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A trajetória de um intelectual africano

ENTREVISTA

A trajetória de um intelectual africano

Entrevista com Toyin Falola* * Professor catedrático na University of Texas, Austin, Estados Unidos. * Determinação do governo federal americano, que dispõe sobre os centros de pesquisa que dependem de recursos do governo. Este subsídio governamental viabilizou a emergência de estudos africanos, latinos americanos e também de gênero.

Entrevistadores: Marcelo Bittencourt e Roquinaldo Ferreira

1- O senhor nasceu na Nigéria e obteve o título de doutor em 1981, na Universidade de Ifé. Pode contar-nos como é ser um historiador na Nigéria?

TF- Na Nigéria e em quase toda a África, as universidades iniciam suas trajetórias muito bem e adquirem reputação rapidamente, às vezes durante os seus primeiros vinte anos de funcionamento. Para entender minha trajetória no contexto africano, é preciso considerar a mudança do papel dos professores universitários na sociedade. Na "época de ouro" da academia, em meados do século XX, professores universitários eram geralmente muito respeitados. Eram poucos, a nata da elite educada à maneira ocidental. Seus títulos significavam muito: não apenas possuíam experiência e conhecimento, mas sua sabedoria era reverenciada. A dignidade era parte de seu trabalho. Seu papel, segundo a expectativa de muitos na sociedade, era de orientar o governo, "conversar sinceramente com o poder", mostrando como gerar desenvolvimento econômico e estabilidade política, disseminar conhecimento e formar profissionais. Professores universitários tinham poder, derivado do conhecimento adquirido. A primeira geração de professores universitários não questionou as expectativas da sociedade sobre eles. Estes professores não apenas aproveitavam seu status, mas também vendiam a idéia de que precisavam ser vistos com admiração, dignidade e respeito.

Eu não era professor universitário durante esta "época de ouro". Iniciei minha carreira quando a academia africana começou a entrar em declínio. Testemunhei a decadência dos professores universitários nos tempos em que era estudante de graduação quando, no outono de 1973, o regime militar do General Yakubu Gowon afirmou, em um pronunciamento na rádio, que todos os professores universitários que desobedecessem às instruções do governo seriam obrigados a deixar suas residências oficiais. Parte das vantagens do trabalho era acomodação gratuita, uma herança dos tempos coloniais. A torre de marfim foi destruída por um simples pronunciamento de rádio. Muitos se mudaram, outros aceitaram as condições para manter o emprego. O governo interferiu mais e mais, exercendo seu poder para nomear os membros do conselho, os pró-reitores e os vice-reitores. Centralizava contratações, determinava a cota de cada universidade e a proporção de estudantes a serem admitidos em cada curso. As profissões liberais padeceram, porque o governo acreditava que o país precisava de pessoas graduadas em profissões nas quais poderiam criar seus próprios empregos. A educação na África se tornou um negócio e os professores universitários foram convidados a plantar inhame e quiabo para vender!

Outra grande crise se seguiu: subitamente, nos anos 1970, a Nigéria ficou rica com o dinheiro do petróleo. Durante e depois dos anos de boom do petróleo, os que possuíam ligações com os governos estaduais e federal se tornaram prósperos e poderosos da noite para o dia. A sociedade passou a definir o status não em termos de conhecimento e educação nos moldes ocidentais, mas em termos de riqueza e materialismo. A influência da elite ocidentalizada que vinha desde meados do século XIX, entrou em rápido declínio na década de 1970. Os militares dominaram o poder e perdeu-se muito do respeito pelos professores universitários. A profissão começou a perder seu brilho. Professores universitários na Nigéria, e na maior parte da África, responderam da mesma maneira: "se você não pode vencê-los, junte-se a eles". Para participar do poder e do enriquecimento muitos entraram para a política ou para o ramo dos negócios. Os professores universitários, a partir de então, precisavam prover a si mesmos, criando oportunidades para dispor de dinheiro e poder economizar para sua aposentadoria. A pesquisa se tornou gradualmente uma ocupação secundária e o compromisso com o ensino declinou.

