Open-access Os fundadores de Lisboa: Ulisses, o herói pagão, e Vicente, o mártir cristão, no épico hagiográfico de André de Resende (séc. XVI)

The founders of Lisbon: Ulysses, the pagan hero, and Vicent, the christian martyr, in André de Resende’s hagiographic epic (16th century)

Resumo:

Em meados do século XVI, o humanista André de Resende publicou um épico hagiográfico intitulado Vincentius levita et martyr. O autor foi um nome de inegável importância no movimento político-estético que conciliou, em Portugal, a presença clássica do Renascimento com as exigências dogmáticas da Igreja católica. No poema em pauta, Resende faz inúmeras menções a divindades greco-latinas e estabelece diversas relações interdiscursivas com a épica antiga, sobretudo Virgílio e Homero. Apesar da variedade de referências que percorre os 887 versos do poema resendiano, confere-se especial atenção à tradição que atribui a Ulisses, protagonista da Odisseia, a fundação da cidade de Lisboa. Nesse artigo, analiso essas relações a partir da interlocução entre as questões literárias e os aspectos políticos do período, que asseguraram a André de Resende a possibilidade de negociar a tradição do heroísmo pagão com a vida do mártir cristão.

Palavras-chave:
André de Resende; Usos do passado; Ulisses

Abstract:

In the mid-sixteenth century, the humanist André de Resende published an epic hagiography entitled Vincentius levita et martyr. The author was an undoubtedly important figure in the political-aesthetic movement that reconciled the classical presence of the Renaissance with the dogmatic demands of the Catholic Church in Portugal. In the poem in question, Resende makes numerous references to Greco-Latin deities and establishes various interdiscursive relationships with ancient epic, especially Virgil and Homer. Despite the variety of references that run through the 887 verses of Resende’s poem, special attention is given to the tradition that attributes to Ulysses, the protagonist of the Odyssey, the foundation of the city of Lisbon. In this article, I analyze these relationships based on the interlocution between literary issues and the political aspects of the period that allow for a broader understanding of the political uses of the Homeric past in sixteenth-century Portugal.

Keywords:
André de Resende; Past uses; Ulysses

Introdução

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Fernando Pessoa

Em Ulisses (1934), Fernando Pessoa escreveu que “o mito é o nada que é tudo”. O poeta não presumia que o herói grego que intitula o poema tivesse existido de fato, mas deu grande valor à potência fundadora de um discurso que entende a realidade a partir desse paradoxo (“o nada que é tudo”) próprio do mito. É pelo grande apreço que tinha pelo mito que Pessoa não renunciou ao ceticismo em relação ao evento histórico, ou seja, que a cidade de Lisboa, conforme instrui a tradição, foi fundada por Ulisses em algum momento de seu retorno à Ítaca. Fernando Pessoa se filia a um rincão da literatura portuguesa que ganha força no século XVI e que tem em André de Resende (1500-1573) uma referência basilar. Apesar da discreta repercussão à época, o humanista português publicou, no ano de 1545, em Lisboa, Vincentius levita et martyr,(1) um épico hagiográfico dedicado a são Vicente, padroeiro de Lisboa e Valência que teria sido preso, torturado e morto sob as ordens do imperador romano Diocleciano (séc. IV).

Escrito em latim, o poema foi dividido em dois livros. No primeiro, André de Resende discorre sobre o martírio de são Vicente; no segundo, aborda o translado das relíquias do santo para Lisboa. A adesão do ex-frade dominicano aos princípios, dogmas e preocupações da Igreja católica é inconteste e seu texto não oferece qualquer pista do contrário. Não obstante, e em sensível descompasso com as tradições literárias da época, seus 887 versos são marcados por inúmeras referências à Antiguidade, sobretudo visíveis, como bem observou Gil Clemente Teixeira (2018, p. 46), pelas 225 citações a autores clássicos. Entusiasta do mundo greco-romano, reconhecido por sua vasta erudição, Resende também se dedicou, de modo quase seminal, ao estudo das epigrafias romanas em Portugal. A conciliação entre personagens e deuses pagãos de Grécia e Roma antigas com a vivência católica no tempo das reformas religiosas não foi um fato literário de pequena monta; (2) no marco desse debate, minha análise remete a obra resendiana aos usos do passado clássico na Alta Idade Moderna lusitana, (3) sobretudo a partir de interdiscursos assentados no périplo de Ulisses.

Diante da impossibilidade de distinguir o texto de seu contexto, articulo a interpretação dos aspectos estilístico-literários com as condições de produção do discurso escrito(4) em Portugal do século XVI. Avalio as relações interdiscursivas que André de Resende estabeleceu com Homero e Virgílio com vistas a reconhecer que, em sua agência política e intelectual, o humanista português assumiu a condição do que Pierre Bourdieu denominou porta-voz autorizado, ou seja, aquele que “consegue agir com palavras em relação a outros agentes e, por meio de seu trabalho, agir sobre as próprias coisas, na medida em que sua fala concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferiu o mandato” (Bourdieu, 2008, p. 89).

As novas cores de uma antiga tradição

A história de Ulisses como fundador de Lisboa é bem anterior a André de Resende. Uma das referências mais antigas é o gramático latino Caio Julio Solino que, em Polyhistor (1847, 23.4), obra do século III, atribui a criação da vila de Olisipo, identificada como Lisboa, ao marido de Penélope. O tema é mencionado também em documentos medievais e ganha destaque na crônica de cruzados ingleses que lutaram com dom Afonso Henriques na campanha de resistência aos mouros de 1147. (5)

A literatura portuguesa investe nova atenção no mito de fundação ulisseico a partir de meados do século XVI. Dessa vez, as cores dessa antiga tradição foram saturadas pelo Renascimento italiano, que precipitou uma renovada presença do mundo greco-romano no pensamento europeu. A glória da Roma antiga, em particular, “era incansavelmente entoada pelos humanistas italianos, preocupados em ajustar a beleza do seu discurso à grandiosidade dos feitos dos seus antepassados” (Soares, 2018, p. 352).

Uma das formas de garantir a circulação dessas ideias, além da oralidade e dos regimes visuais, eram os manuscritos e, de maneira cada vez mais capilarizada ao longo do XVI, os impressos. Em meados da década de 1960, Peter Burke identificou 2.355 edições modernas, publicadas entre 1450 e 1700, de vinte obras de historiadores antigos (Burke, 1966, p. 136). Freya Cox Jensen (2018) revisitou o artigo de Burke e observou, com ajuda de databases, que hoje são identificáveis mais de três mil edições tanto em línguas antigas como em vernáculas. Muitos nomes reconhecidamente influentes nos círculos intelectuais europeus participaram desse enlace oportuno entre autores antigos e a voga tipográfica. Erasmo de Roterdã(6) e o arcebispo italiano Girolamo Aleandro, por exemplo, revisaram a primeira impressão do texto grego da Moralia de Plutarco, editada por Demetrius Ducas, em 1509. Uma cópia viajou com Erasmo, passou a integrar sua biblioteca pessoal e, a partir desse exemplar, ele traduziu o texto para o latim (Ledo, 2019, p. 259).

O prestígio de André de Resende não pode ser divorciado de uma vida dedicada aos estudos, sobretudo no convento de São Domingos em Évora (sua cidade natal), onde ingressou ainda criança. De sua biografia intelectual, sabe-se que estudou em Alcalá de Henares, Salamanca e na França antes do contato mais intenso com as correntes humanistas. Graças ao longo investimento na formação intelectual e docência universitária, marcou sua presença nos círculos aristocráticos portugueses, chegando a ser mestre de dom Duarte (1521-1543), filho reconhecido de dom João III (1502-1557), rei de Portugal, de quem Resende era amigo. Trata-se de um período marcado por “uma renouatio, nos vários domínios da cultura, que pretendia garantir a consolidação da consciência nacional” (Soares, 2018, p. 354), o que justifica o interesse régio em editar textos que exultassem o heroísmo lusitano, as conquistas ultramarinas e a virtus de seus reis. (7) Trata-se também, como defende Diogo Ramada Curto (2007, p. 105), do apelo a “um modelo de história universal que articula a fábula da génese dos povos com a apologia da Igreja”, pensada até mesmo como um “género novo, que integra simultaneamente o encómio de uma cidade ou de um determinado território e o interesse pelas suas antiguidades” (Curto, 2007, p. 107).

