de cuidado das pessoas adoecidas e suas famílias.

Os mediadores podem ser considerados "pessoas-chave", uma vez que abrem novos fluxos de trocas nas redes tecidas pelas famílias em experiência de adoecimento, franqueando-lhes acessos aos serviços de saúde; e estes mediadores poderiam ser membros da família, da comunidade ou, ainda, os próprios profissionais de saúde.7

Os modos de atuar dos mediadores foram vivenciados pela família de André como sendo ágeis em garantir-lhes estes acessos, por vezes rápido demais para que eles considerassem com mais cautela outras possibilidades de tratamento, como o oferecido regularmente pelos serviços públicos de saúde locais. São as dificuldades amenizadas pela mediação que discutiremos no próximo tópico.

Cheguei lá e ela estava pronta. Não ocupou papel, não ocupou assinatura, não ocupou nada

Para conseguir respostas às suas diversas necessidades de saúde, André pode contar com a intervenção rápida dos mediadores, evitando que ele esperasse demoradamente por atendimento, tais como, tratamento medicamentoso contra o câncer, aposentadoria, passagens, transporte e acesso ágil às instituições, dentre elas o fórum, como meios de sustento aos seus cuidados. Estes são alguns elementos através do quais os mediadores ganham o reconhecimento de André, sendo que as filas de espera simbolizam a demora no atendimento público, consideradas principais obstáculos no acesso aos serviços aí ofertados.16

Devido a inúmeros conflitos com o serviço de previdência e à demora em obter aposentadoria por invalidez, André buscou o auxílio de Saulo, advogado da prefeitura, e que se coloca como seu amigo, dizendo que este poderia lhe procurar a qualquer momento que necessitasse, efetivando-lhe, enfim, a aposentadoria: ela demorou um ano e pouco. Eles começaram a me enrolar uns tempo [...]. Aí, foi na época que eu conversei com doutor Saulo [...]. Ele falou: 'não André, seu problema é aposenta, você não... você não pode mais trabalhar'. Aí, eles começo me enrolando, me enrolando, me enrolando, me enrolando pra aposentá, né? E quando eu tive um dia lá, conversei com o presidente [...]. Eu falei: mas, então, eu quero minha aposentadoria. Aí, eu passei no doutor Saulo. O doutor Saulo falou: 'não. Você não vai trabalhar mais, você vai aposenta'. Aí, rasto aquela cadeira que ele é um homão bem forte, sabe? Com medo dele rebenta aquele trem tudo e ele pegou o telefone e: 'que que ta acontecendo com a aposentadoria do André? Eu falei pra você ta com um ano que ele ta pra aposenta e não aposento ainda!'. 'Ah! não doutor Saulo, pode deixa que nós vamos dar jeito!'. Aí, no outro dia já me... nando pra mim í lá, cheguei lá e ela tava pronta. Não ocupo papel, não ocupo assinatura, não ocupo nada (André).

As trajetórias de busca por cuidados são marcadas pela árdua peregrinação de quem busca serviços públicos de saúde, em parte causada pela baixa resolutividade e integralidade das práticas profissionais ofertadas.4, 17 Evidenciamos na experiência de André um serviço que, em suas palavras, foi "enrolando, enrolando, enrolando...", o que, já no seu modo de narrar, nos dá a sensação de demora, como algo que se dilata no tempo para sua resolução, ou mesmo que nunca se resolva. O mediador, nesse caso, posicionou-se entre a pessoa adoecida e o serviço, de modo a obter resolutividade deste segundo. Para André, o mediador se fez "amigo", atendendo-o de modo diferenciado dentre os muitos que o procuravam; para a instituição, o mediador fez-se "advogado", resolvendo o problema de André, ao questionar o serviço em relação à demora no atendimento.

Tal mediação demonstra que instituições de saúde e, no caso, de assistência social, poderiam atender de modo diferenciado e com eficácia. Contudo, o êxito no caso dependeu da ação de um mediador, reconhecido como tal pela instituição, pois é isto que lhe confere poder de trânsito nesse âmbito social. O que importa, por hora, é trazer à tona o benefício que esta intervenção teve para André, que tentava aposentar-se há um ano.