Eu mantive o compromisso com a produção de conhecimento e o ensino. Apesar dos obstáculos, consegui publicar muitos ensaios e livros e contribuí para o treinamento de centenas de estudantes de graduação e pós-graduação. Encontrei maneiras de conduzir pesquisas que requeriam poucos recursos; elaborei inúmeros projetos com trabalho de campo; fiz uso extensivo dos recursos do National Archives da Nigéria, em Ibadan, distante menos de duas horas de onde eu vivia; gastei a maior parte do meu salário em pesquisa. As lições que aprendi ainda me são úteis: posso superar desafios e fazer o meu trabalho, como indiquei no meu livro The Power of African Cultures que destaca a cultura como resultado de uma ação deliberada.

2- Como o senhor descreveria a contribuição da Ibadan School of History para o desenvolvimento da historiografia nigeriana?

TF- A Ibadan School (Escola de Ibadan) se baseia na escrita da história africana de uma perspectiva afrocêntrica, cujos detalhes são apresentados no meu livro Nationalism and African Intellectuals. A melhor maneira de apreciar a contribuição da Escola de Ibadan para o desenvolvimento da moderna historiografia africana é considerando, de início, a natureza da reflexão sobre a África e o tipo de história africana ensinada antes do surgimento da nova disciplina acadêmica, nos anos 1940. A história africana era ensinada e tratada como a história dos comerciantes, dos missionários e dos exploradores europeus na África. Devido à ausência de documentos escritos os europeus viam a África e seus povos como destituídos de história. As sociedades sem uma tradição de escrita eram vistas como sociedades de povos sem história. O degradante e desumano tráfico transatlântico de escravos e as noções não científicas sobre raça e civilização, popularizadas nas palavras de David Hume, F. Georg Hegel e Charles G. Seligman foram rapidamente incorporadas e orquestradas por numerosos pesquisadores europeus e pelos construtores e administradores do império colonial. Noções não científicas de história e mudança deram a justificativa intelectual para a colonização e o domínio da África pela Europa.

A história do surgimento da Escola de Ibadan está estreitamente relacionada a Kenneth Onwuka Dike que planejou sua fundação. Significativamente, a nova história africana, da qual Dike foi pioneiro, foi importante devido à necessidade de demonstrar aos colonialistas que a África tinha uma história antes do domínio europeu. A Escola de Ibadan forneceu a arma intelectual para a luta nacionalista, já que, como foi dito, parte da justificativa para a dominação colonial era o fato dos africanos não terem uma história própria. As mudanças começaram nos anos 1950, através de uma reformulação curricular que fez com que a história africana passasse a ser ensinada nas escolas e viabilizou a produção de livros que permitiram este ensino e resultaram em novas formas de pesquisa. Na Nigéria, os cursos ministrados antes da época de Dike contavam a história do Império Britânico e das atividades dos europeus na África. Por isto ele enfrentou problemas para desenvolver um novo currículo que atendesse à nova história: a escassez de textos e monografias. Para solucionar este problema Dike organizou inúmeros congressos, reunindo historiadores, arqueólogos, antropólogos e lingüistas. O estudo das populações africanas ganhou uma dimensão multidisciplinar. Ele facilitou a fundação do National Archives, em 1953; e criou a Historical Society of Nigeria, em 1955, fazendo com que a historiografia africana emergisse com toda força. Estudantes de pós-graduação foram encorajados a se especializar em diferentes aspectos da história da África pré-colonial e colonial. O uso das tradições orais se tornou aceito como método legítimo de reconstrução histórica. A coleção Ibadan History Series editada pela Longman, foi formada a partir de versões revistas da primeira leva de teses de doutorado, constituindo uma nova história acadêmica da África. O Journal of the Historical Society of Nigeria e o Tarikh, uma publicação dedicada a diferentes temas, forneceram os instrumentos para a consolidação da nova disciplina. O Groundwork of Nigeria History, editado por Obaro Ikime, foi um projeto encomendado pela Historical Society of Nigeria, visando a elaboração de um compêndio de fácil manuseio e linguagem simples, com a história dos diversos povos da área geográfica da Nigéria, desde antes do estabelecimento do colonialismo até os dias atuais. A dispersão da disciplina aconteceu e ganhou uma nova coloração. Igualmente dinâmica era a Ahmadu Bello School of History, basicamente uma escola marxista, liderada por Abdullah Smith. Enquanto o número de universidades crescia nos anos 1960, departamentos de história eram criados e a propagação da disciplina se acelerava. Ibadan forneceu mão-de-obra intelectual para novas universidades que surgiram exatamente nos anos 1960. Os principais ensaios produzidos pela Escola de Ibadan são agora parte da série que edito, Classic Authors and Texts on Africa.