André de Resende e Damião de Góis, alto funcionário régio e referência do Renascimento português, segundo Américo da Costa Ramalho (2005, p. 894), cumpriam a tarefa de divulgar no estrangeiro “as vicissitudes da expansão portuguesa na Índia, já não as navegações iniciais mas os combates navais e terrestres, provocados pela presença portuguesa no Oriente”. Ainda segundo o autor, um opúsculo de Resende, saído em Lovaina, em 1531, teria sido escrito em latim por incumbência régia, “para ser conhecido na corte do imperador Carlos V e nos mais cultivados círculos da Europa” (Ramalho, 2005, p. 895). A produção literária resendiana inclui o poema épico Genethliacon (1531), Oratio pro rostris (1534), um manifesto humanista; In obitum D. Ionannis III, Lusitaniae regis, conquestio (1557), poema fúnebre em honra ao rei português dom João III; De antiquitatibus Lusitaniæ (edição póstuma de 1593), História da antiguidade da cidade de Évora (1553), Vida do infante D. Duarte (1567) além do Vicente levita et martyr (1545), referências destacadas dos mais de 150 títulos de sua autoria (Teixeira, 2018, p. 21). O intelectual, filólogo, teólogo e humanista pode ser reconhecido, no marco da literatura lusófona do século XVI, como um interlocutor privilegiado do diálogo entre a musa pagã e a ética cristã, assumindo o “poder delegado” ao porta-voz autorizado do discurso. Segundo Bourdieu (2008, p. 87),

Tentar compreender linguisticamente o poder das manifestações linguísticas ou, então, buscar na linguagem o princípio da lógica e da eficácia da linguagem institucional, é esquecer que a autoridade de que se reveste a língua vem de fora, como bem demonstra concretamente o cetro (skeptron) que se oferece ao orador que vai tomar a palavra na obra de Homero.

Esse “fora” que reveste a língua de autoridade não é apenas (ou exclusivamente) a investidura de um poder-dizer socialmente sancionado pelos méritos pessoais do interlocutor. Além da economia de prestígio ou, nos termos bourdieusianos, do poder simbólico atribuído ao agente, é preciso que haja um grau de equivalência relativamente coeso entre a expectativa do dizer e o que foi dito, razão pela qual é impossível reduzir a influência resendiana às vantagens econômicas e políticas de que gozou, mas tampouco é possível ignorá-las, sobretudo porque publicar impressos na Europa do século XVI, especialmente em Portugal, não era tarefa simples.

O primeiro trabalho da imprensa de tipos móveis portuguesa foi, provavelmente, um Pentateuco em hebraico produzido em Faro por Samuel Gacon, em 1487, ou seja, mais de quatro décadas após a Bíblia de 42 linhas de Johannes Gutenberg. No ano de nascimento de Resende, 1500, “conhecem-se 30 títulos impressos em Portugal” (Meirinhos, 2006, p. 20). No século XVI os números parecem bem mais animadores, mas são ainda tímidos se comparados a outros países europeus:

o número de títulos publicados ao longo do século XVI (pouco menos de 1.000, entre obras em vários volumes até leis com apenas 1 fólio) parece indicar que nenhum dos tipógrafos teria mais do que uma prensa, enquanto que em cidades centrais da revolução tipográfica, como Lião, Paris, Veneza ou mesmo Sevilha, laboravam dezenas de tipógrafos, alguns deles com mais de uma centena de empregados e quatro ou cinco prensas em constante laboração (Meirinhos, 2006, p. 20-21).

A qualidade das tipografias em Portugal não era um pormenor. Pedro Telles da Silveira recorda que os tipógrafos foram criticados pelo próprio André de Resende em 1534, na Universidade de Lisboa. Segundo o autor, para os “homens de letras que viviam em Portugal no começo do século XVI, a imprensa e a tipografia eram questões sensíveis para o avanço de suas iniciativas” (Silveira, 2016, p. 56). Além disso, a circulação de impressos se dava em grupos bastante estreitos, dado o baixo letramento dos portugueses do Quinhentos. (8) A escassez de escritores e leitores - que pode ajudar a explicar a baixa quantidade de impressos - foi diagnosticada por outro autor da época, Pêro de Magalhães de Gândavo, em sua História da Província de Santa Cruz, editada em uma pequena tipografia de Lisboa em 1576. Defendida pelo próprio como a primeira história das terras que o vulgo então já chamava Brasil, o texto lamenta os efeitos práticos do baixo engajamento lusitano no mundo das letras: “E se os antigos portugueses e ainda os modernos não fossem tão pouco afeiçoados à escritura como são, não se perderiam tantas antiguidades entre nós de que agora carecemos” (Gândavo, 2004, p. 27). Todas essas limitações, contudo, só poderiam ser enfrentadas pelas poucas pessoas que compunham o circuito de leitores e, principalmente, pelos pouquíssimos agentes que poderiam ter seus textos confiados à perícia dos tipógrafos.

Em meio a todas essas variáveis há um fato irredutível: a história da fundação de Lisboa pelo herói homérico, bem explorada no segundo livro de Vincentius levita et martyr, não apenas se apresentava pela primeira vez escrita por um porta-voz autorizado, mas também estava disponível sob a sanção gerada precisamente por ter sido impressa. Não sem razão, o argumento filológico para a fundação de Lisboa por Ulisses, defendido por Resende, passou a ser sustentado por outros nomes influentes. Damião de Góis registrou os debates sobre a edificação ulisseica em Urbis Olisiponis descriptio (1554). O autor concentrou suas preocupações na questão do nome de Lisboa na Antiguidade (Olisiponem, Olisipo, Oliosipone, Ulisseam), do qual deduz, por etimologia ou semelhança gráfico-fonética, a relação da cidade com o mítico herói grego. Para tal, confia na autoridade de quem o precedeu e asseverou esse fato, como o já citado Solino e o próprio André de Resende:

Quanto a mim, porém, agrada-me mais aderir ao testemunho de tão ilustre escritor, do que adoptar as opiniões dos que escarnecem disso sem qualquer argumento indiscutível. Sobretudo quanto é certo que Solino, pessoa de extraordinária cultura, também segue o parecer do referido Estrabão. E até o nosso André de Resende, autor seguro critério e apreço de todas as pessoas cultas, perfilha e confirma a mesma opinião, em muitos pontos dos seus escritos (Góis, 1988, p. 34).

Diversos autores passaram a recuperar a memória da fundação de Lisboa por Ulisses sob influência resendiana, inclusive Luís de Camões, pois foi a partir de André de Resende que ele incorporou o tema do herói homérico em sua obra mais famosa (Rodrigues, 1979). Maria Helena Ureña Prieto (2009, p. 175) considera, inclusive, que foi de Vicentius levita et martyr “que Camões hauriu a palavra Lusíadas com que batizou seu poema épico. Nela também poderia o poeta encontrar referências à fundação de Lisboa por Ulisses” (Prieto, 2009, p. 175). O mesmo se aplica ao trabalho de Damião de Góis que, do ponto de vista cronológico, também estaria a seu alcance. Por força da cultura de oralidade e visualidade, é possível que Camões tenha conhecido a lenda de Ulisses bem antes da leitura dos textos, mas como o que chega pelos ouvidos e pelos olhos é rebelde e vadio, diversas variações devem ter circulado, o que pode ter impulsionado a assunção da escrita de Resende como uma versão referencial da história.

A epopeia camoniana seguiu a tendência de evocar o passado clássico. Além de fazer inúmeras menções a personagens do mundo antigo, o poeta se mostra conhecedor da épica homérico-virgiliana e, também, entusiasta do mito de fundação de Lisboa por Ulisses. Faz referência à história em diversas passagens d’Os lusíadas (III, 57; III, 58; III, 74; IV, 84; VIII, 4; VIII, 5). Em uma delas, se refere a Lisboa como Ulisseia, palavra de que Gabriel Pereira de Castro se apropria para retomar a história e intitular seu próprio épico (1636). Camões também recorda o translado das relíquias de são Vicente, tema que ocupou as atenções do segundo livro da obra de Resende: “E depois que do mártire Vicente / O santíssimo corpo venerado / Do Sacro Promontório conhecido / À cidade Ulisseia foi trazido” (Camões, 2017, III, 74).

O louvor ao heroísmo

O herói da Odisseia não estava sendo lembrado no século XVI somente em Portugal, tampouco apenas por meio da escritura. No famoso Château de Fontainebleau foi construída a Galerie d’Ulysses (1537-1538). Sob os cuidados do arquiteto Jean Androuet de Cerceau, o passeio tinha o dobro do comprimento do Salão de Espelhos do Palácio de Versalhes. A decoração, concluída apenas em 1571, contava com pinturas de Francesco Primaticcio, pintor renascentista italiano que dedicou boa parte da vida aos reis franceses. Todas as imagens do local - abóbodas, paredes, frisos etc. - faziam referência a Ulisses.