Esses achados parecem corroborar a noção de que as redes de relações sociais, de reconhecimento mútuo e de entreajuda baseadas em laços de parentesco e de vizinhança, postas como relações onde se trocam bens e serviços numa base não mercantil, têm sido consideradas como uma compensação pela ausência da produção de bem-estar societal pelo Estado,1, 3 nas quais as pessoas sentindo a necessidade de "se virar" buscam os instrumentos da relação "informal".15 O caso da aposentadoria de André parece ser emblemático dessa compensação, ou ainda, constata-se que a atuação dos mediadores, ao buscarem ajuda de modo ágil às pessoas adoecidas frente à demora do poder público em resolver seus problemas, possa ser uma expressão de um novo tipo de consciência social, estimulada pela solidariedade posta em atos concretos vivenciados no cotidiano, considerados como "novas autonomias".18-19

Diversas dificuldades foram vivenciadas por André e sua família, em outros momentos de sua trajetória, como, por exemplo, de acesso ao medicamento quimioterápico. Neste, tendo que ser feito por via judicial, Emanuel fez-se mediador: desleixo total por parte de outras: 'Ah, não sei', 'não vi', 'não encontra', 'não está aqui'. Você fornece os números do protocolo, fornece os dados, data, tudo, aquela... né? 'Ah não. Não ta!'. Aí vai, passa aí, dois três dias, uma semana, você torna a ligar: 'não, ta aqui, mas não foi levado ainda [...] tem que ser via comarca do município do paciente', essas coisas tudo. Então, voltei aí, fui lá, peguei, vim protocolei com o promotor, falei com o juiz, até, digamos assim, o pessoal do cartório lá do... do fórum, é amigo da gente, todo mundo ajudo à formalizar mais rápido né? Contribuiu pra isso. Mas, em si não, não tem aquela evolução conforme a própria doença né? O caso (Emanuel).

Ressalta-se que Emanuel traz as muitas dificuldades encontradas para conseguir, no caso, um medicamento quimioterápico para André, por via judicial; mas, salienta, essas dificuldades seriam ainda maiores se vivenciadas pelo próprio André, caso não houvesse sua intervenção como mediador. Evidencia-se que o mediador, neste caso, colocou-se à frente na busca por recursos para cuidado e sentiu as dificuldades encontradas pelo atendimento descompromissado, repleto de posicionamentos vagos. Mesmo aí, podemos ver a articulação do mediador a uma rede de pessoas que o auxiliaram, garantindo certa agilidade na obtenção da resposta. Encaminhada a solicitação de medicamento quimioterápico ao fórum de sua cidade, o trâmite desta demanda se tornou mais rápido, graças aos amigos do mediador neste lugar. Ainda, sobre a articulação de Emanuel para a resolução das necessidades de André, observamos que: é sempre muita amizade, né? Ele conhece muitas pessoas. De lá, ele comunica com eles aqui, arruma o carro. Sei que no outro dia ele já tava prontinho e a gente foi (Clara).

O transporte para a realização de quimioterapia é conseguido pela atuação de Emanuel que surge, na fala de Clara, como aquele que possui muitos amigos, o que consideramos que dê maior dinamicidade às redes para o cuidado à saúde, de modo a conseguir agilidade no atendimento de André. As facilidades encontradas pela atuação dos mediadores aparecem, nas narrativas de André e sua família, intrinsecamente relacionadas com a agilidade e rapidez dos mediadores, o que mostra que estes são reconhecidos como pessoas que podem amenizar o sofrimento na experiência de adoecimento, não apenas por conseguirem os recursos necessários para resolução de necessidades, mas, também, pelo modo como conseguem, muito ágil e rápido, frente à demora dos trâmites institucionais dos serviços de saúde. [...] foi assim, um impulso que já arrumo rapidão, não teve tempo nem de pensar [...]. Foi rápido, assim, o impulso, que já suspeito, já mando (Clara). Fui trabaiá, [...] ele não deixou eu trabaiá mais, disse: 'não, você vai embora í vai arruma seus trem que você vai pra Barretos manhã ou depois de amanhã' [...]. Ele já foi telefonar pra lá e já fui com tudo ajeitado pro problema meu [...]. Foi um negócio de três, quatro dias, dois dias, foi rápido (André). Quando da primeira vez que eu fui, o doutor falo... o prefeito falou pra mim [...]: ' André, já mandei faze isso, isso, suas passagens tá prontinho... tá passagem de, de ida e a de vinda. A de vinda esta em aberto, se passar de trinta dias pra você vim, mais de trinta dias, você vai na rodoviária lá e pede pra eles troca ela pra você' (André).

Pelo auxílio conseguido desse modo ágil, André vai sendo amparado pelos mediadores na árdua busca por cuidados em serviços de saúde pouco resolutivos,4 compensando uma atuação do poder público repleta de entraves e demoras.3 Observamos como compensatória a ação das redes de relações sociais em contextos de fragilidade estatal na proteção das pessoas.