3- Como o senhor descreveria sua contribuição pessoal para a historiografia nigeriana?

TF- Em reconhecimento à minha contribuição para a disciplina, meus alunos, amigos e colegas apresentaram três coletâneas de ensaios em minha homenagem, denominadas The Transformation of Nigeria: Essays in Honor of Toyin Falola (2002), organizada por Adebayo Oyebade; The Foundations of Nigeria: Essays in Honor of Toyin Falola (2003), organizada por Adebayo Oyebade; e Precolonial Nigeria: Essays in Honor of Toyin Falola (2005), organizada por Akim Ogundiran. Os capítulos introdutórios destes três livros enfocam minhas contribuições para a historiografia nigeriana. Dentre elas, encontram-se minhas reflexões sobre a história dos iorubás no século XIX; as melhores análises sobre as reformas econômicas e políticas na Nigéria durante o "colonialismo tardio", juntamente com suas políticas modernas; uma série de livros que investiga a Nigéria, como uma nacionalidade desde os primórdios à atualidade; a análise sobre tradições e modernidade; a ligação entre passado e presente, em busca da compreensão do nacionalismo e da construção da nação. Apontam ainda para o sucesso dos meus estudos empíricos sobre a cidade-estado de Ibadan, em dois livros, que cobrem o período de 1830 a 1939, com atenção especial para a economia política e com a aplicação de vários conceitos e teorias na análise da economia e da política.

Os três livros afirmam que eu toquei em todos os grandes temas, sugeri muitos tópicos que outros desenvolveram e treinei estudantes de pós-graduação. Concordo com eles em todas as questões fundamentais. Através de pesquisas e publicações, expandi a fronteira do conhecimento sobre a Nigéria dos séculos XIX e XX. Em muitos trabalhos pioneiros, produzi um grande corpo de novas pesquisas empíricas que têm sido usadas para cobrir grandes lacunas da literatura, como a compreensão das relações de poder, status, gênero, classe e ideologia entre os iorubás; o desenvolvimento de economias indígenas no contexto de expansão global; a criação de novas culturas à luz da penetração do Cristianismo, do Islamismo e das influências ocidentais; e a possibilidade de aproveitar as idéias africanas para formular modelos importantes não apenas para se entender a África, mas também a própria disciplina histórica. Analisei a história da Nigéria moderna durante o século XX, cobrindo todo o espectro da sociedade. De um lado, importantes questões da história nacional foram discutidas em várias publicações sobre política e economia. De outro, as interações entre as camadas mais baixas da população e a história nacional têm sido igualmente examinadas. Editando jornais e organizando três coletâneas para diferentes editoras, identifiquei jovens talentos e novas idéias. Esta é uma posição de liderança que encoraja e habilita outros acadêmicos a revisarem e publicarem seus trabalhos. Além disto, colaboro para uma dúzia de periódicos, o que me possibilita influenciar positivamente a agenda da academia. De tempos em tempos, organizo workshops, simpósios e congressos para reunir historiadores em debates sobre assuntos diversos. Também contribuí para associações profissionais, inclusive como Secretário Geral da Historical Society of Nigeria. Facilitei a circulação de novos conhecimentos nas salas de aula, através da publicação de livros, da formulação de novos cursos e da participação na revisão de currículos. Em vários trabalhos publicados, colaborei com a expansão do conhecimento sobre a África, criando com sucesso elos de ligação entre o grande público e a "torre de marfim". Treinei um grande número de estudantes de graduação e pós-graduação, muitos dos quais se distinguiram em suas variadas trajetórias. Uma reflexão sobre os primeiros anos da minha vida profissional está em minhas memórias, A Mouth Sweeter Than Salt.