A renovação dos usos políticos do passado greco-romano participa das conhecidas e exaustivamente analisadas mudanças políticas dos séculos XV e XVI europeus. A captura de Constantinopla (1453) pelos otomanos, os apelos estéticos do Renascimento, a voga humanista de corte erasmiano, a gradual disseminação da tecnologia de Gutemberg, as tensões desencadeadas pelas Reformas e outros fenômenos do período eram compartilhados por diversos países. Porém, nenhuma região da Europa viveu, como Portugal, os efeitos econômicos e as tensões políticas provocadas pelo influxo das navegações marítimas, que garantiram, além da construção de novas rotas comerciais e contatos com o Oriente, a conquista de territórios até então desconhecidos no Ocidente. O domínio do litoral atlântico da África consolidado por Bartolomeu Dias, em 1488, a chegada à Índia pelo mar por Vasco da Gama, em 1499, e as notícias enviadas pela esquadra cabralina sobre a fração do “Novo Mundo” da qual Portugal se apropriaria, em 1500, são acontecimentos que alavancaram o apelo literário do tema do heroísmo no mar e as aventuras diante do desconhecido. (9)

O contato com povos sem lei (por vezes, hostis), a ameaça de monstros marinhos, a conquista de novas terras e a defesa impositiva de seu modo de viver diante dos selvagens, fazia de Ulisses um herói muito oportuno para emular as virtudes que os portugueses defendiam para si. Esses fatos históricos, apesar de admitidos como marcos da História Moderna, não representam em absoluto uma ruptura imediata com a Idade Média. A tradição marítima e o aprendizado de navegação do genovês Cristóvão Colombo, por exemplo, partilham boa parte das condições que permitiram, como já observara Ferrnández-Armesto (1987, p. 127-128), “a viagem que os Vivaldi protagonizaram em 1291, saindo de Gênova e navegando pela costa atlântica do continente africano”. Nos documentos literários tampouco se observa, como na obra de Resende em pauta, um movimento de rotura abrupta: a hagiografia, que foi o paradigma literário medieval, não perdeu sua vitalidade no início da Alta Idade Moderna. Mais do que isso, a se considerar Vicentius levita et martyr, a própria tradição hagiográfica garantiu a possibilidade discursiva de negociar as vidas dos santos com o modelo de herói antigo particularmente redivivo por estímulo da talassocracia portuguesa do XVI.

Os usos da concepção heroica da Antiguidade Clássica encontram na hagiografia um espaço privilegiado de interlocução: além da tópica do heroísmo tradicional estar assentadíssima nos textos medievais (sobretudo nos relatos de martírios), partilhar temas clássicos em vidas de santos era um poderoso instrumento para negociar a presença de gregos e romanos com a ortodoxia católica. (10) Convém insistir que a confluência entre as musas pagãs e as inspirações cristãs exigia locutores autorizados a fazê-lo. A baixa quantidade de escritores e a proximidade destes com a nobreza portuguesa (caso não fossem, eles próprios, de origem nobre) também garantia a sanção política para essa licença poético-religiosa, mas dependia da narrativa e, sobretudo, do prestígio do locutor. Os usos de figuras literárias do mundo greco-romano na épica hagiográfica eram entendidos como recursos estéticos que exaltavam não apenas os valores da língua latina ou vernácula, mas também o texto, a vida dos santos e o próprio autor, celebrado por sua erudição. Com essas condições postas,

a literatura hagiográfica deste período intensifica a expressão do carácter heroico do santo ou da figura venerável biografada, utilizando muitas vezes um registo ‘épico’ no seu discurso. Compreende-se deste modo o elevado número de poemas épicos hagiográficos escritos sobretudo a partir da segunda metade do séc. XVI e ao longo do séc. XVII (Urbano, 2004, p. 273).

Como é comum em movimentos interdiscursivos, sobretudo por sua dimensão ideológica, deu-se um processo de adequação que resultou em “uma concepção de heroísmo indelevelmente marcada por uma dimensão ética de matriz cristã, mesmo na abordagem do heroísmo de figuras do mundo pagão” (Urbano, 2004, p. 272). A valorização do cristianismo era parte da retórica literária, mas a presença de mitos greco-romanos não significava uma afronta já de todo condenável, ainda que com resistências conhecidas.(11) Como recorda Isabel Almeida (2018, p. 11), dentre os comentários críticos de Manuel Pires de Almeida (1597-1655), responsável por longa polêmica acerca de Os lusíadas, destaca-se a crítica pela adoção de deidades pagãs em seus versos. Na contramão, o frei Bartolomeu Ferreira, censor do Santo Ofício para a edição de 1572, não deixou de observar em seu parecer:

pareceu-me necessário advertir os Leitores que o Autor pera encarecer a dificuldade de navegação & a entrada dos Portugueses na Índia, usa de ūa ficção dos Deuses dos Gentios […] como poeta não pretende mais que ornar o estilo poético não tivemos por inconveniente ver esta fábula dos Deuses na obra (Camões, 2017, p. 11).

O paradoxo, porém, era evidente, e uma das soluções foi reservar, para a tradição clássica, a dimensão de uma potência estética que não seria capaz de, por si só, contrariar os princípios cristãos. Essa escolha concilia as preocupações catequéticas e dogmáticas da Igreja de Roma com a oportuna presença greco-romana, que fornecia um modelo icônico para tornar inteligível e valorar o processo de expansão ultramarina. Os povos antigos, ainda que tomados por algum aspecto exemplar, são também referências com as quais se pode rivalizar, tanto por um sentido de continuidade histórica como por exaltação pátria. Afinal, Roma foi fundada por Enéas, um navegador, assim como Lisboa, segundo a crença na estadia de Ulisses; os portugueses do século XVI, por correspondência, fundam “Novos Reinos”, como aqueles dos quais Camões anuncia a glória no início de seu poema:

As armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram
(Camões, 2017, I, v. 1-8).

Os poetas latinos exerceram mais influência que os gregos na épica hagiográfica do século XVI. Virgílio foi mais evocado que Homero não só pela presença romana em Portugal, testemunhada pelos vestígios arqueológicos que excitavam a curiosidade de André de Resende, mas também pela maior familiaridade dos escritores lusitanos com a língua latina. (12 Nesses célebres versos de Camões, por exemplo, desde logo se reconheceu a relação intertextual com primeiro verso da Eneida (Arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris, “Canto as armas e o varão que, primeiro, das praias de Tróia”) (Virgílio, 2014), uma fórmula aparentemente bem acolhida pela erudição europeia. (13) No caso de André de Resende, a presença virgiliana também pode ser percebida na organização da obra. Como recorda Vasconcellos (2014, p. 84), os seis primeiros livros da Eneida parecem referenciados na Odisseia, pois narram as peregrinações de Enéas pelo mar, e os seis últimos se associariam à Ilíada, pois narram o conflito entre troianos e latinos. Essa bipartição, ainda que invertida a ordem dos épicos, pode ser vista também em Vicentius levita et martyr, como notou Odette Sauvage (1974, p. 57). Segundo ela, o livro primeiro se refere à guerra, ou seja, à luta de Vicente contra os adversários de Cristo, e o livro segundo à odisseia que envolve o translado de suas relíquias para Lisboa.

Apesar da maior influência latina, o ato fundacional de Ulisses pode ter sido um recurso assaz adequado para negociar questões domésticas com o mundo externo: ele fala, aos seus e aos outros, sobre a longevidade da história de Portugal ao mesmo tempo em que vincula o país ao movimento político e estético partilhado por outros países europeus, tanto pela escrita moderna do Renascimento como pelo distante parentesco com gregos e troianos. (14) As aventuras marítimas de Ulisses, as viagens de seu próprio tempo e os relatos de martírio dos santos deviam ser fonte de fascínio para o público, já que “os poemas épicos escritos nesse período encenaram ações heroicas particulares, historicamente articuladas com o intuito de instruir, comover e deleitar seus leitores” (Felipe, 2020, p. 24). Por fim, em respeito à circulação dos discursos, ainda que poucos soubessem ler, sabe-se que “o clero compartilhava esses relatos com os fiéis mediante as pregações e pode ser que, também, nas romarias” (Vallejo, 2003, p. 9).

O Santo Cristo e o herói pagão

O épico hagiográfico de Resende foi publicado em 1545, pelo editor de Lisboa, responsável pela icônica Gramática da língua portuguesa de João de Barros (1540). A dedicatória a seu amigo Sperato Martinho Ferreira, assinada em 26 de novembro daquele ano, informa que o texto foi escrito alguns anos antes, mas que só naquela ocasião, ou seja, quando de seu regresso a Portugal, discutiria a publicação com o tipógrafo (Resende, 2018, p. 2). O sujeito em questão era Luís Rodrigues, livreiro de dom João III, que recebeu alvará régio em 1533 para imprimir as Ordenações do Reino. Sabe-se que a relação com esse profissional se enquadrou na crítica geral que Resende fazia à tipografia portuguesa, não tanto pela qualidade do trabalho, mas pela difícil tarefa, que se lhe impunha, de fiscalizar para evitar que seu latim fosse mutilado por erros ou imperícias. (15) A escolha, porém, não foi acidental: a tipografia de Luís Rodrigues foi notória pela publicação de obras não apenas régias ou oficiais, mas como afirma Arthur Anselmo (1991, p. 371), também de livros “de acentuado pendor humanístico”.