Nas redes para o cuidado à saúde tecidas por pessoas e famílias de modo a dar-lhes certa sustentação e apoio na experiência de adoecimento, a necessidade da atuação de mediadores vem mostrar, em certa medida, um dos modos como a "crise do Estado provedor, provocada pelo processo de globalização, afeta de maneira dramática a relação das classes populares com os serviços de saúde no Brasil".19:53 Essa crise que demonstra os efeitos prejudiciais dos interesses individuais sobre o cuidado às coletividades, fazendo com que o apoio social, situado por nós como aquele que se dá nas redes para o cuidado à saúde, deva ser objeto de estudos e aprofundamentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Evidenciamos nos achados empíricos deste estudo que os mediadores facilitaram, em certa medida, a busca por cuidado empreendida por uma pessoa e sua família na experiência de adoecimento por câncer, sendo que a mediação por eles produzida ocorreu com maior intensidade em momentos de intensificação de suas necessidades, bem como, pelas impossibilidades decorrentes do adoecimento - como trabalhar; e pelas dificuldades de acessar cuidados em saúde.

Os mediadores intervieram na trajetória de busca por cuidados de modo a direcionar os percursos a serem empreendidos, indicando e permitindo que se trilhem os de menor dificuldade de acesso e/ou os de melhor resolutividade para André. Estes mediadores, ao fazerem tal ação, estiveram movidos por algo que não pode ser mensurado prontamente, do campo do afetivo, como a sensação de conforto e sentimento de solidariedade por poder auxiliá-lo de alguma forma. Auxílio esse, conseguido pela articulação de cada mediador às suas redes de amigos que contribuem para que possa ajudar aqueles que o procuram, tornando a mediação uma produção social e coletiva, vista e reconhecida pelas pessoas e instituições envolvidas na situação de mediação. Visibilidade e reconhecimento sem os quais a mediação não conseguiria manter-se no tempo.

Os serviços públicos de saúde, não conseguindo efetivar os princípios que os norteiam, acabaram por não dar respostas efetivas às necessidades de André, impossibilitando a materialidade do direito à saúde em certos momentos. Os modos de conformação das redes para o cuidado à saúde expressaram os rearranjos necessários para que André e sua família obtivessem cuidados mais integrais e resolutivos.

Os mediadores, que permitem que as pessoas/família em condição de adoecimento possam acessar cuidados nesse sistema fragmentário de atenção profissional à saúde, mostraram, em certo modo e medida, como uma ação mais flexível, ou seja, menos guiada por protocolos rígidos de atendimento, pode encaminhar as práticas profissionais rumo à concretude do direito à saúde. Apesar das limitações deste estudo, uma vez que abordou a experiência de uma única pessoa adoecida, pudemos delinear alguns efeitos da mediação e mostrar a necessidade de mais estudos sobre este tema.

Este estudo mostra, ainda, a grande movimentação necessária para que as pessoas consigam respostas mais efetivas dos serviços públicos de saúde, evidenciando que a entrada de uma pessoa doente pela porta de um serviço esconde, com ela, uma articulação em redes que se sustentam pela movimentação de muitas outras pessoas. Vemos a necessidade de avançar na investigação dos mediadores como forma de melhor observar a dinâmica das redes para o cuidado à saúde e como modo de conhecermos os efeitos de ações pouco resolutivas e desintegradas dos serviços de saúde. Com isto, repensarmos nossa atuação profissional em busca de um cuidado mais ético.

O estudo permitiu compreender a experiência de adoecimento e seus afetamentos, a tecitura de redes para o cuidado à saúde e o modo como nelas se conforma a atuação de mediadores, evidenciando que estas redes se tornam tão mais necessárias frente às vulnerabilidades das pessoas e à pouca efetividade das práticas no sistema profissional de cuidados. Profissionais enfermeiros precisam compreender a potência destas redes, bem como da mediação que nelas ocorre, delas também participando de modo a contribuir para a tecitura de redes cuidativas, nas quais os vínculos tenham a potência de efetivar o direito à saúde.

Recebido: 15 de Agosto de 2011

Aprovação: 15 de Agosto de 2012

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    Este artigo é parte da dissertação - Mediação nas redes para o cuidado à saúde na experiência de adoecimento por condição crônica decorrente do câncer colorretal, desenvolvida no âmbito da pesquisa matricial - A instituição jurídica como mediadora na efetivação do direito pátrio em saúde: análise de itinerários terapêuticos de usuários/famílias no SUS/MT, apresentada ao Programa de Pós-Graduação, Mestrado em Enfermagem, da Faculdade de Enfermagem (FAEN) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), 2011.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      15 Ago 2011
    • Aceito
      15 Ago 2012
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