4- Até os anos 1970, a historiografia sobre o período colonial focalizou o tema da resistência, em oposição ao colaboracionismo. Embora esta perspectiva deixe de fora inúmeras estratégias dos africanos frente ao colonialismo, esta dicotomia é ainda usada, embora associada a uma nova política, que combina questões étnicas e regionais. Como o senhor encara a persistência desta perspectiva?

TF- A base sobre a qual se erigiu esta cultura pós-colonial é frágil, e isto afetou a interpretação do passado colonial. Um trauma acompanhou o encontro colonial, e uma profunda crise se seguiu ao seu colapso. Os africanos tiveram que sair de uma posição de inferioridade cultural e se esforçaram para alcançar uma paridade cultural frente à propagação da cultura ocidental, autodenominada cultura universal, apresentada em oposição às culturas. Foi difícil delinear cada fase deste embate cultural; e a psicologia da opressão dificulta ainda mais a superação dos obstáculos. Acadêmicos e lideranças africanas não compartilhavam a mesma opinião a respeito da solução para a crise pós-colonial na cultura e o papel dos africanos como agentes de transformação do seu continente. A cultura pré-colonial devia ser romantizada e usada na época contemporânea? É possível transcender a cultura colonial? Existem elementos do período colonial que podem ser recuperados? Todas as sugestões revelam o profundo impacto do colonialismo na África e o legado daquela época, que afeta a historicização dos empreendimentos em termos de resistência e colaboração. A África tem tentado ultrapassar muitos dos problemas relacionados à raça e à cultura, nem sempre com sucesso. O fim do domínio colonial reafirmou o poder dos negros, mas não necessariamente construções hegemônicas baseadas na idéia da África e dos africanos como agentes no contexto colonial. A luta pela independência derrubou a crença na "inferioridade negra". Culturas africanas foram fortalecidas no pós-independência: o sistema educacional assegurou que a África se tornaria o centro da produção de conhecimento; escritores, artistas, cantores, poetas e outros apresentaram o gênio criativo de seus povos e instituições. Contudo, tem sido difícil manter os ganhos da independência e algumas crises pós-coloniais têm-se prolongado mais que as crises coloniais. Neste contexto, dá-se a retomada de velhas idéias, que, mesmo quando desacreditadas, reaparecem como "novas".

5- O senhor organizou uma coleção de livros na Universidade de Rochester, intitulada Africa and African Diaspora, e lançou recentemente uma coletânea de textos sobre a diáspora iorubá, juntamente com Matt Childs. Como o senhor encara o papel de africanistas não africanos _ como Paul Lovejoy, Robin Law, Kristen Mann e outros _ que têm procurado estabelecer uma ponte entre a história da África e os estudos da diáspora africana?

TF- O lugar dos africanistas não africanos no preenchimento das lacunas que separam a história da África dos estudos sobre a diáspora africana não pode ser superestimado. Entretanto, alguns deles - como os citados Robin Law, Paul Lovejoy e Kristen Mann - desempenharam importante papel no desenvolvimento da historiografia africana. Robin Law, foi assistente de pesquisa do falecido Professor Saburi Oladeni Biobaku, um dos pais-fundadores da Ibadan School of History, publicou sua tese de doutorado sobre o antigo império de Oió em 1977; Paul Lovejoy começou sua carreira como historiador econômico, com uma tese sobre o comércio de noz-de-cola, apresentada à Universidade de Wisconsin-Madison, em 1973. O mesmo se aplica a Kristen Mann, cujo estudo sobre casamento e mulheres em Lagos, no século XIX, teve significativo impacto na emergência de estudos de gênero. Estes acadêmicos viveram na Nigéria e voltaram para casa, após muitos anos de trabalho de campo na África, para criar novos cursos e áreas de especialização. Eles contribuíram muito, abrindo caminho para outros africanistas ocidentais que se interessaram pela África a partir de seus exemplos. Ao lado de sua pesquisa sobre os iorubás, Robin Law publicou estudos sobre a escravidão. Paul Lovejoy, depois de dois anos de pós-doutoramento, atuando como professor na Ahmadu Bello University, em Zaria, tornou-se a mais celebrada autoridade em estudos sobre tráfico de escravos e escravidão na África. Ele juntou esforços com outros acadêmicos, como J.D. Fage, Philip D. Curtin e J.E. Inikori para desenvolver e divulgar a história da diáspora africana. Com suas pesquisas estes acadêmicos forneceram uma consistente energia intelectual que trouxe a história da África e do hemisfério ocidental para mais próximo da realidade contemporânea.