Os diversos níveis de diálogo com os clássicos não foram apenas escolhas estéticas, ornamentos poéticos que serviriam para embelezar as navegações lusitanas: a emulação da poesia antiga se justificava também pela comparação entre os feitos dos povos antigos e as conquistas de Portugal. Não era apenas a grandiosidade da epopeia que deveria ser resgatada, mas alguns aspectos do universo espiritual e das preocupações políticas presentes em Virgílio e Homero. Gândavo, por exemplo, estava tão atento à necessidade de preservar as memórias das conquistas que ressaltou: “Daí os gregos e os romanos tomarem todas as outras nações por bárbaras […], pois eram tão pouco solícitos e cobiçosos de honra que por sua mesma culpa deixavam morrer aquelas coisas que lhes podiam dar nome e fazê-los imortais” (Gândavo, 2004, p. 27). O compromisso da épica homérica com a kléos, ou seja, com a glória que assegurava a imortalidade pela fama, tão discutida pelos helenistas, (16) estava nas preocupações do período.

Resende, porém, não deixou de anotar seu ceticismo a respeito do costume de valorar algo exclusivamente por força de sua anterioridade: “foi tempo en que se estimauan mais hos rudos & desconcertados versos de Ennio, que ha delicada & limada musa de Virgilio, & nam por mais, que por haquelle ja ser antiguo, & este entam moderno” (Resende, 2014, p. 5). Essa noção, publicada em 1576, também estava presente no texto de 1545. Tão logo anuncia o motivo de seu canto em Vicentius levita et martyr, o autor faz questão de estabelecer critérios que tornam os feitos dos antigos, ainda que memoráveis, carentes do substrato moral que assegurou a glória do santo a quem se dedica a louvar. No mundo greco-romano, segundo sua perspectiva, celebravam-se aqueles dotados de engenho, que pela força venceram, de modo que “pela eternidade, como eterna recompensa perduram seus feitos” (17) (Resende, 2018, I, v. 11). Porém, pelas diferenças de culto, por força da fé de que os povos da Antiguidade careciam, a glória de Vicente é comparativamente superior: “Mas subir aos céus pelos méritos, ganhar a cidade / celeste, e por mérito próprio possuir aras e culto, / só o fogo da virtude, honestos costumes, a piedade a Deus / o conseguem” (18) (Resende, 2018, I, v. 12-15). A diferença resendiana entre heroísmo pagão e heroísmo cristão está bem assente nessa síntese, que dá a tônica dos paralelismos que estabeleceu não apenas entre seu próprio tempo e o mundo antigo, mas entre Ulisses e Vicente.

Segundo Teixeira (2018, p. 32), o culto ao padroeiro de Lisboa encontrava-se em declínio junto às camadas populares no século XVI, tendo se tornado apanágio de eruditos e alçado à categoria de símbolo histórico. Para Isabel Dias (2003, p. 194), “o túmulo do mártir deixara de ser o palco de milagres e o destino de peregrinações que fora na Idade Média”. Explica-se a atenção que Resende dedica a Vicente não apenas por sua devoção pessoal ou pela ausência da voga religiosa que julgaria adequada ao renome do santo, mas pelo valor político que o dialogismo com Ulisses assegura. Há, tanto no herói como no santo, a marca da gênese, da fundação, do estabelecimento de antigos alicerces de uma cidade longeva, de certa forma destinada às conquistas que precisava difundir como forma de legitimar as rotas comerciais e os rincões do Oriente e do “Novo Mundo” que, então, haviam se tornado objeto de atenção e cobiça de outros países europeus.

Do ponto de vista formular, a presença da Antiguidade é negociada, como observado há pouco, desde o primeiro verso. Entende-se não apenas a óbvia ausência das musas no início do poema [“De Vicente, do santo vencedor, o combate celebrarei”], (19) mas também a constante rivalidade que alguns poetas, como o próprio Resende e Luís de Camões, mantinham com as deusas que, na Antiguidade, presidiam a arte que eles então praticavam: esclarecer esse distanciamento era um marcador discursivo que poderia defender os autores de eventuais acusações de culto a deusas pagãs. Camões, após pedir que cessassem do sábio grego (Ulisses) e do troiano (Enéas) as grandes navegações que fizeram, tomando as filhas de Mnemosýne como metonímia, sustenta: “Cessem tudo que a Musa antiga canta, que outro valor mais alto se alevanta” (Camões, 2017, I, v. 3). Resende inclui até mesmo Apolo(20) nesse enfrentamento: “nem as musas fáceis, nem o falso Apolo me ensinaram, mas a Boa Consciência e a Piedade” (21) (Resende, 2018, I, v. 24-25). Não menos curioso é o fato de que o próprio Vicente é evocado para garantir a permanência da noção épica de inspiração sem a menção às divindades antigas: “Se o ardor do encómio e o entusiasmo / impedem a memória dos teus feitos, tu, meu santo, / inspira quem canta” (22) (Resende, 2018, I, v. 31-33).

O livro primeiro narra o martírio de Vicente no contexto das políticas de perseguição aos cristãos do Império Romano; o fato teria se dado durante o governo de Diocleciano (284-305) que, “por funesto desígnio, encheu a terra e as ondas do mar / com os cadáveres dos santos” (23) (Resende, 2018, I, v. 50-51). Os imperadores romanos estariam deveras envolvidos com a “defesa da religião dos antigos e das aras dos deuses” (24) (Resende, 2018, I, v. 53), razão pela qual Daciano, suposto governador da Hispânia, foi enviado para cumprir os decretos junto aos iberos. Logo foram presos o ancião Valério, bispo de Cesaraugusta (atual cidade de Saragoça), e Vicente, jovem em que a primeira barba “tingia-lhe a face de uma dignidade varonil” (25) (Resende, 2018, I, v. 83). Permaneceram dias sem comida ou água, dormindo sobre a terra nua. Após esse tormento, foram interpelados pela autoridade romana, que julgara já ter sido capaz de persuadi-los acerca da necessidade de abandonar o culto cristão. Após se prontificar a responder a Daciano, o mártir tem o prelado da palavra assegurado pelo bispo: “Vamos, fala: a ti, à tua voz e ao teu discurso, / pensava há muito confiar a nossa defesa” (26) (Resende, 2018, I, v. 118-119).

Ainda que, num esforço comparativo, sua condição de jovem e a morte precoce o aproximem de um modelo heroico homérico representado por Aquiles, a oratória e capacidade persuasiva associam Vicente a um traço marcante da personalidade de Ulisses, notável por encantar a todos com suas palavras. Um marcador intertextual referenda essa hipótese. Antes de tomar a palavra, resgatando uma versificação formular da épica clássica, Resende escreve que “Uma força divina / percorre-lhe os recantos do coração e aumenta-lhe a beleza / e a dignidade, fazendo-o falar de peito confiante” (27) (Resende, 2018, I, v. 125-127). Na épica homérica, essa força divina é personificada por Atena, ela própria uma deidade caracterizada pela forma com que intervinha, por meio da transfiguração (Homero, 2010, III, v. 49). A deusa manipulava a aparência de Ulisses “para que o mesmo estivesse adequado para a superação dos desafios que se impunham” (Moraes, 2013, p. 86). Quando o herói grego, náufrago pela fúria de Poseidon, chegou à ilha de Alcínoo, se viu diante da necessidade de falar ao rei e sua esposa em busca de hospitalidade. Como sua aparência sofrida era um entrave para desvelar sua respeitabilidade aristocrática, Atena, após fazê-lo se mostrar maior e mais troncudo, despejou “sobre sua cabeça e ombro o charme primoroso” (Homero, 2010, VI, v. 235). O mesmo expediente - inclusive com a mesma estrutura vocabular - é adotado por Atena diante da necessidade de Ulisses de convencer Penélope, sua esposa, de seu retorno (Homero, 2010, XXIII, v. 156-163).

O sofrimento foi condição para o martírio de Vicente, que padeceu de muitos males (Multum ille malorum passus), assim como o foi para a heroicização de Ulisses, pois seu espírito passou por muitos sofrimentos no mar(28) (Homero, 2010, I, v. 4). Não menos curioso é o fato de que, por meio das palavras adequadas, das provocações direcionadas, por meio de um “ardil” que nasce da inteligência estratégica, (29) ambos foram capazes de enfrentar as dores sem assumir uma postura passiva/pacífica: para Vicente, o martírio era o caminho para a ascese, razão pela qual instigou seus algozes e se entregou livremente à morte após longas torturas; Ulisses, por sua vez, transformou o relato do sofrimento durante seu retorno à Ítaca no louvor ao próprio heroísmo, dignificando-se por ter suportado dores e humilhações sem perder o equilíbrio necessário para agir no tempo oportuno, tanto no mar como na chacina dos pretendentes.