6- Um crescente número de africanos está se doutorando e ocupando posições importantes fora da África. O senhor considera que eles estão mudando o entendimento do Ocidente (aqui entendido como Estados Unidos, Canadá e Europa ocidental) acerca da África em geral e da história africana em particular?

TF- Existem duas categorias diferentes de acadêmicos africanos no Ocidente. A primeira é produto da fuga de talentos, resultante da recessão econômica, da procura por melhores condições de trabalho nesses países. A segunda compreende acadêmicos que saíram da África para fazer seus cursos de pós-graduação e por várias razões se recusam a voltar. Há ainda um pequeno número de exilados de seus países de origem por razões políticas. A presença de acadêmicos africanos nas universidades do Ocidente tem contribuído para mudar a percepção que os não-africanos possuem acerca da África e de seus diferentes povos e culturas. De fato, se os africanos não fossem tidos como importante símbolo intelectual e cultural, não seriam contratados como professores. Eles apresentam temas relativos à África de uma perspectiva de dentro. Ensinam a história e as culturas nas quais eles cresceram, com um entendimento mais completo, que parte de dentro delas. A maneira pela qual discutem e entendem as culturas e as instituições africanas é incomparável. O número crescente de acadêmicos africanos ajuda a preencher a lacuna entre o conhecimento sobre as populações africanas e o processo de transformação destes conhecimentos em produtos acadêmicos prontos para o consumo. Eles gozam da reputação de especialistas porque seu conhecimento acadêmico e suas bases culturais se completam, produzindo uma aura de excelência intelectual. Além disto, desempenham papéis importantes na condução dos centros e programas de estudos africanos. O presente êxito em termos de números e qualidade das pesquisas levadas a cabo por acadêmicos africanos e seu papel na mudança da imagem do continente é explicada pela globalização da história africana. Como podemos ver, quanto maior o número de africanistas num departamento de História, maiores serão as chances de se criar um formidável programa de pós-graduação em história e maior é o número de pessoas que provavelmente se tornarão especialistas em África e Diáspora Africana. Acadêmicos africanos, juntamente com seus colegas ocidentais, têm transformado o Ocidente no melhor lugar para se estudar a história da África. Este é um êxito inacreditável, embora em detrimento do continente africano. O fato de os maiores centros de produção acadêmica sobre a África se localizarem no Ocidente demonstra o sucesso da presença e, mais importante, da produtividade acadêmica tanto de africanos quanto de seus colegas ocidentais.

7- Na sua opinião, quais são os principais debates que têm mobilizado os pesquisadores africanos?

TF- A definição do que vale a pena ser estudado varia de acordo com as preferências intelectuais e os sentimentos de cada pesquisador, e suas convicções pessoais influenciam claramente suas agendas. Esta é a principal razão pela qual a pesquisa histórica no continente tem variado muito de uma geração para outra. Vale lembrar, neste sentido, o provérbio iorubá, "a comida de um homem é o veneno do outro". Além dos interesses e das orientações individuais, outro fator preponderante é a disponibilidade das fontes e a acessibilidade às mesmas. O ponto a enfatizar é: o número de especialistas trabalhando com o período colonial é maior do que o número de especialistas trabalhando com o período pré-colonial. Isso ocorre porque os países africanos possuem arquivos onde se pode encontrar grande quantidade de documentos do período colonial. Por outro lado, por motivos de segurança, expressos em leis, documentos sobre o período pós-independência - que podem ser usados para escrever a história recente - geralmente não estão disponíveis para os pesquisadores. Com isto, em parte devido à ausência de documentos acessíveis, a pesquisa sobre a África pós-independência não tem recebido a atenção adequada. Isto gerou algumas mudanças, envolvendo novas metodologias e fontes e a primazia de fontes arquivísticas tem-se tornado impopular entre alguns pesquisadores. Além disto, existe um outro grupo intelectual que reprova o interesse pela história contemporânea por causa da sua fluidez. A dicotomia entre "velha e "nova" história ainda gera grandes debates.

Outro importante fator que influencia o tipo de história produzida pelos historiadores é o que pode ser considerado como corrente intelectual predominante, que é determinado pelas ofertas e demandas do meio acadêmico. O ponto a destacar aqui é que houve época em que a história nacionalista foi predominante. As pessoas estavam interessadas em escrever a história de grandes impérios e monarquias existentes antes que a Europa estendesse seus tentáculos e sua hegemonia sobre a África. Como mencionado anteriormente, este tipo de história ganhou espaço porque forneceu uma arma intelectual para a descolonização, a política do pós-independência e a construção de identidades sociais. Africanos e não-africanos responderam adequadamente a esta onda e, no início da década de 1980, a historiografia nacionalista se tornou saturada e anacrônica. Novas formas de pensar acarretam novas disciplinas e novas disciplinas acarretam novas demandas; novas demandas precisam vir acompanhadas de novas ofertas. A demanda é determinada predominantemente por diferentes universidades ou agências de fomento, que desenvolvem seus currículos a seu modo. Esta dinâmica se aplica à emergência de áreas de especialização, como os estudos de gêneros ou a história das mulheres na África. Quando os estudos de gênero emergiram na África, muitos logo começaram a explorar a história das mulheres na África pré-colonial e colonial. Estudos de gênero e história das mulheres ganharam espaço, e muitas pesquisadoras africanas como Nina Mba, Oniagwu Ogbomo, Gloria Chukwu, Ifi Amadiume e Oyeronke Oyewumi emergiram com excelentes trabalhos neste campo. Como a fronteira do conhecimento é variável, historiadores oferecem a história requerida, a cada momento. Em parte, isto explica o fenômeno da nova e da velha história que formam o fluxo contínuo da produção acadêmica. Novas teorias e reflexões sempre abrem novos caminhos para a expansão das fronteiras do conhecimento.

Independente do contexto e das mudanças teóricas, questões como subdesenvolvimento econômico e político ainda consumirão muito do nosso tempo enquanto historiadores. "Um homem faminto é um homem furioso", diz um ditado do meu povo. Face à pobreza, os intelectuais devem se juntar e encontrar soluções para que milhões de homens furiosos pela fome não usem da violência para destruir os intelectuais e suas bibliotecas.

8- O senhor viveu na Inglaterra, no Canadá e, atualmente, vive nos Estados Unidos. Considerando sua experiência pessoal, o que o senhor diria sobre multiculturalismo e conflitos culturais?

TF- A globalização possui seus críticos e inimigos. Existem os que lamentam o excesso de "estrangeirização" da Europa; existem sentimentos e movimentos contra os imigrantes nos Estados Unidos. Algumas personalidades importantes da direita americana pretendem preservar os Estados Unidos como um "país cristão", baseado no uso da língua inglesa e em uma "divisão étnica do trabalho", com imigrantes fazendo o que os cidadãos americanos rejeitam. Esta é a contradição da direita, que quer uma América branca (sem o trabalho barato dos imigrantes), mas que precisa desta mão-de-obra barata; conseqüentemente, a tendência é importar mão-de-obra estrangeira sem os direitos dos cidadãos ou dos imigrantes tradicionais. Ao invés de abordar problemas individuais, permitam-me enfocar a relação entre nações em um mundo plural em contexto de paz. Para a comunidade global, abandonar a África é ignorar os danos causados pelo tráfico de escravos, pelo colonialismo, pela guerra fria e por um sistema de trocas internacionais injusto. Pedir reparação para os problemas causados pelo tráfico de escravos e pelo colonialismo é em parte uma estratégia para gerar um fluxo de riqueza em direção à África na forma de mão-de-obra qualificada, tecnologia, dinheiro, máquinas e idéias. A perícia e o talento dos africanos, independente de onde eles vivem, precisa ser usada para libertar o continente, para derrubar a opressão e a injustiça, para atacar o racismo e para dar início a reformas políticas e econômicas. Reparações precisam incluir cancelamento de dívidas. Para um continente em crise, usar uma grande porcentagem das receitas anuais para o pagamento da dívida externa é perpetuar uma outra forma de escravidão. Os bancos estrangeiros precisam parar de receber dinheiro roubado dos tesouros do continente africano para desenvolver economias ocidentais. Os que vociferam críticas a dirigentes africanos corruptos devem vociferar mais alto condenando seus bancos e suas empresas que recebem dinheiro roubado. Os que emprestam dinheiro aos líderes, sabendo que eles são corruptos, que desviam e roubam uma parte dos empréstimos e depositam o dinheiro em contas bancárias de países estrangeiros, não deveriam prejudicar milhões de pessoas pobres e inocentes que não participam destas transações duvidosas. Os que, nos países ocidentais, criticam a imigração, em parte por causa do racismo, e querem parar os fluxos migratórios e limitar as oportunidades para os imigrantes que já estão entre eles, deveriam parar de desperdiçar seu tempo criticando os imigrantes. Ao invés disto, deveriam pressionar seus governantes para combaterem a pobreza na África. As pessoas pobres migram, mesmo correndo grande risco de vida. Todos os "afro-pessimistas" devem lembrar uma coisa: se a África sobreviveu ao tráfico de escravos e ao sistema colonial, ela também sobreviverá à atual fase de declínio e desordem.