O agón entre o santo e seu carrasco é também expressão desse paradoxo entre a musa pagã e o ideário cristão: por meio da refinada oratória de Vicente, o autor anuncia os princípios fundamentais que produzem a oposição entre seu credo e o antigo, entre o panteão latino e o deus único dos cristãos: “Podes chamar-lhes deuses? A seres infames, / indignos e cobertos de adultérios? É assim o teu nobre Júpiter, / é assim a tua maternal Vénus” (30) (Resende, 2018, I, v. 157-159). Há, nesse enfrentamento, a primeira expressão da astúcia de Vicente, que buscava transtornar o juízo da autoridade romana para que maiores fossem suas dores e, portanto, maiores os méritos de sua ascensão. Ulisses também viveu um episódio notável, não apenas por sua resiliência diante da dor, mas por certo desejo de vivê-la para que seu ódio pudesse ser inflamado. (31) Transfigurado sob o aspecto de mendigo por Atena (Homero, 2010, XIV, v. 430-435), Ulisses foi humilhado em seu próprio palácio, onde estava disfarçado para conseguir observar tudo em silêncio e identificar quem permanecera leal ou não a ele. Os pretendentes de Penélope o destrataram de inúmeras maneiras: Antínoo, colérico, chegou a arremessar um banco que atingiu a omoplata do herói, que se manteve firme como uma rocha, na espera da hora certa de vingar as ofensas (Homero, 2010, XVII, v. 462-465).

No caso de Vicente, para dar termo às torturas excruciantes, um anjo do Senhor, belíssimo, “mostrando no rosto a beleza de Febo” (32) (Resende, 2018, I, v. 308), vem ao encontro de Vicente e o liberta do suplício terreno, destinando-o ao céu. O corpo morto do santo ainda precisava ser destruído. Mesmo após o esquartejamento permanecia preservado, inclusive das bestas: “Mas nenhuma das aves, nenhuma das feras lhe tocou: / dispostas em redor - visão admirável - afastam-se / com os bicos para baixo, adorando a santidade daquele corpo” (33) (Resende, 2018, I, v. 416-418). Diante disso, Daciano decidiu se livrar do cadáver pelo mar, não sem antes invocar Netuno/Poseidon, o mesmo deus responsável pela década de errância de Ulisses após a Guerra de Tróia: “Eu te invoco, senhor do tridente, que ele vá e volte e, atirado / por entre rochedos, os múrices, ásperos e cortantes, / lhe rebentem o ventre. Que o corpo desfigurado e as / suas entranhas sirvam de pasto às focas” (34) (Resende, 2018, I, v. 434-437). Ao fim, tal como Ulisses desemboca (vivo) na praia dos feácios, o corpo de são Vicente chega náufrago a uma praia, onde fiéis o sepultaram em um monte antes do translado para Valência (Resende, 2018, I, v. 455-457).

O relato da itinerância do corpo de são Vicente ocupa, como adiantado, o segundo livro do poema. É a partir da analogia com o retorno do herói, com o nóstos que Ulisses inaugurou como topos literário, que André de Resende estrutura a sequência da narrativa. Também é nesses passos que apresenta o relato ulisseico de fundação de Lisboa para realçar o paralelismo por meio de uma lógica territorial: a cidade é tomada como ponto de contato de biografias ilustres. (35) Segundo o texto resendiano, o que precipitou o translado foi a intransigência de Abderramão I (r. 756-788) durante a presença muçulmana na Península Ibérica. A tirania dos primeiros tempos foi severa, mas não impediu os cristãos de preservarem sua fé e seus templos; Abderramão, porém, agiu com extrema violência, visto que “nenhum outro, entre os mouros, mostrou maior raiva e ódio contra o nome de Jesus” (36) (Resende, 2018, II, v. 16-17). Como resposta a essa disposição irascível, os leais fiéis recuperaram o corpo de Vicente e o transportam para um lugar discreto, pouco conhecido, onde estaria protegido do risco de desaparição. Tem início a odisseia das relíquias do santo:

Sem demora, guiados pela sorte e pelo seu comandante,
alguns homens tomam consigo o corpo venerável
do santo herói e, ocultos pela escuridão da noite,
sobem a um barco. ( 37 )
(Resende, 2018, II, v. 31-34)

A pressão dos invasores justifica os deslocamentos dos restos mortais de Vicente, que primeiro foi protegido nas Astúrias, ao norte da Península Ibérica e, em seguida, rumou em direção ao Promontório Sagrado - termo que os gregos deram ao ponto mais a sudoeste de Portugal. Foi essa localidade, atualmente chamada Cabo de São Vicente, o segundo lugar em que as relíquias do santo, por sua influência, foram depositadas em busca de segurança. O último translado, enfim, teria ocorrido por iniciativa de uma terceira personagem que completa a tríade heroica: Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal, aquele que reconquistou Lisboa em 1147 e ordenou, na ocasião, que os restos de são Vicente fossem localizados. A viagem de busca foi conturbada por uma tempestade, mas logo os nautai foram recebidos por corvos, identificados como símbolo da manifestação divina. Eles conduziram os devotos em direção ao local preciso. Tão logo começaram a cavar o solo, se depararam com o esquife. Resende inicia, então, uma digressão para justificar a acolhida lisboeta das relíquias do santo, e recorda a expulsão dos tírios liderada pelo próprio Afonso para “de novo restabelecer em Olissipo / o culto de Cristo” (38) (Resende, 2018, II, v. 152-153). Nesse ponto específico, ao recordar o nome memorável da cidade, inicia o relato de fundação por Ulisses.

Lisboa teria sido a região que acolheu o pai de Telêmaco em um dos momentos tortuosos de seu retorno. Esse acontecimento não encontra respaldo nos épicos homéricos, mas é concorde com a ambiência narrativa que o aedo de Quios estabeleceu. Dispersos os heróis após a queda das muralhas de Tróia, (39) por força dos ventos (e não de Poseidon), Ulisses ancorou em uma baía e ficou encantado pelo lugar “ao ver terras aráveis, a face serena de um céu sem nuvens, / o profundo estuário do Tejo e a rebentação das águas, / no ponto em que, em vão, luta a torrente com as ondas de Tétis” (40) (Resende, 2018, II, v. 170-172). Após reconhecer os méritos do lugar, Ulisses retorna a seus companheiros e ordena que os barcos sejam ancorados em um porto que oferecia segurança, sobretudo em relação ao clima. A eloquência de Ulisses, celebrizada pela tradição, e compartilhada por Vicente, é mencionada por ocasião do contato com os povos nativos.

Assim, nota-se que a língua é um símbolo bastante sensível em situações que envolvem encontros de grupos etnicamente diferentes. Embora Homero não sugira, na Ilíada e na Odisseia, qualquer dificuldade de comunicação entre personagens de origens distintas (por convenção literária, talvez), sabe-se da importância da língua grega como uma marca da helenicidade; o princípio, porém, está longe de ser de autoria dos povos antigos. Trata-se de uma variável presente ao longo da história pois diversos grupos, da mesma forma, viam na capacidade de se comunicar sem empecilhos o marco de uma origem ou descendência em comum. Assim, não se trata de um pormenor a maneira com que André de Resende relata o contato de Ulisses com os povos nativos da região:

como era capaz de usar habilmente a linguagem, a si submeteu
os indígenas. Na verdade, sendo eles descendentes de Luso,
filho de Baco, usavam quase a mesma língua que ele.
O sítio para uma cidade, no caso de querer fundar uma,
e auxílio lhe ofereceram, amáveis ( 41 )
(Resende, 2018, II, v. 178-182).

Esse passo enseja pelo menos três pontos que merecem destaque. Em primeiro lugar, a escolha de atenuar as diferenças linguísticas para sustentar uma genealogia em comum. Há um curioso debate sobre como o epônimo pode ter se desdobrado do etnônimo (Franco, 2019), mas a despeito de Luso ter ou não representado o fundador da ancestralidade lusitana, a escolha pela concórdia pautada em afinidades linguísticas transforma o aspecto colonizador de Ulisses em uma espécie de reencontro de parentes distantes. Em segundo lugar, e apesar de tentar dissimular o aspecto de conquista, Resende faz dos próprios lusitanos a medida (autorreferente) de valor para os povos conquistados: a imediata disposição dos indígenas em serem submetidos, de oferecerem um sítio e se disporem a ajudar na fundação é a expressão do encontro dócil que os navegadores do XVI preferiam difundir. Em terceiro lugar, resgata a virtude da oratória de Ulisses tal como fez com Vicente diante de Daciano, produzindo mais um ponto de contato que advoga pelo vínculo entre o santo e o herói.

A receptividade dos nativos também contraria a tônica dos encontros de Ulisses na Odisseia, marcados pelo enfrentamento a monstros marinhos como as sereias, Cila, Caribde e por povos hostis, como os lotófagos, os cíconos, o ciclope etc. O único lugar em que o herói grego foi bem recebido foi na Feácia, a ilha da rainha Arete e do rei Alcínoo, quando da intervenção de Atena para que Ulisses mudasse sua aparência. Na Odisseia, contudo, não há fundação de cidade, como efetivamente teria ocorrido em Lisboa onde, além das muralhas, o herói mandou erigir um templo para Minerva e anunciou que o lugar se chamaria Ulisseia, empenhando seu nome e vaticinando a glória daquela urbe. E, segundo Resende, “nela poderia ter vivido, em segurança, Ulisses, / entre os lusíadas, não o chamasse o amor da amada / esposa, da pátria e do filho, e o cuidado do pai”(42) (Resende, 2018, II, v. 194-196). A hospitalidade feace também convidava Ulisses a permanecer, ainda que a tônica do retorno motivado pelo amor à família encontrasse na despedida de Calipso a sua forma mais acabada. Contudo, também na Feácia, ansiando pelo retorno, Ulisses apela ao rei que seja levado para que pudesse encontrar “a esposa irrepreensível e os familiares incólumes” (Homero, 2010, XIII, v. 43). Como Resende não indica nenhum outro lugar pelo qual Ulisses teria passado antes de chegar a Ítaca, deduz-se que Lisboa (ou Ulisseia) tenha sido sua última paragem, assim como o reino de Arete e Alcínoo.

Considerações finais

André de Resende se refere a Lisboa como “a cidade de Ulisses” (Olyssis urbs) até o fim do poema. A odisseia de Vicente termina com o depósito definitivo de suas relíquias no sepulcro de Lisboa, cidade na qual não nasceu, mas onde fundou seu culto e foi acolhido (Resende, 2018, II, v. 380-382). Não sem razão, a primeira vila fundada no Brasil (1532) levou seu nome, assim como a capitania (1534) cujo primeiro donatário foi Martim Afonso de Sousa: São Vicente, como bem explorou a epopeia hagiográfica resendiana, traz consigo a marca da fundação, tema de inegável valor político se tratando da necessidade de reconhecimento, pátrio e externo, das possessões ultramarinas que Portugal reivindicava para si no Ocidente e no Oriente.

O apelo narrativo da fundação é referendado pela presença de outros dois heróis, Afonso Henriques, primeiro rei português, e Ulisses, a quem dediquei atenção. Essa tríade heroica, contudo, legitima o estabelecimento de três aspectos da identidade de Lisboa (e de Portugal, por extensão): 1) a fundação “histórica”, a partir de Ulisses; 2) a instauração da monarquia, com Afonso Henriques; 3) a assunção do padroeiro da cidade, com são Vicente. André de Resende produz essa articulação entre história, política e religião por intermédio de uma narrativa fortemente cristã que não abre mão da tessitura clássica: a tensão discursiva entre certo tom laudatório à Antiguidade e a necessidade de se afastar da suspeita de adulação a deuses pagãos fica presente não apenas nas estratégias debatidas, mas também em posições nitidamente paradoxais: Apolo, ao mesmo tempo que é adjetivado de falsus (I, v. 25), tem sua beleza recordada na expressão do anjo belíssimo (I, v. 38) que liberta o santo da tortura.

Do ponto de vista narrativo, a adaptabilidade de Ulisses, bem sintetizada no conhecido livro de Stanford (1968), foi importante instrumento para que Resende negociasse a presença da musa pagã em um texto cristão. As condições sociais de produção do discurso garantiram ao autor a posição de um porta-voz autorizado desse movimento, pois sua robusta formação intelectual não foi objeto de questionamento graças à sua presença junto às camadas aristocráticas e, pelo histórico pessoal de devoção à fé católica. A estratégia narrativa, como observado, foi amparada por duas escolhas interdependentes: a apropriação de elementos da estética literária celebrizada por Homero e Virgílio (símiles, metrificação, vocabulário etc.) e pela convocatória de personagens do mundo antigo - sobretudo Ulisses - para dialogar com a biografia do santo padroeiro de Lisboa.

Os usos do passado clássico ofereciam um risco que foi negociado sob os acordes do ufanismo lusitano que Resende buscou celebrar: a opção por escrever em latim, e não em língua vernácula, não é apenas mais um elemento que adota de Virgílio, mas a condição para que seu texto pudesse atingir públicos menos restritos do que os pouquíssimos leitores europeus que conheciam português. Observa-se que a maioria dos escritos sobre o Novo Mundo, inclusive sobre as terras brasileiras, eram postos à luz por tipografias muito distantes da Península Ibérica. André de Resende buscou inserir Portugal na voga dos impressos europeus. O mundo antigo era, então, um ponto de convergência, uma ponte para o diálogo e partilha de um passado comum, razão pela qual os deuses e heróis dessa época não foram tomados como inimigos doutrinários, mas como parentes distantes dotados de um pensamento primevo, superado graças ao advento do cristianismo.