O multiculturalismo tem vários contextos e dimensões, incluindo o mundo empresarial, a composição do trabalho, a produção e o consumo cultural, assim como a chegada de uma geração de intelectuais negros que conquistou a educação superior depois das lutas pelos direitos civis. Todavia, não devemos confundir o multiculturalismo liberal, que traz consigo um ideal de inclusão, com justiça racial, que exigiria a consideração de fatores variados, incluindo oportunidades iguais de acesso à educação, fundos para desenvolvimento de infra-estrutura, fim da violência racial levada a cabo pelo Estado e participação política substantiva. A recente catástrofe em Nova Orleans, resultante do furacão Katrina, expôs a dura realidade de raça, classe social e sua inter-relação nos Estados Unidos, porquanto os discursos em torno do furacão demonstraram a profunda responsabilidade da hostilidade racial e da agenda venal de alguns segmentos da elite política.

Na educação superior, testemunhamos as "guerras culturais" das décadas de 1980 e 1990, que incluíram uma reação contra o aumento no número de professores e estudantes negros, assim como a crescente autoridade moral de grupos que articulavam análises e estratégias de desenvolvimento educacional em busca da justiça social. Vale ressaltar que as lutas culturais incluíam ataques contra ações afirmativas e programas de estudos étnicos. De um lado, podemos ver que o ideal liberal de diversidade é mais aceito na academia, com crescentes esforços nos níveis administrativos, de serviços dirigidos aos estudantes e entre professores para tornar a diversidade um valor vital nas práticas institucionais e de formulação de políticas. De outro lado, a educação superior é a chave para um ajuste estrutural, o que significa que as regras de financiamento estão sendo redefinidas, o acesso às instituições de elite está sendo restrito e a instituição da estabilidade para professores universitários (denominada tenure) está sendo atacada.

Ademais, a realidade presente e as perspectivas futuras da academia devem ser entendidas no contexto da expansão do neo-imperialismo. A ligação entre as populações negras dos Estados Unidos, despossuídas de seus direitos políticos, e as vítimas das aventuras americanas no exterior podem não ser facilmente identificáveis em instituições de elite como universidades, mas esta ligação é inegável e determinará o acesso, o suporte, a promoção, assim como as agendas de ensino e pesquisa. A tentativa do governo americano de intervir na autonomia das áreas de estudos referidas no Title VI* representa uma agressão direta às lutas e às conquistas dos movimentos em prol da diversidade cultural. De fato, a complexa relação entre educação superior, mercado de trabalho e lideranças políticas e sociais sugere que a luta pela justiça racial e pela equidade cultural está longe do fim; nós não podemos ter uma posição otimista e acreditar que as coisas estão melhorando.

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    Professor catedrático na University of Texas, Austin, Estados Unidos.
    * Determinação do governo federal americano, que dispõe sobre os centros de pesquisa que dependem de recursos do governo. Este subsídio governamental viabilizou a emergência de estudos africanos, latinos americanos e também de gênero.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Ago 2007
    • Data do Fascículo
      Jan 2006
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