Referências

  • ALMEIDA, Isabel Adelaide. Guerra e paz: leituras seiscentistas de Camões. Colóquio Letras, n. 197, p. 9-23, 2018.
  • ANSELMO, Artur. Origens da imprensa em Portugal Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1991.
  • BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas São Paulo: Edusp, 2008.
  • BOUZA, Fernando. Comunicação, conhecimento e memória na Espanha dos séculos XVI e XVII Lisboa: Centro de História da Cultura, 2002.
  • BURKE, Peter. A survey of the popularity of ancient historians (1450-1700). History and Theory, v. 5, n. 2, p. 135-152, 1966.
  • CAMÕES, Luís de. Os lusíadas São Paulo: Landmark, 2017.
  • CERDEIRA, Teresa Cristina. De los espantos del mar: de Homero y Virgilio a Camões, Cervantes y otyras compañías. In: ABREU, María Fernanda (ed.). Cervantes y los mares: en los 400 años del Persiles Berlin: Peter Lang, 2019. p. 301-312.
  • CURTO, Diogo Ramada. Historiografia e memória no século XVI. In: CURTO, Diogo Ramada. Cultura escrita: séculos XV a XVIII Lisboa: ICS, 2007. p. 91-118.
  • DETIENNE, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia Arcaica Rio de Janeiro: Zahar, 1989.
  • DETIENNE, Marcel; VERNANT, Jean-Pierre. Métis: as astúcias da inteligência São Paulo: Odysseus, 2008.
  • DIAS, Isabel Rosa. Culto e memória textual de S. Vicente em Portugal (da Idade Média ao século XVI) Tese (Doutorado em História), Universidade do Algarve. Faro, 2003.
  • FELIPE, Cleber Vinicius do Amaral. “(Nec) plus ultra”: as epopeias antes e após as grandes navegações. Revista Brasileira de História, v. 20, n. 83, p. 15-32, 2020.
  • FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Before Columbus: exploration and colonisation from the Mediterranean to the Atlantic (1229-1492) Londres: MacMillan Education, 1987.
  • FINKELBERG, Margalit. More on “Kλeoσ Aφθiton”. The Classical Quarterly, v. 57, n. 2, p. 341-350, 2007.
  • FRANCO, José Eduardo. Dicionário dos antis: a cultura portuguesa em negativo Lisboa: Imprensa Nacional, 2019.
  • GÂNDAVO, Pero de Magalhães de. Texto modernizado e notas de Sheila Moura Hue e Ronaldo Menegaz. A primeira história do Brasil: história da província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil Rio de Janeiro: Zahar , 2004.
  • GÓIS, Damião de. Descrição da cidade de Lisboa Tradução de José da Felicidade Alves. Lisboa: Livros Horizonte, 1988.
  • HARTOG, François. Os antigos, o passado e o presente Brasília: Editora UnB, 2003.
  • HOMERO. Odisseia Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2010.
  • JENSEN, Freyja Cox. The popularity of ancient historians (1450-1600). The Historical Journal, v. 61, n. 3, p. 561-595, 2018.
  • JONG, Irene de. The Homeric narrator and his own kleos. Mnemosyne, v. 59, fasc. 2, p. 188-207, 2006.
  • LEDO, Jorge. Erasmus’ translations of Plutarch’s Moralia and the Ascensian editio princeps of ca. 1513. Humanistica Lovaniensia, v. 68, n. 2, p. 257-296, 2019.
  • LOPES, Lorena. Um Ulisses português: o herói marítimo como homem ideal. In: LESSA, Fábio de Souza. Gênero e sexualidade em perspectiva comparada Rio de Janeiro: Mauad X, 2024. p. 173-189.
  • MEIRINHOS, José Francisco. Editores, livros e leitores em Portugal no século XVI: a colecção de impressos Portugueses da BPMP Porto: Pelouro da Cultura; Direcção Municipal de Cultura, 2006.
  • MONIZ, Antônio Manuel de Andrade. Os mitos de Hércules e de Ulisses na literatura portuguesa. Estudios Neogriegos: Revista Científica de la Sociedad Hispánica de Estudios Neogriegos, Anexo 1. Boletín de la Sociedad Hispánica de Estudios Neogriegos, p. 9-26, 2003.
  • MORAES, Alexandre Santos de. Curso de vida e construção social das idades no mundo de Homero (séc. X ao IX a.C.): uma análise sobre a formação dos habitus etários na Ilíada e Odisseia Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2013.
  • NAGY, Gregory. The best of Achaeans: concepts of the hero in archaic Greek poetry Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1981.
  • OSÓRIO, Jorge Alves. Na correspondência de Erasmo: o humanista, as letras e a cidade. In: SOARES, Nair Castro; MIRANDA, Margarida; URBANO, Carlota Miranda. (coord.). A retórica e a construção da cidade na Idade Média e no Renascimento Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010. p. 153-181.
  • PEREIRA, Maria Helena Rocha. Presenças da antiguidade clássica em “Os lusíadas”. Revista de Letras, v. 25, p. 1-14, 1985.
  • PIERCE, Frank. Ancient history in “Os lusíadas”. Hispania, v. 57, n. 2, p. 220-230, 1974.
  • PINHO, Sebastião Tavares. André de Resende e a relatinização ortográfica da língua portuguesa. In: SOARES, Nair Castro; MIRANDA, Margarida; URBANO, Carlota Miranda(coord.). A retórica e a construção da cidade na Idade Média e no Renascimento Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra , 2010. p. 183-215.
  • PIVA, Luiz. A infraestrutura de “Os lusíadas”. Revista de Letras, v. 11, p. 113-126, 1968.
  • PRIETO, Maria Helena Ureña. Personagens homéricas n’Os lusíadas. Humanitas, n. 61, p. 165-177, 2009.
  • PUGA, Rogério Miguel. A odisseia de um mito: diálogos intertextuais em torno da fundação de Lisboa por Ulisses nas literaturas anglófonas. Ágora: Estudos Clássicos em Debate, n. 13, p. 145-175, 2011.
  • RAMALHO, Américo da Costa. Os humanistas e D. João III. In: CARNEIRO, Roberto; MATOS, Artur Teodoro(ed.). D. João III e o Império: actas do Congresso Internacional comemorativo de seu nascimento Lisboa: CHAM/CEPCEP, 2005. p. 891-899.
  • RESENDE, André de. Vincentius levita et martyr Lisboa: Ludovicum Rhotorigium, 1545. Disponível em:Disponível em:https://purl.pt/15168/5/P1.html Acesso em:15 maio 2024.
    » https://purl.pt/15168/5/P1.html
  • RESENDE, André de. História da antiguidade da cidade de Évora Minho: Vercial, 2014.
  • RESENDE, André de. Vicente levita e mártir. Tradução de Gil Clemente Teixeira. In: TEIXEIRA, Gil Clemente. Entre textos: da epopeia “Vincentius leuita et martyr” de André de Resende a “Os lusíadas” de Camões Dissertação (Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes), Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, 2018.
  • RODRIGUES, José Maria. Camões e André de Resende. In: RODRIGUES, José Maria. Fontes dos Lusíadas Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1979. p. 9-32.
  • SAUVAGE, Odette. Resende plus humaniste que chrétien? A propos de son poème sur saint Vincent fondateur de Lisbonne. Arquivo do Centro Cultural Português, n. 7. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1974.
  • SILVEIRA, Pedro Telles. “Na mais ilustre de todas as cidades, tão miserável tipografia”: antiquariato, imprensa e epigrafia a partir de André de Resende (c. 1500-1573). História da Historiografia, n. 21, p. 55-76, 2016.
  • SOARES, Nair de Nazaré Castro. Cataldo e Resende: da pedagogia humanista de Quatrocentos à influência de Erasmo. In: SOARES, Nair de Nazaré Castro. Mostras de sentido no fluir do tempo: estudos de Humanismo e Renascimento Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra , 2018. p. 203-241.
  • SOLINUS, C. J. The excellent and pleasant worke of Iulius Solinus Polyhistor London: Thomas Hacket, 1587.
  • SOLIN, Caius Julius. Polyhistor Paris: C. L. F. Panckoucke, 1847.
  • STANFORD, William Bedell. The Ulysses theme: a study in the adaptability of a traditional hero Michigan: The University of Michigan Press, 1968.
  • TEIXEIRA, Gil Clemente. Entre textos: da epopeia “Vincentius leuita et martyr” de André de Resende a “Os lusíadas” de Camões Dissertação (Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes), Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, 2018.
  • URBANO, Carlota Miranda. Heroísmo, santidade e martírio no tempo das Reformas. Península: Revista de Estudos Ibéricos, n. 1, p. 269-276, 2004.
  • URBANO, Carlota Miranda. A hagiografia depois de Trento. In: FRANCO, José Eduardo et al. (org.). Concílio de Trento: innovar en la tradición: historia, teología y proyección Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá, 2016. p. 167-173.
  • VALLEJO, Fernando Baños. Las vidas de santos en la literatura medieval española Madrid: Ediciones del Laberinto, 2003.
  • VASCONCELLOS, Paulo Sérgio. Épica I: Ênio e Virgílio Campinas: Editora Unicamp, 2014.
  • VILLAMARÍN, Helena de Carlos. Ulises, fundador de Lisboa: Algunhas anotacións. Troianalexandrina, n. 2, p. 31-40, 2002.
  • VIRGÍLIO. Eneida Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34, 2014.
  • 1
    Adoto a tradução do texto resendiano de Gil Clemente Teixeira (2018), a partir da qual cotejei a versão digitalizada do documento publicado em 1545, em Lisboa. Os arquivos estão disponíveis no site da Biblioteca Nacional Digital. Disponível em: https://purl.pt/15168/5/P1.html. Acesso em: 15 maio 2024.
  • 2
    Há muito essa relação ambígua, qual seja, que supostamente oporia o pagão e o cristão, tem sido discutida, razão pela qual me importa explorar como ela significa, e não o que ela significa. Destaco que esse debate é prolífico, sobretudo, pela obra camoniana, em especial por sua relação com os clássicos (Pereira, 1985; Pierce, 1974; Piva, 1968) e pelas comparações de Camões com o próprio André de Resende.
  • 3
    Conforme Bouza (2002, p. 107), “poucos problemas interessaram tanto a alta Idade Moderna como o da memória, por aquilo que ela tinha de expressão substancial da condição humana”.
  • 4
    Ainda que a historiografia tenha observado, com bastante correção, os problemas associados ao “escrito como definidor do moderno” (Bouza, 2002, p. 110), o poema resendiano está vinculado a uma prática de comunicação humanista que investe valor na escrita (sobretudo pelo advento dos impressos), ainda que para posterior oralização, o que justifica a atenção mais detida ao fenômeno da escritura. Assim, “o saber dos antigos vai ser renovado através do conhecimento empírico, que se vai impor como método científico, e dar origem a uma nova literatura, que a imprensa, conhecida entre nós desde finais do século XV, se encarrega de difundir” (Soares, 2018, p. 234).
  • 5
    A respeito da epístola de Arnulfo, Villamarín (2002, p. 36) considera que o autor buscou situar a fundação de Lisboa em um esquema histórico que tem como marco a menção à destruição de Tróia. Observe-se a emulação do mito fundacional da própria Roma Antiga na figura de Enéas, emigrante forçosamente conduzido ao Lácio após o saque dos aqueus. Sobre essa discussão, também consultar Moniz (2003) e Puga (2011).
  • 6
    Erasmo de Roterdã se tornou uma importante influência intelectual para André de Resende a partir de 1529, quando de sua estadia na cidade flamenga de Lovaina. Segundo Pedro Telles da Silveira (2016, p. 61), “na cidade belga, ele se corresponde com Erasmo, a quem envia um poema encomiástico, o qual foi encaminhado para publicação - sem que o soubesse - por este, tendo saído do prelo, também pela oficina de Frobenius, em 1530”. Destaque-se “a valorização do latim e dos textos nele escritos e conservados, até às tarefas de os fazer publicar através da imprensa e às consequências científicas, filológicas, doutrinárias, filosóficas, morais, políticas, religiosas desse estudo” (Osório, 2010, p. 156-157). André de Resende se tornou uma das referências no movimento de relatinização da língua portuguesa, inclusive em sua obra vernacular (Pinho, 2010, p. 185).
  • 7
    Pela preocupação com a história, são exemplos de destaque a Crónica do príncipe D. João (1567), de Damião de Góis (1567), a Crónica de D. Afonso Henriques, de Duarte Galvão (1503) e As décadas da Ásia, do historiador João de Barros, publicadas em vida entre 1552 e 1563. Sobre as perspectivas historiográficas do século XVI e sua relação a cultura escrita, consultar Curto (2007).
  • 8
    Convém enfatizar que, apesar do “império tirânico do escrito”, peculiar a uma tradição de escrita da história que desdenhava os conhecimentos e formas de comunicação orais e visuais, “nos séculos XVI e XVII existia uma clara consciência de que o oral, o icónico-visual e o escrito, tanto na sua versão tipográfica como manuscrita, assim como nas suas formas de leitura silenciosa ou em voz alta, cumpriam a mesma função expressiva, comunicativa e rememorativa, ainda que, claro está, não nas mesmas circunstâncias” (Bouza, 2002, p. 115). Nesse sentido, as discussões sobre um “campo literário” especificamente em Portugal - formado por tipógrafos, editores, revisores, autores, críticos e leitores - envolvem a atividade de grupos minoritários, mas detentores de riquezas e fiadores de uma importante economia de prestígio.
  • 9
    Consoante ao imaginário colonizador, “a presença obsessiva da metáfora do mar na poesia portuguesa é hoje quase uma paliçada, uma dessas verdades que, de tão óbvias, parecem inutilmente repetidas” (Cerdeira, 2019, p. 306).
  • 10
    Segundo Urbano, observa-se também que “a literatura hagiográfica participou plenamente do movimento de renovação literária do humanismo renascentista e deu, na segunda metade do século XVI, os primeiros passos para se constituir como ciência ao longo do século XVII” (Urbano, 2016, p. 171).
  • 11
    Conforme observa Lorena Lopes (2024, p. 176), “se Camões em alguns momentos cita a Antiguidade para equiparar a ela a grandeza de sua pátria, em outros ele disputa com a Antiguidade a maior grandeza”.
  • 12
    De acordo com Maria Helena da Rocha Pereira, “o conhecimento da Odisseia por parte de Camões não deve oferecer dúvidas. Apenas fica em aberto se ele era directo ou indirecto - tal como fica quanto à obra de Platão” (Pereira, 1985, p. 7).
  • 13
    Note-se que o poeta italiano Torquato Tasso, nos versos prologais de seu épico La Gerusalemme Liberata (1580), faz uso de expediente intertextual semelhante: “Canto l’arme pietose e ’l capitano”.
  • 14
    Essa compreensão se aproxima razoavelmente do proposto, para o caso camoniano, por Luiz Piva (1968, p. 113): “Quando Luís de Camões se dispôs a escrever o poema, duas forças atuavam no espirito dos poetas no sentido da criação de uma epopeia nacional: uma, de origem estrangeira, prendia-se diretamente ao espirito do Renascimento; a outra, de caráter mais local, estava presa à ufania patriótica e aos sentimentos de heroísmo, que embalavam a nação portuguesa”.
  • 15
    Segundo Artur Anselmo (1991, p. 372), “André de Resende instalara-se em Lisboa e ia todos os dias à oficina de Luís Rodrigues, onde decorriam os trabalhos de composição e impressão tipográfica”.
  • 16
    Acerca da questão da glória nos poemas homéricos, dentre outros, consultar os trabalhos de Jong (2006), Detienne (1989), Finkelberg (2007), Lopes (2024) e Nagy (1981).
  • 17
    No original: “aeternum, aeternis durant sua praemia factis”.
  • 18
    No original: “Ire sed in caelum meritis, atque arce potiri / aetheria, meritoque aras et numen habere, / ignea sola facit uirtus, moresque pudici, /inque deum pietas”.
  • 19
    No original: “Vincenti referens sacri uictoris agonem”.
  • 20
    Apolo, como foi notabilizado pela Ilíada (I, v. 601-604), era fiel parceiro das musas, com as quais celebrou um banquete no Olimpo enquanto os aqueus se dividiam por força da rivalidade entre Aquiles e Agamêmnon.
  • 21
    No original: “quae me / nec faciles docuere Deae, nec falsus Apollo, / sed bona Mens, Pietasque, canam”.
  • 22
    No original: “Quae quoniam laudis calor incidit, atque / diuinus memorare furor, tu Diue canenti / adspira, et coeptum gliscente cupidine”.
  • 23
    No original: “Numine fatali, terram compleuit et undas / funeribus sacris”.
  • 24
    No original: “ueterum pro cultu, arisque Deorum”.
  • 25
    No original: “flosque tener mentum tinguebat honore uirili”.
  • 26
    No original: “Fare age, namque tibi eloquio linguaque diserto / dicere pro nobis pridem dederamus”.
  • 27
    No original: “Formamque decusque / illi dia sinus uirtus inlapsa per imos / auxerat, atque loqui fidenti pectore fecit”.
  • 28
    No original: “ἐν πόντῳ πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν”
  • 29
    Para um debate sobre o termo grego métis, que bem caracteriza essa inteligência ardilosa de Ulisses, e discussão correlata, consultar o conhecido trabalho de Marcel Detienne e Jean-Pierre Vernant (2008).
  • 30
    No original: “Vocesne haec numina? Turpia, foeda, / plenaque adulteriis? Talis tibi Iupiter altus, / talis et alma Venus”.
  • 31
    Um ponto importante de distinção entre ele e Vicente, a quem Resende não atribui ódio. Para o herói, contudo, parecia um fato incontornável, haja vista que seu nome em grego, Odisseu [Ỏδυσσεύς], é derivado do verbo ỏδύσσομαι, “que está irritado”, “que possui ódio”.
  • 32
    No original: “et facie quali Phoebus depingitur”.
  • 33
    No original: “Sed nullae uolucrum, nullae tetigere ferarum, / quin circum fusae, uisu mirabile, rostris / demissis abeunt, numenque iacentis adorant”.
  • 34
    No original: “Teque tridentipotens uoco, ferque referque uolutum / per scabra muricibus, praeacutaque saxa, ubi demum / ilia rumpantur. Deformia corpora phocas / uisceribus pascat”.
  • 35
    Essa questão é interessante de ser articulada com a perspectiva de François Hartog, para quem coube ao Renascimento estabelecer a equivalência entre Antiguidade (na perspectiva de antigo como oposição ao moderno) e o mundo greco-romano. Segundo o autor, “diferentemente de gregos/bárbaros ou de cristãos/pagãos, o par antigo/moderno não é suscetível de territorialização (salvo nos espaços acadêmicos); com ele tudo se passa na temporalidade” (Hartog, 2003, p. 122).
  • 36
    No original: “saeuiit in Tyriis odiosum nomen Iesu, / hispanum inuasit maiore tyrannide regnum”.
  • 37
    No original: “Extemplo pauci cum praesule ducti / sorte uiri, adsumunt corpus uenerabile sacri / herois, donoque obculti noctis opacae, / conscendere ratem”.
  • 38
    No original: “et Olisipo Christum / denuo iam coleret”.
  • 39
    Resende considera que a dispersão dos gregos se deu pois não queriam, após a vitória sobre os troianos, permanecer sob as ordens de um só rei. Cada qual teria iniciado seu próprio nóstos por razões políticas: “Com efeito, nada inclinados à concórdia, / e indisponíveis para dividir o poder, depois da queda de Pérgamo, / não querendo obedecer a um só chefe, os capitães gregos / dispersaram-se por onde o destino de cada um os chamava / e andaram errantes, longe da pátria, sobre o mar” (Resende, 2018, II, v. 1158-162). Há aqui uma provável negociação com a tradição clássica, também sinalizada quando da substituição da ação de Posêidon pelos ventos (v. 164): o autor “dessacraliza” as causas do périplo de Ulisses, evitando relacionar ao deus dos mares o impulso que conduziu o herói em direção às margens do Tejo.
  • 40
    No original: “et caeli faciem sine nube serenam, / hostiaque alta Tagi, inque uicem certamen aquarum, / amnis ubi frustra luctatur Tethyos undis”.
  • 41
    No original: “indigenasque sibi uario sermone peritus / deuinxit. Nam lingua fere communis et illis, / ut Dionysaei ductis ab origine Lusi, / inuenta est. Vrbisque locum, si condere uellet, / auxiliumque dabant faciles”.
  • 42
    No original: “Ea poterat securus uiuere Olysses / inter Lusiadas, nisi amor reuocasset amatae / coniugis, et patriae, gnatique, et cura parentis”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Mar 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2023
  • Aceito
    26 Jun 2024
location_on
EdUFF - Editora da UFF Universidade Federal Fluminense, Instituto de História, Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bloco O, sala 503, CEP: 24210-201, Tel.: (+55 21)2629-2920, (+55 21)2629-2920 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: revistatempo.iht@id.uff.br
rss_feed Stay informed of issues for this journal through your RSS reader
Accessibility / Report Error